Resumo
Embora as legislações brasileiras garantam aos povos indígenas uma formação docente específica, diferenciada, bilíngue e intercultural, na prática, esses direitos nem sempre se efetivam, o que tem causado muitos prejuízos para o desenvolvimento dos processos educacionais e formativos destinados a eles. Diante dessas questões, o objetivo deste artigo é levantar as políticas de formação e carreira docente indígena no estado de Rondônia, no período entre 1988 e 2018, e analisá-las a partir das perspectivas de gestores(as) da Educação Escolar Indígena do estado. Para tanto, recorreu-se a entrevistas semiestruturadas e pesquisa documental. Para a realização das análises, foram utilizados os procedimentos de análise de conteúdo e técnicas de categorização. Os resultados revelam o avanço do estado de Rondônia na política de formação docente e no plano de carreira específico para os indígenas. Conclui-se que o protagonismo das organizações indígenas no estado possibilitou o desenvolvimento de políticas educacionais e formativas para estes povos, embora evidenciem-se situações burocráticas na efetivação e progresso dessas políticas.
Palavras-chave:
Indígenas; Formação Docente; Políticas; Legislação
Abstract
Although the right to a specific, differentiated, bilingual, and intercultural teacher training for indigenous people is guaranteed by the Brazilian legislation, they are not always effective, hampering the development of educational and training processes for these people. Thus, this study aims to survey education policies and the teaching career of indigenous people in the State of Rondônia from 1988 to 2018, and analyze them from the perspectives of the managers of the Indigenous School Education (EIS) of the state. Data were collected by means of semi-structured interviews and documentary research and analyzed in the light of Bardin’s (2011) content analysis and categorization. The results reveal the progress of the teacher education policy and specific career plan for indigenous people in the state. Despite the evident bureaucracy in these policies effectiveness and progress, indigenous organizations played a key role in the development of education and training policies for these peoples.
Keywords:
Indigenous; Teacher Training; Policies; Legislation
Resumen
Aunque las legislaciones brasileñas garanticen a los pueblos indígenas una formación docente específica, diferenciada, bilingüe e intercultural, esos derechos en la práctica no siempre se vuelven efectivos, lo que ha causado muchos perjuicios para el desarrollo de los procesos educativos y formativos destinados a los indígenas. Ante estas cuestiones, en este artículo se propone levantar las políticas de formación y carrera docente indígena en el estado de Rondônia (Brasil), en el periodo de 1988 a 2018, y analizarlas a partir de las perspectivas de gestores/as de la Educación Escolar Indígena de este estado. Para tanto, se recurren a entrevistas semiestructuradas e investigación documental. Para la realización del análisis, se utilizan los procedimientos del análisis de contenido y técnicas de categorización. Los resultados revelan el avance del estado de Rondônia en la política de formación docente y el plan de carrera específico para los indígenas. Se concluye que el protagonismo de las organizaciones indígenas en el estado posibilitó el desarrollo de políticas educativas y formativas para estos pueblos, aunque se evidencian situaciones burocráticas en la efectividad y progreso de ellas.
Palabras clave:
Indígenas; Formación Docente; Políticas; Legislación
A formação docente indígena: Aspectos introdutórios
A educação escolar imposta aos povos indígenas no século XX foi uma educação integracionista, pautada no interesse de agregar os povos indígenas à sociedade não indígena, ignorando suas culturas e costumes. Foi somente a partir da Constituição Federal (CF) de 1988Constituição da República Federativa do Brasil. (1988, 5 de outubro). Diário Oficial da União. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm
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que uma nova perspectiva para a Educação Escolar Indígena (EEI), específica e diferenciada, passou a ser assegurada aos povos indígenas, rompendo, assim, “com uma tradição de quase cinco séculos de política integracionista, ela reconhece aos índios o direito à prática de suas formas culturais próprias” (Ministério da Educação e do Desporto [MEC] & Secretaria de Educação Fundamental [SEF], 1998Ministério da Educação e do Desporto, & Secretaria de Educação Fundamental. (1998). Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas. http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action&co_obra=26700
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, p. 31).
Essa conquista é considerada um marco histórico na luta dos povos indígenas, impulsionando movimentos sociais e o surgimento de organizações de professores e professoras indígenas nos estados do Amazonas, Acre e Roraima, que começaram a exigir da Fundação Nacional do Índio (Funai) escolas nas aldeias, contratação de professores e professoras indígenas, material didático diferenciado etc. (Paladino & Almeida, 2012Paladino, M., & Almeida, N. P. (2012). Entre a diversidade e a desigualdade: Uma análise das políticas públicas para a educação escolar indígena no Brasil dos governos Lula. Contra Capa; Laced.).
De acordo com Freitas e Torre (2016Freitas, M. A. B., & Torre, I. C. (2016). O papel do movimento indígena no processo de escolarização do ensino superior na Amazônia. Olhares Amazônicos, 4(1), 748-761.), foi a partir de iniciativas para a formação de docentes indígenas no Amazonas que estes(as) professores(as) se organizaram e, em 1988, realizaram o I Encontro de Professores Indígenas do Amazonas e Roraima. Como resultado deste encontro, criou-se a Comissão dos Professores Indígenas do Amazonas, Roraima e Acre (Copiar) que, nos anos seguintes, passaram a agregar outros estados ao movimento: Rondônia, Mato Grosso, Amapá, Tocantins e Maranhão, e o movimento passa a se denominar Conselho dos Professores Indígenas da Amazônia (Copiam).
É neste contexto amazônico que destacamos o estado de Rondônia, localizado na região Norte do país e conta com uma resistente presença de indígenas de diversas etnias. Em conformidade com os dados de 2018 do Instituto Socioambiental (s.d.Instituto Socioambiental. (s.d.). Povos indígenas Brasil.https://pib.socioambiental.org/pt/Quadro_Geral_dos_Povos
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) e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi, s.d.Conselho indigenista missionário. (s.d.). Terras indígenas. https://cimi.org.br/terras-indigenas/
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), a população indígena no estado é de aproximadamente 15 mil indígenas, representados por 54 etnias que vivem nas 26 terras indígenas, das quais 20 são reconhecidas e outras seis aguardam regulamentação.
De acordo com a Secretaria de Estado da Educação de Rondônia (Seduc), a EEI no estado possui aproximadamente 4.127 estudantes, do ensino fundamental ao ensino médio, ocupando as 118 escolas indígenas do estado e um quadro de 397 profissionais: professores e professoras, sabedores e técnicos educacionais.
Para Venere (2018Venere, M. R. (2018). Projeto Açaí: Uma contribuição à formação dos professores indígenas no estado de Rondônia. Cultura Acadêmica.), as primeiras iniciativas voltadas ao atendimento da EEI, em Rondônia, decorreram de ações missionárias e associações não governamentais, sendo o Cimi o precursor na formação de docentes indígenas no estado, durante o período compreendido pelos anos finais de 1980 e o início de 1990. Outra ação significativa foi desenvolvida a partir da atuação do Instituto de Antropologia e Meio Ambiente (Iama), em 1989, com a criação de um projeto voltado ao atendimento da saúde e educação do povo Suruí; posteriormente, este instituto iniciou um projeto para a formação docente indígena, cujas ações fomentaram discussões para a criação de políticas de formação docente indígena.
Ainda na perspectiva da garantia dos direitos educacionais dos povos indígenas, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), nº 9394, de 1996Lei nº 9394. (1996, 20 de dezembro). Dispõe sobre as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/529732/lei_de_diretrizes_e_bases_1ed.pdf
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, veio complementar o que já estava garantido pela CF de 1988Constituição da República Federativa do Brasil. (1988, 5 de outubro). Diário Oficial da União. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm
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, quanto aos direitos relativos à EEI quando evidencia suas especificidades, enfatizando a diferenciação da escola indígena em relação às demais escolas, principalmente no que tange ao bilinguismo e à interculturalidade.
Em conformidade com a CF (1988Constituição da República Federativa do Brasil. (1988, 5 de outubro). Diário Oficial da União. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm
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) e com os preceitos da LDB (1996), o MEC elaborou, em 1998, o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI). Este referencial apresenta ideias e sugestões para se trabalhar as áreas do conhecimento em cada ciclo escolar, visando ao respeito à cultura indígena e à melhoria do ensino nestas escolas e apontando a necessidade de investimentos na formação de docentes indígenas, para que atuem na própria educação escolar, gestão pedagógica e curricular.
De acordo com o RCNEI, só muito recentemente é que os sistemas de ensino começaram a se preocupar em construir propostas específicas para a formação de docentes indígenas; deste modo, ele se orienta a partir da seguinte proposta de estudo: “Essa formação deve prepará-los, dentre outros, para o incentivo à pesquisa linguística e antropológica e para a produção de material didático” (MEC & SEF, 1998Ministério da Educação e do Desporto, & Secretaria de Educação Fundamental. (1998). Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas. http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action&co_obra=26700
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, p. 42).
Na perspectiva de nortear os cursos de formação docente indígena, a Câmara de Educação Básica (CEB) do Conselho Nacional de Educação (CNE) aprova, em 1999, a Resolução nº 3Resolução nº 3. (1999, 10 de novembro). Fixa Diretrizes Nacionais para o funcionamento das escolas indígenas e dá outras providências. Ministério da Educação. http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CEB0399.pdf
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, que trata das Diretrizes Curriculares Nacionais para o funcionamento das escolas indígenas, trazendo importantes contribuições, uma vez que orienta para uma formação específica e para a possibilidade de ela ocorrer concomitantemente à atuação desses docentes em suas comunidades, exigindo dos estados a instituição de programas diferenciados para esta formação.
Assim, uma ação significativa para a formação de docentes indígenas que ocorreu por intermédio do Ministério da Educação e da Secretaria de Educação Fundamental foi a elaboração, em 2002, dos referenciais para formação de professores indígenas, visando orientar os programas de formação docente indígena. A elaboração destes referenciais ocorreu a partir de discussões com as comunidades indígenas, buscando conhecer suas necessidades educativas e expectativas com relação à formação de seus professores e a práticas de formação já realizadas por projetos e programas em alguns estados do país.
Segundo estes referenciais, os programas de formação docente indígena “precisam dar conta de formar professores indígenas para a pesquisa e para a reflexão pedagógica e curricular, de forma que pensem e promovam a renovação da sua educação escolar, sensíveis às necessidades históricas de sua comunidade” (MEC & SEF, 2002Ministério da Educação, & Secretaria de Educação Fundamental. (2002). Referenciais para a Formação de Professares de Professores Indígenas. http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Livro.pdf
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, p. 23).
Analisando a formação de docentes indígenas, Cavalcante (2003Cavalcante, L. I. P. (2003). Formação de professores na perspectiva dos movimentos dos professores indígenas da Amazônia. Revista Brasileira de Educação, (22), 14-24. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-24782003000100003
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), Grupioni (2006Grupioni, L. D. B. (Org.). (2006). Formação de professores indígenas: Repensando trajetórias (Vol. 8). Ministério da Educação.) e Maher (2006Maher, T. M. (2006). Formação de professores indígenas: Uma discussão introdutória. In L. D. B. Grupioni (Org.), Formação de professores indígenas: Repensando trajetórias (Vol. 8, pp. 11-37). Ministério da Educação.) destacam os desafios dos cursos de formação docente indígena, visto que são os próprios docentes os pesquisadores e pesquisadoras de sua cultura, falantes da língua materna, elaboradores de materiais didáticos. Desta maneira, os docentes precisam estar conscientes de seus papéis políticos e sociais, pois são responsáveis pela formação crítica dos estudantes indígenas para o exercício da cidadania dentro e fora de suas aldeias.
A Resolução nº 5, de 2012Resolução nº 5. (2012, 22 de junho). Define Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica. Ministério da Educação. http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=11074-rceb005-12-pdf&category_slug=junho-2012-pdf&Itemid=30192
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, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica, esclarece, em seu Art. 20, § 1: “A formação inicial dos professores indígenas deve ocorrer em cursos específicos de licenciaturas e pedagogias interculturais . . . em cursos de magistério indígena de nível médio na modalidade normal”. Em conformidade com esta resolução, foram instituídas, em 2015, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores Indígenas em cursos de educação superior e de ensino médio, regulamentada pela Resolução nº 1, de 2015Resolução nº 1. (2015, 7 de janeiro). Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores Indígenas em cursos de Educação Superior e de Ensino Médio e dá outras providências. Ministério da Educação. http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=16870-res-cne-cp-001-07012015&category_slug=janeiro-2015-pdf&Itemid=30192
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, que traz em seu Art. 1º, parágrafo único, a seguinte declaração: “Estas diretrizes têm por objetivo regulamentar os programas e cursos destinados à formação inicial e continuada de professores indígenas no âmbito dos respectivos sistemas de ensino, suas instituições formadoras e órgãos normativos”. Estas regulamentações trouxeram contribuições para os cursos de formação docente indígena, orientando seus projetos, princípios, objetivos e propostas curriculares.
Em atenção aos marcos legais das políticas de formação docente indígena, realizamos esta breve retrospectiva, apresentando as leis e as políticas de formação nacionais, a fim de possibilitar a compreensão do desenvolvimento desta formação em Rondônia, pois, consequentemente elas influenciaram e contribuíram para que leis e políticas estaduais fossem criadas.
Assim, o presente estudo tem como objetivo levantar as políticas de formação e carreira docente indígena no estado de Rondônia, no período entre 1988 e 2018, e analisá-las a partir das perspectivas de gestores(as) da educação escolar indígena do estado.
O estudo se desenvolve dentro da linha de pesquisa da psicologia escolar e processos educativos, pois compreendemos que a psicologia, no âmbito educacional, precisa pensar a formação docente, já que ela é um aspecto da política educacional muito relevante para o contexto escolar. Deste modo, discutir as demandas educacionais da formação de docentes indígenas e refletir sobre ela representa um avanço rumo ao respeito e à luta dos povos indígenas por educação.
Neste sentido, para compreender a recente aproximação da psicologia com as temáticas indígenas, deparamo-nos com algumas significativas produções na área da psicologia que tratam do assunto. Assim, destacamos o trabalho de Ferraz e Domingues (2016Ferraz, I. T., & Domingues, E. (2016). A psicologia brasileira e os povos indígenas: atualização do estado da arte. Psicologia: Ciência e Profissão, 36(3), 682-695. http://dx.doi.org/10.1590/1982-3703001622014
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), realizado a partir de uma investigação do estado da arte na relação entre povos indígenas e a psicologia; em que as autoras afirmam a escassez de produções que contemplem esta temática e a ausência de um campo teórico bem definido nos resultados encontrados, apresentando, como marco significativo desta proximidade, o relatório do seminário “Subjetividade e Povos Indígenas” (2004) e o livro “Psicologia e Povos Indígenas” (2010), nos quais foram levantados debates no intuito de contribuir com as demandas indígenas e com orientações aos psicólogos no trabalho com os povos indígenas. Ainda, destacam o I Encontro Nacional de Psicologia, Povos Indígenas e Direitos Humanos/ II Seminário de Saúde Mental Indígena, realizado em 2013, no Mato Grosso do Sul, o qual oportunizou diálogos entre profissionais de áreas distintas que trabalham com estes povos.
Na investigação das autoras supracitadas, foram encontrados e organizados em blocos temáticos 25 trabalhos; no bloco temático “educação”, elas destacam quatro produções que discutem a educação indígena, e indicam que estes trabalhos se semelham ao discutirem as necessidades educacionais diferenciadas dos povos indígenas. Os resultados destas quatro produções são os mais próximos do nosso interesse investigativo, assim, constatamos a carência de produções na área da psicologia voltadas para as temáticas da educação indígena.
Na perspectiva da aproximação da psicologia com os povos indígenas e da relevância desta relação, chamou nossa atenção a discussão de Maldos (2010Maldos, P. R. M. (2010). A contribuição indígena na construção do nosso futuro comum. In Conselho Regional de Psicologia da 6ª Região, Psicologia e povos indígenas (pp. 272-278). CRPSP.) em debate realizado pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, sobre a contribuição indígena na construção do nosso futuro comum. Para o autor, a sociedade nacional tem muito a aprender com os povos indígenas, principalmente no que se refere ao relacionamento que estes mantêm com a natureza, e os psicólogos têm muito a contribuir no processo de escuta, interlocução e respeito a subjetividades distintas, com papel fundamental de atuar junto à transformação desta sociedade e ao combate da subjetividade colonial ainda existente em nós. Em seu discurso, Maldos destaca a CF de 1988Constituição da República Federativa do Brasil. (1988, 5 de outubro). Diário Oficial da União. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm
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como marco histórico na garantia dos direitos desses povos a seus territórios e ao respeito a suas culturas e seus modos próprios de viver.
Tendo em vista a garantia de direitos relativos à formação e carreira de docentes indígenas, este estudo se sustenta a partir da CF de 1988Constituição da República Federativa do Brasil. (1988, 5 de outubro). Diário Oficial da União. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm
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, das políticas de formação e das leis que a regulam e orientam.
Método
Este estudo se desenvolve por meio da pesquisa documental e de entrevistas. Para levantar e analisar as políticas de formação e carreira docente indígena em Rondônia, realizamos pesquisa documental e entrevistas semiestruturadas com três gestoras e um gestor da EEI do estado.
Para Severino (2007Severino, A. J. (2007). Metodologia do trabalho científico (23a ed.). Cortez.), a pesquisa documental se desenvolve por meio de diversas fontes primárias, como documentos legais, jornais, fotos, filmes e gravações, que passarão pela investigação e análise do pesquisador. E, para a realização das entrevistas semiestruturadas, utilizamos um breve roteiro, pois, de acordo com Minayo (2014Minayo, M. C. S. (2014). O desafio do conhecimento: Pesquisa qualitativa em saúde. 14a ed. Hucitec.), as entrevistas semiestruturadas dão maior liberdade ao entrevistado para discorrer sobre o tema e ainda possibilitam ao pesquisador se guiar por um roteiro pré-estabelecido. As entrevistas foram realizadas individualmente e gravadas em áudio; as gravações foram textualizadas, ou seja, transformadas em textos escritos.
Os procedimentos adotados nesta pesquisa obedecem aos Critérios da Ética em Pesquisa com Seres Humanos e estão em conformidade com as resoluções nº 304/2000, nº 466/2012 e nº 510/2016, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), e aprovação da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep).
As gestoras participantes desta pesquisa são professoras e chefes dos Núcleos de Educação Escolar Indígena (Neei), uma delas indígena; e o gestor participante é professor indígena e coordenador dos Neei do estado. A escolha destes participantes se deu por estarem à frente dos Neei nas regiões onde se encontram o maior número de escolas e, consequentemente, de professores e professoras indígenas.
Os Neei possuem uma coordenação geral, um setor localizado dentro da estrutura da Seduc, na capital do estado, Porto Velho, dirigida por um indígena e que tem como função coordenar, orientar e apoiar os Neei municipais; porém, não é um órgão independente, está submetido hierarquicamente à Seduc. Os Neei localizados nos municípios são coordenados por pessoas denominadas chefes da EEI.
Para nos referir às chefes participantes deste estudo, utilizamos as seguintes siglas: C01, C02, C03. A chefe indígena C01 pertence à etnia Oro Mon, assumiu a chefia do Neei no município de Guajará-Mirim em 2017; foi a primeira mulher indígena a assumir este cargo no estado. A chefe não indígena C02 trabalha junto aos povos indígenas desde 1992 e assumiu a chefia do Neei no município de Cacoal em 2009. A chefe não indígena C03 trabalhou como técnica pedagógica no núcleo de Porto Velho desde 2003, e assumiu a chefia no município de Ji-Paraná, em 2014. O coordenador do Neei do estado pertence à etnia Poruborá; é um profissional indígena que sempre esteve à frente das questões políticas que envolvem os povos indígenas e assumiu esta coordenação no ano de 2016.
Para a realização das análises dos dados utilizamos os procedimentos de análise de conteúdo sugeridos por Bardin (2011Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo. Edições 70.), organizadas em três etapas: a pré-análise; a exploração do material e o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação. Como técnica, recorremos à análise categorial, considerando que “a categorização é uma operação de classificação de elementos constitutivos de um conjunto por diferenciação e, em seguida, por reagrupamentos segundo o gênero (analogia), com os critérios previamente definidos” (p. 147).
Assim, estabelecemos relações entre os dados obtidos a partir das fontes documentais e das entrevistas, a fim de compreender as confluências e as divergências, dentre outras questões que emergiram ao longo da análise.
As categorias que emergiram durante o processo de análise foram: a) as conquistas da formação e carreira docente indígena em Rondônia; b) os desafios para a formação e carreira de docentes indígenas em Rondônia; c) as dificuldades e entraves no âmbito das políticas educacionais e formativas no estado de Rondônia.
Resultados e discussões
Nesta seção discutiremos os resultados da pesquisa realizada, obtidos por meio das entrevistas semiestruturadas. Durante o processo de análise foi possível a organização de categorias temáticas que possibilitaram a articulação entre o arcabouço teórico e a pesquisa documental no âmbito das políticas públicas para a formação de docentes indígenas em nível local e nacional.
As conquistas da formação e carreira docente indígena em Rondônia
A representativa participação política dos professores e professoras indígenas e a luta dos movimentos sociais indígenas na região propiciou a criação dos cursos de formação docente em nível médio e superior em Rondônia.
O governo do Estado oferece aos professores indígenas o curso de formação de Magistério Indígena (Projeto Açaí), que está sendo ofertado a III etapa. Temos professores com formação em Magistério Indígena e nível superior formados pela Universidade Federal de Rondônia, campus de Ji-Paraná, através do curso de Licenciatura Intercultural específico para atender os cursistas indígenas com Magistério e Ensino Médio… toda essa conquista ocorreu com a luta dos povos indígenas, reivindicadas através de assembleias (Chefe C01).
O Projeto Açaí é um marco na formação docente indígena no estado, instituído pelo decreto nº 8.516, de 1998, em cumprimento das garantias legais a uma educação específica e diferenciada para os povos indígenas e se desenvolveu em sua primeira etapa de formação durante os anos de 1998 a 2004, com dez etapas presenciais e uma intermediária, pautadas na educação específica, bilíngue e intercultural.
Assim como em outros estados brasileiros, a partir da formação de docentes indígenas em nível médio, surge a demanda por formação em nível superior. Desta maneira, por meio da Resolução nº 198, de 2008Resolução nº 198. (2008, 18 de novembro). Projetos Políticos Pedagógicos. Conselho Superior de Acadêmico. http://www.deinter.unir.br/uploads/87443803/arquivos/Autoriza__o___Resolu__o_198_CONSEA_2008_1721968702.pdf
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, foi aprovado o projeto do curso de Licenciatura em Educação Básica Intercultural na Unir, no campus da cidade de Ji-Paraná, iniciando o processo seletivo em 2009.
As ações voltadas para o atendimento às demandas dos povos indígenas ao ensino superior foram iniciadas pelo Núcleo de Educação Escolar Indígena de Rondônia (Neiro), fórum de discussão voltado às questões que envolvem a EEI, composto por indígenas e não indígenas. De acordo com Neves, Gavião e Abrantes (2018Neves, J. G., Gavião, H. T., & Abrantes, C. T. (2018). Memória e movimento social: Repercussões do Neiro na formação docente indígena em Rondônia - do Projeto Açaí à Licenciatura Intercultural. Tellus, (36), 89-121. http://dx.doi.org/10.20435/tellus.v18i36.462
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), a atuação do Neiro em Rondônia como movimento social viabilizou ações perante as políticas públicas no atendimento das demandas educacionais dos povos indígenas e atuou significativamente na construção e implantação dos cursos de formação docente indígena no estado.
A conquista da formação superior para docentes indígenas foi muito significativa, pois representa “um pequeno passo na direção da viabilização do direito à educação, do respeito às culturas tradicionais, na medida em que, com esta ação, favorece a permanência de docentes e estudantes indígenas em suas comunidades” (Neves, 2009Neves, J. G. (2009). Universidade e povos indígenas: A possibilidade do diálogo intercultural na floresta. In N. F. G. do Amaral (Org.), Multiculturalismo na Amazônia: O singular e o plural em reflexões e ações (pp. 78-90). CRV., p. 79).
Assim, a expressiva atuação dos povos indígenas em Rondônia e, consequentemente, a formação de docentes indígenas fomentaram a realização do concurso público específico para contratação desses(as) docentes, fato evidenciado na narrativa a seguir: “Foi só em Rondônia, ainda em nível de Brasil. Rondônia foi o único a realizar um concurso específico para professores indígenas; isso se deve ao fato dos próprios indígenas terem lutado por isso” (Coordenador). Esta narrativa confirma o que já dizia Freire (1979Freire, P. (1979). Conscientização: Teoria e prática da libertação: Uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. Cortez & Moraes., p. 40): “aqueles que estão conscientizados apoderam-se de sua própria situação, para transformá-la”.
O pioneirismo de Rondônia, destacado pelo coordenador, deu-se a partir da formação e habilitação dos(as) docentes indígenas em magistério indígena, o que impulsionou a criação de um plano de carreira para estes(as) profissionais, por meio da Lei complementar nº 578, de 2010Lei complementar nº 578. (2010, 1 de junho). Dispõe sobre a criação do Quadro de Magistério Público Indígena do Estado de Rondônia, da carreira de Professor Indígena e da carreira de Técnico Administrativo Educacional Nível 1 e Técnico Administrativo Educacional Nível 3, na forma que indica. https://sapl.al.ro.leg.br/norma/4997
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, que veio garantir a carreira e o ingresso nela por meio de concurso público, pois, até então, os(as) docentes que atuavam nas escolas indígenas eram leigos(as).
Desta maneira, o concurso realizado no estado para preencher o quadro do magistério público indígena garantido na lei supracitada contou com um edital exclusivo para indígenas, criando também o cargo do “professor sabedor”, um profissional conhecedor da história e cultura de seu povo que vem contribuindo significativamente com as escolas indígenas, com vistas à preservação e valorização dos saberes tradicionais, culturais e linguísticos.
Os sabedores indígenas, que são os indígenas idosos ou não idosos, mas que não têm estudos, mas são o notório saber, que ele vai passar para os alunos os conhecimentos tradicionais de cada povo indígena, e hoje são profissionais que estão sendo inseridos dentro das escolas, hoje nós temos 12 em nível de estado (Coordenador).
Acreditamos que a inserção deste sabedor na escola vai contribuir para que crianças e jovens indígenas compreendam as transformações ocorridas ao longo de suas histórias e se posicionem em relação a elas, com ações necessárias na atualidade. Freire (2016Freire, P. (2016). Pedagogia da indignação: Cartas pedagógicas e outros escritos (3a ed.). Paz e Terra.) assevera que cada momento vivido é histórico e carrega em si marcas do passado, porém, necessita da compreensão daqueles e daquelas que o estão vivenciando.
Ainda no cenário das conquistas educacionais em Rondônia, ganha destaque a aprovação da Lei complementar nº 884, de 2016Lei complementar nº 884. (2016, 27 de junho). Institui o Conselho Estadual de Educação Escolar Indígena. http://ditel.casacivil.ro.gov.br/COTEL/Livros/Files/LC884.pdf
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, que cria o Conselho Estadual de Educação Escolar Indígena, descreve, em seu artigo 1º, suas atribuições como “órgão consultivo, deliberativo e de assessoramento técnico, sobre as matérias relativas as ações, aos projetos e às políticas públicas da Educação Escolar Indígena, desenvolvidas juntas às comunidades indígenas em todas as etapas, níveis e modalidades de ensino”. Este órgão é constituído por conselheiros indígenas indicados por suas comunidades e também passarão por ele as demandas das políticas de formação docente indígena do estado.
O mais importante que eu considero uma conquista do estado de Rondônia, é que conseguimos aprovar uma lei que cria o Conselho Estadual de Educação . . . com muita luta, conseguimos agora a autorização para escolher os conselheiros e provavelmente o próximo governador talvez consiga instalar o Conselho . . . o Conselho ainda não é normativo, mas ele é consultivo e deliberativo, ou seja, consulta as comunidades indígenas e determina para que o outro Conselho Estadual de Educação só homologue, então, aí o que acontecer relacionado à Educação Escolar Indígena vai ter que passar pelo Conselho, até os cursos de formação está previsto que o Conselho acompanhará; então, eu considero daí um grande avanço para a educação (Coordenador).
As ações apontadas pelas gestoras e pelo gestor da EEI refletem as conquistas dos povos indígenas e seu protagonismo na condução de seus processos educacionais, a partir da criação dos cursos de formação docente indígena, da inserção do professor sabedor no quadro de profissionais da escola indígena, do plano de carreira garantido em lei estadual, da contratação desses profissionais por meio de concurso público e da criação do Conselho Estadual de Educação Escolar Indígena.
Estas conquistas retratam muitas lutas e reivindicações que foram necessárias travar perante o Estado. As representações e atuações dos povos indígenas frente às políticas educacionais e de formação docente construíram o protagonismo destes povos como professores(as), gestores(as), profissionais da EEI.
Os desafios para a formação e carreira de docentes indígena em Rondônia
Embora o Estado oferte a formação inicial para docentes indígenas em Rondônia por meio do Projeto Açaí - magistério indígena desde 1998, ele possui um grande débito com estes(as) docentes devido à ausência da formação continuada, resultando em um desafio que precisa ser superado.
A formação continuada que vai acontecer ainda este ano para os professores e, no futuro, a gente define isto como política do estado, para todo ano realizar a formação continuada, não só para os professores indígenas, mas os professores não-indígenas e também os técnicos que atuam no núcleo de Educação Escolar Indígena (Coordenador).
Para a chefe C03 “o Estado precisa garantir a formação continuada, e isto sim, eu sei que já tem muitos projetos já foi escrito, já foi planejado . . . mas na prática, ainda não chegou”. Fica evidente a preocupação da gestora e do gestor quanto à formação continuada para estes(as) docentes e a consciência do papel que o Estado precisa assumir frente a esta formação.
Neste cenário de desafios, olhamos para a carreira de docentes indígenas, pois, apesar de estar garantida na Lei complementar nº 578, de 2010Lei complementar nº 578. (2010, 1 de junho). Dispõe sobre a criação do Quadro de Magistério Público Indígena do Estado de Rondônia, da carreira de Professor Indígena e da carreira de Técnico Administrativo Educacional Nível 1 e Técnico Administrativo Educacional Nível 3, na forma que indica. https://sapl.al.ro.leg.br/norma/4997
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, a qual prevê o ingresso na carreira por meio de concurso público, o que se constata é uma grande demanda desses(as) profissionais, que aguardam por concurso.
A gente tem professor e professora indígena emergencial, porque na época do concurso em 2015 eles não estavam com o diploma . . . mas agora diz a Seduc que vai ter concurso o ano que vem, aí é possível estes que estão como emergenciais também sejam concursados, efetivados e aí a Educação Escolar Indígena vai assumindo né, porque quando você trabalha com indígena é diferente, a discussão sobre a questão da língua indígena, política linguística, currículo, é outro olhar (Chefe C02).
O modo como este chefe percebe as políticas para EEI e a prática educativa dos(as) docentes indígenas caminha na direção do que afirma Freire (2001Freire, P. (2001). Política e educação: Ensaios (5a ed.). Cortez., p. 21) “não pode existir uma prática educativa neutra, descomprometida, apolítica. A diretividade da prática educativa que a faz transbordar sempre de si mesma e perseguir um certo fim, um sonho, uma utopia, não permite sua neutralidade”.
Desta maneira, a Chefe C02 também ressalta as demandas das mulheres indígenas, pois, com a crescente presença das mulheres nos cursos de formação, é necessário que as instituições formadoras e as políticas de formação docente tomem providências em favor delas.
Eu acho que a Unir vai ter que pensar estratégias diferenciadas e um menor tempo possível dessas pessoas lá dentro do espaço… tentar fazer a formação mais próximo das comunidades, da família, porque não tem como elas levarem todos e elas vão e vem, a bolsa que recebem não dá para manter elas lá, hospedagem, alimentação, transporte… o ideal seria menos tempo fora do território, e que a Universidade conseguisse uma não presencial, eu falo, espaço físico, ter uma não presencial dentro das aldeias, pelo menos por povo, não falo por escola, mas isso a gente está discutindo dentro do Intercultural (Chefe C02).
Diante destas questões, o desafio é fazer que as instituições e programas revejam suas estratégias formativas, a fim de garantir a permanência dessas mulheres, pois, quando se trata de educação e formação para os povos indígenas é preciso levar em conta os fatores culturais que envolvem estes povos. É neste sentido que as mulheres indígenas apresentam suas maiores dificuldades “geralmente todos os anos elas ficam grávidas ou então de dois em dois anos, então são fatores culturais, fatores de saúde, eu vejo que é assim, as professoras indígenas, as mulheres, sofrem muito para conseguirem estudar” (Chefe C02).
De acordo com Brito (2016Brito, P. O. (2016). Indígena-mulher-mãe-universitária: O estar-sendo estudante na UFRGS. [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul]. Lume UFRGS. https://lume.ufrgs.br/handle/10183/148633
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), para as mulheres indígenas não existe separação dos papéis de mulher, indígena, mãe e estudante, por isso, é muito comum a gravidez durante seus processos formativos e universitários.
A criação do Conselho Estadual de Educação Escolar Indígena, garantido na Lei complementar nº 884, de 2016Lei complementar nº 884. (2016, 27 de junho). Institui o Conselho Estadual de Educação Escolar Indígena. http://ditel.casacivil.ro.gov.br/COTEL/Livros/Files/LC884.pdf
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, já citada pelo coordenador como uma conquista dos povos indígenas, caracteriza-se também como um desafio para estes povos; a narrativa a seguir apresenta muita preocupação quanto à efetivação desta lei.
Então o Conselho está criado e o que falta agora é instalar . . . ainda não foi instalado por falta do interesse do próprio estado . . . para instalar o Conselho depende de recurso, tem que entrar no planejamento do estado, porque tudo envolve recurso, pois, como estes conselheiros vão vir para cá, passagens, hospedagem né e, também o espaço para realizar as reuniões; então, precisa-se de uma estrutura (Coordenador).
De acordo com o coordenador, com a instalação do Conselho, este acompanhará todas as demandas, as orientações da EEI e da formação docente, o que resultará em significativas contribuições educacionais e formativas. Porém, no momento, a instalação depende da nova gestão de governo, iniciada em 2019.
Estas situações revelam que ainda há muito que ser concretizado no âmbito das políticas do estado com relação à formação e carreira de docentes indígenas, motivo de muitas discussões e expectativas por parte das lideranças indígenas, dos(as) docentes indígenas, das gestoras e gestores da EEI.
As dificuldades e entraves no âmbito das políticas educacionais e formativas no estado de Rondônia
As burocracias por parte das políticas educacionais e de formação docente indígena têm sido causa de muitas preocupações para as gestoras e o gestor, pois, estando as gestoras e o gestor a frente dos processos educativos, muitas vezes se sentem impotentes diante de algumas demandas.
A grande dificuldade hoje dos cursos de formação, são os próprios formadores . . . a educação indígena, ela faz parte do organograma da Secretaria de Educação do estado, ou melhor, o estado é responsável pela educação escolar indígena, o município só pode ofertar se for em convênio com o estado, mas, para fazer esta formação hoje, a gente tem dificuldade porque, para que os próprios setores liberem este pessoal para esta formação, a grande dificuldade é esta, além da parte burocrática, fazer licitação, essa coisas, e recursos. O Projeto Açaí de 2017 a 2018, nós estamos realizando só com recursos do estado, o recurso do governo federal, praticamente ele encerrou e a gente está lutando novamente para que isso venha acontecer a partir de 2019; então, são essas as dificuldades, de recurso e, principalmente, as licitações que demoram muito (Coordenador).
Para Matos e Monte (2006Matos, K. G., & Monte, N. L. (2006). O estado da arte da formação de professores indígenas no Brasil. In L. D. B. Grupioni (Org.), Formação de professores indígenas: Repensando trajetórias (Vol. 8, pp. 69-111). Ministério da Educação.), as burocracias políticas precisam ser superadas em favor de políticas que primem pela diversidade étnica e sociocultural, uma vez que
Tem-se em operação no país uma vasta rede de agentes da burocracia estatal, nesse caso, sobretudo na esfera federal, que aferroada a seus postos e procedimentos de trabalho, desenvolve inúmeras estratégias de manutenção do status quo. Criam-se dessa forma, por pressões corporativistas, inúmeros obstáculos à implantação e implementação de novos programas necessários à promoção da diversidade cultural e à inclusão dos interesses e necessidades indígenas na pauta e nas agendas de governo (Matos & Monte, 2006Matos, K. G., & Monte, N. L. (2006). O estado da arte da formação de professores indígenas no Brasil. In L. D. B. Grupioni (Org.), Formação de professores indígenas: Repensando trajetórias (Vol. 8, pp. 69-111). Ministério da Educação., pp. 93-94).
Essas questões burocráticas são causas de grandes atrasos educacionais em Rondônia, como pudemos observar no caso do Projeto Açaí - Magistério Indígena, que tem sofrido com essas situações desde sua constituição. De acordo com Venere (2018Venere, M. R. (2018). Projeto Açaí: Uma contribuição à formação dos professores indígenas no estado de Rondônia. Cultura Acadêmica.), o reconhecimento e a legalização da formação de professores e professoras indígenas por parte do Conselho Estadual de Educação de Rondônia demoraram a ocorrer: mesmo tendo o curso iniciado sua primeira etapa em 1998, só passou a ter reconhecimento legal em 2006, o que causou muitos prejuízos aos concluintes, principalmente com relação ao prosseguimento dos estudos em nível superior.
A falta de professores e professoras nas escolas indígenas também é uma grande dificuldade para EEI, principalmente quando estes professores e professoras precisam ir para formação.
O número de professores é ainda insuficiente para atender toda a demanda da clientela estudantil. A maioria dos cursistas são professores e, no período do curso, precisam se ausentar e, muitas vezes, falta o professor substituto e estas escolas ficam sem aula durante a ausência do professor (Chefe C01).
Neste cenário, também se discute a negação das especificidades da EEI por parte daqueles e daquelas que administram o estado, e esta é uma das principais causas de prejuízos a esta educação.
A maior das dificuldades . . . é fazer com que o sistema compreenda que a Educação Escolar Indígena faz parte deste sistema e deve ser tratada dentro da sua especificidade, não da forma de que alguém que está no estado ou a frente, acha que deve ser; a partir do momento que estas especificidades forem, de fato, encarada como uma coisa única dos povos indígenas, eu tenho certeza que a educação, ela avançará, mas, enquanto o próprio sistema não compreender isto, as dificuldades vão ser grandes (Chefe C02).
Ainda falta o cumprimento das características da escola indígena: específica, diferenciada, intercultural, comunitária e bilíngue. O sistema ainda não conseguiu implementar ou cumprir com a legislação vigente, em relação à Educação Escolar Indígena, conforme a especificidade de cada povo, garantida pela Constituição (Chefe C01).
Podemos dizer que o não cumprimento de direitos já conquistados legalmente é em decorrência das negligências governamentais. Freire (2001Freire, P. (2001). Política e educação: Ensaios (5a ed.). Cortez.) afirma que é imprescindível que os direitos já assegurados legalmente a todos os cidadãos brasileiros sejam respeitados por aqueles e aquelas que administram os diversos setores da sociedade ou que detenham o poder político da nação.
Assim, outra situação que se destaca é a exigência da Secretaria de Educação do Estado de que haja a implantação do diário eletrônico nas escolas indígenas, sem levar em conta as condições estruturais e tecnológicas de muitas escolas, pois o acesso à internet e computadores é extremamente precário, para não dizer inexistente, e isto tem causado muitos transtornos para os Neei e para os(as) docentes indígenas, como se pode perceber na narrativa a seguir:
Temos uma auxiliar da secretária . . . esta auxiliar só digita diário eletrônico, porque assim, a Seduc exigiu que tivesse diário eletrônico, agora, em qual aldeia tem internet? Qual aldeia que o professor tem computador? Em qual escola? Então os professores fazem no papel e esta pessoa passa o ano inteiro digitando . . . nós temos 29 professores, então você imagina são 29 diários que ela tem que digitar todas as disciplinas (Chefe C03).
Nesta perspectiva, a chefe C02 relata: “agora nós temos energia e internet na maioria das escolas do nosso município, porque tem um diário eletrônico descomunal para os professores preencherem que acaba com a vida dos professores”.
Observamos que não houve diálogo entre a Seduc e os Neei antes que essa exigência fosse aplicada às escolas indígenas, o que se evidencia é a imposição de um modelo criado pelos sistemas políticos e educacionais que dominam o país, modelo movido pelos interesses das classes políticas dominantes. Esta reflexão vai ao encontro do que Freire (1979Freire, P. (1979). Conscientização: Teoria e prática da libertação: Uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. Cortez & Moraes.) afirma sobre o diálogo, pois, ele “deve necessariamente unir sujeitos responsáveis e não pode existir numa relação de dominação” (p. 43).
Não queremos negar a importância das tecnologias para a EEI indígena, porém, a questão que se discute é a imposição de modelos educacionais sem que haja uma prévia escuta e participação dos povos indígenas nas decisões direcionadas a eles e elas, este desrespeito, assim como as questões burocráticas das políticas educacionais e de formação docente têm sido as principais razões das dificuldades e entraves educacionais sofridas pelos povos indígenas no estado.
Considerações finais
Na intenção de apresentar as trajetórias da formação e carreira docente indígena no estado de Rondônia, fizemos uma breve retrospectiva a partir dos documentos legais que garantem os direitos destes povos a uma educação diferenciada e específica; olhamos para o processo formativo e de constituição da carreira docente realizado no estado em interlocução com as narrativas das gestoras e do gestor da EEI, que contribuíram para conhecer o protagonismo dos povos indígenas em Rondônia, assim como os avanços e desafios deste processo.
Entendemos que a resistente população indígena no estado e sua diversidade étnica, juntamente com os movimentos sociais e as organizações de professores e professoras indígenas e, em especial o Neiro, contribuíram significativamente para que ocorressem as conquistas da formação e carreira docente. Entretanto, eles e elas lutam permanentemente para que este processo de desenvolvimento educacional continue avançando.
O destaque da política de formação docente no estado é o Projeto Açaí - Magistério Indígena, curso de formação de professores e professoras indígenas em nível médio, que teve seu início em 1998 e continua atuante até os dias atuais. A relevância deste curso está essencialmente relacionada ao fato de que ele prima pela valorização da cultura e da língua indígena.
A formação em nível médio destes professores e professoras influenciou na implantação do curso de formação em nível superior no estado, na licenciatura em educação básica intercultural, ofertado pela Universidade Federal de Rondônia, no campus do município de Ji-Paraná, bem como o ingresso de estudantes indígenas em outros cursos.
Consideramos relevante ressaltar que esta formação e inserção dos(as) docentes indígenas nas escolas indígenas viabiliza a concretização de uma educação escolar indígena que atenda realmente aos interesses e necessidades dos povos indígenas. Assegurar as condições para que esta formação em nível médio e superior e este modelo de educação aconteçam, é preciso negociar os interesses entre as culturas, indígenas e não indígenas.
Deste modo, o levantamento das políticas de formação e carreira docente indígena em Rondônia nos possibilitou perceber que se destacam algumas ações políticas: a priorização da contratação de professores e professoras indígenas para o atendimento da EEI a partir do concurso específico para indígenas; o plano de carreira garantido em lei para docentes indígenas; a criação de um Conselho Estadual de Educação Indígena, instituído por lei; e a criação do cargo de professor sabedor.
Assim, observamos que há questões que permeiam os discursos das gestoras e do gestor, sobressaindo-se positivamente as conquistas e os avanços da formação docente no estado e questões como o concurso específico para os indígenas, que vão aos poucos ocupando seus lugares como protagonistas da educação escolar e da gestão; o orgulho de estarem sendo eles e elas indígenas, os disseminadores de suas próprias culturas e costumes dentro de suas escolas. Como pontos negativos, foram evidenciadas as seguintes situações: o desconhecimento e a falta de interesse por parte dos(as) gestores(as) do estado com relação às especificidades da EEI; as burocracias das políticas educacionais e formativas indígenas e por parte da Seduc.
Ainda nesses discursos, destacou-se a narrativa de uma das gestoras ao levantar as dificuldades enfrentadas pelas mulheres indígenas ao ingressar na formação docente, e evidencia a necessidade de melhores condições de acesso e permanência para estas mulheres, o que cabe às instituições formadoras e às políticas educacionais destinadas aos povos indígenas tomarem providências. Esta é uma demanda crescente no contexto da educação e formação docente de indígenas que precisa ser discutida, a fim de dar visibilidade para estas mulheres, indígenas, estudantes e professoras, no intuito de contribuir com o desenvolvimento de políticas públicas e educacionais mais favoráveis a suas necessidades.
As narrativas das gestoras e do gestor da EEI demonstraram conhecimento com relação às políticas públicas e às necessidades ainda latentes na área da educação e da formação docente para os povos indígenas, pois percebem que muitas das ações desenvolvidas pelo Estado não têm continuidade, não passam de projetos, visto que uma política pública deve ser aplicada independentemente de quem esteja no governo ou na gestão. As gestoras e o gestor reconhecem que, apesar das conquistas, ainda há muito a se fazer para que esta educação realmente alcance os ideais já preconizados pelas legislações vigentes.
Assim, concluímos que, por mais que Rondônia se destaque por intermédio das ações que realiza com relação à formação e à carreira docente indígena, ainda apresenta fragilidades que precisam ser sanadas no campo das políticas públicas. Deste modo, este estudo busca trazer contribuições para a compreensão dos processos educativos que envolvem a formação de professores e professoras indígenas, evidenciando a importância dos movimentos sociais e das organizações indígenas na luta por uma escola intercultural.
Discutir as políticas de formação e carreira docente indígena em Rondônia nos possibilitou compreender como estes processos se desenvolveram na região ao longo dos anos e como influenciaram outras políticas existentes. Neste sentido, consideramos que as informações aqui apresentadas podem auxiliar outros pesquisadores e pesquisadoras que queiram se aprofundar nas questões educacionais que envolvem os povos indígenas, pois irão se deparar com aquelas apontadas por este estudo.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
29 Out 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
-
Recebido
24 Jun 2019 -
Aceito
24 Ago 2020