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Direitos humanos e direito à saúde de moradores de assentamentos rurais do MST

Human rights and right to health of MST rural settlements dwellers

Derechos humanos y derecho a la salud de los habitantes de los asentamientos rurales del MST

Resumo

No Brasil, o desafio para a garantia do exercício de direitos esbarra em profundas desigualdades sociais, o que fragiliza não somente a garantia de direito, como também a implementação de políticas públicas que possam sanar as demandas da população. No caso da população ligada ao campo, os profundos contrastes na distribuição de terras, de recursos e acesso a serviços fazem com que moradores de assentamentos rurais deparem-se com precárias condições de sobrevivência. O presente artigo é uma revisão sobre as potencialidades e fragilidades que membros do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) apresentam para o exercício dos direitos humanos, especialmente do direito à saúde, a partir de referências localizadas nas bases LILACS, SciELO, Embase, Scopus, CINAHL, PubMed, Web of Science e ProQuest. Foram analisados oito artigos e identificadas três categorias principais: i) Luta por direitos e interesses partidários; ii) Direito à educação e educação em direitos; iii) Onde exercer o controle social em saúde? Os resultados evidenciaram que a defesa de seus direitos esbarra, por vezes, em interesses político-partidários; porém, o foco na educação indica forte potencial na defesa e ampliação desses direitos. No que diz respeito ao direito à saúde, os membros do movimento ainda apresentam posicionamentos contraditórios em relação a espaços formais de controle social em saúde.

Palavras-chave
direitos humanos; direito à saúde; trabalhadores rurais

Abstract

In Brazil, the challenge to guarantee the exercise of rights is impaired by deep social inequalities, which weaken not only the guarantee of rights, but also the implementation of public policies that can address the demands of the population. In the case of the rural population, the profound contrasts in the distribution of land, resources, and access to services make residents of rural settlements face precarious conditions for survival. This article is a review of the strengths and weaknesses that members of the Landless Rural Workers Movement (MST) present for the exercise of human rights, especially the right to health, based on references located in LILACS, SciELO, Embase, Scopus, CINAHL, PubMed, Web of Science and ProQuest. Eight articles were analyzed and three main categories were identified: i) Struggle for rights and party interests; ii) Right to education and education in rights, iii) Where to exercise social control in health? The results showed that the defense of their rights sometimes collides with political party interests; however, the focus on education indicates strong potential in the defense and expansion of these rights. With regard to the right to health, members of the movement still present contradictory positions in relation to formal spaces of social control in health.

Keywords
human rights; right to health; rural workers

Resumen

En Brasil, el desafío de garantizar el ejercicio de los derechos choca con profundas desigualdades sociales, lo que debilita no sólo la garantía de los derechos, sino también la implementación de políticas públicas que puedan remediar las demandas de la población. En el caso de la población vinculada al campo, los profundos contrastes en la distribución de la tierra, los recursos y el acceso a los servicios hacen que los habitantes de los asentamientos rurales enfrenten precarias condiciones de sobrevivencia. Este artículo es una revisión sobre las fortalezas y debilidades que presentan los integrantes del Movimiento de Trabajadores Rurales Sin Tierra (MST) para el ejercicio de derechos humanos, en especial el derecho a la salud, a partir de referencias ubicadas en LILACS, SciELO, Embase, Scopus, CINAHL, PubMed, Web of Science y ProQuest. Se analizaron ocho artículos y se identificaron tres categorías principales: i) Lucha por derechos e intereses partidistas; ii) Derecho a la educación y educación en derechos, iii) ¿Dónde ejercer el control social en salud? Los resultados mostraron que la defensa de sus derechos, en ocasiones, choca con intereses políticos partidistas; sin embargo, el enfoque en la educación indica un fuerte potencial en la defensa y ampliación de estos derechos. En cuanto al derecho a la salud, los integrantes del movimiento aún mantienen posiciones contradictorias en relación a los espacios formales de control social en salud.

Palabras clave
derechos humanos; derecho a la salud; trabajadores rurales

1 INTRODUÇÃO

Cerca de 70 anos atrás, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos ([DUDH] ONU, 1948ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS [ONU]. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Portal das Nações Unidas Brasil, Brasília, DF, 1948. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/91601-declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: 23 set. 2019.
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), no intuito de promover a dignidade humana e melhor qualidade de vida, reforçando direitos como moradia, lazer, saúde, trabalho, educação, assim como outros direitos civis e políticos (MOLINARO, 2017MOLINARO, Carlos Alberto. Dignidade, direitos humanos e fundamentais: uma nova tecnologia disruptva. Revista de Bioétca y Derecho, Barcelona-Espanha, n. 39, p. 103-19, 2017., sem distinções étnicas, individuais ou geográficas.

Dentre os direitos elencados na DUDH, destaca-se o direito à saúde, estabelecido em seu artigo 25. Além da DUDH, outros instrumentos internacionais reafirmam o direito à saúde como direito humano. Contudo, apesar desses avanços, o desafio de efetivação do acesso à saúde percorre gerações e impacta diretamente a qualidade e expectativa de vida das diferentes populações e suas demandas (ONU, 1948ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS [ONU]. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Portal das Nações Unidas Brasil, Brasília, DF, 1948. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/91601-declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: 23 set. 2019.
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; PAIM et al., 2011PAIM, Jairnilson; TRAVASSOS, Claudia; ALMEIDA, Célia; BAHIA, Lígia; MACINKO, James. O sistema de saúde brasileiro: história, avanços e desafios. The Lancet, Série Saúde no Brasil, London, p. 11–31, 2011.).

No Brasil, o desafio para a garantia do exercício de direitos esbarra em profundas desigualdades sociais, o que fragiliza não somente a garantia de direito, como também a implementação de políticas públicas que possam sanar as demandas da população, potencializando, assim, as vulnerabilidades e a segregação de alguns grupos populacionais (MOLINARO, 2020).

No caso de pessoas ligadas ao campo, a história nacional é marcada por profundos contrastes na distribuição de terras (GOSCH, 2020GOSCH, Marcelo Scolari. A criação dos assentamentos rurais no Brasil e seus desafios: algumas considerações sobre cerrado goiano. RP3 – Revista de Pesquisa em Polítcas Públicas, Brasília, p. 20-38, 2020.) e, consequentemente, de recursos e acesso a serviços. No que diz respeito ao direito à saúde da população rural, foi um processo de lutas, pressão e negociação com o Estado; contudo, somente em fins da década de 1980, com a atuação de movimentos sociais organizados, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), o Estado passou a prestar maior atenção às reais necessidades da população rural (CARNEIRO et al., 2007CARNEIRO, Fernando Ferreira; TAMBELLINI, Anamaria Testa; SILVA, José Ailton; BÚRIGO, André Campos; SÁ, Waltency Roque; VIANA, Francisco Cecílio; BERTOLINI, Valéria Andrade. A saúde das populações do campo: polítcas oficiais às contribuições do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Cadernos de Saúde Coletva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 2, p. 209–30, 2007.).

O MST tem um papel importante para reivindicação de melhor redistribuição de terras e ampliação dos direitos de trabalhadores da terra; para tanto, uma de suas táticas de ação é a ocupação de terras consideradas improdutivas (MST, 2019MOVIMENTOS DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA [MST]. 35 coisas que você precisa saber sobre o MST Portal do MST, São Paulo, 2019. Disponível em: https://mst.org.br/2019/01/18/35-coisas-que-voce-precisa-saber-sobre-o-mst/. Acesso em: 16 ago. 2021.
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), formando acampamentos ou assentamentos rurais (FIGUEIREDO; PINTO, 2014FIGUEIREDO, Gislayne Cristna; PINTO, José Marcelino de Rezende. Acampamento e assentamento: partcipação, experiência e vivência em dois momentos da luta pela terra. Psicologia & Sociedade, Recife, v. 26, n. 3, p. 562–71, 2014.). No entanto, pessoas que vivem nas comunidades de assentamentos rurais possuem condições de vida vulneráveis e enfrentam diversas barreiras de acesso às políticas de saúde, o que agrava ainda mais sua situação de vulnerabilidade e impacta diversos aspectos de sua saúde. Em algumas situações, a distância das unidades ou outros serviços de saúde é a principal barreira; porém, é importante considerar também as barreiras impostas a partir dos marcadores sociais que potencializam tanto a segregação de grupos populacionais quanto a negligência no acesso à saúde e às vulnerabilidades (CARNEIRO et al., 2008CARNEIRO, Fernando Ferreira; TAMBELLINI, Anamaria Testa; SILVA, José Ailton; HADDAD, João Paulo Amaral; BÚRIGO, André Campos; SÁ, Waltency Roque; VIANA, Francisco Cecílio; BERTOLINI, Valéria Andrade. Saúde de famílias do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e de boias-frias, Brasil, 2005. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 42, n. 4, p. 757–63, 2008.).

De forma geral, nessas comunidades, o modo de lidar com o processo saúde-doença foi gradativamente construído a partir de valores ancestrais e culturais que permitiram à maioria da população, em especial populações do meio rural, ter recursos para lidar com apossibilidade de aprimorar a qualidade de vida e lidar com processos de adoecimento. Para tanto, criaram um modo de vida e de atender às suas próprias demandas, paralelo ao Estado − o que compõe também uma forma de protagonizar a própria promoção à saúde, mas não exime as lideranças governamentais da responsabilidade com os cidadãos (MOTA, 2006MOTA, Ana Elizabeth. Seguridade social brasileira: desenvolvimento histórico e tendências recentes. In: MOTA, Ana Elizabeth; BRAVO, Maria Inês de Souza; UCHÔA Roberta; NOGUEIRA, Vera; MARSIGLIA, Regina; GOMES, Luciano; TEIXEIRA, Marlene (Org.). Serviço Social e Saúde: formação e trabalho profissional. 3. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2006. p. 40-9.; PAIM et al., 2011PAIM, Jairnilson; TRAVASSOS, Claudia; ALMEIDA, Célia; BAHIA, Lígia; MACINKO, James. O sistema de saúde brasileiro: história, avanços e desafios. The Lancet, Série Saúde no Brasil, London, p. 11–31, 2011.).

As populações rurais carecem do olhar de políticas públicas, especialmente do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro, em função das desfavoráveis condições de saúde. Em 2011, foi publicada a Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, da Floresta e das Águas (PNSIPCF), que representa o compromisso do Estado com a saúde das populações rurais, com o intuito de garantir o acesso à saúde pautado nos princípios fundamentais do SUS (BRASIL, 2013BRASIL. Ministério da Saúde. Polítca Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta. 1. ed. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2013.). No entanto, essa política ainda não apresenta resultados que possam ser percebidos nos serviços de ponta da rede (COSTA; DIMENSTEIN; LEITE, 2014COSTA, Maira da Graça Silveira Gomes; DIMENSTEIN, Magda Diniz Bezerra; LEITE, Jáder Ferreira. Condições de vida, gênero e saúde mental entre trabalhadoras rurais assentadas. Estudos de Psicologia, Campinas-S P, v. 19, n. 2, p. 145–54, 2014.).

Diante do exposto, surge a questão: como essa população rural, no caso, as que vivem em assentamentos rurais, exercem seus direitos humanos, especialmente seu direito à saúde? Para responder a essa questão, propomos, no presente artigo, fazer uma revisão sobre o tema.

2 METODOLOGIA

A partir do paradigma da Prática Baseada em Evidências (PBE), foi realizado levantamento do conhecimento produzido acerca da temática do presente estudo. De acordo com Santos, Pimenta e Nobre (2007)SANTOS, Cristna Mamédio da Costa; PIMENTA, Cibele Andrucioli de Matos; NOBRE, Moacyr Roberto Cuce. A estratégia PICO para a construção da pergunta de pesquisa e busca de evidências. Revista Latno-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 15, n. 3, p. 508–11, 2007., para a elaboração de uma revisão sistemática da literatura, método fundamental para a PBE, as etapas são (1) identificação de um problema, (2) formulação de uma questão relevante e específica, (3) busca das evidências científicas, (4) avaliação das evidências disponíveis, (5) avaliação da aplicabilidade das evidências, (6) implementação da evidência no cuidado e (7) avaliação dos resultados da mudança.

Dessa forma, inicialmente foi elaborada uma questão norteadora, com o auxílio da estratégia PECO (P – população de interessse; E – exposição; C – compardor; O – outcome / desfecho), com o objetivo de especificar qual é a indagação a ser respondida dentro da temática abordada no estudo (SANTOS; PIMENTA; NOBRE, 2007SANTOS, Cristna Mamédio da Costa; PIMENTA, Cibele Andrucioli de Matos; NOBRE, Moacyr Roberto Cuce. A estratégia PICO para a construção da pergunta de pesquisa e busca de evidências. Revista Latno-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 15, n. 3, p. 508–11, 2007.; BRASIL, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Diretrizes metodológicas: elaboração de revisão sistemátca e metanálise de estudos observacionais comparatvos sobre fatores de risco e prognóstco. Brasília: Ministério da Saúde, 2014.).

Assim, elaborou-se a seguinte questão norteadora: “A partir da perspectiva de pessoas envolvidas com o MST, quais são as potencialidades efragilidades para o seu exercício dos direitos humanos, especialmente do direito à saúde?”

Foram consultadas as seguintes bases: LILACS, SciELO, Embase, Scopus, CINAHL, PubMed, Web of Science e ProQuest. Quanto aos descritores, foram utilizados: Direitos Humanos/Derechos Humanos/Human Rights; MST; Assentamentos rurais/Asentamientos rurales/Rural settlements; Movimento sem Terra/Movimiento sin Tierra/Landless Movement; Saúde/Salud/Health; Direto à saúde/Derecho a la salud/Right to health.

Considerando-se o pouco material disponível que aborde o tema em questão, não houve recorte temporal para expandir mais a busca.

Quadro 1 Total de artigos encontrados inicialmente em cada base de dados
Total LILACS SciELO Embase Scopus CINAHL PubMed Web of Science ProQuest
6 512 0 11 178 474 450 1398
  • Fonte: Elaboração própria.
  • Do total de 3.029 artigos encontrados nas bases de dados, foram realizadas três etapas para a seleção dos artigos. Inicialmente, os artigos foram organizados no software Microsoft Office Excel, e 1.672 artigos foram excluídos por duplicidade. Após essa etapa, realizou-se a leitura dos títulos e resumos, sendo excluídos 1.334 estudos. Por fim, foram selecionados oito artigos para leitura na íntegra que respondiam à pergunta de pesquisa, sendo todos incluídos no estudo (Quadro 2), conforme etapas de seleção (Figura 1).

    Quadro 2
    Caracterização dos estudos em relação a autores, ano de publicação, título, objetivo e tipo de estudo

    Figura 1
    Etapas de seleção dos artigos

    Critérios de inclusão: artigos disponíveis na íntegra; artigos em Português, Inglês ou Espanhol; artigos abordando o Movimento sem Terra (MST) no Brasil; artigos abordando aspectos históricos do MST; artigos abordando os direitos humanos no contexto da população que vive nos assentamentos do MST; artigos abordando o direito à saúde no contexto da população que vive nos assentamentos do MST. Critérios de exclusão: artigos que abordam outros movimentos sociais; artigos que não estejam disponíveis na íntegra; artigos que abordam o exercício de outros direitos, sem o foco na saúde e no contexto da população que vive nos assentamentos do MST.

    3 RESULTADOS

    Após análise dos oito artigos selecionados, emergiram três categorias principais: i) Luta por direitos e interesses partidários; ii) Direito à educação e educação em direitos; iii) Onde exercer o controle social em saúde?

    3.1 Luta por direitos e interesses partidários

    A história de luta dos trabalhadores rurais remonta à década de 1970, com a organização de lideranças camponesas, trabalhadores rurais e outros setores da sociedade civil pelo direito a terra (CHAGUACEDA; BRANCALEONE, 2010CHAGUACEDA, Amando; BRANCALEONE, Cassio. El movimiento de los trabajadores rurales sin terra (MST) hoy: desafios de la izquierda social brasileña. Argumentos, Xochimilco-México, v. 23, n. 62, p. 263–79, 2010.). Estudiosos geralmente dividem a trajetória do movimento em três fases: a primeira, entre 1970 e início dos anos 1980, período ainda marcado pelo regime militar, em que o movimento contou com apoio da Comissão Pastoral da Terra (setor da Igreja Católica), e sua visão de direito a terra também foi marcada por princípios religiosos em que a terra era entendida como “presente de Deus para todas as pessoas e não apenas para alguns privilegiados” (HODDY; ENSOR, 2018, p. 9HODDY, Eric T.; ENSOR, Jonathan E. Brazil’s landless movement and rights ‘from below’. Journal of Rural Studies, United Kingdom, v. 63, p. 74-82, 2018.).

    A segunda fase desenrolou-se entre 1980 e 1990, momento em que há maior aproximação de partidos políticos de esquerda, especialmente o Partido dos Trabalhadores (PT) e centrais sindicais, como a Central Única dos Trabalhadores (CUT), com adoção de discurso mais “socialista” (HODDY; ENSOR, 2018HODDY, Eric T.; ENSOR, Jonathan E. Brazil’s landless movement and rights ‘from below’. Journal of Rural Studies, United Kingdom, v. 63, p. 74-82, 2018.) ou “leninista” (NAVARRO, 2005NAVARRO, Zander. Transforming rights into social practces? The Landless Movement and land reform in Brazil. IDS Bulletn, Brighton, v. 36, n. 1, p. 129-42, 2005.), em que a luta do MST pela terra configurou-se como luta pela democracia e pela cidadania (HODDY; ENSOR, 2018HODDY, Eric T.; ENSOR, Jonathan E. Brazil’s landless movement and rights ‘from below’. Journal of Rural Studies, United Kingdom, v. 63, p. 74-82, 2018.), ocorrendo, inclusive, maior confronto com a polícia e seguranças armadas de proprietários de terras, seguindo o lema “ocupar, resistir, produzir” (NAVARRO, 2005, p. 131NAVARRO, Zander. Transforming rights into social practces? The Landless Movement and land reform in Brazil. IDS Bulletn, Brighton, v. 36, n. 1, p. 129-42, 2005.). A terceira fase é atribuída aos anos 1990, em que o modelo neoliberal adotado pelo governo brasileiro levou o MST a se posicionar contra o novo agronegócio, defendendo a soberania e autodeterminação nacional (HODDY; ENSOR, 2018HODDY, Eric T.; ENSOR, Jonathan E. Brazil’s landless movement and rights ‘from below’. Journal of Rural Studies, United Kingdom, v. 63, p. 74-82, 2018.).

    O período em que o MST se aproximou de partidos políticos foi importante para que sua busca pelo direito a terra ganhasse maior projeção nacional. Contudo, essa sua “partidarização” evidenciou o jogo de interesses partidários que ora limitava a ação do movimento e ora cooptava seus militantes para atuar em favor de apoio político (NAVARRO; 2005NAVARRO, Zander. Transforming rights into social practces? The Landless Movement and land reform in Brazil. IDS Bulletn, Brighton, v. 36, n. 1, p. 129-42, 2005.; BARONE; FERRANTE, 2012BARONE, Luís Antonio; FERRANTE, Vera Lúcia S. Botta. Assentamentos rurais em São Paulo: estratégias e mediações para o desenvolvimento. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 55, n. 33, p. 755–85, 2012.). Um estudo sobre assentamentos rurais no interior paulista (BARONE; FERRANTE, 2012BARONE, Luís Antonio; FERRANTE, Vera Lúcia S. Botta. Assentamentos rurais em São Paulo: estratégias e mediações para o desenvolvimento. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 55, n. 33, p. 755–85, 2012.) evidenciou que, enquanto o governo paulista esteve sob administração do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) – partido considerado de centro-direita com histórico de rivalizar disputas eleitorais com o PT –, as questões ligadas à reforma agrária sofreram maiores dificuldades na implantação de assentamentos, escoação da produção dos trabalhadores assentados, e agências governamentais, como o órgão de terras estadual, sofreram enfraquecimento – especialmente durante a gestão de Alckmin (2000-2006) e Serra (2007-2010).

    Por outro lado, quando o PT alcançou o governo federal, com a eleição de Lula em 2002, o MST vislumbrou uma maior chance de mudar a estrutura da propriedade de terras no Brasil. Entretanto, estudos (NAVARRO, 2005NAVARRO, Zander. Transforming rights into social practces? The Landless Movement and land reform in Brazil. IDS Bulletn, Brighton, v. 36, n. 1, p. 129-42, 2005.; CHAGUACEDA; BRANCALEONE, 2010CHAGUACEDA, Amando; BRANCALEONE, Cassio. El movimiento de los trabajadores rurales sin terra (MST) hoy: desafios de la izquierda social brasileña. Argumentos, Xochimilco-México, v. 23, n. 62, p. 263–79, 2010.; BARONE; FERRANTE, 2012BARONE, Luís Antonio; FERRANTE, Vera Lúcia S. Botta. Assentamentos rurais em São Paulo: estratégias e mediações para o desenvolvimento. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 55, n. 33, p. 755–85, 2012.) apontaram que membros do movimento acabaram por adentrar na estrutura política do governo vigente, ocupando cargos oficiais, e essa intimidade partidária prejudicou o próprio movimento, uma vez que, ao se ver tão próximo do governo, diminuiu seu caráter combativo, apresentando “discursos domesticados” (CHAGUACEDA; BRANCALEONE, 2010CHAGUACEDA, Amando; BRANCALEONE, Cassio. El movimiento de los trabajadores rurales sin terra (MST) hoy: desafios de la izquierda social brasileña. Argumentos, Xochimilco-México, v. 23, n. 62, p. 263–79, 2010.) para não provocar conflitos com a figura do presidente nacional.

    Mesmo com essas controvérsias de interesses partidários, reconhece-se que a atuação do MST logrou mudanças significativas nas relações de poder sobre a terra. Os grandes proprietários de terras perderam plena dominação sobre a região e sobre as pessoas que se encontram em suas “posses”. A invasão de terras e o olhar da justiça favorável à reforma agrária permitiram que os pobres rurais ganhassem voz (NAVARRO, 2005NAVARRO, Zander. Transforming rights into social practces? The Landless Movement and land reform in Brazil. IDS Bulletn, Brighton, v. 36, n. 1, p. 129-42, 2005.), fortalecendo a luta pelo direito à terra e a uma vida mais digna.

    3.2 Direito à educação e educação em direitos

    A vida em assentamentos rurais pode dificultar o acesso a alguns direitos básicos, como a educação de jovens e adultos, o que pode ser consequência da localidade em que se encontram ou mesmo da falta de interesse público em investir nesses territórios.

    Consciente dessas dificuldades, o próprio MST (CHAGUACEDA; BRANCALEONE, 2010CHAGUACEDA, Amando; BRANCALEONE, Cassio. El movimiento de los trabajadores rurales sin terra (MST) hoy: desafios de la izquierda social brasileña. Argumentos, Xochimilco-México, v. 23, n. 62, p. 263–79, 2010.) possui um setor voltado à questão educacional – além dos setores de produção, formação, finanças, comunicação, frente de massas e projetos nacionais, relações internacionais e direitos humanos. Esse setor de educação foi pensado inicialmente para resolver a questão do analfabetismo, apresentando como modelo educacional a produção de conhecimentos voltados ao bem-estar dos trabalhadores rurais, de forma que eles próprios desempenhem a função de pesquisadores e professores. Ademais, o investimento em uma educação emancipadora contribui para a formação ideológica e o comprometimento político de seus membros.

    No Rio Grande do Sul (MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM-TERRA [MTRST], 2001MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM-TERRA [MTRST]. Escola itnerante em acampamentos do MST Estudos Avançados, São Paulo, v. 15, n. 42, p. 235-40, 2001.), a população acampada, em conjunto com a Secretaria de Educação e o setor de Educação do MST, desenvolveu a proposta pedagógica de Escola Itinerante implementada em acampamentos gaúchos para atender crianças e jovens em tempo integral, com aulas e oficinas pedagógicas para o desenvolvimento de “habilidades e expressões culturais diversas” (MTRST, 2001, p. 237MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM-TERRA [MTRST]. Escola itnerante em acampamentos do MST Estudos Avançados, São Paulo, v. 15, n. 42, p. 235-40, 2001.). Mesmo contando com o respaldo da Secretaria de Educação e acompanhamento do Conselho Estadual de Educação, a estrutura inicial da Escola Itinerante era rudimentar, funcionando, a princípio, debaixo de árvores, e as crianças sentavam-se no chão. Posteriormente, foram adotadas lonas pretas e a comunidade fabricou e forneceu bancos e mesas. Após meses funcionando, a escola recebeu da Secretaria de Educação lonas amarelas desmontáveis e mobiliário dobrável; contudo, um vendaval levou os barracos e, diante da demora na substituição dos materiais, a comunidade se mobilizou e reconstruiu os barracos da escola.

    Já no estado de Pernambuco (ROTULO et al., 2015ROTULO, Luana Maria; DOMINGUES, Renata Cordeiro; SILVA, Evelyn Siqueira; MARETO, Luiza Camara; DANTAS, Ana Carolina de Moraes Teixeira Vilela; BATISTA, Marina Fenício Soares; FELIPE, Dara Andrade; FALCÃO, Ilka Veras; ALBUQUERQUE, Paulette Cavalcant. O cuidado em saúde e a extensão universitária referenciados na educação popular: uma história de convivência com a realidade do campo. Revista de APS, Juiz de Fora, v. 18, n. 4, p. 539–43, 2015.), o projeto educativo desenvolveuse especialmente com os adultos. Profissionais de saúde residentes desenvolveram com a colaboração de famílias de um assentamento do MST saberes voltados à saúde, a cuidados e à participação social, com base nos conhecimentos populares e alicerçados nos princípios da Educação Popular. Para tanto, uma das metodologias adotadas foi o Diagnóstico Rural Participativo (DRP), que, por meio do diálogo e da mobilização social, visa ao enfrentamento de problemas socioambientais. Como resultado, foram construídas hortas comunitárias e, durante o cuidado e manejo dessas hortas, desenrolaram-se trocas epistemológicas sobre doenças, uso de plantas medicinais, cuidados corporais, alimentação saudável e manejo adequado de resíduos, além das trocas de histórias de vidas e de afetos, permitindo um diálogo mais horizontal entre saberes e práticas.

    3.3 Onde exercer o controle social em saúde?

    As questões referentes ao exercício do controle social e a participação de todos nas deliberações e ações do MST são alvos de questionamentos dentro do próprio movimento, desde sua formação. Apesar de o movimento defender a democratização do conhecimento (CHAGUACEDA; BRANCALEONE, 2010CHAGUACEDA, Amando; BRANCALEONE, Cassio. El movimiento de los trabajadores rurales sin terra (MST) hoy: desafios de la izquierda social brasileña. Argumentos, Xochimilco-México, v. 23, n. 62, p. 263–79, 2010.) e conseguir inverter antigas relações de poder entre proprietários rurais e pobres rurais, falta transparência na escolha de suas lideranças (NAVARRO, 2005NAVARRO, Zander. Transforming rights into social practces? The Landless Movement and land reform in Brazil. IDS Bulletn, Brighton, v. 36, n. 1, p. 129-42, 2005.). A longa permanência de seus líderes sugere uma falha na rotatividade em seus cargos, indicando, inclusive, uma “disciplina férrea e hierarquizada das massas” (CHAGUACEDA; BRANCALEONE, 2010, p. 273–74CHAGUACEDA, Amando; BRANCALEONE, Cassio. El movimiento de los trabajadores rurales sin terra (MST) hoy: desafios de la izquierda social brasileña. Argumentos, Xochimilco-México, v. 23, n. 62, p. 263–79, 2010.) para manutenção de seus posicionamentos político-ideológicos. Não raro, o grupo de líderes toma decisões sem consultar as famílias envolvidas na situação, desincentivando a participação de todos. Somado a isso, o posicionamento político mais radical de certos líderes interfere negativamente nas negociações com o governo (NAVARRO, 2005NAVARRO, Zander. Transforming rights into social practces? The Landless Movement and land reform in Brazil. IDS Bulletn, Brighton, v. 36, n. 1, p. 129-42, 2005.).

    De acordo com Severo e Ros (2012)SEVERO, Denise Osório; ROS, Marco Aurélio. A partcipação no controle social do SUS: concepção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 21, supl. 1, p. 177–84, 2012., no que diz respeito ao controle social em saúde, não obstante o MST ter um setor denominado Coletivo Nacional de Saúde, os integrantes do movimento apresentam posicionamentos por vezes contraditórios em relação aos mecanismos formais de controle social em saúde, especialmente no que tange à participação em conselhos de saúde. Mesmo reconhecendo a importância de sua atuação nesse locais, há uma descrença na efetividade desses espaços. Em oposição à presença em esferas institucionalizadas, alguns membros preferem exercer o controle social do SUS fora do âmbito estatal, por meio de ocupações, mobilizações e marchas. Contudo, essas práticas configuram-se mais a atos reivindicatórios e pontuais, não gerando envolvimento na formulação de propostas nem acompanhamento no processo de gestão do SUS.

    Essas mobilizações, ocupações e marchas podem ser muito efetivas no controle social em saúde em casos relacionados, por exemplo, ao acesso à água e ao saneamento, os quais são fatores importantes para a saúde da população que vive em assentamentos. A falta de água impacta as atividades pessoais, domésticas, de plantio e criação de animais, geração de renda, preservação de conhecimentos tradicionais de plantas medicinais e, até mesmo, a construção de sua identidade ligada ao campo (NEVES-SILVA; LOPES; HELLER, 2020NEVES-SILVA, Priscila; LOPES, Juliana Aurora Oliveira; HELLER, Léo. The right to water: impact on the quality of rural workers in a settlement of the Landless Workers Movement, Brazil. PLoS ONE, San Francisco, v. 15, n. 7, e0236281, 2020.). E ser do campo, segundo Rotulo et al. (2015, p. 542)ROTULO, Luana Maria; DOMINGUES, Renata Cordeiro; SILVA, Evelyn Siqueira; MARETO, Luiza Camara; DANTAS, Ana Carolina de Moraes Teixeira Vilela; BATISTA, Marina Fenício Soares; FELIPE, Dara Andrade; FALCÃO, Ilka Veras; ALBUQUERQUE, Paulette Cavalcant. O cuidado em saúde e a extensão universitária referenciados na educação popular: uma história de convivência com a realidade do campo. Revista de APS, Juiz de Fora, v. 18, n. 4, p. 539–43, 2015., pode significar “dificuldades para exercer a cidadania, para sentir a real efetivação das políticas públicas e o nível de segregação social a que determinados grupos estão submetidos”.

    4 DISCUSSÃO

    Como um movimento que visa a uma maior participação democrática e rupturas com interesses e concepções hegemônicas de poder, o MST apresenta “vulnerabilidade e ambiguidades” (SANTOS, 2002SANTOS, Boaventura de Sousa. Democratzar a democracia: os caminhos da democracia partcipatva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.). Entretanto, seu lema e trajetória pelo direito a terra apresentam-se com importante potencial em defesa dos direitos humanos. Ao menos no Brasil, movimentos e grupos sociais reconhecem a posse da terra como um direito humano (REIS, 2012REIS, Rossana Rocha. O direito à terra como um direito humano: a lutar pela reforma agrária e o movimento de direitos humanos no Brasil. Lua Nova, São Paulo, n. 86, p. 89–122, 2012.).

    Sua luta por direitos e sua relação com interesses partidários explicita as resistências que enfrenta, como no caso das dificuldades com as quais a questão agrária se deparou durante a gestão do PSDB no governo estadual paulista (BARONE; FERRANTE, 2012BARONE, Luís Antonio; FERRANTE, Vera Lúcia S. Botta. Assentamentos rurais em São Paulo: estratégias e mediações para o desenvolvimento. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 55, n. 33, p. 755–85, 2012.), assim como a necessidade de sua manutenção e maior poder de atuação o levou a ser cooptado pelo PT, moderando seu discurso (CHAGUACEDA; BRANCALEONE, 2010CHAGUACEDA, Amando; BRANCALEONE, Cassio. El movimiento de los trabajadores rurales sin terra (MST) hoy: desafios de la izquierda social brasileña. Argumentos, Xochimilco-México, v. 23, n. 62, p. 263–79, 2010.). Alguns autores (CARLOS, 2011CARLOS, Euzeneia. Movimentos sociais: revisitando a partcipação social e a insttucionalização. Lua Nova, São Paulo, n. 84, p. 353–64, 2011.) denominariam esse processo de institucionalização do movimento, que compreenderia três componentes:

    1. Rotinização da ação coletiva – ativistas e autoridades aderem a um script comum e modelo previsível de ação; 2. Inclusão e marginalização – ativistas institucionalmente orientados são recompensados com o acesso ao sistema político, enquanto aqueles determinados a desafios mais abrangentes e a evitar o compromisso inerente à política institucional se arriscam a repressão ou marginalização e 3. Cooptação – ativistas modificam suas reivindicações e táticas para que possam perseverar dentro da política institucional. O termo institucionalização, por fim, é remetido à profissionalização do movimento [...]. (CARLOS, 2011CARLOS, Euzeneia. Movimentos sociais: revisitando a partcipação social e a insttucionalização. Lua Nova, São Paulo, n. 84, p. 353–64, 2011., p. 322).

    Outros autores (VIANA, 2019VIANA, Nildo. A mercantlização dos movimento sociais. Cadernos de Campo: Revista de Ciências Sociais, Araraquara, n. 26, p. 105–29, 2019.) entendem essa aproximação de partidos políticos como uma forma de “mercantilização do movimento”, em que a necessidade de recursos financeiros para sua organização – infraestrutura, aparelhos etc. – e mobilização induz a essas parcerias entre ramificações do movimento e os partidos, sendo uma das consequências a moderação do movimento. Tanto a perspectiva da institucionalização como a da mercantilização do movimento chamam atenção para a postura de alguns ativistas, que podem alterar suas condutas no intuito de alcançar maiores benefícios pessoais, configurando-se como “ativistas profissionais” que, não raro, emergem entre as chamadas “lideranças” do movimento.

    No caso do MST, a falta de transparência na seleção de suas lideranças e em suas deliberações e as suspeitas sobre a alocação de fundos públicos concedidos levantaram questionamentos sobre sua legitimidade (NAVARRO, 2005NAVARRO, Zander. Transforming rights into social practces? The Landless Movement and land reform in Brazil. IDS Bulletn, Brighton, v. 36, n. 1, p. 129-42, 2005.). Entretanto, é salutar relembrar que um dos lemas do movimento, além da luta pelo direito a terra, é a mudança na estrutura social. Quando defende a redistribuição de terras e de poder, poderíamos dizer que o MST está digladiando com o chamado “fascismo territorial”, o qual, conforme Santos (2010)SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, Boaventura de Sousa, MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2010. p. 23–71., ocorre:

    [...] sempre que atores sociais com forte capital patrimonial retiram ao Estado o controle do território onde atuam ou neutralizam esse controle, cooptando ou violentando as instituições estatais e exercendo a regulação social sobre os habitantes do território sem a participação destes e contra os seus interesses. (SANTOS, 2010, p. 38SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, Boaventura de Sousa, MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2010. p. 23–71.).

    E, no jogo de interesses e poder, grandes proprietários de terra e o próprio Estado podem classificar militantes do MST como “baderneiros”, justificando o uso de violência para refrear sua atuação (FONTOURA JÚNIOR et al., 2012FONTOURA JÚNIOR, Eduardo Espíndola; SOUZA, Káta Reis de; RENOVATO, Rogério Dias; SALES, Cibele de Moura. Relações de saúde e trabalho em assentamento rural do MST na região de fronteira Brasil-Paraguai. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. 379-97, 2012.). A mídia também pode colaborar na desqualificação do movimento, ou ignorando suas ações ou o depreciando, sutil ou explicitamente (LIMA, 2006LIMA, Alexandre Bonetti. Os sentdos na mídia: o MST em dois jornais diários. Psicologia e & Sociedade, Recife, v. 18, n. 3, p. 97-103, 2006.). Isso não significa que não existam “ativistas profissionais” dentro do movimento, mas é necessário um olhar mais acurado sobre suspeitas e acusações.

    Quando o MST se empenha na educação de seus membros e ao incentivar que seus membros também atuem como pesquisadores e professores, o movimento possibilita a emergência daquilo que Gramsci denominou de “organicidade” entre intelectuais e massas. Nas palavras do próprio autor:

    [...] a organicidade de pensamento e a solidez cultural só poderiam ocorrer se entre os intelectuais e os simplórios se verificasse a mesma unidade que deve existir entre teoria e prática, isto é, se os intelectuais fossem, organicamente, os intelectuais daquela massa, se tivessem elaborado e tornado coerentes os princípios e os problemas que aquelas massas colocavam com a sua atividade prática [...]. (GRAMSCI, 1966, p. 18GRASMCI, Antonio. Concepção dialétca da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.).

    Da mesma forma, a abertura dos assentados à troca de saberes com outros grupos, como profissionais de saúde (ROTULO et al., 2015ROTULO, Luana Maria; DOMINGUES, Renata Cordeiro; SILVA, Evelyn Siqueira; MARETO, Luiza Camara; DANTAS, Ana Carolina de Moraes Teixeira Vilela; BATISTA, Marina Fenício Soares; FELIPE, Dara Andrade; FALCÃO, Ilka Veras; ALBUQUERQUE, Paulette Cavalcant. O cuidado em saúde e a extensão universitária referenciados na educação popular: uma história de convivência com a realidade do campo. Revista de APS, Juiz de Fora, v. 18, n. 4, p. 539–43, 2015.), evidencia a consciência de que “conhecimento é poder” (GRAMSCI, 1966GRASMCI, Antonio. Concepção dialétca da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.) e, portanto, uma valiosa ferramenta para transformação social.

    No que diz respeito ao direito à saúde, soa curioso que, apesar de o MST apresentar um setor específico, denominado de Coletivo Nacional de Saúde, para orientar e debater questões relacionadas ao tema, não se identificou um envolvimento robusto dos sujeitos na proposição e gestão em saúde (SEVERO; ROS, 2012SEVERO, Denise Osório; ROS, Marco Aurélio. A partcipação no controle social do SUS: concepção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 21, supl. 1, p. 177–84, 2012.). Estudos apontam para precariedade em que muitos assentados se encontram, como a falta de saneamento básico (ALVES FILHO; RIBEIRO, 2014ALVES FILHO, José Prado; RIBEIRO, Helena. Saúde ambiental no campo: o caso dos projetos de desenvolvimento sustentável em assentamentos rurais do Estado de São Paulo. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 23, n. 2, p. 448–66, 2014.), falta de água própria para consumo (FERREIRA; LUZ; BUSS, 2016FERREIRA, Danielle Costa; LUZ, Sergio Luiz Bessa; BUSS, Daniel Forsin. Avaliação de cloradores simplificados por difusão para descontaminação de água de poços em assentamento rural na Amazônia, Brasil. Ciência & Saúde Coletva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 3, p. 767–76, 2016.; NEVES-SILVA; LOPES; HELLER, 2020NEVES-SILVA, Priscila; LOPES, Juliana Aurora Oliveira; HELLER, Léo. The right to water: impact on the quality of rural workers in a settlement of the Landless Workers Movement, Brazil. PLoS ONE, San Francisco, v. 15, n. 7, e0236281, 2020.), problemas de saúde ocasionados por agrotóxicos (FONTOURA JÚNIOR et al., 2012FONTOURA JÚNIOR, Eduardo Espíndola; SOUZA, Káta Reis de; RENOVATO, Rogério Dias; SALES, Cibele de Moura. Relações de saúde e trabalho em assentamento rural do MST na região de fronteira Brasil-Paraguai. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. 379-97, 2012.; SANTOS; HENNIGTON, 2013SANTOS, Júlio César Borges; HENNINGTON, Élida Azevedo. Aqui ninguém domina ninguém: sentdos do trabalho e produção de saúde para trabalhadores de assentamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 8, p. 1595–604, 2013.), a distância entre os assentamentos e unidades de saúde (CARNEIRO et al., 2008CARNEIRO, Fernando Ferreira; TAMBELLINI, Anamaria Testa; SILVA, José Ailton; HADDAD, João Paulo Amaral; BÚRIGO, André Campos; SÁ, Waltency Roque; VIANA, Francisco Cecílio; BERTOLINI, Valéria Andrade. Saúde de famílias do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e de boias-frias, Brasil, 2005. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 42, n. 4, p. 757–63, 2008.; OLIVEIRA et al., 2015OLIVEIRA, Edward Meirelles; FELIPE, Elisangela Aparecida; SANTANA, Haroldo da Silva; ROCHA, Ivonete Helena; MAGNABOSCO, Patrícia; FIGUEIREDO, Marco Antonio de Castro. Determinantes sócio-históricos do cuidado na Estratégia Saúde da Família: a perspectva de usuários da área rural. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, n. 3, p. 901-13, 2015.) que dificulta o acesso aos serviços e tratamentos etc.

    Ao focarem demasiadamente em ocupações, mobilizações e marchas, sem participarem em instituições formais de controle social em saúde (SEVERO; ROS, 2012SEVERO, Denise Osório; ROS, Marco Aurélio. A partcipação no controle social do SUS: concepção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 21, supl. 1, p. 177–84, 2012.), suas ações se caracterizam mais como “ações de protestos”, que, em um primeiro momento, parecem ser resolutivas, no entanto, não colaboram para um engajamento de fato às causas de saúde.

    [...] as ações de protesto aparentam ser mais eficazes que mecanismos formais de participação [...] por serem rápidas, centradas em uma causa específica e por mobilizarem, agilmente, considerável número de pessoas. Todavia, assim que as reivindicações são atendidas, a força das ações de protesto se dissolve, deixando uma lacuna no engajamento em longo prazo, e prejudicando, de certa forma, o aprimoramento de uma cultura participativa. (MIWA; VENTURA, 2020, p. 1249MIWA, Marcela; VENTURA, Carla. O (des)engajamento social na modernidade líquida: sobre partcipação social em saúde. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 44, n. 127, p. 1246-54, 2020.).

    Nesse aspecto, constata-se a permanência de uma fragilidade na defesa do direito à saúde, uma vez que, mesmo com todo o seu potencial reivindicatório e transformador, muitos assentamentos ainda se deparam com precárias condições de existência, que impactam diretamente a saúde de seus moradores.

    Se há desconfiança quanto à efetividade dos conselhos (SEVERO; ROS, 2012SEVERO, Denise Osório; ROS, Marco Aurélio. A partcipação no controle social do SUS: concepção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 21, supl. 1, p. 177–84, 2012.), talvez seja uma boa justificativa para participar desses espaços e provocar modificações para maior resolutividade. Corre-se o risco da “institucionalização do movimento” (CARLOS, 2011CARLOS, Euzeneia. Movimentos sociais: revisitando a partcipação social e a insttucionalização. Lua Nova, São Paulo, n. 84, p. 353–64, 2011.) e consequente moderação; contudo, participar de espaços formais de controle social em saúde proporciona estabilidade, planejamento em longo prazo e desenvolvimento de uma cultura verdadeiramente participativa. “[...] a construção dessa cultura participativa, além de tempo e terreno propício, necessita, fundamentalmente, de compromisso, por parte dos sujeitos, para que essa cultura possa persistir ao longo das gerações e das consciências” (MIWA; VENTURA, 2020: 1247MIWA, Marcela; VENTURA, Carla. O (des)engajamento social na modernidade líquida: sobre partcipação social em saúde. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 44, n. 127, p. 1246-54, 2020.) e, a partir da alteração dessas consciências, ampliar direitos e alcançar uma real transformação social.

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    Ao retomarmos nossa questão inicial, “A partir da perspectiva de pessoas envolvidas com o MST, quais são as potencialidades e fragilidades para o seu exercício dos direitos humanos, especialmente do direito à saúde?”, verificamos que o MST tem forte potencial na defesa e ampliação de direitos humanos, a começar pela modificação das estrutura de poder entre grandes proprietários de terra e trabalhadores rurais. A importância dada à educação também aponta para essa direção, pois é por meio da educação que esses trabalhadores e suas famílias adquirem maior consciência de seu meio social e aprendem novos meios de transformação de sua realidade.

    Como ocorre com muitos movimentos sociais, o MST pode sofrer as consequências de interesses pessoais de “ativistas profissionais” como também de interesses político-partidários, enfrentando obstáculos em sua atuação ou sendo cooptados pelos partidos, tornando-se “domesticados” aos interesses partidários, e isso pode fragilizar sua luta por direitos.

    No caso específico do direito à saúde, apesar de o movimento ter setor específico nessa área para o debate de questões relacionadas ao tema e muitos assentamentos apresentarem condições precárias para sobrevivência de seus moradores, os membros do movimento ainda apresentam posicionamentos contraditórios em relação aos mecanismos formais de controle social em saúde, desconfiando dos conselhos de saúde, preferindo defender esses direitos por meio de ocupações, mobilizações e marchas, que se aproximam das “ações de protesto”, sem, no entanto, apresentar proposta nem acompanhar a gestão do SUS. Essa resistência aos conselhos pode apontar para uma fragilidade na defesa e no exercício do direito à saúde, uma vez que essas ações mais imediatistas não promovem a estabilidade e o planejamento necessários para construção de uma cultura participativa engajada, em longo prazo, na consolidação e ampliação dos direitos em saúde dessa população.

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    Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Ago 2023
    • Data do Fascículo
      Apr-Jun 2023

    Histórico

    • Recebido
      11 Maio 2022
    • Revisado
      16 Dez 2022
    • Aceito
      28 Jan 2023
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