Acessibilidade / Reportar erro

Diferenças clínicas entre gêmeas idênticas com anemia falciforme

RESUMO

A anemiafalciforme (AF) é uma doença genética que causa importantes manifestações clínicas devido à hemólise crônica e à oclusão vascular. O objetivo deste estudo foi relatar um caso raro de gêmeas univitelinas com diagnóstico de AF, apresentando uma característica clínica diferente. Uma entrevista com as pacientes foi realizada, e os prontuários foram consultados. Uma paciente tem história de úlcera maleolar na região esquerda, enquanto a outra não. Ambas as pacientes faziam tratamento com hidroxiureia na mesma dosagem. Este estudo mostra que a AF apresenta, além de fatores genéticos, fatores não genéticos envolvidos na gravidade da doença e suas manifestações clínicas, sendo necessários estudos quepossam contribuir para o entendimento da heterogeneidade clínica da AF.

Unitermos:
anemia falciforme; úlcera da perna; gêmeos monozigóticos; genética; hidroxiureia

ABSTRACT

Sickle cell anemia (SCA) is a genetic disease that causes important clinical manifestations due to chronic hemolysis and vascular occlusion. The aim of this study was to report a rare case of monozygotic twins diagnosed with SCA, presenting a different clinical characteristic. An interview with the patients was carried out and the medical records were consulted. One patient has a history of malleolar ulcer in the left back, while the other does not. Both patients used hydroxyurea at the same dosage. This study shows that SCA presents, in addition to genetic factors, non-genetic factors involved in the severity of the disease and its clinical manifestations. Studies are needed that may contribute to the understanding of the clinical heterogeneity of SCA.

Key words:
sickle cell anemia; leg ulcer; monozygotic twins; genetics; hydroxyurea

RESUMEN

La anemia de células falciformes (ACF) es una enfermedadgenética que causa importantes manifestaciones clínicas debido a la anemia hemolítica crónica y a la oclusión vascular. El objetivo de este estudio fue reportar un caso raro de gemelas monocigóticas con diagnóstico de ACF, presentando una característica clínica diferente. Se realizó una entrevista con las pacientes, consultándose sus fichas médicas. Una paciente tiene historia de úlcera maleolar en la región izquierda, mientras la otra no. Ambas hacían tratamiento con hidroxiurea en la misma dosis. Este estudio demuestra que la ACF presenta, además de factores genéticos, factores no genéticos involucrados en la severidadde la enfermedad y sus manifestaciones clínicas. Son necesarios estudios que contribuyan para la comprensión de la heterogeneidad clínica de la ACF.

Palabras clave:
anemia de células falciformes; úlcera de lapierna; gemelos monocigóticos; genética; hidroxiurea

INTRODUÇÃO

A anemia falciforme (AF) é uma doença genética causada por uma mutação pontual no gene da betaglobina S. Sabe-se que a concentração de hemoglobina fetal (HbF), os haplótipos do gene da betaglobina S e a coexistência com a talassemia alfa são fatores envolvidos na modulação clínica da doença. Entretanto, a AF apresenta outras manifestações clínicas que dependem não somente desses fatores, mas da interação ambiental e genética(11 Steinberg MH. Genetic etiologies for phenotypic diversity in sickle cell anemia. ScientificWorldJournal. 2009; 9: 46-67. doi:10.1100/tsw. 2009.10.
https://doi.org/10.1100/tsw. 2009.10...
). Neste estudo, mostramos o caso raro de duas gêmeas univitelinas portadoras de AF (HbSS) com apresentação clínica distinta.

RELATO DO CASO

Pacientes do sexo feminino, 22 anos, gêmeas idênticas, naturais de Fortaleza, Ceará, estudantes, com diagnóstico de AF (HbSS) desde os 5 meses de idade, desde então acompanhadas ambulatorialmente. Na infância, foram submetidas a diversas internações por crises álgicas, recebendo mais de 10 transfusões sanguíneas até os 18 anos de idade. Ambas apresentam hepatomegalia e baço de tamanho reduzido (autoesplenectomia funcional) e foram submetidas à colecistectomia há cinco anos. As pacientes iniciaram tratamento com hidroxiureia (HU) quatro anos atrás (dose média de 750 mg/dia) e ambas dão seguimento ao tratamento com HU atualmente com dose média de 1250 mg/dia.

As pacientes tiveram a mesma evolução clínica, até a paciente 2 apresentar uma úlcera maleolar no membro inferior esquerdo, com aspecto fibrótico, dor regular, exsudato amarelado e pele adjacente ressecada (Figura). Com limpeza, desbridamento físico e uso de tópico de medicamentos, a cicatrização da úlcera ocorreu em sete meses. Três anos, ela recidivou, sendo tratada por quatro meses até a resolução completa. A paciente 1 nunca apresentou nenhuma manifestação clínica grave.

FIGURE
Evolution of malleolar ulcer in the left lower limb

As pacientes apresentaram alterações semelhantes nos parâmetros do hemograma, com HbF elevada, medida durante tratamento com HU (Tabela 1). As diferenças observadas foram os níveis acima do valor de referência de aspartato aminotransferase (AST) na paciente 1 e bilirrubina indireta na paciente 2, embora sem repercussão clínica (Tabela 2).

TABELA 1
Parâmetros do hemograma das pacientes com AF durante o tratamento
TABELA 2
Parâmetros bioquímicos, clínicos e físicos das pacientes com AF

DISCUSSÃO

Sabe-se que a AF é uma doença genética que apresenta grande variabilidade nos aspectos clínicos e laboratoriais, sendo influenciada por fatores genéticos, tais como os tipos de haplótipos, polimorfismos em regiões relacionadas com HbF e fatores não genéticos(11 Steinberg MH. Genetic etiologies for phenotypic diversity in sickle cell anemia. ScientificWorldJournal. 2009; 9: 46-67. doi:10.1100/tsw. 2009.10.
https://doi.org/10.1100/tsw. 2009.10...
). Estudos com gêmeos univitelinos são importantes para exemplificar a heterogeneidade clínica da doença, mostrando que mesmo indivíduos geneticamente idênticos podem apresentar manifestações clínicas diferentes, ressaltando a importância de fatores ambientais e sua influência sobre o fenótipo e, consequentemente, sobre o curso clínico da AF,

As pacientes gêmeas univitelinas com AF apresentavam cursos clínicos semelhantes, com dores de cabeça esporádicas e sem manifestações clínicas graves da doença, Entretanto, aos 18 anos, a paciente 2 apresentou úlcera de perna em membro inferior esquerdo. A úlcera de perna é a manifestação cutânea mais comum da AF, ocorrendo em 8% a 10% dos pacientes homozigotos, estando frequentemente associadas a um pior curso clínico. Geralmente, as úlceras de perna apresentam um caráter crônico e debilitante que afeta os pacientes de maneira física e emocional, tendo potencial de influenciar na qualidade de vida do indivíduo(22 Umeh NI, Ajegba B, Buscetta AJ, Abdallah KE, Minniti CP, Bonham VL. The psychosocial impact of leg ulcers in patients with sickle cell disease: I don’t want them to know my little secret. PloS One. 2017; 12:e0186270. doi:10.1371/journal.pone.0186270.
https://doi.org/10.1371/journal.pone.018...
). A presença de hemólise intravascular tem sido implicada na patogênese das úlceras. Entretanto, vários outros fatores como o fenômeno de vaso-oclusão, insuficiência venosa, infecções, diminuição da biodisponibilidade de óxido nítrico (NO) e inflamação podem estar envolvidos na sua gênese(33 Minniti CP, Eckman J, Sebastiani P, Steinberg MH, Ballas SK. Leg ulcers in sickle cell disease. Am J Hematol. 2010; 85: 831-3. doi:10.1002/ajh.21838.
https://doi.org/10.1002/ajh.21838...
).

A Tabela 1 mostra as concentrações de HbF das pacientes com AF antes e durante o tratamento com HU. Ambas as pacientes apresentavam níveis semelhantes de HbF nos diferentes momentos avaliados, indicando que os níveis de HbF e os determinantes de resposta ao tratamento podem ser controlados por fatores genéticos. Apesar de importantes, os fatores genéticos não explicam toda a variabilidade clínica encontrada nos pacientes com AF, sugerindo que outros fatores podem estar envolvidos no surgimento das manisfestações clínicas. Relatos prévios têm mostrado que o fator ambiental pode afetar o curso clínico da doença, culminando no aparecimento de algumas complicações. Alguns fatores, como temperatura, velocidade do vento, umidade, qualidade do ar, altitude elevada, ambiente domiciliar, fatores socioeconômicos e atividade física podem ter influência sobre as manifestações clínicas(44 Tewari S, Brousse V, Piel FB, Menzel S, Rees DC. Environmental determinants of severity in sickle cell disease. Haematologica. 2015; 100: 1108-16. doi:10.3324/haematol.2014.120030.
https://doi.org/10.3324/haematol.2014.12...
). No caso das gêmeas em questão, levantamos a hipótese de que alguns desses fatores podem ter favorecido o aparecimento da úlcera de perna na paciente 2 e não na paciente 1.

Diferenças clínicas entre gêmeos com hemoglobinopatias já foram descritas em estudos anteriores, sugerindo que embora tenham o mesmo componente genético, fatores externos podem desempenhar um papel importante na expressão clínica da doença, podendo contribuir com a precipitação de crises e complicações(55 Amin BR, Bauersachs RM, Meiselman HJ, et al. Monozygotic twins with sickle cell anemia and discordant clinical courses: clinical and laboratory studies. Hemoglobin. 1991; 15: 247-56.,66 Joishy SK, Griner PF, Rowley PT. Sickle beta-thalassemia: identical twins differing in severity implicate nongenetic factors influencing course. Am J Hematol. 1976; 1: 23-33.). No estudo de Weatherall(77 Weatherall MW, Higgs DR, Weiss H, Weatherall DJ, Serjeant GR. Phenotype/genotype relationships in sickle cell disease: a pilot twin study. Clin Lab Haematol. 2005; 27: 384-90. doi:10.1111/j.1365-2257.2005.00731.x.
https://doi.org/10.1111/j.1365-2257.2005...
), apenas um dos gêmeos com HbSS apresentou úlcera de perna, atribuída a contribuições genéticas e ambientais, embora o autor cite o trauma como um fator ambiental claramente envolvido.

Alguns desses fatores externos, como a temperatura, são bem documentados(44 Tewari S, Brousse V, Piel FB, Menzel S, Rees DC. Environmental determinants of severity in sickle cell disease. Haematologica. 2015; 100: 1108-16. doi:10.3324/haematol.2014.120030.
https://doi.org/10.3324/haematol.2014.12...
), contudo a investigação e a orientação médica no momento da consulta podem ser de grande importância na prevenção de complicações. Apesar da dificuldade de identificar e estabelecer uma relação entre um fator ambiental específico e o aparecimento de manifestações clínicas, a investigação desses componentes pode contribuir para melhorar nossa compreensão sobre os fatores influenciadores e/ou precipitadores de complicações.

REFERENCES

  • 1
    Steinberg MH. Genetic etiologies for phenotypic diversity in sickle cell anemia. ScientificWorldJournal. 2009; 9: 46-67. doi:10.1100/tsw. 2009.10.
    » https://doi.org/10.1100/tsw. 2009.10
  • 2
    Umeh NI, Ajegba B, Buscetta AJ, Abdallah KE, Minniti CP, Bonham VL. The psychosocial impact of leg ulcers in patients with sickle cell disease: I don’t want them to know my little secret. PloS One. 2017; 12:e0186270. doi:10.1371/journal.pone.0186270.
    » https://doi.org/10.1371/journal.pone.0186270
  • 3
    Minniti CP, Eckman J, Sebastiani P, Steinberg MH, Ballas SK. Leg ulcers in sickle cell disease. Am J Hematol. 2010; 85: 831-3. doi:10.1002/ajh.21838.
    » https://doi.org/10.1002/ajh.21838
  • 4
    Tewari S, Brousse V, Piel FB, Menzel S, Rees DC. Environmental determinants of severity in sickle cell disease. Haematologica. 2015; 100: 1108-16. doi:10.3324/haematol.2014.120030.
    » https://doi.org/10.3324/haematol.2014.120030
  • 5
    Amin BR, Bauersachs RM, Meiselman HJ, et al. Monozygotic twins with sickle cell anemia and discordant clinical courses: clinical and laboratory studies. Hemoglobin. 1991; 15: 247-56.
  • 6
    Joishy SK, Griner PF, Rowley PT. Sickle beta-thalassemia: identical twins differing in severity implicate nongenetic factors influencing course. Am J Hematol. 1976; 1: 23-33.
  • 7
    Weatherall MW, Higgs DR, Weiss H, Weatherall DJ, Serjeant GR. Phenotype/genotype relationships in sickle cell disease: a pilot twin study. Clin Lab Haematol. 2005; 27: 384-90. doi:10.1111/j.1365-2257.2005.00731.x.
    » https://doi.org/10.1111/j.1365-2257.2005.00731.x

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Nov-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    22 Jan 2019
  • Revisado
    25 Jan 2019
  • Aceito
    27 Jun 2019
  • Publicado
    20 Dez 2019
Sociedade Brasileira de Patologia Clínica, Rua Dois de Dezembro,78/909 - Catete, CEP: 22220-040v - Rio de Janeiro - RJ, Tel.: +55 21 - 3077-1400 / 3077-1408, Fax.: +55 21 - 2205-3386 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: jbpml@sbpc.org.br