EDITORIAL
Ruth e fama
Mirsa Elizabeth Delossi
Duas irmãs? Não. Uma mesma e única mulher: loira e de olhos azuis.
Olho a tela do computador e tento me concentrar numa história que, ainda neste momento, está pela metade... Mas, da metade revelada, penso no que teria levado Fama ou Ruth a um "silêncio" de 42 anos... Fama Fatieco, nome estranho, sugere ficção. E foi a partir do momento em que, numa conversa, ao cair de uma tarde, na sede dos Lares Abrigados do Hospital Pinel, Fama Fatieco disse chamar-se Ruth "Stein", e que aceitou o nome de Fama, dado pelo recepcionista do hospital quando da sua internação, efetuada pela PM em junho de 1991, porque gostava de ser "famosa".
Entre os significados da palavra fama, consta um que significa renome...
Para quem vai ler esta história, o texto deve ser comedido, penso, pois não quero estendê-lo para além da emoção de ter sido encontrada sua verdadeira identidade e a de seus familiares, os quais "viraram o mundo" quando ela desapareceu, aos 31 anos, "parecendo ter sido tragada pela terra"... Na busca, iniciada há 42 anos, seu marido tornou-se até um morador de rua, tal era o desespero para encontrá-la. Em 1999, divorciado, celebrou um novo casamento...
Naquela tarde, ao perguntarmos se lembrava do nome do grupo escolar no qual estudara, responde: Grupo Escolar "Florestano Libutti". Onde fica? Em Araraquara. Fama, queremos dizer, Ruth, quando você era mocinha gostava de dançar? Ao afirmar que sim com a cabeça, perguntamos: Onde? No Clube Nipo. Onde fica? Em Jales. A conversa terminou, "Ruth Fama" pediu licença como sempre bem-educada fato que sempre nos chamou a atenção, saindo da sala. Em seguida, emocionadas, conseguimos telefonar para Jales e para Araraquara, confirmando com alguém da escola que ambos os lugares existiam... Daí, um frio e um fio... Daí, começou a pesquisa para saber se "Ruth Stein" existia. Nos dias que se seguiram, Ruth e a Equipe dos Lares Abrigados foram para essas cidades em busca de vestígios dessa história...
Paralelamente a isso, como ela falava em Nova Iorque e na 5ª Avenida, e dizia algumas palavras que pareciam ser de outro idioma, pesquisamos em inglês e nada se esclareceu. Chamamos então um casal alemão, do bairro de Pirituba, que a ouviu na sua estranha língua, sem qualquer identificação. Para se encontrar o fio que nos levaria a descobrir sua identidade original foi preciso crer num discurso delirante, que pode conter restos de uma verdade singular...
Talvez, ela tenha inventado palavras ao longo desses anos de exclusão social e de solilóquio, prática exercida por muitos pacientes quando o que lhes sobra é ouvir o som da própria voz para não esquecer que são entes falantes... Muitas vezes, vi Ruth caminhando daqui para lá, de lá para cá, pelos jardins do Pinel, falando "sozinha" e, ao cumprimentá-la: Bom dia, Ruth!, sorria e respondia ao cumprimento, deixando claro que estava ligada ao mundo exterior e gostava de ser notada... Nunca mais a chamamos de Fama, somente de Ruth, ao que sempre atendeu com um sorriso...
Abordar um passado negado é sempre penoso... Cuidar para que ele deixe de ser recalcado é extremamente delicado. Todo sujeito é maior do que a sua história... Quando se vislumbra uma pista da identidade original, há de se respeitar o sujeito dono dela e, se este quiser esconder a sua história, saber como agir, com a certeza de que, seja lá qual for a história, esta lhe pertence. Não deve, então, assustar, nem entristecer e nem ser negada? Ruth não deveria assustar-se, nem entristecer-se, caso resolvesse entrar em contato com ela.
Hoje, sabemos que Fama é Ruth Estan, sobrenome que, ao ser pronunciado, é bem parecido com o que grafamos como "Stein", naquela conversa ao final daquela tarde...
Localizados a família e o marido, este em seu depoimento disse que tinha certeza de que, antes de morrer, encontraria novamente a Ruth e nos agradeceu por esse momento. Pediu-nos, entretanto, que ajudássemos a encontrar seus dois filhos, pois quando Ruth desapareceu levava com ela as duas crianças: Júlia e Joaquim.
Agora, com a ajuda da televisão, vamos iniciar a busca de seus filhos. Avisamos Ruth que ela vai aparecer numa reportagem. Ela sorri e diz que vai vestir uma roupa bonita, porque é "famosa" e aceita participar da gravação.
O que a psicanálise nos ensina?
Para além de um transtorno mental, neste caso e em tantos outros, nos ensina que a ética é o dever de suportar a vida, seja ela qual for...Talvez, Ruth só tenha conseguido suportar sua vida, tornando-se Fama. Agora, precisamos ajudá-la a suportar enquanto Ruth.
Sem uma primeira identidade ou um nome próprio, não há subjetividade, pois é no olhar do outro, pelo nome que esse outro nos chama, que nos identificamos: eu sou esse nome, esse nome sou eu, seguindo sempre com a divisão do sujeito, capturado pela linguagem... Ruth é Fama, Fama é Ruth. Ruth identificou-se com Fama ao receber esse nome, a partir de um outro que a "batizou" ao chegar ao hospital... (Eu tenho seguido com o meu nome que me deram no batismo... Eu sou a Mirsa, ela sou eu... Às vezes, imaginei ter outro nome. Você não?)
Mas a história desta Ruth sacudiu nossa inteligência. Por que alguém trocaria o nome familiar pelo estranho? Nem sempre as recordações são doces... Mas assenhorear-se de todas, doces ou amargas, e tê-las definitivamente como suas, é terapêutico. Assim acontece no final de uma análise e se esse resultado é terapêutico, ele nos impõe que outros falantes possam também alcançá-lo, mesmo que fora de um processo analítico. Se um dia "Ruth Fama" entrasse em análise, certamente seria um caso clássico, cujo destino estaria muito além, muito além mesmo, de todos os CID 10 e dos F20 que ela recebeu nesses 42 anos nos quais esteve desaparecida...
Pela sua memória, um nome de escola onde estudava e um nome de clube onde bailava (quem dentre os seus contemporâneos não os têm?), revelou-nos sua história. No entanto, hoje, ela não sabe qual é o seu CID nem que remédios toma...
Ao deixar o hospital, do que se lembrará? Talvez do recepcionista que a renomeou ou, quem sabe, de uma tarde onde, talvez sem querer, falou sobre sua infância e mocidade para quem, acima de tudo, só queria, com todo o respeito e reverência, escutá-la...
Enfim, Ruth encontrou sua "Fama". Foi e continua sendo amada. Vai receber a alta hospitalar e voltar para casa... Vai passar o Natal com uma de suas irmãs que foram reencontradas. Para sua família, depois de 42 anos desaparecida, nasceu de novo, aos 73 anos.
Feliz Natal RUTH ESTAN!!!
Agradecimentos a toda a Equipe dos Lares Abrigados: Maria Beatriz (coordenadora), Antonia (secretária), Jussara (assistente social), Márcia (enfermeira), Robélia (psicóloga), Carlos e Pires (motoristas), sem os quais Ruth jamais deixaria de ser "Fama" ou "Fama" jamais reencontraria Ruth.
São Paulo, 8 de dezembro de 2007.
Mirsa Elizabeth Delossi
Psicanalista; diretora técnica de Divisão de Saúde da Secretaria Estadual da Saúde; coordenadora de Saúde Mental do Estado de São Paulo.
Rua Caetés, 632
05016-081 São Paulo, SP, Brasil
Fone: (11) 3873-2840
e-mail: mirsa@uol.com.br
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
23 Jul 2008 -
Data do Fascículo
Mar 2008