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Ambivalências do risco Traduzido por Liana Fernandes.

Resumo

O objetivo deste artigo é resgatar a ambivalência e a complexidade da noção de risco. A existência individual oscila entre vulnerabilidade e segurança, risco e prudência. Como a existência nunca é dada de antemão, o gosto pela vida a acompanha e evoca o sabor de todas as coisas. Não assumir um risco não é menos um risco, o do esclerosamento, do aprisionamento nas rotinas. É condenar-se a nunca transformar as coisas, mesmo que pudessem ser melhores; por exemplo, manter-se em estado de sujeição ou sofrimento, ser impotente para inventar-se.

Palavras-chave:
risco; aventura; segurança; prudência; ambivalência; identidade

Résumé

L'objectif de cet article est de rappeler l'ambivalence et la complexité de la notion de risque. L’existence individuelle oscille entre vulnérabilité et sécurité, risque et prudence. Parce que l'existence n'est jamais donnée par avance dans son déroulement le goût de vivre l'accompagne et rappelle la saveur de toute chose. Ne pas prendre de risque n’en est pas moins un risque, celui de la sclérose, de l’engluement dans les routines. C’est se condamner à ne jamais transformer les choses même si elles ne sont pas les meilleures, par exemple se maintenir dans un état de sujétion ou de mal être, être impuissant à s’inventer.

Mots-clés :
risque; aventure; sécurité; prudence; ambivalence; identité

Ambivalences of the risk

The purpose of this article is to recall the ambivalence and complexity of the notion of risk. Individual existence oscillates between vulnerability and security, risk and prudence. Because existence is never given in advance, it is accompanied by the taste of life that recalls the flavour of everything. Do not take a risk is no less a risk, that of being stiffened, swallowed by routine. It is to doom oneself to never changing things even if they are not the best ones - for example to stay in a state of subjection or misery, to be powerless to invent oneself.

Keywords:
risk; adventure; security; caution; ambivalence; identity

“Cada vez que ele vai longe demais é porque não foi longe o suficiente” Elias Canetti (Le territoire de l’homme, 1978CANNETTI, Elias. Le territoire de l'homme : Réflexions, 1942-1972. Paris : Albin Michel, 1978.).

O risco inerente à condição humana

Com relação às gerações anteriores, vivemos em condições seguras em muitos aspectos, por um vínculo social menos marcado por violência, ainda que as incivilidades apareçam com frequência em certos lugares. Os avanços na higiene e na medicina, a instituição da segurança social, a proteção do trabalho ou as inúmeras leis sobre as tecnologias coletivas, os regulamentos que cercam todas as práticas sociais, a elevação do nível de vida e o aumento considerável da longevidade nas últimas décadas são prova disso. Mas o que resta de perigo e violência tornou-se intolerável. As sociedades mais “seguras”, aquelas que vivem com o maior conforto, são as mais preocupadas. As proteções, são cada vez maiores, cada vez mais, a segurança está no centro dos projetos políticos e mais as pessoas temem por suas vidas (Castel, 2003CASTEL, Robert. L’insécurité sociale. Qu’est-ce qu’être protégé ? Paris: Seuil, 2003.). Os números relacionados a indicadores de saúde ou segurança não oferecem conforto quanto ao sentimento pessoal de fragilidade ou ao estado do planeta. No que diz respeito à vida cotidiana, não vivemos em um mundo mais perigoso do que no passado, ainda que as principais ameaças tenham se tornado colossais. Todavia, para além das estatísticas tranquilizadoras, surgem ameaças de natureza radicalmente diferente daquelas enfrentadas por gerações anteriores (risco nuclear) ou, em outra escala, o risco terrorista em um contexto de globalização. Outras fontes de preocupação estão aumentando em função da crescente poluição do planeta, cujas consequências vão desde o aquecimento global até uma alteração, sem dúvida infinitesimal, porém nociva a longo prazo, da alimentação. Os inuítes da Groenlândia e da Sibéria, embora afastados das áreas de produção ou uso de substâncias químicas, apresentam um alto nível de mercúrio no sangue, e o leite materno das mães inuítes está saturado de substâncias tóxicas: “(a) razão disso é que a dieta básica inuíte consiste de baleias, focas e aves marinhas que comem peixes, moluscos e camarões. E as substâncias químicas ficam mais concentradas a cada estágio da cadeia alimentar” (Diamond, 2006DIAMOND, Jared. Effondrement. Paris: Folio, 2006., p. 782). “Não há mais para onde fugir”, escreve Kundera (1986KUNDERA, Milan. L’art du roman. Paris: Folio /Gallimard, 1986., p. 22). A segurança é impensável em um só lugar, em uma única época - o mundo inteiro está conectado, para o bem ou para o mal, e todos estão presos neste emaranhado sobre o qual têm apenas uma influência limitada.

A questão do risco está agora no âmago de nossas sociedades e da existência individual. Os indivíduos vivem num universo de sentido e não em um mundo governado por estatísticas. A individualização de nossas sociedades nos afasta das antigas solidariedades, induz um sentimento de isolamento, marcado por uma sensação de fragilidade acentuada. A pessoa assume importância crescente, cria praticamente um mundo só para si e sempre teme ser alvo do desastre. Todo fato inesperado se transforma, então, em objeto de cruel repúdio, cujos responsáveis se deve encontrar. Mas a obsessão de antecipar e evitar qualquer frustração se depara com a opacidade do mundo e a imprevisibilidade de acontecimentos enredados em uma multiplicidade de causalidades mútuas. A capacidade do indivíduo de agir e de entender é infinitamente limitada para muitos fatos da vida cotidiana, e isso estimula o medo. Quanto mais a pessoa busca proteger-se, mais ela percebe o que está completamente fora de seu alcance, e mais aumenta seu sentimento de vulnerabilidade. Risco, agora, é sinônimo de ameaça, e esquece-se que, às vezes, ele é em si a fonte da exaltação, da intensidade da existência. Com relação à vida cotidiana, o risco é, muitas vezes, vivido como um elemento negativo que vem ameaçar um equilíbrio anterior. Se ele não for consequência de uma escolha, é antes uma surpresa ruim, uma ameaça que ronda a esfera privada, uma alteridade fora de qualquer controle.

A existência é, ao mesmo tempo, segura e frágil - sentindo-se sempre um pouco “no fio da navalha”, o indivíduo está fadado a um grau de incerteza. Cada dia traz consigo uma variedade de eventos esperados e surpresas. À primeira vista, o caminho parece completamente traçado, mas o inesperado às vezes prevalece. A manhã não sabe o que a noite reserva. A condição emocional e social nunca é dada de modo definitivo, ela impõe um debate permanente com os outros, com as coisas, sob o risco de ferir-se. A existência não está inscrita na evidência estanque de sua realização, como um fio esticado em linha reta, que desconhece as dificuldades do terreno. Ela é, antes, as sinuosidades do caminho, as ambivalências. Ela é feita para adentrar caminhos impossíveis de prever. A individualização do laço social, a personalização dos significados e valores induzem o distanciamento dos outros e da proteção que eles poderiam oferecer. Viver lado a lado, embora em competição ou indiferença, na inquietude das diferenças, não é viver junto.

Sem exercitar certa prudência, a vida seria impossível ou breve. Um conhecimento intuitivo dos riscos do ambiente e uma vigilância diluída nos fatos e gestos da vida cotidiana permitem à pessoa resguardar-se. Mas essa trama de precauções integradas aos hábitos de vida volta-se constantemente contra ameaças potenciais. A mais tranquila das vidas nunca está imune ao inesperado, que ocorre para o bem ou para o mal - doenças, acidentes ou problemas, preocupações profissionais, demissão, fracasso de um negócio, separações afetivas, perdas ou encontros, momentos de admiração, descoberta, criação etc. Ela não está protegida do desejo irreprimível que surge de uma imagem capturada ao longo de uma narrativa ou discussão, ou da deliciosa tirania da circunstância que se lança sem dar tempo de refletir para reconsiderar uma decisão. A confiança elementar nos outros ou no mundo é, às vezes, rompida de maneira inconcebível. Nuvens tóxicas ou águas contaminadas despejadas no mar carregam sua ameaça de morte por milhares de quilômetros, e sem que sua irrupção seja identificável, pois ela é invisível, inodora, intangível, exceto através de finas tecnologias. O perigo já não se limita às fronteiras de um Estado, está doravante em toda parte e sempre presente, excede qualquer limite nacional, afeta áreas consideráveis, no caso, por exemplo, de tecnologias contemporâneas como a nuclear, ou ainda de pandemias... Mas ele também toma a forma de indivíduos nômades que subvertem a confiança necessária à ligação social para introduzir o pavor no âmago dos lugares mais pacíficos por meio de atos terroristas, por exemplo. E então, tomar um café ao ar livre com os amigos ou assistir a fogos de artifício à beira-mar em uma cidade grande pode revelar-se uma decisão trágica quando os assassinos chegam. O caso do mal-da-vaca-louca põe nos pratos mais corriqueiros os germes da doença. Nos anos de 1980, a AIDS colocou o perigo no cerne das relações sociais mais felizes e menos suspeitas. O caso do sangue contaminado transforma alguns médicos e administradores em provedores de doenças e morte. Medicamentos amplamente distribuídos no mercado revelam-se um perigo para os pacientes (por exemplo, o Mediator2 2 N.T.: O Mediator (princípio ativo benfluorex) é um medicamento desenvolvido pelo laboratório francês Servier para regulação de apetite, que foi retirado do mercado em 2009 após causar a morte de cerca de 500 pessoas. ). O perigo pode vir do meio ambiente e se impõe ao indivíduo carregado a contragosto em um universo que se dissolve: terremoto, deslizamento de terra, inundação, tsunami, tempestade, colapso, incêndio, acidente de uma central nuclear... Um momento de distração atravessando a rua, infarto ou agressão, uma epidemia, o submergem num destino difícil de prever ou de reverter a seu favor. O feliz encontro amoroso de uma noite pode transformar-se alguns meses depois em soropositividade ou numa separação trágica. Ninguém anda dentro de um bunker, protegido contra o próprio risco de viver.

Ambivalência do risco e da segurança

Os instrumentos do conforto às vezes se transformam em fontes de perigo e semeiam a morte ou lesões (eletrocussão, explosão, asfixia etc.). Para terroristas, meios de transporte comuns, como os aviões comerciais, trens, metrôs, transformam-se em dispositivos de destruição em massa. Sua força está em apostar no impensável ao romper a confiança que rege nossas vidas. Os lugares de convivência, de trocas, aqueles onde toda vigilância é relaxada, são os alvos preferidos de suas ações: mercados, restaurantes, cafés, locais de culto etc. Ninguém leva no rosto um plano de assassinato ou de atentado; nem mesmo em sua história, a julgar por muitas biografias de jovens jihadistas convertidos nos últimos anos (Jeffrey et al., 2016JEFFREY, Denis et al. Jeunes et djihadisme. Les conversions interdites. Lyon: Chroniques Sociales, 2016. ; Le Breton, 2018LE BRETON, David. Jeunes et radicalisation. Bruxelles: Yapaka, 2018.). O terrorista ou o assassino está invisível, misturado à multidão. Ele turva a fronteira entre campos de batalha e populações civis e espalha o medo para atingir todos no seio de seu sentimento de confiança ontológica em relação ao mundo. Ao visar homens e mulheres normais, em espaços comuns de civilidade, ele diz que ninguém será poupado, que qualquer um pode perecer, que não há mais abrigo, mesmo ficando enclausurado em casa. É inesperado, imprevisível e de uma crueldade extrema. A prudência é neutralizada. A suspeita atinge qualquer situação anormal, qualquer pessoa que fuja do trivial, e até mesmo as pessoas mais comuns são suspeitas. Às vezes, os instrumentos de prevenção são o que acabam gerando o terror, como demonstra o acidente do avião da empresa alemã Germanwings, já que o copiloto se trancou na cabine, sendo impossível para o piloto e sua tripulação abri-la. Após os atentados de 11 de setembro de 2001, essa medida visava impedir o desvio de aeronaves por sequestradores ou terroristas. A porta da cabine do piloto fica trancada de forma que ninguém possa abri-la pelo lado de fora, mesmo sob ameaça armada. Tal dispositivo forneceu ao copiloto as condições ideais para a apreensão da aeronave na ausência do comandante. Os próprios requisitos de segurança causaram a tragédia. A perversidade é, a partir de então, uma fonte viva do medo. Sem confiança, o mundo se torna imprevisível e ameaçador - é este muro invisível, que outrora proporcionava uma segurança interna, que as ações terroristas derrubam.

O risco se prolifera para uma pessoa por causa de outras, mas também está presente para as outras por causa dessa pessoa - cada um é para outros um perigo potencial. Ao menos aos olhos dos outros, a incerteza se aloja no menor de nossos desejos, assombra qualquer decisão, qualquer escolha. Ela está no cerne da condição humana, é a contrapartida do fato de que cada indivíduo cria em cada momento sua liberdade com uma lucidez desigual, mas às vezes também com uma inesperada adversidade, impossível de ter em conta até que ela ocorra. O outro é sempre um limite, para o bem ou para o mal. Para além da lucidez do momento e da vontade individual, as circunstâncias mudam o resultado de uma ação ao longo do caminho. Invisível no momento, a ameaça está inscrita no tempo que transcorre e pode surgir um dia ou outro. No emaranhado de elementos que fazem parte dos processos social, cultural, relacional ou pessoal, o indivíduo identifica aqueles que reconhece a fim de apoiar suas decisões. Ele espera não se enganar em sua apreciação dos fatos, mas o mundo não é a extensão complacente de seus pensamentos e, às vezes, o compromete radicalmente. Toda decisão aposta no futuro. Diante dela, estende-se a imensidão de tempo que vem com uma infinidade de elementos em interação, sempre em movimento, que se propagam e entram em colisão, ou se comprovam, suas repercussões são apenas imaginadas no momento, mas tão logo ela entra em vigor, ela adentra o imutável e o aleatório. O mundo é feito sempre mais do imprevisível do que do provável. Uma vez tomada a decisão, os outros futuros possíveis apagam-se ou tornam-se mais difíceis de acessar em caso de arrependimento. As consequências de uma ação nem sempre têm a transparência da decisão que a desencadeou. Ninguém sabe, de partida, se uma decisão é boa, ou mesmo se fracasso ou o acidente não ocultam uma oportunidade inesperada ou, inversamente, se o sucesso alcançado provisoriamente não é a promessa do pior. Só o futuro sabe a resposta, ele não está presente no momento da decisão, mas é condicionado por ela. Todo começo compromete e dificulta um retorno.

Inevitabilidade do risco

Toda escolha é risco. Fazer uma escolha consiste, primeiro, em eliminar todas as alternativas; ocupar uma situação equivale a desistir das outras, a ignorar o que foi perdido ou ganho no momento da decisão. Mas o movimento da existência está constantemente redefinindo o equilíbrio. Ninguém sabe o que trará o amanhã. O doloroso fracasso de um momento pode alimentar a sorte de outro, inscrito, primeiramente, na esteira da decepção. E a sorte de uma boa decisão pode ser questionada por uma evolução inesperada das condições iniciais. “Finalmente”, escreve Paul Auster (1988AUSTER, Paul. La chambre dérobée. Paris: Actes Sud, 1988., p. 298), “toda vida nada mais é do que a soma de fatos aleatórios, uma crônica de intersecções devidas ao acaso, golpes de sorte, eventos fortuitos que revelam apenas sua própria falta de intencionalidade”. A força de nossas ações nos escapa porque elas traçam uma linha necessária em nossas vidas, mas não sabemos o que elas teriam sido em comparação a outras escolhas. Algumas, tomadas levianamente, têm sérias consequências. Mas outras também, mesmo que realizadas com lucidez e cuidadosa consideração dos fatos. Há sempre uma lacuna presente entre a intenção e suas consequências. Sabe-se como, às vezes, “de boas intenções o inferno está cheio”. A multiplicidade de decisões inerentes à trama infinita de interações em torno de si, mesmo no nível da vida cotidiana, muitas vezes induz a um labirinto de causas e efeitos recíprocos que necessariamente leva a um grau de incerteza. Em Zadig, Voltaire bem destaca a impossibilidade de projetar-se no futuro. As ações virtuosas de Zadig transformam-se em tragédia. Um sábio deixa um menino morrer pois sabe que, quando adulto, ele matará seus pais. Sua atitude aparentemente arbitrária e imoral torna-se então a única moralidade. O futuro é perigoso para muitos projetos.

Uma fábula chinesa, evocada por Jean Grenier (1973GRENIER, Jean. L’esprit du tao. Paris: Champs-Flammarion, 1973.), ilustra as consequências imprevisíveis que germinam em qualquer evento e traduz a ingenuidade de um julgamento que se pretendia rigoroso, mas que está focado numa situação imediata desvinculada do curso do tempo. Um velho que vive sozinho com o filho, um dia, perde seu cavalo. Seus vizinhos vêm para apoiá-lo em sua tristeza, mas ele os impede: “(c)omo sabem que é uma desgraça?”. De fato, alguns dias depois, o cavalo volta por contra própria, trazendo consigo vários cavalos selvagens. Seus amigos parabenizam o velho, que novamente os interrompe: “(c)omo sabem que é sorte?”. De fato, o filho tenta treinar os cavalos e logo quebra a perna. Para os vizinhos desolados que vieram consolá-lo, ele responde: “(c)omo sabem que é azar?”. No ano seguinte, inicia-se uma guerra, e o filho não pode ir por ser coxo (Lie-Tseu) (citado em Le Breton, 2016LE BRETON, David. La sociologie du risque. Paris: PUF , 2016., p. 41-42). A história poderia seguir infinitamente. A decisão a princípio mais arriscada é, às vezes, a mais criteriosa, seja por uma avaliação detalhada da situação, seja por uma mudança inesperada das circunstâncias que torna propícia uma decisão inicialmente prejudicial. E aquela que parecia a mais serena pode revelar-se uma formidável cilada.

Em Os Cadernos de Malte Laurids Brigge, Rilke (1995RILKE, Rainer M. Les cahiers de Malte Laurids Brigge. Paris: Seuil , 1995., p. 70) narra o surgimento do que ele chama de o Terrível, uma irrupção que engole qualquer evidência, fulminando uma segurança agora confrontada pela erosão das fronteiras do indivíduo e do mundo: “(a)o menor dos movimentos, já o olhar mergulha além das coisas conhecidas e amigas, e o contorno, há pouco reconfortante, se define como uma moldura de terror”. Malte anda pelas ruas de Paris e entra num café. Há um homem sentado no lugar que ele normalmente ocupa. Ele cruza seu caminho para sentar-se em outro lugar, mas descobre subitamente que aquele homem está tomado pelo medo. O medo também o invade e ele foge do café. Mais tarde, no abrigo de seu quarto, ele pensa naquele desconhecido:

(s)im, ele sabia que naquele momento estava se afastando de tudo; não somente dos homens. Mais um momento, e tudo perderá o sentido, e esta mesa, e esta xícara, e esta cadeira à qual ele se aferra, tudo que é cotidiano e próximo se tornará incompreensível, estranho e fechado. Então, lá estava ele, aguardando que se consumasse. E já não se defendia (Rilke, 1995RILKE, Rainer M. Les cahiers de Malte Laurids Brigge. Paris: Seuil , 1995., p. 51).

A vida cotidiana multiplica as oportunidades de perigo por escolha, distração, esquecimento, negligência, desconhecimento do ambiente ou inaptidão dos outros. A todo momento, é importante afastar-se ou desconfiar de possíveis fontes de perigo físico. Ao longo da existência, conforme a especificidade das situações, a passagem do tempo, os medos mudam, e muda também o cenário dos riscos. Os medos de um adolescente não são os mesmos do velho, os da mulher não são os do homem, os do desempregado não são os do trabalhador tampouco os do empresário...

A existência humana compõe-se das sinuosidades do caminho, da incerteza do comportamento dos outros, de bons ou maus encontros etc. A ambivalência leva, às vezes, a comportamentos desfavoráveis ou a decisões infelizes. As circunstâncias, as escolhas feitas, o contexto geral expõem o indivíduo a perigos que ele nem sempre previu ou que ele acreditava, com ou sem razão, dignos de enfrentar. Uma dose de imprevisibilidade entrelaça permanentemente toda existência. Nos primeiros anos de vida, a criança assimila as precauções básicas para não ser afetada pelos perigos de seu ambiente familiar. Através da educação recebida, dos conselhos dados e dos pequenos incidentes com que se depara, ela aprende com o corpo a manter uma distância favorável e uma atenção menos distraída às asperezas inerentes à sua condição. Aprende a andar, nadar, andar de bicicleta, de patins, a desconfiar do trânsito na vizinhança etc. Incorpora habilidades físicas e reflexivas que a levam, ao longo do tempo, a melhor identificar seus recursos, ainda que permaneça o risco de supervalorizá-los. Ela aprende a superar seus medos e controlar os perigos, a assumir os riscos simbólicos que dizem respeito à sua identidade, e especialmente sua identidade de gênero. A vida em sociedade exige que todos sejam especialmente cautelosos a fim de evitar serem afetados por eventos externos. Ela implica uma dialética entre prudência e risco, entre segurança e insegurança, uma ponderação das consequências das decisões ou ações.

Jubilação do risco

Se o risco é imposto ou sofrido, ele procede principalmente da violência, ou até mesmo do traumatismo. Na vida cotidiana, e além, nas atividades tecnológicas ou científicas, econômicas ou políticas, o risco está associado mais ao perigo. Contudo, se for livremente escolhido, pelo contrário, é percebido como motivo de prosperidade, uma oportunidade de confrontar-se a uma situação inédita, um recurso para redefinir a existência, para testar as capacidades pessoais, elevar a autoestima ou obter o reconhecimento dos outros. O risco adotado deliberadamente é uma escola de caráter. Nele encontram-se uma mobilização dos recursos íntimos, uma intensidade de existência, uma esperança fervorosa. É uma ferramenta propícia para perturbar a fixidez das coisas, as posições estabelecidas, abrir novos caminhos. “Nós apostamos tudo na sorte casual, no destino e no quase, mas destruímos as pontes que deixamos para trás, entramos no nevoeiro como se a estrada devesse nos apoiar em todas as circunstâncias” (Simmel, 1989SIMMEL, Georg. L’aventure. In: SIMMEL, Georg. Philosophie de la modernité. Paris: Payot , 1989., p. 314).

Esse fato antropológico nunca deixa de se estender numa sociedade em que o indivíduo, além de tudo, se remete a si mesmo como o foco de sentido e valor de sua existência. A proliferação de atividades físicas e esportivas arriscadas anda de mãos dadas com uma sociedade em que, para um número crescente de nossos contemporâneos, viver não é mais o suficiente. É preciso constatar o fato de sua existência, experimentar as sensações de si mesmo e provar-se para decidir o valor da própria existência. Essas atividades, que surgiram nos anos 1980, são muito populares em termos de participação: esportes-aventura, reides, corridas de orientação, maratonas, ultramaratonas, corridas de natação de longa distância, triatlos, tri-triatlos, queda livre, rafting, canoagem, trilhas, alpinismo, escalada, parapente, corridas de resistência, desafios de todo tipo... Quanto mais nossas sociedades se protegem por meio de procedimentos de segurança e demonizam o risco, maior a tentação de atraí-lo. Normalmente as mídias ecoam os elogios do que se tornou há cerca de vinte anos a rotina de explorações ou aventuras paradoxais (“primeiros” espetaculares, muitas vezes ridículos em outras situações, nas montanhas, nos mares, nos desertos, desafios improváveis em ambientes perigosos, ainda aproveitando todas as tecnologias contemporâneas e a mão de obra local a baixo custo), onde o indivíduo que assume o risco segue dando notícias e telefonando para parentes a fim de tranquilizá-los. A programação das coletivas de imprensa após seu retorno já está estabelecida. Ele está adornado com dispositivos tecnológicos e sua ação é financiada por patrocinadores. Mas o jogo com risco está presente, ele transforma essas “expedições” num novo espetáculo de aventura e no aprimoramento narcisista de si (Le Breton, 2017LE BRETON, David. Conduites à risque. Des jeux de mort au jeu de vivre. Paris: PUF , 2017.). De forma indireta, ele causa arrepios naqueles que o acompanham remotamente através de telas e se identificam com ele.

Mas, muitas vezes de maneira mais modesta, sem buscar as câmeras, ao colocar-se à prova, o indivíduo se dá referências para construir sua identidade. No confronto físico com o mundo, ele busca suas marcas, esforça-se para segurar nas mãos uma existência que lhe escapa. Os limites reais tomam então o lugar dos limites de sentido que não podem mais ser estabelecidos. Ao enfrentar o pior, ele busca ganhar o melhor, converter seu medo, sua exaustão, formação de caráter. Ele vive momentos de intensidade de ser, reencanta sua existência pelo empréstimo de estradas secundárias onde deve seu progresso a si mesmo e mais ninguém. Em nossas sociedades, em que as referências se fragmentam e multiplicam, o corpo é sempre uma reserva para saber quem se é e o que se pode esperar do mundo. Na dor, no sofrimento, no tormento, na incerteza do amanhã, o indivíduo experimenta sua existência com uma intensidade absurda. Jogar com risco dá a sensação de fugir de sua antiga condição, de retornar ao mundo plenamente (Le Breton, 2017LE BRETON, David. Conduites à risque. Des jeux de mort au jeu de vivre. Paris: PUF , 2017.; 2012LE BRETON, David. Passions du risque. Paris: Métailié, 2012.).

A ambivalência perante o risco também está presente aqui. O desejo de garantir certos lugares ou certas práticas esbarra cada vez mais, de um lado, com a indiferença de certos usuários, que reivindicam uma liberdade radical de agir de acordo com sua vontade e satisfazer seus desejos; e, de outro, com o desconhecimento de leis ou recomendações, a falta de sinais que apontem os perigos. Ameaças são percebidas como tais para os outros, mas não para si. O gosto pela transgressão ou a ignorância das instruções de segurança conjugam-se hoje em dia, de modo que as práticas perigosas para si ou para os outros ocorrem comumente no mar ou no topo de montanhas. O indivíduo se considera soberano de sua existência e da realização de sua vontade, chegando, às vezes, a pensar que o Estado não deve intervir no assunto.

Em A loteria na Babilônia, Borges (1951BORGES, Jorge L. La loterie de Babylone. In: BORGES, Jorge L. Fictions. Paris: Gallimard, 1951.) observa que as loterias sem probabilidade de perigo não eram bem-sucedidas. Estavam voltadas apenas à esperança. Seus idealizadores tiveram a ideia de introduzir elementos desfavoráveis, misturando-os às recompensas. Cada bilhete dessa loteria gratuita, compulsória e secreta faz as vezes da existência, ou até mesmo a rege inteiramente, carregando uma porção de vantagens ou penalidades. Um mundo sem risco seria um mundo sem acaso, sem asperezas e entregue ao tédio. A hipótese, no entanto, é impensável, pois, uma vez que um ser vivo exista, ele é lançado às incertezas de seu ambiente, ainda mais o humano, a quem as circunstâncias impõem inúmeras escolhas cujas consequências sempre estão por vir. Se os outros não são necessariamente o inferno pensado por Sartre, eles inevitavelmente introduzem o inesperado. A projeção de tranquilidade a longo prazo, com a garantia de que nada jamais mudará, que qualquer surpresa será excluída, desperta a indiferença na ausência de obstáculos que deem ao indivíduo a oportunidade de lidar com sua própria existência. Sentir-se vivo implica, às vezes, experimentar a emoção do real. O possível preço da segurança é a monotonia. Por outro lado, estabelecer-se no perigo, se este se impuser contra a vontade do indivíduo, raramente é uma condição feliz, investida de paixão; ela gera medo e ansiedade diante da provável irrupção do pior.

A resposta à precariedade relativa da vida consiste precisamente nesse apego a um mundo cujo desfrute é mensurável. Só tem valor aquilo que pode ser perdido, e a vida nunca é conquistada em definitivo como uma totalidade fechada e garantida. Além disso, a segurança sufoca a descoberta de uma existência oculta pelo menos em parte, e que só toma consciência de si mesma pelo intercâmbio, às vezes inesperado, com o mundo. O perigo inerente à vida consiste, sem dúvida, em nunca entrar no jogo, em fundir-se numa rotina sem aspereza, sem buscar inventar em sua relação com o mundo nem na relação com os outros. Assim, nem a segurança, nem o risco são modos de autorrealização e autocriação. O gosto pela vida envolve uma dialética entre risco e segurança, entre a capacidade de questionar a si mesmo, surpreender-se, inventar-se e a de permanecer fiel ao essencial de seus valores ou suas estruturas de identidade. Porque temos a oportunidade de perdê-la, a existência é digna de valor (Le Breton, 2017LE BRETON, David. Conduites à risque. Des jeux de mort au jeu de vivre. Paris: PUF , 2017.; 2016LE BRETON, David. La sociologie du risque. Paris: PUF , 2016.). “Quando evoco certos momentos arriscados da minha existência, relembro-os com uma espécie de alegria; não que tenham causado uma exaltação alegre, mas porque me proporcionaram uma nova sensação - uma nova natureza, por assim dizer - e permitiram momentaneamente superar-me”, escreve, por exemplo, o escritor chileno W. Hudson (2002HUDSON, William H. Un flâneur en Patagonie. Paris: Payot, 2002., p. 209).

A existência individual oscila entre vulnerabilidade e segurança, risco e prudência. Como a existência nunca é dada com antecedência, o gosto pela vida a acompanha e evoca o sabor de todas as coisas. Não assumir um risco não é menos um risco, o do esclerosamento, do aprisionamento nas rotinas. É condenar-se a nunca transformar as coisas, mesmo que pudessem ser melhores - por exemplo, manter-se em estado de sujeição ou sofrimento, ser impotente para inventar-se. A “incuriosidade sombria” da qual fala Baudelaire sem dúvida protege, mas leva a morrer de tédio. A tomada do risco na vida cotidiana é uma tentativa de redefinir a existência. É claro que a possibilidade de perder permanece, mas ela é insignificante se comparada à satisfação de ter ousado e de permitir-se ganhar, mesmo que apenas em termos de autoestima. Além disso, o momento de risco, se escolhido, é sempre a certeza de conhecer uma intensidade de ser que contrasta com o habitual.

A aquiescência ao risco, ademais, não exclui o cálculo nem a prudência, como na filosofia de Aristóteles (Aubenque, 1963AUBENQUE, Pierre. La prudence chez Aristote. Paris: PUF, 1963.). O coro, no final da Antígona de Sófocles, formula a necessidade do recuo antes de qualquer decisão: “(a) prudência é de longe a primeira condição de felicidade (...) as palavras infladas pela soberba trazem para os pretenciosos grandes golpes do destino e é somente com os anos que eles aprendem a prudência”. A distância reflexiva em relação ao mundo é importante para a convicção de que parte do inesperado é sempre previsível. Quem cede à precipitação revela uma avaliação deficiente da situação, cujas consequências não demoram a chegar. A prudência se impõe como uma qualidade moral essencial para o político ou o cidadão que assume uma responsabilidade para com os outros. Ela é a consciência aguda de que qualquer decisão envolve consequências indesejáveis para si e para os outros.

Muitas práticas sociais expõem a pessoa constantemente ao risco de perder o prestígio e ser desacreditado socialmente (Goffman, 1974GOFFMAN, Erving. Les rites d'interaction. Paris: Minuit, 1974.). Toda pesquisa científica é uma aposta nos resultados. No palco, o ator corre o risco de esquecer uma fala, de ser surpreendido pelo medo do palco ou por uma crise inextinguível de riso histérico no momento mais dramático da peça, ou de simplesmente fazer uma má interpretação. O apresentador de TV ou o político pode cometer um deslize ou emitir uma opinião irrefletida, que lança dúvidas sobre sua pessoa. O livro de um escritor é uma aposta na qualidade de sua obra e na lealdade de seus leitores. Ninguém está imune a uma criação inferior ou a uma perda radical de criatividade. O melhor artista está exposto a um dia produzir uma obra que ponha em dúvida seu status e sua estatura. Todo ato de criação aumenta significativamente o risco de ser mal recebido ou simplesmente de mediocridade e de provocar um julgamento desfavorável, escárnio ou indiferença. Isso põe em perigo a reputação pessoal e, portanto, a noção de identidade daquele que se envolve de boa fé na atividade. Todo risco assumido coloca a pessoa à mercê de uma palavra, um olhar, um julgamento incomplacente de outros, até mesmo de sua inveja ou rancor. O universo relacional em que o indivíduo está imerso nunca é algo certo, ele está sempre sob a ameaça de mal-entendidos, conflitos, decepção. Mas, no mesmo movimento, essa incompletude é também propícia ao encantamento do instante, à descoberta de si mesmo e dos outros.

Bibliographie

  • AUBENQUE, Pierre. La prudence chez Aristote. Paris: PUF, 1963.
  • AUSTER, Paul. La chambre dérobée. Paris: Actes Sud, 1988.
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  • Traduzido por Liana Fernandes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    9 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    05 Jun 2019
  • Aceito
    26 Ago 2019
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