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O desafio do federalismo brasileiro no saneamento básico

The challenge of Brazilian federalism in the basic sanitation

El desafío del federalismo brasileño en el saneamiento básico

Resumo

O artigo 23 da Constituição Federal estabelece as competências compartilhadas pelos três entes federados, dentre as quais está o saneamento, um setor que se constitui em um desafio para efetivar as entregas, por razões diversas. Segundo a Lei n. 11.445/2007, o saneamento se estrutura a partir de um conjunto dos serviços associados à infraestrutura e a instalações operacionais. Logo, trata-se de um complexo de serviços que integra os domicílios a redes coletivas, que têm altos custos de manutenção. No âmbito federal, atualmente, as ações de saneamento estão dispersas em um conjunto de instituições, que atuam em diferentes recortes espaciais, a partir de critérios e mandatos específicos. No saneamento básico, a autonomia financeira e a capacidade técnica das municipalidades ainda se mostram insuficientes para cooperar com o governo central, tornando-se dependentes técnica e financeiramente da União. Dessa forma, a proposta do presente artigo é analisar o complexo arranjo do saneamento, em âmbito federal, e apontar que reflexos essa arquitetura tem, especialmente para as municipalidades. Para tanto, houve revisão de literatura, bem como foram consultados documentos oficiais e bases de dados dos órgãos responsáveis pelo setor, no âmbito do Governo Federal, e, complementarmente, foi analisada a legislação que disciplina o saneamento básico. Esse conjunto de recursos possibilitou alguns achados: a) persistência de um padrão de desigualdade que se dá verticalmente, quando comparado a centros urbanos maiores; b) perpetuação da penalização pelos órgãos de fiscalização e controle, em face da fragilidade técnica e institucional, principalmente nas menores cidades; c) os gestores locais se mostram refratários a construir tais sistemas em face do seu custo que os torna quase incompatíveis com as finanças dos menores municípios. Esses são alguns aspectos encontrados no arranjo federativo do setor de saneamento, que implicam a falta de acesso de parte considerável da população do país a esse serviço, notadamente nas menores cidades.

Palavras-chave
federalismo; política pública; saneamento básico; Brasil; municípios

Abstract

The Article 23 of the Federal Constitution establishes the competences shared by the three federated entities, among which is sanitation, a sector that constitutes a challenge to make deliveries, for different reasons. In accordance with Law No. 11,445/2007, sanitation is structured based on a set of services associated with infrastructure and operating facilities. Therefore, it is a service complex that integrates households with collective networks, which have high maintenance costs. At the federal level, sanitation actions are currently dispersed in a set of institutions that operate in different spatial areas, according to specific criteria and mandates. In basic sanitation, the financial autonomy and technical capacity of the municipalities are still insufficient to cooperate with the central government, which makes them technically and financially dependent on the Union. Thus, the purpose of this article is to analyze the complex sanitation agreement, at a federal accountability, and to indicate what reflections this architecture has, especially for the municipalities. For this, a literature review was carried out, as well as official documents and databases of the agencies responsible for the sector, within the scope of the Federal Government, and, in addition, the legislation that regulates basic sanitation was analyzed. This set of resources made possible some findings: a) persistence of a pattern of inequality that occurs vertically, compared to the largest urban centers; b) perpetuation of the sentence by the inspection and control agencies, in view of the technical and institutional weakness, particulary in the smaller cities; c) local managers are refractory to the construction of such systems in view of their cost, which makes them almost incompatible with the finances of the smallest municipalities. These are some aspects that are found in the federal disposition of the sanitation sector, which implies that a considerable part of the country’s population does not have access to this service, especially in the smaller cities.

Keywords
federalism; public policy; sanitation; Brazil; municipalities

Resumen

El artículo 23 de la Constitución Federal establece las competencias compartidas por las tres entidades federadas, entre las cuales se encuentra el saneamiento, un sector que constituye un desafio para realizar entregas, por diferentes razones. De acuerdo con la Ley n. 11.445/2007, el saneamiento se estructura en base a un conjunto de servicios asociados con infraestructura e instalaciones operativas. Por lo tanto, es un complejo de servicios que integra a los hogares con redes colectivas, que tienen altos costos de mantenimiento. A nivel federal, actualmente, las acciones de saneamiento están dispersas en un conjunto de instituciones, que operan en diferentes áreas espaciales, de acuerdo con criterios y mandatos específicos. En saneamiento básico, la autonomía financiera y la capacidad técnica de los municipios aún son insuficientes para cooperar con el gobierno central, lo que los hace depender técnica y financieramente de la Unión. Por lo tanto, el propósito de este artículo es analizar el complejo acuerdo de saneamiento, en el nivel federal, y señalar qué reflejos tiene esta arquitectura, especialmente para los municipios. Para ello, se realizó una revisión de la literatura, así como se consultaron documentos oficiales y bases de datos de los organismos responsables del sector, dentro del ámbito del Gobierno Federal y, complementariamente, se analizó la legislación que regula el saneamiento básico. Este conjunto de recursos hizo posible algunos hallazgos: a) persistencia de un patrón de desigualdad que ocurre verticalmente, en comparación con los centros urbanos más grandes; b) perpetuación de la pena por parte de los organismos de inspección y control, en vista de la debilidad técnica e institucional, sobre todo en las ciudades más pequeñas; c) los gerentes locales son refractarios a la construcción de tales sistemas en vista de su costo, lo que los hace casi incompatibles con las finanzas de los municipios más pequeños. Estos son algunos aspectos que se encuentran en la disposición federativa del sector de saneamiento, lo que implica que una parte considerable de la población del país no tiene acceso a este servicio, especialmente en las ciudades más pequeñas.

Palabras clave
federalismo; política pública; saneamiento básico; Brasil; municipios

1 INTRODUÇÃO

No contexto da redemocratização ocorrida no Brasil, em 1988, por meio da nova Constituição da República, permitiu-se um novo desenho para o federalismo brasileiro. Nesse novo arranjo, houve a inclusão dos municípios como componentes da Federação e a permissão de auto-organização, inclusive por meio da autorização para o estabelecimento de regras em diversas áreas, dada pela delegação de competências, tanto exclusivas como concorrentes. O princípio da descentralização político-administrativa executada por meio dos municípios foi definido pela Constituição de 1988, preconizando a autonomia dos municípios e a localização de serviços na esfera municipal, próximos dos cidadãos e do atendimento aos seus problemas.

No caso específico da política de saneamento básico brasileira, existe um ponto de convergência, qualquer que seja a sua origem (governamental, da sociedade civil, de organizações supranacionais, de entidades associativas etc.), observa-se a insuficiência no alcance das metas nos instrumentos que orientam o setor. Tal constatação permite entender que há um problema de ordem estrutural, o que suscita uma questão: onde está situado o nó górdio que impacta na política, que continua a demonstrar indicadores tímidos no acesso ao serviço?

Nesse sentido, percebe-se, por intermédio de diversos estudos, a existência de um quadro que sinaliza para a assimetria de planejamento e gestão entre os distintos níveis de governo, que se constituem como obstáculos aos avanços requeridos, e seus efeitos se fazem refletir na política de saneamento básico.

Nesse sentido, o presente artigo propõe um debate que ultrapassa a esfera nacional, procurando identificar essas fragilidades dos agentes responsáveis pelo saneamento básico na escala local, pensando em uma perspectiva de articulação horizontal e vertical, como fatores que inibem a participação das municipalidades para alcance efetivo das metas relativas ao saneamento básico no país.

Para elaboração do artigo, foi necessária uma revisão de literatura que apoiou o debate, bem como consultas a documentos oficiais (relatórios e legislação), os quais contribuíram para evidenciar a problemática. Adicionalmente, foi necessária a consulta às bases de dados, em organizações governamentais ou não, que tratam do tema. De posse desse conjunto de informações e das provocações teóricas, foi possível refletir sobre a natureza do problema federativo na consecução de metas no âmbito do saneamento básico.

O trabalho se estrutura a partir de uma revisão de literatura que procura englobar aspectos relacionados à assimetria que marca a implementação de políticas públicas, sem perder de vista o debate do saneamento como condição para garantir o bem-estar dos indivíduos.

2 BREVE DEBATE TEÓRICO SOBRE O PROBLEMA

A constituição do Brasil, enquanto Federação, foi marcada historicamente pelas desigualdades em escalas diversas, sobretudo em relação ao poder concentrador do governo central. Em períodos recentes, pós-Constituição de 1988, com a retomada da democracia, algumas mudanças em direção a um maior equilíbrio parecem ter sido sinalizadas, com a descentralização e desconcentração. São esses dois movimentos, amparados pela delegação de atribuições dadas pela nova constituição, que vêm aumentando, sobremaneira, as responsabilidades dos municípios. Um arranjo que se expressa: “[...] na distribuição das competências exclusivas [...], no grau de hierarquia entre suas competências concorrentes e nos mecanismos de coordenação e incentivo nas competências comuns” (LASANCE, 2012, p. 23LASANCE, A. Federalismo no Brasil: trajetória institucional e alternativas para um novo patamar de construção do Estado. In: LINHARES, P. T. F.; MENDES, C.; LASANCE, A. Federalismo à brasileira: questões para discussão. Brasília: IPEA, 2012.).

A municipalização se constitui em um movimento que reconhece o município como principal responsável pela implementação de algumas políticas públicas. Nesse sentido, o entendimento do processo de municipalização seria a transferência para as cidades das responsabilidades e, em tese, dos recursos necessários para exercerem plenamente tais funções.

Esse movimento, também denominado de “prefeiturização”, é analisado por Abreu (1999)ABREU, M. Descentralização e federalismo. Cadernos Aslegis, Brasília, DF, v. 3, n. 7, p. 30-5, jan./abr. 1999. como uma mera transferência de atribuições somente no plano da administração. Corroborando esta percepção, Gonçalves (1998)GONÇALVES, R. A. O financiamento da educação: um sistema em desequilíbrio. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 103, mar. 1998. e Azevedo (2001)AZEVEDO, N. P. A UNDIME e os desafios da educação municipal. Estudos Avançados, São Paulo, n. 42, p. 141-52, maio/ago. 2001. destacam a distância entre as políticas executadas pelos governos federal e estaduais, em relação aos municípios que, muitas vezes, desconsideram as suas prioridades e especificidades locais, acabando, também, por se limitarem às ações de cunho administrativo e político-institucional.

No entanto, nos últimos anos, houve uma considerável ampliação de competências que foram transferidas, nas mais diversas políticas públicas, as quais tinham distintos graus de complexidade na sua implementação. Esse quadro reforçou a crescente trajetória de delegações às prefeituras, sem considerar sua capacidade financeira e técnica de fazer a gestão dessas atribuições, desenhando um quadro de dificuldades para o poder local, sobretudo quando falamos de pequenas cidades. Sobre tal aspecto Mendes sintetiza:

[...] a experiência empírica moderna demonstra a incapacidade de grande parcela dos municípios brasileiros em, de um lado, ter capacidade arrecadatória própria, ficando, assim, dependentes de transferências estaduais e federais, e, de outro, prover bens e serviços públicos adequados para sua população local ou de criarem, “a partir de baixo”, uma visão de país integrado regional e nacionalmente. Estes mesmos municípios são fortemente dependentes de recursos tributários federais e estaduais, por não contarem com uma base contributiva autônoma, seja em virtude da pequena população, seja por causa de estruturas produtivas deficientes. Ao mesmo tempo, de um modo inverso, mas complementar, existe a constatação empírica de que o governo federal, sozinho ou de forma exclusiva, não tem condições de articular, conciliar e orientar todos os interesses envolvidos na escolha de uma ação pública para as especificidades de demandas das sociedades (heterogêneas) regionais, estaduais e locais. (MENDES, 2012, p. 94MENDES, C. C. O território e o arranjo federativo para o desenvolvimento brasileiro: o caso do Nordeste. In: LINHARES, P. T. F.; MENDES, C. C.; LASANCE, A. Federalismo à brasileira: questões para discussão. Brasília: IPEA, 2012.).

Logo, é perceptível a existência de um problema estrutural: as assimetrias entre as capacidades institucionais do governo federal e os demais entes federados, o que tem refletido na fase da implementação das políticas públicas. Cavalcante, citando Arretche, oferece uma contribuição ao debate:

[...] Com efeito, observa-se um processo heterogêneo de gestão compartilhada, influenciado pela importância da temática na agenda governamental, pelo desenho de cada política específica e pela distribuição prévia de competências e do controle sobre os recursos entre as esferas de governo. Em certas áreas, optou-se pela transferência aos entes subnacionais da prerrogativa de decidir o conteúdo e o formato dos programas, enquanto em outras os governos estaduais e municipais tornaram-se responsáveis pela implementação de políticas definidas em nível federal. (ARRETCHE apud CAVALCANTE, 2011, p. 1786CAVALCANTE, P. Descentralização de políticas públicas sob a ótica neoinstitucional: uma revisão de literatura. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 45, n. 6, p.1781-1804, nov./dez. 2011.).

Assim, quando o governo central formula suas políticas públicas, muitas vezes não são consideradas as particularidades encontradas no território nacional, tampouco as distintas capacidades das municipalidades em contribuir efetivamente para o enfrentamento desses problemas, o que se constitui em um desafio para o governo central, que vê frustrado o alcance de resultados, mas, na ponta, isso adquire um caráter de insuficiência de oferta de cidadania e dignidade à população.

É exatamente na ampliação dessa agenda de políticas públicas, com uma segmentação cada vez maior, que reside um dos maiores dilemas das gestões locais: a incapacidade crescente de compreender o desenho institucional e o seu papel em todas as fases do ciclo das políticas públicas. Nesse sentido, a contribuição de Lasance é esclarecedora:

Há uma lógica necessariamente contraditória nessa divisão de poderes em uma linha vertical, na medida em que serve, ao mesmo tempo, para unificar um grande território e dividi-lo em unidades menores; para estruturar ações que devam ocorrer nacionalmente; e, concomitantemente, fragmentar as políticas públicas, obrigando à multiplicação de programas para se adequar às diferentes realidades locais. O federalismo adensa e fraciona interesses em disputa, o que reforça a unidade e dá espaço à diversidade. (LASANCE, 2012, p. 23LASANCE, A. Federalismo no Brasil: trajetória institucional e alternativas para um novo patamar de construção do Estado. In: LINHARES, P. T. F.; MENDES, C.; LASANCE, A. Federalismo à brasileira: questões para discussão. Brasília: IPEA, 2012.).

No entanto, o que se observa é o contrário, com a “pasteurização”, as ações programáticas acabam por reforçar o quadro de desigualdades, em escalas diversas, expressadas não só regionalmente, mas no acentuado padrão de dependência dos municípios em relação ao governo federal.

Essa complexidade se expressa em um crescente número de normativos que procuram orientar todas as fases das políticas públicas, desde sua formulação, passando pela implementação e avaliação, configurando-se em um emaranhado de leis e, também, na arquitetura institucional que toma parte dessas distintas fases. Assim: “[...] os municípios assumiram tarefas e poderes que jamais haviam sido conferidos aos entes locais, sem necessariamente contarem com a retaguarda administrativa e técnica necessária ao desempenho de suas funções” (LASANCE, 2012, p. 29LASANCE, A. Federalismo no Brasil: trajetória institucional e alternativas para um novo patamar de construção do Estado. In: LINHARES, P. T. F.; MENDES, C.; LASANCE, A. Federalismo à brasileira: questões para discussão. Brasília: IPEA, 2012.).

Adicionalmente, apresenta-se um complexo cenário institucional com atribuições partilhadas não só no âmbito vertical, em que diversos órgãos federais atuam nas mesmas funções programáticas, criando um emaranhado de difícil compreensão para os municípios, a exemplo do saneamento básico, como será visto adiante.

Assim, sob o discurso do aperfeiçoamento das políticas públicas, cria-se um complexo ambiente institucional que acentua a dificuldade de compreensão sobre o funcionamento dessas políticas públicas no âmbito das municipalidades, que se deparam cotidianamente com o desafio de prover serviços, em meio a esse complexo arranjo legal e institucional das esferas superiores.

Há de se considerar, ainda, a dificuldade crescente no custeio de algumas das infraestruturas resultantes dessas políticas públicas, no âmbito da municipalidade, como as redes de saneamento básico. Isso tanto pode ser estrutural, pela baixa capacidade de autofinanciamento, com forte dependência do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), como também pode ser conjuntural, a exemplo do que vem ocorrendo nos dois últimos anos com a queda de arrecadação da União e a consequente diminuição dos repasses a governos estaduais e municipais.

Dessa forma, é revelado um quadro marcado por um arranjo top-down que subordina os governos locais aos governos central e estadual. Aqui não há pretensão de fazer um debate que antagonize os entes federados, mas evidenciar quão complexo é esse arranjo federativo do Brasil, conforme se verifica na contribuição de Mendes:

Não existe consenso no amplo debate atual sobre o federalismo brasileiro acerca dos custos e/ou benefícios da descentralização promovida a partir da CF/88, bem como a respeito das responsabilidades (deveres) e direitos de cada esfera na provisão de serviços públicos, ou seja, do saldo efetivo da “estadualização” ou “municipalização” ocorrida nesse período. (MENDES, 2012, p. 58MENDES, C. C. O território e o arranjo federativo para o desenvolvimento brasileiro: o caso do Nordeste. In: LINHARES, P. T. F.; MENDES, C. C.; LASANCE, A. Federalismo à brasileira: questões para discussão. Brasília: IPEA, 2012.).

Apesar da centralidade do município na etapa da implementação em diversas políticas públicas, observa-se um papel residual na formulação, que, na maior parte das vezes, está circunscrita ao governo central, com baixa participação dos entes subnacionais; e, no monitoramento, as dificuldades técnicas das prefeituras em lidar com metodologias e instrumentos que lhes são estranhos impactam negativamente nos ciclos de avaliação.

Em síntese, pode-se dizer que o Estado brasileiro ampliou a agenda de políticas públicas, de âmbito federal, para dar conta das demandas crescentes e complexas da sociedade brasileira. Entretanto, tais políticas impuseram novos arranjos institucionais, que muitas vezes desconhecem as assimetrias e limitações das pequenas municipalidades, na sua capacidade técnica, financeira, legal e institucional. Clementino (2000)CLEMENTINO, M. L. M. Finanças públicas no nível local de governo. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 4, p. 159-182, 2000. afirma que, apesar da declaração formal constitucional de autonomia aos municípios, ela está distante de ser realmente conquistada em termos financeiros e de capacidade de gestão.

3 BRASIL: UM COMPLEXO QUADRO DE ANÁLISE PARA O SANEAMENTO

Segundo a definição dada pela Lei n. 11.445/2007, saneamento é “[...] o conjunto de medidas que visa preservar ou modificar as condições do meio ambiente com a finalidade de prevenir doenças e promover a saúde, melhorar a qualidade de vida da população e a produtividade do indivíduo e facilitar a atividade econômica”, e se estrutura a partir de um: “[...] conjunto dos serviços, infraestrutura e instalações operacionais de abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana, drenagem urbana, manejos de resíduos sólidos e de águas pluviais”. Já o Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB) foi aprovado por meio da Portaria n. 171, de 9 de abril de 2014, a qual apresenta metas de acesso à água e ao saneamento até 2033. Logo, trata-se de um complexo de serviços que integra os domicílios a redes coletivas, que têm altos custos de manutenção.

No Brasil, esse tema sempre foi objeto de discussões, considerando as formas diferenciadas de enfrentamento. Para os quadros técnicos e acadêmicos, trata-se de uma “urgência”; para o meio político, trata-se de uma “estratégia” no discurso, sempre passível de angariar votos, mas de difícil implementação e reconhecimento durante os mandatos; para os entes subnacionais, constitui-se em um “desafio” em face do seu custeio e, portanto um problema, quase sempre contornado por medidas paliativas; para a sociedade, uma “necessidade”, quando sua carência se revela problemática, quase sempre secundarizada pelas medidas paliativas adotadas pelos governantes.

A baixa sensibilização por parte do poder público construiu um país onde o esgotamento sanitário sempre foi uma política pública marcada pelas soluções de continuidade e pela primazia de outras iniciativas, sobretudo nas áreas urbanas, delineando um espaço heterogêneo que está muito associado às desigualdades regionais estruturais, conforme o gráfico a seguir.

Gráfico 1
Percentual de Domicílios com saneamento

Percebe-se que apenas cinco Unidades da Federação têm mais de 50% dos domicílios com esgotamento sanitário tratado (Distrito Federal, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro e São Paulo), ficando todos os demais abaixo desse percentual, sendo que em quatro desses estados a rede nem sequer alcança 10% dos domicílios.

Mesmo quando se observa a existência de instrumentos de planejamento para o setor, nos dois únicos estados com melhor situação, ainda é perceptível um enorme deficit não só na capacidade de elaboração desses instrumentos, mas, sobretudo, na gestão desses sistemas. Dados do Panorama dos Planos de Saneamento Básico, relativos ao ano de 2017, publicado pelo Ministério das Cidades, apontam que apenas 43% dos 3.905 municípios que foram pesquisados tinham o instrumento, conforme demonstra o gráfico a seguir.

Gráfico 2
Instrumentos de Municipais de Gestão da Política Nacional de Recursos Sólidos (PNRS) – panorama nacional

No que diz respeito à classe de tamanho da população dos municípios, a existência dos instrumentos de gestão tende a ser mais frequente naqueles com maior classe. A proporção de municípios com plano ultrapassa 60,0% entre aqueles com mais de 100.000 habitantes; e 69,0% declararam possuir Política Municipal de Saneamento Básico. Já a existência de conselho foi maior para os municípios mais populosos, atingindo 40,5% dos municípios de mais de 500.000 habitantes. O mesmo padrão se repete em relação à existência do fundo, com 31% entre aqueles com mais de 500 mil habitantes. Isso denota uma capacidade diferenciada de mobilizar recursos para iniciativas de planejamento e, também, de fazer a gestão de sistemas de esgotamento. Tal situação é destacada por Bastos (1988, p. 561)BASTOS, C. R. A federação nas Constituições brasileiras. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, São Paulo, n. 29. 1988.: “[...] os municípios se perceberam à margem do acesso a recursos para investimentos e de oportunidades para constituição de capacidade técnica e gerencial”.

Ademais, os impactos de tais iniciativas quase sempre não são vistos em curto e médio prazo, ultrapassando os mandatos políticos. O melhor exemplo que se tem dessa situação é a legislação que determina a elaboração de Planos Municipais de Saneamento e de Planos de Tratamento de Resíduos Sólidos, que já tiveram os prazos prorrogados quatro vezes em face do baixíssimo cumprimento.

Figura 1
Fluxograma de adiamentos dos prazos para elaboração dos Planos Municipais de Saneamento Básico

Os argumentos para esse quadro são diversos, mas quase sempre esbarram na baixa capacidade de planejar e custear a implantação das infraestruturas; pode-se dizer que se situam, sobretudo, na dificuldade de assegurar o funcionamento dos sistemas de saneamento e dos processos de tratamento de rejeitos, ou seja, o custeio. Nessa perspectiva, o estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) aponta que:

[...] significativa parcela dos municípios brasileiros, caracterizada pelo pequeno porte populacional e baixa capacidade de investimento, ficou entregue a um destino incerto no campo do saneamento, visto que a instalação, operação e manutenção dos serviços implicariam investimentos contínuos e de longo prazo. (IPEA, 2010, p. 431IPEA. Subsídios para uma agenda de pesquisa e formulação de políticas públicas. Brasília, DF: IPEA, 2010.).

O cenário do quadro anterior revela o desafio que ainda há para se enfrentar, sobretudo no que se refere à capacidade de planejamento e gestão das menores cidades do país. Isso resulta de um cenário mais amplo em que se observa um consenso: não há estratégias e diretrizes, na formulação dessas políticas, que incorporem a complexidade dos governos subnacionais em fazer a gestão desses sistemas. Assim, há um efeito em cadeia em que o governo central diminui o ímpeto no avanço do saneamento básico e da oferta de água de boa qualidade, com claros reflexos para a população. Nesse sentido, o estudo publicado pelo IPEA afirma:

Acabar com a desigualdade no acesso aos serviços de saneamento no Brasil e vencer as dificuldades que impedem a sua universalização não são tarefas fáceis, na medida em que os domicílios da população desprovida localizam-se, predominantemente, nas áreas rurais isoladas, em municípios de baixo desenvolvimento humano e pequeno porte [...]. (IPEA, 2010, p. 423IPEA. Subsídios para uma agenda de pesquisa e formulação de políticas públicas. Brasília, DF: IPEA, 2010.).

Cabe aqui uma reflexão sobre a ausência dos estados nos processos de planejamento, que tem sido apontada por autores como Britto (2012)BRITTO, A. L. A gestão do saneamento no Brasil: desafios e perspectivas seis anos após a promulgação da Lei 11.455/2007. e-metropolis: Revista Eletrônica de Estudos Urbanos e Regionais, n. 11, p. 08-18, dez. 2012. e Lisboa, Heller e Silveira (2013)LISBOA, S.; HELLER, L.; SILVEIRA, R. B. Desafios do planejamento municipal de saneamento básico em municípios de pequeno porte: a percepção dos gestores. Engenharia Sanitária e Ambiental, Rio de Janeiro, v. 18, n. 4, dez. 2013. como um elo faltante no arranjo federativo, com repercussões na política de forma geral.

No caso específico do saneamento, o complexo arranjo institucional corroborou avanços insuficientes e mesmo uma piora do quadro. Se, de um lado, essa amplitude de agentes pode assegurar mais recursos financeiros e mobilização técnica, por outro lado, pode intensificar disputas e obstáculos de naturezas diversas, resultar em inércia na resolução das questões e, portanto, impactar negativamente no progresso das metas a serem alcançadas nos instrumentos de planejamento, conforme demonstrado no gráfico seguinte, que demonstra a evolução da quantidade de organizações do governo federal e do quantitativo de programas no setor. Trata-se de um aspecto que autores como Saiani (2007, p. 262)SAIANI, C. C. S. Restrições à expansão dos investimentos em saneamento básico no Brasil: déficit de acesso e desempenho dos prestadores. 2007. Dissertação (Mestrado em Economia Aplicada) – Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2007. já alertaram para a: “fragmentação das responsabilidades e dos recursos federais, indefinições regulatórias e irregularidades contratuais”.

Gráfico 3
Órgãos Federais com Programa de Saneamento

Essa profusão de programas está mais associada a mandatos institucionais do que propriamente a uma estratégia coordenada para superar o deficit de saneamento no país, considerando inclusive os critérios para fatiar a política nacional do setor. No caso do extinto Ministério das Cidades, cabia a atuação em municípios com população superior a 50.000 habitantes, municípios integrantes de regiões metropolitanas, municípios de Regiões Integradas de Desenvolvimento Econômico (RIDEs), ou ainda em municípios organizados em consórcios públicos que atendam população superior a 150 mil habitantes. À Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), foi delegado o atendimento a municípios com população inferior a 50.000 habitantes, áreas especiais como quilombos, assentamentos rurais e áreas endêmicas. Ao Ministério da Saúde, compete, por uma unidade especializada, o atendimento às aldeias indígenas. O extinto Ministério da Integração Nacional, por intermédio de sua coligada, Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (CODEVASF), responsabilizou-se por programas de esgotamento sanitário, de caráter multimunicipal, destinados à revitalização do rio São Francisco, associados ao seu projeto de transposição. Coube ao Ministério do Meio Ambiente executar programas relacionados aos resíduos sólidos, ao esgotamento sanitário e à revitalização de bacias.

Dessa forma, verifica-se uma questão de ordem estrutural para a consecução dos resultados em uma política de saneamento básico, fragmentação de capacidades e recursos, além de uma concorrência com os mandatos precípuos de cada um dos órgãos, o que coloca o tema em distintas posições na agenda de prioridades.

Para as prefeituras, essa complexa arquitetura institucional torna-se quase incompreensível, considerando que cada um dos órgãos tem um arcabouço legal específico e, algumas vezes, para um mesmo recorte territorial, distintos programas seriam aplicáveis. Na maior parte das vezes, a ausência de uma instância de governança horizontal e vertical, capaz de coordenar as distintas ações programáticas, resulta em projetos que não atingem, de forma satisfatória, seus objetivos.

Portanto, a síntese desse baixo desempenho nas metas ambicionadas pela Política Nacional de Saneamento é explicada na literatura em políticas públicas, quando afirma que tais falhas podem ser resumidas, basicamente, nas seguintes dimensões: I) ausência de clareza nos objetivos das políticas públicas – o que leva a interpretações diferentes na ação; II) múltiplos atores envolvidos na implementação, o que potencializa dificuldades de consenso, coordenação e comunicação; III) diferenças entre interesses e valores inter e intraorganizacionais, o que gera diferentes motivações para a implementação; IV) discricionariedade das agências de implementação, o que limita o controle administrativo pelos formuladores (LOTTA, 2010LOTTA, G. S. Implementação de políticas públicas: o impacto dos fatores relacionais e organizacionais sobre a atuação dos burocratas de nível de rua no Programa Saúde da Família. 2010. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.).

Para além do que Lotta (2010)LOTTA, G. S. Implementação de políticas públicas: o impacto dos fatores relacionais e organizacionais sobre a atuação dos burocratas de nível de rua no Programa Saúde da Família. 2010. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. conclui, nota-se que, no caso brasileiro, a diferenciação em diversas dimensões toma nomenclaturas distintas, tais como desigualdade ou mesmo assimetrias, que deveriam ser objeto de um olhar cuidadoso das políticas nacionais. No caso específico do saneamento básico, quase todos os seus princípios permitem tal interpretação, a destacar o respeito às particularidades locais e regionais; a articulação com políticas de desenvolvimento urbano e regional, de habitação, de combate à pobreza, de proteção ambiental, de saúde e outras de relevante interesse social; a sustentabilidade econômica; a progressividade das soluções, considerando a capacidade de pagamento dos usuários; a transparência; o controle social; e a segurança e integração com a gestão de recursos hídricos.

4 QUAL O FUTURO DO SANEAMENTO NO BRASIL?

O aspecto anterior se relaciona a outro. Com a Emenda Constitucional n. 95, de 2016, que limitou os gastos públicos, e uma crise fiscal sem precedentes, os investimentos em infraestrutura certamente sofrerão cortes. Considerando que o Orçamento da União tem um conjunto de dispositivos vinculantes a outras áreas, existirá pouca disponibilidade para as transferências voluntárias, que, em geral, constituem-se na modalidade de financiamento do saneamento, notadamente para os pequenos municípios.

A alternativa aos recursos do governo federal são os financiamentos de bancos públicos, no entanto, a Lei de Responsabilidade Fiscal também estabelece, desde 2001, limites ao endividamento de estados e municípios. Dessa forma, o quadro de insolvência que tomou grande parte das finanças estaduais e municipais do país, e a dependência da União para investimentos de maior vulto, a exemplo do saneamento, vão se ampliar, inclusive com possibilidade de muitos desses entes federados nem sequer conseguirem atender a critérios legais para acessar recursos para implantação das redes.

Embora na legislação exista previsão das parcerias público-privadas (PPPs) para o saneamento, o Brasil ainda engatinha tanto na construção de uma modelagem que dê conta da complexidade do país como patina na insegurança jurídica, o que inibe os investimentos que não sejam públicos no setor. Além do mais, Gama (2010)GAMA, R. S. Aspectos da Política Nacional de Saneamento diante da transição democrática da sociedade e do Estado brasileiro. Desenvolvimento e Meio Ambiente, n. 22, jul./dez. 2010. elencou uma série de fatores que implicaram a fase neoliberal, que culminou com a privatização de algumas concessionárias, e demonstra, com base em outros autores e estudos de instituições nacionais e multilaterais, que esse não foi um momento bem-sucedido.

Em se falando de dispositivos legais que disciplinem o setor, o ano de 2019 foi marcado por um ambiente de instabilidade, com a tramitação da Medida Provisória 868/2018, encaminhada ainda no Governo de Michel Temer, mas que, após aprovação na Câmara dos Deputados, foi rejeitada e arquivada pelo Senado Federal. No mesmo ano, foi apresentado o Projeto de Lei 4.162, o qual propõe a instituição do Marco Legal do Saneamento Básico, que implica alguns desafios para as municipalidades.

Trata-se de pontos que reforçam a assimetria e o desconhecimento das insuficiências de gestão das cidades de até 50 mil habitantes, em que reside cerca de 70% da população brasileira, o que perpetuaria o quadro deficiente na oferta dos serviços de saneamento básico. Um desses aspectos é a atribuição do Licenciamento Ambiental ao município nos empreendimentos de saneamento, delegando ao governo estadual, quando excepcionalmente não existir órgão local com tal atribuição. Não é de hoje que se sabe das limitações, como apontado por Neves (2016)NEVES, E. M. S. C. Institutions and environmental governance in Brazil: the local government’s perspective. Revista de Economia Contemporânea, v. 20, n. 3, p. 492-516, 2016., ao alertar que, na área ambiental, os municípios são extremamente dependentes da cooperação intergovernamental, e que, na ausência dessa solidariedade institucional, suas atribuições podem ser precarizadas.

A titularidade dos serviços de saneamento básico conferida aos municípios impõe outros aspectos desafiadores que já estavam na Lei n. 11.447/2007, como os planos, com suas metas e indicadores de desempenho, do estabelecimento de mecanismos de aferição de resultados, além da definição de parâmetros de qualidade, que devem ser observados na prestação dos serviços, sejam eles diretos ou concedidos. Ainda, são competências o estabelecimento dos mecanismos de controle social e a implementação de sistemas de informação sobre os serviços, articulados com os sistemas nacionais. Em artigo de Lisboa, Helller e Silveira (2013)LISBOA, S.; HELLER, L.; SILVEIRA, R. B. Desafios do planejamento municipal de saneamento básico em municípios de pequeno porte: a percepção dos gestores. Engenharia Sanitária e Ambiental, Rio de Janeiro, v. 18, n. 4, dez. 2013., avaliaram-se as dificuldades enfrentadas pelos municípios no planejamento do setor ao ser afirmado que os municípios têm se deparado com enormes dificuldades: “Os profissionais do município disponíveis para se envolverem na elaboração do plano não têm conhecimentos técnicos específicos nem experiência em trabalhar com planejamento [...] (LISBOA; HELLLER; SILVEIRA, 2013, p. 345LISBOA, S.; HELLER, L.; SILVEIRA, R. B. Desafios do planejamento municipal de saneamento básico em municípios de pequeno porte: a percepção dos gestores. Engenharia Sanitária e Ambiental, Rio de Janeiro, v. 18, n. 4, dez. 2013.).

Ainda, no novo marco regulatório, existe um incentivo à concessão dos serviços, assegurando prioridade na obtenção de recursos para elaboração dos seus planos, e ele dispõe sobre a manutenção de ações para apoio técnico aos municípios. Cabe destacar, no entanto, que embora o deficit no acesso ao saneamento se mantenha em níveis elevados, os recursos direcionados para o setor vêm apresentando quedas significativas, conforme mostrado no gráfico a seguir. Apesar de o orçamento discricionário sofrer alterações substantivas com as emendas impositivas, não se observa uma priorização dos parlamentares em direcionar recursos para obras de infraestrutura em saneamento.

Gráfico 4
Saneamento – Evolução Orçamentária de 2015 a 2019

Outro aspecto reforçado no novo marco do setor é a cooperação federativa, disciplinada pela Lei n. 11.107, de 6 de abril de 2005, também conhecida como Lei dos Consórcios Públicos Municipais, que vai ao encontro do que o marco dispõe, e pela Lei n. 11.445/2007, que trata da prestação de serviços regionalizados. Na nova legislação, a titularidade do serviço de saneamento é reconhecida em outras formas de cooperação federativa, tais como regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, desde que institucionalizados, desde que sejam autarquias intermunicipais. Ainda em relação à formalização dos instrumentos de cooperação federativa, o novo marco do saneamento dispensa a prévia autorização das câmaras de vereadores, tornandoas um ato exclusivamente do Poder Executivo local. Em 2017, cerca de 30% dos 5.570 municípios informaram a participação em consórcios na área do saneamento básico (SNIS, 2017).

Quando se trata de temas que demandam inovações de alguma natureza, essas assimetrias se reforçam, seja pela pouca capacidade de promover disrupções em políticas públicas, seja pela dificuldade de essas mudanças serem incorporadas pelas administrações locais.

A proposta do novo marco do saneamento soa como uma quimera para os pequenos municípios, considerando que seu modelo de gestão é bastante complexo e requer capacidades inexistentes na maioria deles, em que o deficit institucional se expressa nas mais diversas dimensões, mas, sobretudo, nos aspectos técnicos e financeiros.

Além da dificuldade em apresentar bons projetos e superar inúmeros obstáculos do regramento para conseguir recursos, os pequenos municípios se deparam com desafios não só na fase de implantação das redes, mas, principalmente, no gerenciamento desses sistemas. Esse quadro se agrava pela crise fiscal que atinge todas as esferas da Federação brasileira, e corrobora uma postura reticente dos prefeitos em assumir o custeio dessas redes, que se traduzem em despesas continuadas.

Adicionalmente, a ação dos órgãos de fiscalização e controle é um componente a mais para deixar os gestores locais mais reticentes, pois a implantação dessas redes se constitui em uma despesa nova e permanente, vinculada aos cofres das prefeituras.

Outro receio dos gestores locais é a atuação dos órgãos de fiscalização e controle, que, em suas avaliações, colocam em evidência uma série de problemas relacionados à gestão em âmbito municipal, mas também apontam alguns gargalos que estão fora do alcance dos prefeitos, tais como: problemas na obtenção de licenças requeridas aos empreendimentos; e dificuldade na seleção e contratação de empresas para realizar as obras (TCU, 2015TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Acórdão: 593/2015. Brasília, DF: TCU/SeinfraUrbana, 2015.).

No entanto, os relatórios e documentos oficiais permanecem mostrando que boa parte da baixa execução de algumas ações e sua pouca efetividade decorrem da insuficiência institucional das prefeituras, expressas nas questões orçamentárias e financeiras, bem como nos aspectos técnicos e institucionais.

Nesse contexto, perpetuar-se-ia a cultura que “culpabiliza” as municipalidades pela ausência de bons projetos e pela baixa eficiência no resultado de algumas políticas públicas. O discurso recorrente do governo central é de que os projetos não atendem aos critérios das políticas nacionais ou federais; por outro lado, há também uma constatação de que existem fragilidades técnicas, financeiras e institucionais em boa parte dos municípios brasileiros. Essa realidade dificulta a gestão das ações, desde a seleção de projetos até o acompanhamento da sua implementação, influenciando na consecução dos objetivos da política.

Ao que parece, um aspecto fundamental não tem sido objeto de enfrentamento na forma de programas específicos: o desenvolvimento de capacidades institucionais. Trata-se de uma obrigação presente em boa parte das políticas públicas nacionais, que são operadas por entes subnacionais, e no saneamento não é diferente; mas não é possível mencionar nenhuma estratégia substantiva formulada ao longo dos últimos anos.

A assistência técnica ainda encontra grandes desafios, em face da exiguidade de quadros no governo federal para dar conta da amplitude do país, e os arranjos colaborativos, que poderiam contribuir com esse suporte, também têm sérias limitações, a exemplo das universidades.

Em 2005, foi ensaiado um arranjo de suporte técnico aos entes subnacionais no saneamento básico, com a institucionalização do Núcleo Setorial Saneamento, pela Portaria n. 141, de 22 de março de 2005, em que o extinto Ministério das Cidades aderia ao Programa Nacional de Gestão Pública e Desburocratização (GESPÚBLICA) e tinha a missão de “apoiar a modernização da gestão dos prestadores dos serviços de saneamento ambiental [...]”. No Comitê Gestor do Núcleo, além de entidades nacionais do setor, estavam também as entidades municipalistas nacionais, mas parece que a secundarização do desenvolvimento de capacidades persistiu no desenvolvimento das atividades do Núcleo, considerando que, entre as estratégias definidas, nenhuma estava associada à capacitação das prefeituras.

Nem mesmo os órgãos de fiscalização e controle conseguem alcançar, em seus relatórios, o tamanho dessa ausência de estratégia, pois, na maior parte das vezes, analisam os instrumentos de formalização da cooperação e fazem verificações sobre a legalidade e conformidade das transferências de recursos, quando muito se debruçam sobre os resultados ruins e fazem apontamentos.

Dessa forma, entende-se que o enfrentamento da questão estrutural em uma política federativa que requer cooperação não vem sendo executado, que é a capacitação para a implantação das redes e gestão dos sistemas de saneamento básico nos munícipios, com o adensamento de capacidades e transferência de conhecimento.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao finalizar o artigo, a contribuição de Cunha (2004)CUNHA, R. E. Federalismo e relações intergovernamentais: os consórcios públicos como instrumento de cooperação federativa. Revista do Serviço Público, Brasília, n. 3, p. 5-36, jul./set. 2004. se mostra relevante, ao refletir que completar o desenho federativo brasileiro não é processo a ser construído em um único governo, em função da complexidade da matéria e dos contenciosos históricos, o que inclui a gestão das políticas públicas que estão sob sua responsabilidade.

Portanto, é necessário rever a forma de aproximação do governo federal, com os governos estaduais e municipais. Em 2018, a Agência Nacional de Águas (ANA), o IPEA e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) reconheceram o problema dos poucos avanços e de suas possíveis causas, destacando o financiamento e a baixa integração intersetorial. Assim, é preciso construir uma agenda para o enfrentamento dessa fragilidade técnica, financeira e institucional dos municípios, para assegurar o planejamento, a implantação e a gestão dos seus sistemas de saneamento, fortalecendo os governos subnacionais e o poder central como um instituto de equidade no provimento desses serviços.

Nesse sentido, a primeira ação é reconstruir a abordagem da causa do saneamento, com a devida complexidade que o tema merece, evidenciando que a sua ausência causa prejuízos em diversas dimensões aos indivíduos e à sociedade. Isso requer um esforço de estimar o tamanho do deficit, bem como as particularidades regionais, constituindo ponto de partida para mobilizar recursos técnicos, orçamentários e institucionais. No entanto, esse é um aspecto frágil, segundo Nirazawa e Oliveira (2018)NIRAZAWA, A. N.; OLIVEIRA, S. V. B. Indicadores de saneamento: uma análise de variáveis para elaboração de indicadores municipais. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 52, n. 4, p :753-776, jul./ ago. 2018., que apontam esse fator limitante, o qual reúne indisponibilidade de dados, ausência de confiabilidade na coleta e dificuldade de integrar ações, bem como destacam a dificuldade de fazer comparações pelo porte dos municípios e arrematam destacando a ausência de: “[...] iniciativas estruturadas para elaboração de indicadores no Brasil que contemple os componentes do saneamento básico segundo a Lei 11.445/2007 [...]” (NIRAZAWA; OLIVEIRA, 2018, p. 756NIRAZAWA, A. N.; OLIVEIRA, S. V. B. Indicadores de saneamento: uma análise de variáveis para elaboração de indicadores municipais. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 52, n. 4, p :753-776, jul./ ago. 2018.).

A segunda ação decorre da primeira e se caracteriza por um efeito demonstrativo, que é a efetividade da intersetorialidade e o comprometimento, no âmbito federal, pois, sem esse recurso pedagógico, fica difícil estabelecer confiança com os governantes dos níveis subnacionais. Sob tal aspecto, o IPEA sinaliza que: “A universalização do saneamento no Brasil pressupõe uma visão sistêmica e integradora [...] envolvendo a intersetorialidade entre as ações de saneamento, saúde, educação, recursos hídricos, meio ambiente e infraestrutura urbana” (IPEA, 2010, p. 423IPEA. Subsídios para uma agenda de pesquisa e formulação de políticas públicas. Brasília, DF: IPEA, 2010.). Trata-se de um ponto crítico das estruturas da administração pública, são os sombreamentos legais e a duplicidade de gastos financeiros e técnicos em suas ações, ou seja, falta de coordenação e de articulação de políticas públicas que enfrentam problemas complexos, a exemplo do saneamento básico.

A terceira ação é definição da execução daquilo que foi planejado no âmbito federal, a partir de um processo decisório, pautado pela implementação em fases, mas não necessariamente centralizado pelo que o governo federal acha, e sim adotado por meio dos diálogos e da sensibilização de governantes estaduais, municipais e com a sociedade civil. Nesse sentido, o planejamento e funcionamento de sistemas regionalizados, segundo prevê a legislação, pode ser um critério prioritário para garantir presença nos primeiros momentos dessa implementação, delegando aos níveis subnacionais de governo uma capacidade de negociação. Adicionalmente, é importante que se reflita sobre a supressão dos governos estaduais no sistema de planejamento para o saneamento básico, com o estabelecimento de obrigações no sentido de elaborar Planos Estaduais de saneamento, que possam servir de orientadores entre os instrumentos do governo central e os municípios.

A quarta ação decorre da anterior e seria assegurar que os recursos dos projetos prioritários não sofrerão qualquer tipo de contingenciamento orçamentário, nem serão prejudicados no fluxo financeiro.

Além dos recursos assegurados, é necessário que os municípios tenham apoio e assistência técnica do governo federal durante todas as fases de implantação, até sua finalização, inclusive na prestação de contas para os órgãos de fiscalização, traduzindo-se em uma efetiva cooperação.

A quinta ação é o apoio a formação do arranjo institucional, em escala regional, para posterior gestão dos sistemas, inclusive com a previsão de aportes na fase inicial para seu financiamento, bem como a proposição da modelagem dos serviços e das formas de custeio. Nessa fase também seria necessário um forte investimento na área de capacitação e assistência técnica, mantendo o governo federal um monitoramento mais próximo com a finalidade de solucionar problemas que viessem a surgir nos momentos iniciais.

A sexta e última ação seria a constituição de um sistema de transparência e informação de todo o processo decisório. Nesse sentido, as fases de planejamento e implantação dos sistemas, bem como o início de sua gestão, deverão observar metas temporais, para que alguns desses projetos não fiquem ad aeternum sob o foco de atenção do governo federal, prejudicando outros que já estariam habilitados nas fases subsequentes.

Assim, pode-se concluir que a nacionalização de um tema que de fato é nacional ainda é parcial e bastante frágil, merecendo, portanto, um enfrentamento que ultrapasse os números e alcance questões qualitativas relacionadas à capacidade política e institucional dos municípios e estados que compõem a Federação brasileira.

Adicionalmente, deseja-se, com o presente artigo, ampliar na agenda de pesquisa de políticas públicas esse debate efervescente que são as assimetrias existentes na Federação brasileira, bem como a capacidade de as municipalidades implementarem, com a baixa capacidade técnica e institucional que possuem, tudo aquilo que lhes têm sido delegado nos últimos anos, em termos de ações governamentais.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    07 Abr 2020
  • Revisado
    26 Fev 2021
  • Aceito
    20 Mar 2021
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