Resumo
Objetivos:
analisar os trajetos de pacientes acometidos por acidente vascular encefálico (AVE) na Região Interestadual de Saúde do Médio São Francisco.
Métodos:
o estudo utiliza a abordagem qualitativa através da construção de Itinerários Terapêuticos (IT). No mapeamento dos IT priorizou-se a observação dos distintos pontos e formas de acesso aos serviços de saúde na busca por cuidados.
Resultados:
foram realizadas 16 entrevistas semiestruturadas com usuários. Observou-se formas diversificadas de acesso e a oferta dos serviços na Rede Interestadual de Atenção à Saúde do Vale do Médio São Francisco - PEBA que podem ser caracterizadas por uma atenção desorganizada e descoordenada nos casos analisados, apesar da garantia de cuidado hospitalar. As equipes de APS estão presentes como ponto de cuidado na maior parte das trajetórias dos pacientes, todavia pouco integrada à rede regionalizada e impossibilitada de exercer a função de porta de entrada e coordenação do cuidado. Observa-se peregrinação assistencial, fragmentação do cuidado e dificuldades para realização de cuidados pós-internação essenciais para a reabilitação do paciente.
Conclusões:
traços de fragmentação do sistema de saúde regional são importantes sinais de alerta que apontam fragilidades na rede PEBA e expressam lacunas persistentes no sistema público de saúde para o cumprimento da responsabilidade sanitária e a garantia do direito à saúde dos indivíduos.
Palavras-chave:
Atenção primária à saúde; Políticas de saúde; Sistemas de saúde; Regionalização
Abstract
Objectives:
to analyze the itineraries of patients with cerebrovascular accident (CVA) in the Interstate health region in San Francisco Valley.
Methods:
this study uses the qualitative approach through the construction of Therapeutic Itineraries (IT). In the IT mapping the observation was prioritized on the different points and forms to access health service in search of care.
Results:
sixteen semi-structured interviews with healthcare users were conducted. There were diverse forms to access and provide services at the Rede Interestadual de Atenção à Saúde do Vale do Médio São Francisco-PEBA (Interstate Healthcare Network Region in the San Francisco Valley), which could be characterized by disorganized and uncoordinated care in the analyzed cases, despite the guarantee of hospital care. The Primary Health Care (APS) teams are present at a care point with most of the patients' itineraries, however, little integration to the regionalized network and they were unable to perform their functions and coordinate the care. It is observed pilgrimage assistance, fragmented care and difficulties in receiving care after post hospitalization which is essential for the patients’ rehabilitation.
Conclusions:
traces of fragments of the regional health system are important warning signs that points out fragility in PEBA and demonstrate persistent gaps in the public health system to fulfil the responsibility and guarantee individuals’ right for health.
Key words
Primary health care; Health policies; Health systems; Regionalization
Introdução
Sistemas de saúde em todo o mundo têm enfrentado desafios importantes frente às mudanças demográficas e epidemiológicas. A expectativa de vida da população é cada vez mais longa e também é crescente a presença das condições crônicas na população, seja pelo envelhecimento, por razões relacionadas a hábitos de vida e aos seus determinantes sociais.11 Schimidt MI, Duncan BB, Silva GA, Menezes AM, Monteiro CA, Barreto SM, Chor D, Menezes PR. Doenças crônicas não transmissíveis no Brasil: carga e desafios atuais. The Lancet. 2011; 377 (9781): 1949-61.,22 Alves RFS, Faerstein E. Educational inequalities in hypertension: complex patterns in intersections with gender and race in Brazil. International Journal for Equity in Health. 2016; 15: 146. Esse quadro tem impulsionado mudanças nos sistemas de atenção e a reorientação de suas práticas com vistas a responder às necessidades em saúde. Muitas vezes estas necessidades são complexas, envolvem múltiplas abordagens e intervenções multiprofissionais com a participação de diferentes atores e instituições no processo do cuidado.33 Malta DC, Merhy EE. O percurso da linha de cuidado sob a perspectiva das doenças crônicas não transmissíveis. Interface Comun Saúde Educ. 2010; 14 (34): 593-606.
No entanto, a fragmentação assistencial é um problema enfrentado em muitos sistemas de saúde. É um fator limitante para a oferta de cuidado integral e contínuo, mesmo em sistemas de base universal, cujos princípios baseiam-se na universalidade e equidade no acesso e na integralidade do cuidado.
A organização da atenção em rede regionalizada é uma das estratégias adotadas em diversos países para o enfrentamento da fragmentação assistencial.44 Kuschnir R, Chorny A. Redes de atenção à saúde: contextualizando o debate. Ciênc Saúde Coletiva. 2010; 15 (5): 2307-16. No Brasil, embora a proposta de constituição de redes regionalizadas seja anterior à reforma sanitária, esse tema ganhou maior proeminência no início do século XXI, tendo como ponto central a superação do alto grau de fragmentação da atenção que dificulta a oferta de cuidado integral e contínuo. Tal fragmentação é tangenciada pelas desigualdades socioeconômicas e geográficas que caracterizam o território nacional, a abrangência das atribuições do Estado na saúde, o arranjo federativo que envolve os três entes governamentais - federal, estadual, municipal - e diversos atores envolvidos na condução e na prestação da atenção.55 Albuquerque MV, Viana AL, Lima LD, Ferreira MP, Fusaro ER; Iozzi FL. Desigualdades regionais na saúde: mudanças observadas no Brasil de 2000 a 2016. Ciênc Saúde Coletiva. 2017; 22 (4): 1055-64.
A literatura tem destacado que em sistemas de saúde que adotam a estratégia de redes regionalizadas para organização dos serviços, a Atenção Primária à Saúde (APS) assume papel central na coordenação assistencial, com destaque para as ações relacionadas tanto à prevenção de situações agudas quanto à condução de cuidados contínuos direcionados para o manejo de pacientes com doenças crônicas.66 Peroni FM. Tecendo redes: itinerários terapêuticos de pacientes com câncer na macrorregião de Campinas [tese]. São Paulo: Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas; 2013.
7 Hudon C, Chouinard MC, Diadiou F, Lambert M, Bouliane D. Case management in primary care for frequent users of health care services with chronic diseases: a qualitative study of patient and family experience. Ann Fam Med. 2015; 13 (6): 523 -8.-88 Lamothe L, Sylvain C, Sit V. Multimorbidity and primary care: Emergence of new forms of network organization. Sante Publique. 2015; S1 (HS): 129 -35.
O cuidado adequado e oportuno no processo assistencial das doenças crônicas exige que os serviços de saúde estejam organizados de modo a ofertar ações de promoção e prevenção contínuas aos seus usuários, além de intervenções para acompanhamento, cura e ou reabilitação com possibilidade de acesso aos vários pontos da rede de atenção, permitindo o contato do usuário com diferentes profissionais e recursos, conforme se apresentem as necessidades em saúde. Estudos têm enfatizado a importância da APS forte e articulada ao conjunto de recursos do sistema de saúde para a ampliação do acesso, continuidade do cuidado, qualidade da atenção, satisfação do paciente.99 Tarrant C, Windridge K, Baker R, Freeman G, Boulton M. 'Falling through gaps': primary care patients' accounts of breakdowns in experienced continuity of care. Family practice. 2015; 32 (1): 82-7.
10 Hansen J, Groenewegen PP, Boerma WG, Kringos DS. Living In A Country With A Strong Primary Care System Is Beneficial To People With Chronic Conditions. Health affairs. 2015; 34 (9): 1531-7.
11 Tricco AC, Antony J, Ivers NM, Ashoor NM, Khan PA, Blondal E, Ghassemi M, MacDonald H, Chen MH, Ezer LK, Straus SE. Effectiveness of quality improvement strategies for coordination of care to reduce use of health care services: a systematic review and meta-analysis. CMAJ. 2014; 186 (15): E568-78.-1212 Boerma W. Coordination and integration in European primary care. In: Saltman DC, Rico A, Boerma W, eds. Primary care in the driver’s seat? Berkshire: University Press; 2007: 3 -21. Uma APS bem integrada é condição necessária para que este nível de atenção esteja em condições de coordenar o percurso terapêutico e possibilitar o acesso dos usuários aos serviços e ações em local e tempo oportunos99 Tarrant C, Windridge K, Baker R, Freeman G, Boulton M. 'Falling through gaps': primary care patients' accounts of breakdowns in experienced continuity of care. Family practice. 2015; 32 (1): 82-7. e, consequentemente, favorecer a produção de impactos positivos na saúde da população.1010 Hansen J, Groenewegen PP, Boerma WG, Kringos DS. Living In A Country With A Strong Primary Care System Is Beneficial To People With Chronic Conditions. Health affairs. 2015; 34 (9): 1531-7.
11 Tricco AC, Antony J, Ivers NM, Ashoor NM, Khan PA, Blondal E, Ghassemi M, MacDonald H, Chen MH, Ezer LK, Straus SE. Effectiveness of quality improvement strategies for coordination of care to reduce use of health care services: a systematic review and meta-analysis. CMAJ. 2014; 186 (15): E568-78.-1212 Boerma W. Coordination and integration in European primary care. In: Saltman DC, Rico A, Boerma W, eds. Primary care in the driver’s seat? Berkshire: University Press; 2007: 3 -21.
No caso brasileiro não são poucos os obstáculos a serem superados para a garantia da atenção integral, coordenada e contínua, dado o cenário de fragmentação que caracteriza o sistema público de saúde.1313 Paim JS, Travassos C, Almeida C, Bahia L, Macinko J. The Brazilian health system: history, advances, and challenges. Lancet. 2011; 377 (9779): 1778-97. Conhecer os problemas enfrentados pelos usuários a partir dos percursos por eles vivenciados, no mundo real, é um caminho a ser revelado e considerado para a reorientação da política na direção da garantia do acesso a atenção à saúde de qualidade.
O objetivo deste artigo é analisar os itinerários terapêuticos de pacientes acometidos por acidente vascular encefálico (AVE), na Região Interestadual de Saúde do Médio São Francisco, mapeando como se deram as buscas por cuidados, o que influenciou, direcionou e motivou as escolhas, tornando possível a visualização das redes reais, percorridas pelos usuários na busca de seu cuidado.
Métodos
Este estudo integra a pesquisa "Política, Planejamento e Gestão das Regiões e Redes de Atenção à Saúde no Brasil" que analisa o processo de construção das Redes de Atenção à Saúde (RAS) a partir das macrodimensões da política, da estrutura e da organização.1414 Viana ALD, Bousquat A, Ferreira MP, Cutrim MAB, Uchimura LYT, Fusaro E et al. Região e Redes: abordagem multidimensional e multinível para análise do processo de regionalização da saúde no Brasil. Rev Bras Saúde Matern Infant. 2017; 17 (Supl. 1). Uma das dimensões do referido estudo consistiu em analisar o papel da APS como coordenadora do cuidado e organizadora das RAS nas regiões de saúde.
O campo da pesquisa foi a Rede Interestadual de Atenção à Saúde do Vale do Médio São Francisco (Rede PEBA), especificamente as Macrorregiões de Saúde de Petrolina/PE e de Juazeiro/BA. Previamente à constituição formal da região interestadual de saúde, já era observada intensa circulação de usuários entre os serviços das regiões de Juazeiro e Petrolina. Nesse sentido, a formalização cumpriu o objetivo de melhor ordenar um fluxo já existente entre as regiões.
A Rede PEBA, instituída por meio da Portaria Ministerial nº 1.989, de 23 de setembro de 2008, surgiu com o processo de reordenamento das ações e serviços de saúde para garantir acesso, resolutividade e integralidade da atenção. Representantes dos municípios de Petrolina/PE e Juazeiro/BA, os Estados de Pernambuco e Bahia e o Ministério da Saúde, discutiram modelos e formas de organização, com o objetivo de organizar as ações e serviços de média e alta complexidade, buscando a complementaridade da atenção à saúde das populações e a constituição de uma macrorregião interestadual que possibilitasse aos gestores a racionalização dos gastos e otimização dos recursos.1515 Rede Interestadual. Projeto de Implementação da Rede Interestadual de Atenção à Saúde do Médio São Francisco (Documento para discussão no II Fórum da Macrorregião); 2009. 137p.
A Rede PEBA é um produto da articulação entre gestores, ações e serviços de saúde, sobretudo de urgência e emergência, de municípios que compõem a IV Macrorregião de Saúde do Estado de Pernambuco (Região de Salgueiro, Petrolina e Ouricuri) e a Macrorregião Norte do Estado da Bahia (Região de Paulo Afonso, Juazeiro e Senhor do Bonfim), tendo como municípios sede as cidades de Petrolina e Juazeiro. A APS foi incluída na discussão inicial da rede regional, contudo, posteriormente não foram desenvolvidas estratégias para seu fortalecimento.
Situado na zona mais árida do Nordeste brasileiro, às margens do Rio São Francisco, no extremo Oeste de Pernambuco e Norte da Bahia, o Polo Petrolina/Juazeiro é formado por oito municí-pios nos dois estados; onde se distribuía, no ano de 2013, uma população de 686.410 habitantes.
A população total de referência da Rede PEBA está estimada em 2.082.092 habitantes,1616 IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estimativas de população de Pernambuco para 2015. Disponível em: <http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?ibge/cnv/poptba.def>.
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi....
distribuídos em 53 municípios, sendo 28 no estado da Bahia e 25 no estado de Pernambuco. A IV Macrorregião de Saúde de Pernambuco possui uma população de 976.474 habitantes e a Macrorregião Norte da Bahia 1.105.618 habitantes.
A Rede de Atenção Primária a Saúde (RAPS) da IV Macrorregião de Pernambuco é a composta por 119 unidades básicas de saúde, 124 equipes de APS nos moldes da Estratégia de Saúde da Família e 14 equipes do Núcleo de Apoio à Saúde da Família. A Rede de APS da Macro Norte da Bahia é composta por 251 unidades básicas de saúde, 297 equipes de APS nos moldes Estratégia Saúde da Família e 27 equipes do Núcleo de Apoio à Saúde da Família. As duas regiões apresentam alto potencial de cobertura populacional pelas equipes de APS, respectivamente 98,4 e 89,3%.
A rede de urgência e emergência é composta pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU/192), que tem predominância de abrangência regional para os municípios de Juazeiro, Paulo Afonso e Senhor do Bonfim; e em Petrolina de caráter municipal. Além do SAMU, foi implantada uma unidade de pronto atendimento (UPA) UPA 24h em Petrolina, com gestão estadual.
A rede hospitalar da região, pública e conveniada ao SUS é composta por hospitais de médio e grande porte, sendo a porta de entrada de urgência e emergência o Hospital Universitário (HU/UNIVASF), conhecido como Hospital de Traumas, referência para atenção às urgências e emergências em neurologia/neurocirurgia (alta complexidade), traumato-ortopedia (alta complexidade), cirurgia geral, cirurgia vascular, cirurgia bucomaxilofacial e clínica médica. Em fevereiro de 2015 este hospital foi transferido da gestão municipal de Petrolina para a gestão da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares e está em fase de estruturação de equipamentos e de contratação de pessoal.
A implantação dessa rede interestadual conforma-se em um caso original, pois, é uma experiência pioneira no contexto da estruturação e organização das Redes de Atenção à Saúde no âmbito do SUS. Além da central da Central de Regulação Interestadual de Leitos (CRIL), outra inovação, foi a criação de um espaço de governança regional constituído pelos secretários de saúde de Pernambuco e da Bahia, dos secretários dos municípios de Petrolina, Salgueiro e Ouricuri do lado de Pernambuco e dos municípios de Juazeiro, Paulo Afonso e Senhor do Bonfim do lado da Bahia.
Para atividade de campo da pesquisa na região de saúde PEBA foram selecionados em Pernambuco os municípios de Petrolina, Cabrobó e Orocó e para o Estado da Bahia, as cidades de Juazeiro, Casa Nova e Remanso. Os critérios em cada estado foram: porte populacional (garantida a inclusão de municí-pios com diferentes portes), número de estabelecimentos de saúde (maior e menor); e um dos municí-pios necessariamente é polo regional.
Entre as possíveis análises sobre o papel da APS nas regiões de saúde e nas RAS optou-se, neste estudo, por destacar a perspectiva do usuário em situação de busca por cuidados de saúde. Para tanto, tomou-se como referencial a abordagem de Itinerários Terapêuticos (IT) de forma a descrever e analisar as práticas individuais e socioculturais de saúde a partir das trajetórias assistenciais realizadas por indivíduos e familiares na tentativa de solucionarem seus problemas de saúde, conforme propõe Gerhardt.1717 Gerhardt TE. Itinerários terapêuticos em situações de pobreza: diversidade e pluralidade. Cad. Saúde Pública. 2006; 22(11): 2449-63.
O recurso de reconstrução de IT é uma ferramenta analisadora das trajetórias de busca, produção e gerenciamento do cuidado para a saúde. Auxilia no reconhecimento de trajetórias empreendidas por sujeitos em situação de adoecimento e por seus familiares seguindo, em geral, uma lógica própria. Essas trajetórias são afetadas pelo modo como os serviços de saúde produzem e disponibilizam cuidados, dando-lhes respostas mais ou menos resolutivas e integrativas.1818 Bellato R, Araújo LFS, Mufato LF, Musquim CA. Mediação e mediadores nos itinerários terapêuticos de pessoas e famílias em Mato Grosso. In: Pinheiro R, Martin PH, orgs. Usuário, redes sociais e integralidade em saúde. Rio de Janeiro: Cepesc-IMS/UERJ; 2011. p. 177- 83. A estruturação de IT requer, portanto, o reconhecimento das diversas condições que influenciam e interferem na busca por cuidados, na perspectiva dos usuários das redes em regiões de saúde.
Para a realização do IT é necessária a escolha de traçador, como proposto por Kessner et al.,1919 Kessner E, Kalk CY, Singer J. Assessing health quality. The case for tracers. The New England Journal of Medicine 1973; 2888(1):1888-1894. que partem da premissa de que alguns problemas de saúde podem ser particularmente úteis para a análise da prestação de serviços e da interação entre prestadores, usuários e sociedade. O traçador selecionado para o presente estudo foi o acidente vascular encefálico (AVE) decorrente de hipertensão arterial sistêmica (HAS). O AVE é um agravo relacionado, em grande parte dos casos, a complicações da hipertensão arterial sistêmica cujo locus principal de cuidado deveria ser a APS e integra a atual lista brasileira de internações por condições sensíveis à atenção primária.2020 Alfradique ME, Bonolo PF, Dourado I, Lima-Costa MF, Macinko J, Mendonça CS, Oliveira VB, Sampaio LFR, De Simoni C, Turci MA. Internações por condições sensíveis à atenção primária: a construção da lista brasileira como ferramenta para medir o desempenho do sistema de saúde (Projeto ICSAP - Brasil). Cad Saúde Pública. 2009; 25: 1337-49. Há protocolos definidos para AVE, incluindo ações efetivas no âmbito da APS, de promoção, prevenção e controle dessa doença. Ademais, são destacadas na literatura a importância da oferta de ações articuladas e coordenadas entre os diversos pontos assistenciais e os vários profissionais de saúde envolvidos na atenção aos usuários com AVE.2121 Lou S, Carstensen K, Jorgensen CR, Nielsen CP. Stroke patients’ and informal carers’ experiences with life after stroke: an overview of qualitative systematic reviews. Disabil Rehabil. 2016; 39 (3): 301-13.
O estudo utiliza a abordagem qualitativa considerando a experiência de uso dos pacientes acometidos pelo evento traçador escolhido. Utilizou-se como técnica de coleta de dados a entrevista semi-estruturada orientada por roteiro, que serviu para facilitar a introdução de perguntas e aprofundar o nível de informação.2222 Minayo, Maria Cecília de Souza (org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 29. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. (Coleção temas sociais)
Para a identificação dos potenciais entrevistados foram selecionadas as guias de autorização de internação hospitalar (AIH) no sistema de Informação Hospitalar do SUS (SIH -SUS), de internações cujo diagnóstico primário era AVE e diagnóstico secundário HAS de pacientes internados no Hospital da Universidade Federal do Vale de São Francisco, referência para estes casos na região. Foram selecionadas AIH referentes a internações com altas ocorridas até seis meses prévios à realização das entrevistas, que ocorreram em julho de 2016. Foram registradas informações sobre: idade dos pacientes, sexo, município de residência, endereço de residência, município de ocorrência e tempo de internação. Identificados e selecionados os usuários, realizou-se contato telefônico para agendamento de entrevista, que foi realizada no domicílio com o usuário e seus familiares. As entrevistas foram gravadas, transcritas e posteriormente reconstituídas na forma de narrativa.
No mapeamento dos itinerários terapêuticos foi priorizada a observação da trajetória e comportamento dos pacientes e seus familiares, identificando-se os distintos pontos e formas de acesso aos serviços de saúde na busca por cuidados ao AVE.
A análise qualitativa compreendeu a transcrição das entrevistas, a leitura em profundidade do material, a tabulação dos achados, redação de um resumo narrativo e a elaboração dos IT, a fim de prover uma compreensão em perspectiva temporal. A saturação foi obtida pela identificação e repetição de pontos de atenção acessados por estes usuários.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, com o número de processo 071/15, e de acordo com a norma do Conselho Nacional de Saúde 466/12.
Resultados
Foram entrevistados 16 usuários residentes nos municípios de Casa Nova/BA, Juazeiro/BA, Petrolina/PE e Remanso/BA. A idade dos entrevistados variou de 36 a 82 anos, sendo 9 (56%) do sexo masculino e 7 (44%) do sexo feminino. Dentre eles, 11 (69%) residem em área urbana e 5 (31%) em área rural dos municípios. O período de internação hospitalar variou entre um e trinta dias de internação hospitalar.
A análise dos IT evidenciou as experiências dos pacientes, familiares e outros membros da rede de apoio ao identificar as trajetórias de busca por cuidados em pacientes acometidos por um agravo em situação aguda, internados no Hospital Geral de Traumas da Universidade Federal do Vale do São Francisco. A partir dos 16 itinerários estudados, analisou-se: a APS e os cuidados recebidos antes do episódio do AVE; o caminho percorrido no momento da urgência; a internação; os cuidados recebidos após alta hospitalar; o protagonismo da família na gestão do cuidado; e o mix público-privado no acesso aos serviços de saúde.
A APS e o cuidado antes da ocorrência do AVE
Identificaram-se padrões diferenciados de utilização da APS no período que antecedeu o episódio de AVE. Em doze itinerários, percebeu-se algum tipo de acompanhamento, regular ou irregular, com diagnóstico e seguimento da HAS pelas equipes. Quatro usuários não referiram nenhum tipo de cuidado por equipes APS, sendo um deles, beneficiário de plano privado de saúde. Em um destes casos, embora o acompanhamento da HAS ocorresse preferencialmente pelo plano de saúde com acesso a especialistas, a UBS também aparecia como local de acompanhamento da patologia, de forma irregular, e também na dispensação de medicamentos. Em sete casos identificou-se acompanhamento regular pela equipe APS, pré e pós AVE.
Destaca-se que as equipes APS estão presentes, de alguma forma, como ponto de cuidado na maior parte das trajetórias dos pacientes. Não obstante, por se tratar de usuários com agravo crônico, somente o acompanhamento regular com coordenação do cuidado poderia diminuir os riscos que ocasionaram o AVE. Neste sentido, a UBS não se configurou como um ponto de atenção efetivo no acompanhamento destes usuários, observando-se presença de outros serviços especializados, de forma fragmentada.
Foi recorrente o relato de baixa adesão ao tratamento da HAS, que se resumia ao tratamento farmacológico. Práticas de educação em saúde voltadas à prevenção de riscos e de promoção da saúde não foram identificadas em nenhuma das entrevistas. A orientação sobre os sinais de alerta do AVE também não foram identificadas.
Uma relação forte de vinculação com o serviço de APS foi evidenciada pela dispensação de medicamentos, ainda que de forma irregular por problemas de abastecimento, implicando em compra direta de parte da medicação prescrita.
Percebeu- se maior dificuldade de acompanhamento pela APS nos casos de residentes em áreas rurais, provavelmente em função da dispersão territorial destes e das demandas diversas a serem atendidas no dia a dia das equipes, o que produz uma definição de prioridades mais baseada na pressão assistencial do que em necessidades de saúde dos usuários.
O caminho percorrido no momento da urgência
Em cinco casos, a UBS foi o serviço de primeira procura quando da presença dos primeiros sintomas de AVE, e, em alguns casos com orientação verbal para a busca do hospital. Em seis casos o acesso à internação ocorreu via SAMU ou ambulância do município e em nove casos o acesso foi por transporte próprio, familiares ou vizinhos. O Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) apareceu como um recurso acionado por familiares em situação de urgência, além do uso de transporte próprio, na maior parte dos episódios, independentemente do tipo de IT. Nos IT estudados observou-se casos em que o tempo para que a internação ocorresse não foi oportuno, assim como houve longos períodos de espera na sala de emergência.
Foi possível identificar trajetórias de idas e vindas dos pacientes e seus familiares, no momento do episódio de AVE, pelos serviços de saúde da região à procura de atenção. O gerenciamento do cuidado pelas famílias gerou casos de peregrinação em busca de atendimento de urgência. As buscas anteriores por UPA, Hospitais Regionais, clínicas e hospitais conveniados com o SUS ou hospital da rede privada ocorreu tanto na regional de Petrolina quanto de Juazeiro, independentemente da localização da residência ser em área rural ou urbana. Entre os usuários da região Petrolina a trajetória assistencial se deu entre UBS, UPA e Hospital Universitário de Trauma. No caso dos usuários de Juazeiro, Casa Nova e Remanso a busca por cuidados ocorreu por trajetórias entre UBS, Hospital Regional, Hospital Pró-Matre (conveniado SUS) e UNIMED (rede particular).
A internação
O Hospital Universitário foi o destino assistencial de todos os entrevistados diante dos sintomas do AVE. Destaca-se que não houve relato de recusas à internação e nem de barreiras advindas da circulação de usuários de diferentes municípios e estados.
Os IT mostram padrões diferenciados em relação à qualidade e oportunidade do tratamento recebido neste serviço. Há relato de dois usuários que ficaram 24 horas na emergência e um que relatou ter ficado 30 dias. Apenas três dos dezesseis usuários referiram a realização de consulta com neurologista durante a internação. Dos demais, quatro informaram não ter havido contato com neurologista durante a internação, três não sabiam informar e oito afirmaram ter realizado consulta com esse profissional após a alta. Um entrevistado informou ter recebido consulta com neurologista durante e após a internação. Com relação à realização de tomografia, seis dos dezesseis usuários referiram sua realização durante o período da internação, sendo que um deles mencionou que esse exame foi realizado dois dias após a internação. A realização de tomografia após a alta foi mencionada por um usuário, exame que foi custeado pelo mesmo, através de desembolso direto. Apenas um usuário, beneficiário de plano privado, passou pelo Hospital e não permaneceu para tratamento do AVE, sendo removido pela esposa para um hospital privado, em transporte próprio, depois de horas de espera no corredor, sem atendimento. As entrevistas mostraram que mesmo usuários com plano de saúde constroem itinerários que interligam serviços da rede privada a serviços da rede pública.
Diante dos resultados observados, é plausível supor que ademais da insuficiente oferta, haja sérios problemas de qualidade da atenção hospitalar prestada aos usuários com AVE entrevistados, embora em alguns deles não possa ser descartada a ocorrência de bias de memória com relação aos procedimentos ocorridos durante a internação.
Os cuidados recebidos após alta hospitalar
Observou- se falta de orientação adequada na alta, a referência do serviço hospitalar para o serviço de APS não foi a tônica e, nos poucos casos em que esta ocorreu foi de forma verbal. O relatório de alta nem sempre foi disponibilizado para o paciente. Em dois casos os pacientes tinham solicitação de exames e retorno ao ambulatório mas não sabiam o que significavam os papéis entregues pelo hospital.
Embora tenha havido indicação para acompanhamento com neurologista, cardiologista e tratamento fisioterápico, em grande parte dos casos, o usuário não teve acesso a tais serviços, provavelmente porque o encaminhamento realizado pelo hospital se constituiu mais como uma “recomendação” do que uma referência com garantia de acesso.
Nos casos analisados de Juazeiro três pacientes estavam sem tomar medicação, pois aguardavam que fossem marcados pelo serviço de APS os exames solicitados e a consulta com o neurologista. Em todos os casos de AVE, nas duas macrorregiões, o profissional de nível superior da equipe APS não realizou visita domiciliar, ficando os pacientes acamados com acompanhamento apenas do ACS.
Viver em áreas rurais introduziu mais uma dificuldade para seguimento pela APS. Em dois IT o acompanhamento pelas equipes APS tiveram início após a alta. Em três casos identificou-se seguimento regular pela APS pré e pós internação. Observa-se que, mesmo nestes casos, as equipes não se constituíam como coordenadoras do cuidado, sem o estabelecimento de qualquer tipo de contato com os demais níveis e serviços necessitados pelo paciente. Dificuldades para acessar recursos de reabilitação foram mencionadas por todos os usuários entrevistados. Para famílias que podiam arcar com recursos próprios (4) foi possível ao paciente com AVE acessar os cuidados de fisioterapia, através de desembolso direto, muitas vezes com rateio dos custos entre os membros da família. Famílias de usuários residentes em área rural (2) relataram dificuldades com transporte para realizar periodicamente as sessões de fisioterapia, dado a distância entre o serviço e a residência do paciente.
Entre os IT analisados foi recorrente, na fala dos entrevistados, a utilização de plantas medicinais como recurso terapêutico no tratamento após o episódio de AVE. Faz parte da cultura local a utilização de chá da chamada “nove misturas” (composição: girassol, imbiriba, anis estrelado, nos moscada, pichuri, mostarda, umburana de cheiro, coentro e gergelim) para a prevenção e recuperação do AVE. Contudo não se tem estudos sobre o efeito dessa substância.
Protagonismo da família na gestão do cuidado
Destaca-se que, em todos os IT pôde ser demonstrado que a família se constituiu como a principal rede de apoio, sendo responsável pelo acesso ao serviço de urgência, assim como ao desembolso para realização de exames e compra de alguns medicamentos, mesmo apresentando dificuldades financeiras devido à sua condição socioeconômica. A maioria das famílias era composta por muitos membros, vários dos usuários acometidos tinham inúmeros filhos, até oito filhos. Observou-se também uma importante presença da família ampliada: sobrinhos, primos, tios.
A família tem forte gerência do cuidado ao ser ela que decide qual serviço acionar na rede e, entre idas e vindas a unidades de urgência, emergência hospitalar e hospitais de referência, busca o atendimento necessário ao familiar. Em alguns IT, a rede de apoio se mostrou ampliada para além da família, com a presença de amigos e parentes viabilizando o acesso mais fácil ao SAMU, à vaga no hospital, assim como à dispensação de medicamentos.
Além de acessar os serviços SUS por meio dos fluxos formais, familiares também fizeram uso das relações pessoais para viabilizar a utilização do SAMU, conseguir vaga para internação e reabilitação e até mesmo para utilizar carro particular para deslocamento a sessões de fisioterapia.
Mix público-privado no acesso aos serviços de saúde
O uso de desembolso direto e a articulação com serviços privados foram, portanto, elementos presentes ao se analisar as trajetórias. Considerando-se a utilização dos serviços públicos e privados de saúde, parece haver três tipos de interações:
-
Exclusivamente em serviços públicos: identificados a partir da experiência de usuários com baixíssima condição econômica. Nesse tipo de IT, não houve presença do setor privado ou público conveniado e nem desembolso direto das famílias por total falta de recursos financeiros. Sobressaiu, nesses casos, o não acesso a recursos necessários ao cuidado.
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Em serviços públicos com forte presença da intervenção familiar para garantia do cuidado: nesses casos, a insuficiência da rede foi, em parte, suprida na rede privada mediante a compra de serviços (consultas, exames) e medicamentos por desembolso direto. Esse tipo de IT foi observado, inclusive, em usuários pertencentes a famílias pobres. Sobressaiu nesses ITs maior possibilidade de acesso a recursos necessários ao cuidado especialmente em função do empenho das famílias na busca por esses recursos. Contudo, o não acesso esteve presente.
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Em serviços públicos e privados: esses ITs foram verificados a partir da experiência de usuários que dispunham de plano de saúde e que para ter acesso ao tratamento as famílias construíram itinerários que interligam serviços da rede privada a serviços da rede pública. Predominou nesses ITs a possibilidade de acesso a recursos necessários ao cuidado.
Discussão
O estudo demonstrou um elevado grau de fragmentação do cuidado às pessoas com AVE. Não apenas as relações e fluxos entre os serviços apresentaram fragilidades e descontinuidades, como o acesso e o cuidado em cada ponto do sistema demonstraram insuficiência e não resolubilidade, expressando de modo muito evidente lacunas que persistem no sistema público de saúde no que tange ao cumprimento da responsabilidade sanitária e a garantia do direito à saúde dos indivíduos.
No que diz respeito à APS, ainda que os usuários, em sua maior parte, tenham sido acompanhados por profissionais da rede básica, a irregularidade no atendimento e no abastecimento de medicamentos, além das dificuldades de acesso - especialmente para os residentes em áreas rurais - se traduziram em baixa qualidade da atenção prestada, com efeitos que repercutiram de forma permanente na vida dos indivíduos. Para estes, o advento do AVE não só agravou a situação de saúde como, perversamente, os colocou em situação de maior desamparo, uma vez que o armado institucional na região não favorece que a APS estabeleça conexões sólidas com a atenção hospitalar e especializada, de forma que o sistema público de saúde garanta o atendimento a serviços essenciais, além da internação, como consulta com neurologia, cardiologia e fisioterapia. A APS é parte da rede que integra a região, contudo não está articulada à atenção especializada (ambulatorial e hospitalar) no âmbito da rede regionalizada interestadual, caracterizando uma rede fragmentada. A APS, neste caso, não se mostrou efetiva na sua capacidade de possibilitar acesso e coordenar cuidado, tampouco, no desenvolvimento de ações reabilitadoras que favorecessem a reinserção social dos usuários na vida cotidiana. Vale ressaltar que Petrolina tem sido palco de grande investimento na rede de APS, o que poderá impactar positivamente em um futuro próximo.
No percurso assistencial dos casos analisados chama a atenção: a ausência de relato quanto à participação dos usuários em atividades preventivas ou educativas, ofertadas nas UBS; a não regularidade da visita domiciliar ocorrida antes ou após episódio do AVE; a atenção domiciliar para os usuários acamados corresponder à necessidades pontuais e não implicar em continuidade do cuidado; e a não ocorrência de visita da equipe de APS ao usuário durante o episódio de internação, nos casos em que já havia o acompanhamento do paciente pela APS antes do episódio de AVE.
Deixados à própria sorte, os usuários lançam mão de outros recursos para solucionar seus problemas e seu êxito estará diretamente relacionado à capacidade e dimensão de sua rede de apoio social (especialmente familiares e amigos) e do seu próprio capital econômico (expresso financeiramente) e social (expresso nas relações de amizade e em outras relações de troca simbólica), como têm assinalado alguns estudos.2323 Medina MG. O contexto local, a organização da atenção primária e a implementação de redes integradas de atenção à saúde: resultados da avaliação de dois estudos de caso [tese]. Salvador: Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia; 2006.,2424 Pineault R, Tousignant P, Roberge D, Lamarche P, Reinharz D, Larouche D, Beaulne G, Lesage D. Research collective on the organization of primary care services in Québec. Québec: Diréction de santé publique. Agence de développement de résaux locaux [Detailed Report]; 2005. É através desses recursos, fora da rede pública de saúde, que os usuários contornam os obstáculos de acesso à atenção especializada, à compra de medicamentos e, até mesmo, ao acesso a pontos de atenção (SAMU, consulta com especialistas e vaga em hospitais, por exemplo) no próprio sistema público. O uso frequente de fitoterápico reflete muito da cultura nordestina, e é comum em outras localidades.2525 Oliveira DMS, Lucena EMP. O uso de plantas medicinais por moradores de Quixadá-Ceará. Rev Bras Plantas Med. 2015; 17 (3): 407- 412.
Se os serviços de APS não se configuraram como fonte regular de cuidado e não cumpriram a função de ordenadora do sistema e coordenadora do cuidado, por outro lado, a assistência no âmbito da atenção especializada e hospitalar também se mostrou largamente deficiente na região interfederativa estudada, apesar de importante esforço de melhoria e ampliação por parte dos gestores.
Não foram evidentes mecanismos ou estratégias que promovessem a articulação de serviço e profissionais (da APS e especialistas) para atuação integrada e contínua no cuidado do usuário pós-AVE. Não foi perceptível a prática da referência e contrarreferência, nem evidenciados fluxos regionais bem estabelecidos e regulados para garantia do acesso oportuno e integrado à rede. A análise dos ITs aponta que as ações de saúde, seja no espaço assistencial da APS ou da atenção especializada, profissionais e equipes prestaram seus cuidados isoladamente e sem qualquer tipo de conexão. Fica assim perceptível que o acesso, oportuno ou não, aos diferentes serviços é mais dependente da busca persistente e do nível de compreensão dos processos pelo usuário e familiares, do que de fato, da estruturação e organização dos serviços de saúde.
Os esforços de organização da rede interestadual ainda que tenham garantido, de alguma forma, acesso aos serviços de transporte sanitário e à internação hospitalar, não se observando recusas à internação e barreiras advindas da circulação de usuários de diferentes municípios e estados, foram insuficientes para garantia de cuidado continuado. Os achados deste estudo mostram importante fragmentação e lacunas das trajetórias assistenciais de usuários acometidos de AVE. As formas de acesso e a oferta dos serviços na região interestadual PEBA ainda se caracterizaram por uma atenção desorganizada e descoordenada mostrando as fragilidades de organização de redes regionalizadas de saúde em curso no país e, teoricamente, em fase de construção na região estudada. Esta pesquisa reitera achados de estudos anteriores ao próprio processo de regionalização, que assinalam a incipiência de coordenação e ordenamento das ações, especialmente a partir da APS, 26-28 bem como outros mais recentes que atestam a fragilidade da articulação entre os níveis de atenção em redes regionalizadas, fato reconhecido pelos próprios gestores em outra região de saúde no Estado de São Paulo.2929 Bousquat A, Giovanella L, Campos EMS, Almeida PF, Martins CL, Mota PHS, Mendonça MHM, Medina MG, Viana ALD, Fausto MCR, Paula DB. Atenção primária à saúde e coordenação do cuidado nas regiões de saúde: perspectiva de gestores e usuários. Ciênc Saúde Coletiva. 2017; 22 (4): 1141-54.
Deve-se ressaltar que a presença do Hospital Universitário na região é um componente fundamental para a atenção aos pacientes acometidos por AVE. Com todos os percalços assistenciais presentes nos itinerários terapêuticos analisados nesse estudo, o Hospital Universitário de Traumas possibilitou o acesso dos usuários entrevistados que chegaram à emergência hospitalar, por via formal ou informal, das duas macrorregiões que integram a região interestadual de saúde.
No caso da rede PEBA, o conjunto dos recursos da APS não faz parte do desenho da rede interestadual. Embora esteja presente com alta cobertura populacional nos territórios que compõem a região, não fazer parte do desenho da rede regionalizada impossibilita a sua atuação como ponto central, porta de entrada resolutiva e coordenadora do cuidado na rede. Esta não é uma peculiaridade da região estudada, mas decorre do modelo de descentralização assumido na política nacional de saúde que deve ser posta em prática em um ambiente onde os entes federados dispõem de alto grau de autonomia decisória. Se por um lado este modelo promoveu a ampliação do acesso aos serviços de APS nos diversos municípios brasileiros, por outro lado a fragilidade do espaço regional e a baixa inclusão da APS como matéria para pactos intergovernamentais federativos coloca desafios enormes para a sua articulação assistencial, tão necessária para o enfrentamento dos principais problemas de saúde que caracterizam o perfil epidemiológico da população brasileira.
As trajetórias analisadas neste estudo ratificam o que há décadas vem se discutindo no Brasil a respeito da conformação de redes regionalizadas de atenção à saúde. Ter capacidade instalada não garante que a rede regionalizada de saúde se constitua. Elementos como perfil assistencial, integração dos serviços, economia de escala, regulação do acesso dos pacientes a diferentes níveis de atenção ou a alocação de recursos para os serviços de saúde, por razões de equidade e eficiência, são elementos fundantes para o planejamento e organização da rede regionalizada.44 Kuschnir R, Chorny A. Redes de atenção à saúde: contextualizando o debate. Ciênc Saúde Coletiva. 2010; 15 (5): 2307-16.,3030 Kuschnir R. Organizando as Redes de Atenção à Saúde: perfis assistenciais, articulação entre níveis e organização das linhas de cuidado. In: Kuschnir R, Fausto MCR, orgs. Gestão de Redes de Atenção à Saúde. Rio de Janeiro: EAD/ENSP; 2014.
Os efeitos da dificuldade de acesso aos vários pontos de atenção com insuficiência absoluta de coordenação de cuidado são graves e perversos para os usuários acometidos por AVE. O AVE é um acontecimento disruptivo na vida dos pacientes e seus familiares e cuidadores. Ademais da atenção adequada no evento agudo, as ações de reabilitação física e apoio psicológico e social são essenciais para a qualidade de vida.2121 Lou S, Carstensen K, Jorgensen CR, Nielsen CP. Stroke patients’ and informal carers’ experiences with life after stroke: an overview of qualitative systematic reviews. Disabil Rehabil. 2016; 39 (3): 301-13. Vale ressaltar, que o funcionamento integrado da rede, o conhecimento claro dos sinais de alerta, uma rede de urgência e emergência funcionante, exames de imagem disponíveis em tempo oportuno e o uso de trombolíticos quando indicados, podem mudar drasticamente o futuro dessas famílias.
O estudo apresenta limites que precisam ser reconhecidos. Trata-se de estudo qualitativo em uma região, que busca aprofundar a temática nos limites de um contexto específico. As discussões que decorrem dos itinerários terapêuticos para o entendimento em profundidade de como se estabelece o processo de busca por cuidados à saúde pelos diferentes sujeitos e grupos sociais é o ponto mais significativo para justificar a escolha do método. Ao mesmo tempo, a construção de IT compreende trajetórias assistenciais demarcadas por questões subjetivas. É preciso admitir que os relatos que serviram de base para o estudo são demarcados por cultura, valores, experiências, condições históricas e sociais, na medida em que mantêm relação com a forma como as pessoas se portam na busca por serviços de saúde e em relação à doença.
Um dos questionamentos que pode ser levantado quanto à propriedade do estudo para averiguar a efetividade da rede de atenção diz respeito à opção metodológica de se trabalhar com itinerários terapêuticos de pacientes com AVE. Sendo este evento uma consequência indesejada e, sabidamente, uma complicação relacionada a falhas no acompanhamento de portadores de hipertensão, o estudo faz sobressair, justamente, as deficiências do sistema, não sendo capaz de revelar casos de sucesso, uma vez que esses últimos apenas raras vezes estão relacionados a esse tipo de desfecho. Dito de outra forma, um acompanhamento efetivo e o acesso oportuno a todos os serviços do sistema de saúde reduz a probabilidade de ocorrência de AVE, bem como de suas complicações, contudo, não impede que em alguma medida, casos aconteçam. Assim, os casos estudados poderiam estar representando situações extemporâneas, exceções à regra, não traduzindo com justeza o esforço de organização do sistema na região.
Não obstante, o estudo mostra que os tênues laços entre usuários e serviços permanecem em todo o percurso dos itinerários terapêuticos. Os traços de persistência de profunda fragmentação do sistema de saúde regional, aqui evidenciados, são importantes sinais de alerta para a gestão empreender estratégias para melhorar a magnitude e qualidade da oferta e integração da rede, e assim, cumprir com a responsabilidade sanitária de garantia do direito universal de acesso a serviços de saúde de qualidade.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Out 2017
Histórico
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Recebido
27 Jun 2017 -
Aceito
13 Set 2017