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MECANISMOS DE ELIMINAÇÃO DO RISCO DA COMPLIANCE TRAP NO SETOR DAS TELECOMUNICAÇÕES BRASILEIRAS

RESUMO

Objetivo:

Este estudo tem como objetivo analisar como a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e operadoras de telefonia celular utilizaram-se de práticas cerimoniais e discursivas para construir ações de enforcement e compliance adotadas durante o período de crise no setor celular em 2012, quando as legitimidades do respectivo modelo de regulação e do agente regulador foram contestadas, desenhando uma situação de compliance trap.

Originalidade/valor:

O trabalho preenche uma lacuna teórica ao associar a perspectiva normativo-cultural da regulação associada com o institucionalismo organizacional, a partir da assertiva de que a relação entre regulador e regulados é interativa e não unidirecional, permitindo que os mecanismos de enforcement passem a representar esforços políticos, realinhando os interesses dos atores dentro de seus ambientes institucionais.

Design/metodologia/abordagem:

Adota-se aqui a estratégia de pesquisa de estudo de caso com abordagem qualitativa, de modo a avaliar a crise da telefonia celular de 2012, com a coleta de dados de fontes documentais e entrevistas semiestruturadas com participantes do processo.

Resultados:

Os resultados mostram que, na situação de compliance trap, critérios simbólicos podem apropriar-se dos discursos, produzindo textos e práticas em favor da legitimação dos mecanismos de enforcement e das respectivas respostas da compliance à vista da audiência. Como consequência, mitiga-se o risco de compliance trap sobre o agente regulador na medida em que práticas cerimoniais e discursivas manifestam-se responsivamente e angariam suporte político e cultural, reduzindo a pressão social sobre a legitimidade do modelo de regulação.

PALAVRAS-CHAVE:
Cerimonialismo; Legitimidade; Regulação; Telecomunicações; Compliance trap

ABSTRACT

Purpose:

This study aims to analyze how the Brazilian National Communications Agency (Agência Nacional de Telecomunicações – Anatel) and cellular operators in Brazil used ceremonial and discursive practices to build enforcement and compliance actions, adopted during a period of crisis in the cellular sector industry in 2012 when the legitimacy of the respective regulatory model and the regulatory agent were challenged, shaping a compliance trap situation.

Originality/value:

The work fills a theoretical gap by associating the normative-cultural perspective of regulation associated with organizational institutionalism, based on the assertion that the relationship between regulator and regulated is interactive and not unidirectional, allowing that enforcement mechanisms represent political efforts, realigning the interests of the actors within their institutional environments.

Design/methodology/approach:

The case study research strategy with a qualitative approach is adopted, studying the 2012 crisis in the cellular sector industry, with the collection of data from documentary sources and semi-structured interviews with participants in the process.

Findings:

The results show that, in the compliance trap situation, symbolic criteria can appropriate the speeches, producing texts and practices in favor of legitimizing the enforcement mechanisms and the respective compliance responses in view of the audience. Therefore, the compliance trap risk on the regulatory agent is mitigated to the extent that ceremonial and discursive practices manifest themselves responsively and gain political and cultural support, reducing social pressure on the legitimacy of the regulation model.

KEYWORDS:
Ceremonialism; Legitimacy; Regulation; Telecommunications; Compliance trap

1

INTRODUÇÃO

Quando as agências reguladoras estão impossibilitadas de aplicar sanções mais duras aos seus regulados, motivadas por descumprimento de suas obrigações e diante das pressões da sociedade pelo restabelecimento das condições de funcionamento normal das operações desses regulados, há a predisposição de que possa existir um processo de negociação entre regulador e regulados que resulte na construção do enforcement e compliance tolerá-veis para ambas as partes (Lokanan, 2015Lokanan, M. (2015). Securities regulation: Opportunities exist for IIROC to regulate responsively. Administration & Society, 50(3), 402–428. doi:10.1177/00953999715584637
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; Ahmad, 2018Ahmad, N. (2018). Responsive regulation and resiliency: The renewable fuel standard advanced biofuels. Virginia Environmental Law Journal, 36(2), 40–76.; Erp, Wallenburg, & Bal, 2018Erp, J. van, Wallenburg, I., & Bal, R. (2018). Performance regulation in a networked system: From cosmetic to institutionalized compliance. Public Administration, 98(1), 46–61. doi:10.1111/padm.12518
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). Essa situação é típica para o risco da emergência da compliance trap (Parker, 2006Parker, C. (2006). The compliance trap: The moral message in responsive regulatory enforcement. Law & Society, 40(3), 591–622., 2014), com a contestação da legitimidade do regulador e dos mecanismos de enforcement e compliance. O trabalho aqui apresentado visa mostrar que os efeitos da compliance trap podem ser atenuados por meio de práticas discursivas e cerimoniais. Fundamenta-se essa proposição por meio da consideração de entrelaçamento dos campos legais e organizacionais (Edelman, 2016Edelman, L. B. (2016). Working law: Courts, corporations, and symbolic civil rights. London: The University of Chicago Press. doi:10.7208/Chicago/9780226400938.001.0001
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) no suporte político que irá promover a mitigação dos efeitos da compliance trap (Parker, 2006Parker, C. (2006). The compliance trap: The moral message in responsive regulatory enforcement. Law & Society, 40(3), 591–622., 2014).

O caso da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e das operadoras de telefonia celular pode ser analisado à luz do quadro descrito. Motivada por pressões oriundas da sociedade e do governo, em julho de 2012 a Anatel adotou sanções contra as operadoras devido às suas deficiências operacionais, proibindo-as de vender novos acessos até que apresentassem planos de investimentos e melhorias. Paralelamente à aplicação de sanções, houve um aparato que compreendeu: 1. pronunciamentos de autoridades ressaltando o rigor de tais sanções; 2. convocação das operadoras para apresentarem planos específicos de investimentos e melhorias; 3. entrevistas de dirigentes; e 4. comunicados públicos das operadoras lamentando o rigor das sanções e com promessas de continuar o bom serviço prestado. Durante o processo de elaboração e apresentação dos planos exigidos para a liberação das vendas, houve a ocorrência de várias reuniões entre a Anatel e as operadoras, com ampla divulgação de seus resultados por meio da imprensa.

Essas reuniões caracterizaram a interação existente na construção social do ambiente em que regulador e regulado atuam. Entendemos que tal situação é caracterizada pela sobreposição dos campos legais e organizacionais (Edelman, 2016Edelman, L. B. (2016). Working law: Courts, corporations, and symbolic civil rights. London: The University of Chicago Press. doi:10.7208/Chicago/9780226400938.001.0001
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), especificamente na construção do enforcement e da compliance no processo de negociação ocorrido entre Anatel e as operadoras de telefonia celular. E, sob essa perspectiva, tem-se uma condição suportada pela articulação de interesses comuns que tornam a conformidade tolerável e até vantajosa para os atores envolvidos (Coslovsky, Pires, & Silbey, 2010Coslovsky, S, Pires, R., & Silbey, S. (2010). The pragmatic politics of regulatory enforcement (Working Paper Nº. 29). Jerusalem Papers in Regulation & Governance.) ou em soluções amalgamadas que representam alternativas de soluções para os problemas dos negócios e dos reguladores (Gilad, 2014Gilad, S. (2014). Beyond endogeneity: How firms and regulators co-construct the meaning of regulation. Law & Policy, 36(2), 134–136. doi:10.1111/lapo.12017
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).

Os discursos, tanto por parte da Anatel quanto das operadoras, foram preponderantes na construção do enforcement e da compliance como meio de favorecer a legitimidade do modelo de regulação da Anatel. Contudo, as evidências do cerimonialismo do processo ficaram à mostra inicialmente pela afirmação de alguns consultores e órgãos de imprensa, que afirmaram ter existido certa “teatralidade” e “pirotecnia” em tal processo. Um executivo do setor classificou a suspensão de vendas das operadoras de telefonia celular como midiática. Posteriormente, verificou-se que as medidas adotadas não resultaram em qualquer alteração nos resultados nas empresas, tanto em base de clientes como na receita de serviços. Ademais, o volume de reclamações no site da Anatel voltou praticamente aos mesmos índices anteriores às medidas, suportado por pronunciamentos da presidência da agência ressaltando que os resultados esperados ainda não tinham sido alcançados.

Esses aspectos estão relacionados com a necessidade de a Anatel evitar o estabelecimento da compliance trap (Parker, 2006Parker, C. (2006). The compliance trap: The moral message in responsive regulatory enforcement. Law & Society, 40(3), 591–622., 2014), situação marcada pela contestação da legitimidade do regulador e dos mecanismos de enforcement, dificultando a aplicação de sanções punitivas ou o uso de estratégias cooperativas baseadas em demandas morais, pressões informais, ameaças indiretas e internalização normativa dos princípios da compliance. É uma armadilha (trap) porque, por um lado, a ausência de suporte político e cultural do regulador o fragiliza diante de um eventual conflito com os regulados, pouco propensos a se comprometer com as exigências do regulador e dispostos ao confronto político, por exemplo, exercendo lobbying para enfraquecer o poder de enforcement do regulador. Por outro lado, é também uma armadilha porque o agente regulador, nessa situação, pode optar por ficar imobilizado, não gerando impacto sobre a compliance. De uma forma ou outra, dependerá de mecanismos políticos para superar o impasse. No presente artigo, admite-se que a crise da telefonia de 2012 traz elementos para uma situação de compliance trap, a qual foi mitigada por meio de articulação discursiva e cerimonial por legitimidade.

Diante do exposto, mais especificamente, o presente estudo analisou como a Anatel e operadoras de telefonia celular utilizaram-se de práticas cerimoniais e discursivas para conter os efeitos da situação de compliance trap então desenhada. Nesse contexto, a relação entre regulador e regulado se deu no sentido da construção de medidas que simbolizassem a adoção de práticas de enforcement e compliance, em resposta à contestação das legitimidades do respectivo modelo de regulação e do próprio agente regulador durante o período de crise no setor de telefonia em 2012.

Para tratar desse assunto, o presente artigo está estruturado em seis seções. Além desta introdução, duas seções expressam o suporte teórico para o desenvolvimento da pesquisa, respectivamente a noção sobre a perspectiva institucional da regulação e tópicos sobre a utilização de práticas discursivas e cerimoniais na busca da legitimidade da regulação socialmente construída como forma de mitigar a compliance trap. Após a descrição da metodologia utilizada na pesquisa, tem-se a seção com a apresentação do caso e análise dos achados, com a respectiva confrontação com a revisão teórica utilizada. Encerram o artigo as considerações finais, com a síntese do expresso ao longo do texto e sugestão de desenvolvimento de pesquisas em outros segmentos da regulação no Brasil.

2

PERSPECTIVA INSTITUCIONAL DA REGULAÇÃO

A influência mútua entre organizações e instituições (North, 2018North, D. C. (2018). Instituições, mudança institucional e desempenho econômico. São Paulo: Três Estrelas. (Obra original publicada em 1990).) sustenta este trabalho: adotando-se essa perspectiva na análise de leis e organizações, pode-se dizer que ambas constituem campos sociais sobrepostos. Falando mais dos campos legais, eles compreendem as instituições legais (cortes, legislaturas e agências administrativas), os vários atores legais que trabalham nas instituições legais e em seu entorno, as leis formais, as normas informais e os princípios que envolvem a lei formal e ainda os fluxos de influência, comunicação e inovação concernentes às ideias e normas legais (Edelman, 2016Edelman, L. B. (2016). Working law: Courts, corporations, and symbolic civil rights. London: The University of Chicago Press. doi:10.7208/Chicago/9780226400938.001.0001
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).

Os múltiplos pontos de sobreposição entre campos organizacionais e legais tornam-se mais evidentes quando, nos termos colocados por Edelman (2016)Edelman, L. B. (2016). Working law: Courts, corporations, and symbolic civil rights. London: The University of Chicago Press. doi:10.7208/Chicago/9780226400938.001.0001
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, as organizações buscam influenciar as instituições legais que as regulam, por meio dos processos de interação nas situações de litígio e naqueles casos em que interpretam a lei de maneira a gerar formas particulares de compliance.

Nessas condições, a sobreposição aqui tratada permite que o fluxo de ideias entre os dois campos proporcione a infusão de ideias e valores dos negócios na lei, ou mais pragmaticamente, fazendo com que as normas legais sejam filtradas pelas lentes da organização, levando a uma nova con-ceptualização da lei em que as estruturas simbólicas tornam-se formas aceitáveis de compliance, entendendo-se estruturas simbólicas aquelas que evocam a noção de legalidade ou legitimidade, sem necessariamente implicar a sua efetividade (Edelman, 2016Edelman, L. B. (2016). Working law: Courts, corporations, and symbolic civil rights. London: The University of Chicago Press. doi:10.7208/Chicago/9780226400938.001.0001
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).

Transportando esses conceitos para o contexto da regulação, Costa (2012)Costa, M. (2012). Educação e governança dos sistemas nacionais de recursos hídricos no período 1977-2010: Um estudo comparativo entre Brasil e Canadá (Dissertação de mestrado, Universidade Positivo, Curitiba, PR, Brasil). expressa que a atuação simultânea dos reguladores e regulados ocorre por meio da construção temporal de revisão de acordo entre tais atores, numa perspectiva política que busca, por meio de afinidade de interesses, tornar a conformidade tolerável e até mesmo vantajosa para todos os atores então considerados (Coslovsky et al., 2010Coslovsky, S, Pires, R., & Silbey, S. (2010). The pragmatic politics of regulatory enforcement (Working Paper Nº. 29). Jerusalem Papers in Regulation & Governance.; Short, 2019Short, J. L. (2019). The politics of regulatory enforcement and compliance: Theorizing and operationalizing political influences. Regulation & Governance, Early View, 1–33. doi:10.1111/rego.12291
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).

Essas assertivas aderem ao tipo ideal do modelo de coconstrução da regulação estabelecido por Gilad (2014)Gilad, S. (2014). Beyond endogeneity: How firms and regulators co-construct the meaning of regulation. Law & Policy, 36(2), 134–136. doi:10.1111/lapo.12017
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, em que os significados da regulação e compliance são moldados pelos reguladores e regulados em processo interativo de enquadramento dos problemas regulatórios e de suas soluções, requerendo que os frames de ambas as partes estejam alinhados nas consequências para as organizações e nas intenções dos reguladores. Assim, o significado e conteúdo da regulação que emergem criam a possibilidade de soluções “amalgamadas” das intenções iniciais dos reguladores envoltas em frames acessíveis às práticas da indústria, estabelecendo alternativas de soluções para os problemas dos negócios e dos reguladores (Gilad, 2014Gilad, S. (2014). Beyond endogeneity: How firms and regulators co-construct the meaning of regulation. Law & Policy, 36(2), 134–136. doi:10.1111/lapo.12017
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).

Dessa forma, os mecanismos de enforcement e compliance representam um esforço essencialmente político, basicamente construído pela consecução de acordos e arranjos entre agente regulador e regulado, realinhando interesses, atribuindo novas formas aos conflitos e promovendo nova distribuição dos riscos englobados pelos negócios envolvidos e ao cumprimento das leis e regras (Coslovsky et al., 2010Coslovsky, S, Pires, R., & Silbey, S. (2010). The pragmatic politics of regulatory enforcement (Working Paper Nº. 29). Jerusalem Papers in Regulation & Governance.; Short, 2019Short, J. L. (2019). The politics of regulatory enforcement and compliance: Theorizing and operationalizing political influences. Regulation & Governance, Early View, 1–33. doi:10.1111/rego.12291
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).

Nesses modelos, ocorre o chamado “dilema do regulador”, que se vê entre aceitar o reenquadramento de sua mensagem pelas organizações ou confrontá-las com as suas construções da regulação, correndo o risco de criar o antagonismo com essas organizações, o que poderia resultar na compliance “cosmética”, ou superficial, gerada por esse antagonismo (Gilad, 2014Gilad, S. (2014). Beyond endogeneity: How firms and regulators co-construct the meaning of regulation. Law & Policy, 36(2), 134–136. doi:10.1111/lapo.12017
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).

Os aspectos observados nos parágrafos anteriores são solidários ao conceito da regulação responsiva, quando indicam a necessidade da utilização de outras estratégias regulatórias para melhorar a compliance mais que a aplicação de penalidades de maneira isolada, propondo que tais estratégias deveriam estar depositadas na base da pirâmide regulatória (Parker, 2006Parker, C. (2006). The compliance trap: The moral message in responsive regulatory enforcement. Law & Society, 40(3), 591–622., 2014). Mais claramente, as agências interagem com os regulados buscando situações de cooperação em caso de non compliance inicial e evitando a escalada da pirâmide regulatória (Lokanan, 2015Lokanan, M. (2015). Securities regulation: Opportunities exist for IIROC to regulate responsively. Administration & Society, 50(3), 402–428. doi:10.1177/00953999715584637
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), ou seja, evitando as sanções punitivas então decorrentes (Ahmad, 2018Ahmad, N. (2018). Responsive regulation and resiliency: The renewable fuel standard advanced biofuels. Virginia Environmental Law Journal, 36(2), 40–76.).

Nessa situação, a literatura da regulação responsiva sugere que as ações de enforcement representam uma oportunidade da geração de entendimento comum de como devem ser as visões de compliance de acordo com a lei. Porém, pode surgir um conflito entre as partes, mais especificamente quando a postura dos regulados, entendida como certa, não encontra eco nos reguladores (Parker, 2006Parker, C. (2006). The compliance trap: The moral message in responsive regulatory enforcement. Law & Society, 40(3), 591–622., 2014). Mais ainda, o comportamento dos reguladores pode, em diversas condições, revelar-se inapropriado aos olhos da sociedade, caracterizado como pouco rigoroso na tentativa de barrar as violações das leis e regulamentos (Mascini & Wijk, 2009Mascini, P. , & Wijk, E. van (2009). Responsive regulation at the Dutch food and consumer product safety Authority: An empirical assessment of assumptions underlying the theory. Regulation & Governance, 3(1), 27–47. doi:10.1111/j.1748-5991.2009.01047.x
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); além disso, os regulamentos pertinentes podem perder a legitimidade nas audiências (Lokanan, 2015Lokanan, M. (2015). Securities regulation: Opportunities exist for IIROC to regulate responsively. Administration & Society, 50(3), 402–428. doi:10.1177/00953999715584637
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).

Admite-se que, em situações desse tipo, surge o risco do estabelecimento da chamada compliance trap (Parker, 2006Parker, C. (2006). The compliance trap: The moral message in responsive regulatory enforcement. Law & Society, 40(3), 591–622., 2014), manifestado a partir da perda do suporte moral e político do regime de enforcement, tanto por parte das autoridades quanto da sociedade, levando então à impossibilidade de que tais audiências endossem o modelo de regulação construído, fazendo com que o significado da compliance dentro do modelo possa ser politicamente contestado (Mascini & Wijk, 2009Mascini, P. , & Wijk, E. van (2009). Responsive regulation at the Dutch food and consumer product safety Authority: An empirical assessment of assumptions underlying the theory. Regulation & Governance, 3(1), 27–47. doi:10.1111/j.1748-5991.2009.01047.x
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). Para evitar essa situação, o regulador deve buscar nas referidas audiências a legitimação dos processos de enforcement e compliance construídos com os regulados, com o propósito de controlar as consequências negativas de tais processos (Mascini & Wijk, 2009Mascini, P. , & Wijk, E. van (2009). Responsive regulation at the Dutch food and consumer product safety Authority: An empirical assessment of assumptions underlying the theory. Regulation & Governance, 3(1), 27–47. doi:10.1111/j.1748-5991.2009.01047.x
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).

Conforme explica Parker (2006Parker, C. (2006). The compliance trap: The moral message in responsive regulatory enforcement. Law & Society, 40(3), 591–622., 2014), uma situação de compliance trap exige uma saída política por parte do regulador (Short, 2019Short, J. L. (2019). The politics of regulatory enforcement and compliance: Theorizing and operationalizing political influences. Regulation & Governance, Early View, 1–33. doi:10.1111/rego.12291
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) na construção social do significado da compliance, ou seja, a sua atuação será moldada por níveis mais elevados de intervenção política e, inclusive, pressionada pela cobertura da mídia e outras formas de pressão política (Gilad, 2015Gilad, S. (2015). Political pressures, organizational identity and attention to tasks: Illustrations from pre-crisis financial regulation. Public Administration, 93(3), 593–608. doi:10.1111/padm.12155
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).

Nessa saída política, três alternativas são apontadas pela autora: 1. o regulador pode se dobrar ao regulado, aceitando sua interpretação do significado legal e admitindo um posicionamento mais leve sobre a compliance; 2. o regulador pode apelar aos tribunais para exercer seu poder de enforcement, ainda que corra o risco de as sanções serem interpretadas como mais vantajosas do que o pleno atendimento ao requisito legal ou de o regulador ser taxado como agente punitivo, sem efeito sobre a mudança cultural em favor da compliance; 3. o regulador pode aguardar por uma mudança de perspectiva por parte dos regulados que passariam a compreender o sentido da compliance e as práticas de enforcement como apropriadas. Nessa última condição, há a necessidade de que os reguladores tenham a comunicação necessária ou habilidades relacionais para fazer com que os regulados possam interpretar corretamente os sinais no sentido da adequação requerida da compliance (Hard, Howe, & Cooney, 2013Hard, T. , Howe, J., & Cooney, S. (2013). Less energetic but more enlightened? Exploring the fair work ombudsman’s use of litigation in regulatory enforcement. The Sidney Law Review, 35, 565–597.).

O presente trabalho procura avançar na análise de situações em que o regulador não possui apoio político e social para sua ação, tendendo a ficar preso na compliance trap, porém a utilização de mecanismos cerimoniais e discursivos, manifestados na relação entre regulador e regulados, na saída política aqui enfatizada, irá mitigar o risco da compliance trap. A seção seguinte traça os fundamentos que complementam essa ótica.

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REGULAÇÃO, LEGITIMIDADE, DISCURSO E CERIMONIALISMO

Como expresso anteriormente, o fluxo de ideias resultantes da sobreposição entre os campos legais e organizacionais (Edelman, 2016Edelman, L. B. (2016). Working law: Courts, corporations, and symbolic civil rights. London: The University of Chicago Press. doi:10.7208/Chicago/9780226400938.001.0001
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) poderá fazer com que regulador e regulados estabeleçam acordos na construção do enforcement e compliance, de tal maneira que os interesses de ambas as partes estejam neles contemplados (Coslovsky et al., 2010Coslovsky, S, Pires, R., & Silbey, S. (2010). The pragmatic politics of regulatory enforcement (Working Paper Nº. 29). Jerusalem Papers in Regulation & Governance.; Gilad, 2014Gilad, S. (2014). Beyond endogeneity: How firms and regulators co-construct the meaning of regulation. Law & Policy, 36(2), 134–136. doi:10.1111/lapo.12017
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; Short, 2019Short, J. L. (2019). The politics of regulatory enforcement and compliance: Theorizing and operationalizing political influences. Regulation & Governance, Early View, 1–33. doi:10.1111/rego.12291
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).

Esse processo de construção de critérios simbólicos pelas partes – regulador e regulado – pode apropriar-se de discursos, vistos como variáveis maleáveis que podem ser usadas para qualquer resultado a fim de criar uma realidade social por meio de textos e práticas que darão sentido à construção aqui tratada, considerando-se os aspectos políticos e que contemplam os interesses dos atores (Hardy, Palmer, & Phillips, 2000Hardy, C., Palmer, I., & Phillips, N. (2000). Discourse as a strategic resource. Human Relations, 53, 1227–1248. doi:10.1177/0018726700539006
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). O discurso, na visão de Schmidt (2011)Schmidt, V. A. (2011). Reconciling ideas and institutions through discursive institutionalism. In D. Béland & R. Cox (Eds.), Ideas and politics in social science research. Oxford: Oxford University Press., constitui um processo de geração, deliberação e/ou legitimação de ideias sobre uma determinada ação política em um contexto institucional.

De fato, no processo de construção social do significado da compliance como uma saída política para a compliance trap e dentro do sugerido por Parker (2006Parker, C. (2006). The compliance trap: The moral message in responsive regulatory enforcement. Law & Society, 40(3), 591–622., 2014) como a terceira alternativa para essa saída, a utilização de mecanismos discursivos e cerimoniais3 3 Práticas cerimoniais, segundo Meyer e Rowan (1977), estão ligadas à adoção simbólica de produtos, serviços, técnicas, políticas e programas mesmo sem atender a critérios de eficiência, para manter conformidade aos padrões institucionalizados na sociedade. parece adequada para a busca da legitimação nas audiências quanto ao modelo de regulação construído. Nesse processo, há a necessidade da comunicação às audiências de que o entendimento comum entre regulador e regulado foi estabelecido quanto ao sentido da compliance e das práticas de enforcement como apropriadas à situação em curso.

Essa necessidade de comunicação é corroborada por Gilad, Maor e Bloom (2015)Gilad, S., Maor, M., & Bloom, P. (2015). Organizational reputation, the content of public allegations and regulatory communication. Journal of Public Administration Research and Theory, 25(2), 451–478. doi:310.1093/jopart/mut041
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que afirmam que a reputação de uma agência regulatória pode ser ameaçada em face da ausência de comunicação quanto ao reconhecimento de problemas com seus regulados e também no que diz respeito às ações que está tomando para minimizar a disfunção regulatória verificada.

Nessas condições, o processo discursivo aqui contemplado compreende a construção das ideias em esfera política “coordenada” pelos atores políticos e discutidas em esfera política “comunicativa” pelos atores e o público (Schmidt, 2011Schmidt, V. A. (2011). Reconciling ideas and institutions through discursive institutionalism. In D. Béland & R. Cox (Eds.), Ideas and politics in social science research. Oxford: Oxford University Press.), ou seja, as interações discursivas externalizam as ideias dentro dos contextos institucionais com poder transformativo, exercendo influência causal na realidade política, em consequência da mudança ou continuidade institucional (Schmidt, 2008Schmidt, V. A. (2008). Discursive institutionalism: The explanatory power of ideas and discourse. Annual Review of Political Science, 11, 303–326. doi:101146/annurev.polisci.11.060606.135342
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).

Dessa forma, os discursos servem para que os atores, no centro da construção política, possam criar as suas ideias, ações e respectivas justificativas coordenadas entre eles, para comunicá-las ao público em geral, na busca da legitimação de seus atos, num processo de persuasão de massas (Schmidt, 2008Schmidt, V. A. (2008). Discursive institutionalism: The explanatory power of ideas and discourse. Annual Review of Political Science, 11, 303–326. doi:101146/annurev.polisci.11.060606.135342
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, 2011).

Ainda assim, mesmo com toda comunicação às audiências da adequação dos processos de compliance e enforcement, permanece a necessidade de que tais audiências endossem os referidos processos como efetivos para a interrupção das violações das leis e dos regulamentos, mesmo que pragmaticamente possam não os ser em todas as suas dimensões.

De fato, quando da criação de estruturas simbólicas e do imperativo de serem vistas como as melhores práticas, há a necessidade da busca da legitimidade4 4 “Percepção ou pressuposto generalizado de que ações de uma entidade são desejáveis, adequadas ou apropriadas em algum sistema socialmente construído de normas, valores, crenças e definições” (Suchman, 1995, p. 574). perante as audiências (Mascini & Wijk, 2009Mascini, P. , & Wijk, E. van (2009). Responsive regulation at the Dutch food and consumer product safety Authority: An empirical assessment of assumptions underlying the theory. Regulation & Governance, 3(1), 27–47. doi:10.1111/j.1748-5991.2009.01047.x
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), de tal sorte que se torne difícil a análise das divergências entre as práticas reais e os procedimentos legais formais previstos naquelas situações (Edelman, 2016Edelman, L. B. (2016). Working law: Courts, corporations, and symbolic civil rights. London: The University of Chicago Press. doi:10.7208/Chicago/9780226400938.001.0001
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). Assim sendo, a lei tende a operar em dimensões cerimoniais que sugerem às audiências o atendimento às condições legais, porém com o decoupling5 5 Nos termos de Boxebaum e Jonsson (2008, p. 90), a partir de Meyer e Rowan (1977), “desconexão deliberada entre estruturas organizacionais que conferem legitimidade e práticas organizacionais que são entendidas, dentro da organização, como eficientes tecnicamente”. das estruturas simbólicas em relação às práticas organizacionais correntes (Edelman, 2016Edelman, L. B. (2016). Working law: Courts, corporations, and symbolic civil rights. London: The University of Chicago Press. doi:10.7208/Chicago/9780226400938.001.0001
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).

Em outras palavras, as estruturas simbólicas demonstram atenção à lei para que possam se manter legítimas. Porém, as organizações conservam a flexibilidade na preservação de suas práticas de negócio ao usufruírem da legitimidade proporcionada pelas estruturas simbólicas, sem substancialmente alterarem as suas práticas de negócios (Edelman, 2016Edelman, L. B. (2016). Working law: Courts, corporations, and symbolic civil rights. London: The University of Chicago Press. doi:10.7208/Chicago/9780226400938.001.0001
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). Em outras palavras, há a quebra do “espírito da lei”, ou seja, de sua intenção percebida, sem que haja a quebra da respectiva letra da mesma lei (Garcia, Chen, & Gordon, 2014Garcia, S., Chen, P., & Gordon, M. (2014). The letter versus the spirit of the law: A lay perspective on culpability. Judgment and Decision Making, 9(5), 479–490.).

Em suma, regulador e regulados recorrem à utilização de recursos discursivos e cerimoniais na busca pela legitimidade por meio da manipulação, da conformação aos ambientes e da maneira como os textos podem ser utilizados para ganhar legitimidade e suportados por discursos consistentes, e assim produzirão instituições mais poderosas porque seus mecanismos de autorregulação se reforçam mutuamente (Phillips, Lawrence, & Hardy, 2004Phillips, N., Lawrence, T., & Hardy, C. (2004). Discourse and institutions. Academy of Management Journal, 29(4), 635–652. doi:10.2307/20159075
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).

Desse modo, regulador e regulados, ao atuarem como agentes de legitimação recíprocos, reforçam a condição dos mecanismos de enforcement e compliance como um esforço essencialmente político e constroem em conjunto as diretrizes de legitimidade para os mediadores perante as audiências (Deephouse & Suchman, 2008Deephouse, D., & Suchman, M. (2008). Legitimacy in organizational institutionalism. In R. Greenwod, C. Oliver, K. Sahlin, & R. Sudabby (Orgs.), The Sage handbook of organizational institutionalism. London: Sage.), contribuindo para a minimização do risco do estabelecimento da compliance trap, que poderia levar à contestação política da compliance, e, portanto, desafiando a construção do modelo de regulação pretendido.

4

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

O presente trabalho, de cunho qualitativo, adotou como tema a relação entre discurso, cerimonialismo e legitimidade no processo de regulação do setor de telefonia celular. A pesquisa foi conduzida sob a estratégia do estudo de caso em função da extensa quantidade de dados disponíveis nas fontes documentais e dos profissionais que vivenciaram o desenvolvimento da crise na telefonia celular no período, com foco nos processos, nos significados e nas compreensões relacionados com esse setor das telecomunicações brasileiras, com todas as suas interfaces com o governo, órgãos da administração direta e indireta, legislativos e órgãos de defesa do consumidor, além de sua própria relevância em termos de clientes e receitas envolvidas.

Na coleta de dados, foram utilizadas fontes documentais tais como notícias e editoriais veiculados pela grande mídia, bem como publicações específicas da Anatel e do site especializado Teleco, no período de dezembro 2001 a maio 2013Teleco (2013). Boletim Sindec. Retrieved from http://www.teleco.com.br/procon.asp
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.

Os órgãos de imprensa em nível nacional foram selecionados pela sua notória relevância no jornalismo geral e dos negócios, além do site Teleco e do Portal da Anatel em função da facilidade de obtenção de informações do setor de telecomunicações. Na coleta de dados, foram analisadas 413 matérias selecionadas incialmente por meio de seus respectivos títulos. Dessa primeira busca, após análise de conteúdo e verificação de duplicidade, restaram 105 matérias, devidamente sintetizadas e registradas em um banco de dados. A escolha das matérias ocorreu a partir da exclusão daquelas consideradas repetidas (títulos diferentes com o mesmo texto), notícias referentes a fatos já colocados em outras matérias selecionadas e aquelas com o título ou chamada referente à crise de julho 2012, porém referindo-se a outro tema do setor.

Na sequência, realizaram-se nove entrevistas semiestruturadas com informantes considerados essenciais para a pesquisa, incluindo, entre outros, ex-gerentes da Anatel, dirigentes de entidades de classe do setor e executivos das duas operadoras mais afetadas pelas medidas impostas pela Anatel no contexto da crise em análise. Os ex-gerentes da Anatel aqui considerados informantes essenciais tiveram participação relevante na aplicação das punições às operadoras, desde a sua concepção e decisão até a condução dos processos de análise dos planos de melhorias propostos. Por sua vez, os executivos entrevistados tinham em suas funções a representação institucional de suas empresas na Anatel.

A partir da sugestão de Zilber (2007)Zilber, T. (2007). Stories and the discursive dynamics of institutional entrepreneurship: The case of Israeli high-tech after the bubble. Organization Studies, 28(7), 1035–1054., os dados coletados passaram por uma primeira codificação e foram agrupados em frames, determinados a partir do papel da Anatel como agente regulador e desempenho operacional das empresas reguladas, bem como dos eventos relevantes de todo o caso, de maneira a permitir que fossem associados, numa segunda etapa de codificação, às categorias analíticas propostas. Nessa segunda etapa, houve a recategorização dos dados codificados para as categorias analíticas estabelecidas como práticas cerimoniais, práticas discursivas, legitimidade e suas dimensões sociopolíticas e cultural-cognitivas, além de contexto e modelo de regulação. A partir desse ponto, foi possível a reconstrução dos sentidos dos discursos e das intenções dos atores (Godoi, 2006Godoi, C. (2006). Perspectivas de análise de discurso nos estudos organizacionais. In C. Godoi, R. Bandeira-de-Mello, & A. Barbosa da Silva (Orgs.), Pesquisa qualitativa em estudos organizacionais (2a ed.). Sao Paulo: Saraiva.), utilizando-se uma perspectiva interpretativa.

5

COMPLIANCE TRAP E O MODELO DE REGULAÇÃO DA ANATEL

No Brasil, a telefonia móvel celular teve seu início de implantação em 1991, nas operadoras estatais regionais ligadas à empresa Telecomunicações Brasileiras (Telebras). A operação constituía-se de uma linha de negócios paralela aos outros serviços oferecidos à época, sob a denominação de Serviço Móvel Celular (SMC), transformado em 2001 em novo serviço de comunicações móveis celulares, o Serviço Móvel Pessoal (SMP). As operadoras do SMP concentravam 99,5% do mercado, totalizando cerca de 265 milhões de clientes em maio de 2013, com faturamento de R$ 16 bilhões no primeiro trimestre daquele ano.

Na situação do estudo aqui apresentado, ressalte-se o papel de agente arrecadador da Anatel perante as operadoras. Em 2012, a Anatel arrecadou mais de R$ 7 bilhões entre taxas de fiscalização, instalação, outorgas e Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust), mais todos os outros demais impostos e tributos que são recolhidos diretamente pelas operadoras aos governos federal e estaduais. Isso permitiu que as punições que pudessem representar danos ao faturamento das operadoras tivessem repercussão direta na “segurança arrecadatória” do Banco Central.

Outra dificuldade muito sensível enfrentada pela Anatel estava relacionada com um de seus mecanismos de enforcement, a aplicação de multas quando da violação dos regulamentos, uma vez que tal mecanismo tinha se mostrado um recurso pouco eficaz, já que o percentual de multas efetivamente arrecadadas era à época bastante baixo, cerca de 20%, em função dos trâmites administrativos e judiciais que tais processos apresentavam.

As operadoras apresentavam crescimento acelerado de suas bases de clientes, acompanhado pelo aumento no volume de processos demandados perante os órgãos de defesa do consumidor, inclusive no próprio site da Anatel. Em 2011, as reclamações sobre serviços prestados pelas operadoras de telefonia celular representavam 7,99% do total de demandas apresentadas aos órgãos públicos de defesa do consumidor pertencentes ao Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (Sindec), que integrava o Procon de 25 unidades federativas. Esse percentual era superado apenas pelo apresentado pelo setor de cartões de crédito com 9,21%.

Figura 5.1
SINDEC 2011: DEMANDA POR SETOR

Em função de tal situação e ainda motivada pelas várias ações demandadas pelo Ministério Público, pelo Procon de vários estados e pela Justiça Federal, além da pressão exercida pelo Tribunal de Contas da União, pelo Ministério das Comunicações e pela Presidência da República, a Anatel decidiu proibir as operadoras TIM, Claro e Oi de vender acessos em todo o país, a partir de 23 de julho de 2012. Em cada unidade federativa, uma operadora teve a venda proibida, conforme demonstrado na Figura 5.2.

Figura 5.2
SUSPENSÃO DE VENDAS POR OPERADORAS

Para definir o critério então utilizado nas punições, a agência realizou análise sistêmica das reclamações registradas em sua ouvidoria entre janeiro de 2011 e junho de 2012, e decidiu punir uma operadora por estado para não deixar o consumidor sem opções de escolha, ressaltando-se, porém, que todas as operadoras, embora longe de um quadro de excelência, apresentavam números de qualidade dentro das metas técnicas estabelecidas e fiscalizadas pela Anatel.

A Anatel informava que somente liberaria as vendas nos estados quando as referidas operadoras apresentassem planos de melhorias que atendessem às exigências em quatro áreas: qualidade de rede, completamento de chamadas, fim de quedas de chamadas e atendimento aos clientes. O órgão exigiu também da operadora Vivo a apresentação de um planejamento para melhorar a qualidade dos serviços prestados.

Os aspectos descritos nesta seção remetem a uma situação aderente ao quadro teórico da compliance trap em suas várias dimensões. Primeiramente, existiam as pressões da sociedade e do governo pela compliance efetiva das operadoras em termos da qualidade percebida, sem, no entanto, que a Anatel pudesse adotar ações de enforcement mais rigorosas, não só pela ineficiência do processo de multas, mas principalmente pelo fato de que penalidades que pudessem trazer redução de receitas das operadoras comprometeriam a “segurança arrecadatória” preconizada pelo Banco Central, haja vista o grande volume de taxas, impostos e tributos a que o setor está submetido.

Talvez a dimensão mais importante da compliance trap na situação aqui descrita seja referente à possibilidade de conflito com os regulados em caso de punições drásticas, contenda essa que poderia ser levada aos tribunais, ainda mais se se considerar o fato de que as operadoras obedeciam aos índices de qualidade medida propostos pela Anatel. Diante dessas condições geradoras da compliance trap, não restou outra opção à Anatel, dentro da terceira alternativa proposta por Parker (2006Parker, C. (2006). The compliance trap: The moral message in responsive regulatory enforcement. Law & Society, 40(3), 591–622., 2014), a não ser construir os sentidos do enforcement e compliance com as operadoras. Porém, nessas condições há a necessidade da busca do suporte cultural e político para o novo modelo construído, sem o qual os efeitos da compliance trap não podem ser mitigados, uma vez que esse suporte é crítico para que o novo modelo possa ser considerado apropriado perante as várias audiências. Essa busca do suporte cultural e político para o novo modelo de regulação então desenvolvido foi centrada em práticas discursivas e cerimoniais, analisadas no desenvolvimento das próximas seções.

5.1

Cerimonialismo e práticas discursivas

Na série de reuniões entre operadoras e Anatel que se seguiram, tanto de caráter técnico quanto entre dirigentes, houve vários pronunciamentos públicos de ambas as partes, com a grande preocupação na divulgação dos discursos que denotassem o grande esforço das partes em desenvolver e atribuir ideias da existência de um intenso trabalho para a fixação de planos que resultassem na melhoria dos serviços, sujeitos ao rigor da Anatel, ainda que admitido um prazo para que os objetivos pudessem ser atendidos. Nessa perspectiva, considerando a forte influência dos discursos, Schmidt (2008Schmidt, V. A. (2008). Discursive institutionalism: The explanatory power of ideas and discourse. Annual Review of Political Science, 11, 303–326. doi:101146/annurev.polisci.11.060606.135342
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, 2011) evoca-os como um processo de construção política que visa dar ressonância às audiências em busca da legitimidade do modelo de regulação e ao mesmo tempo da manutenção da reputação da agência (Gilad, Maor, & Bloom, 2015Gilad, S., Maor, M., & Bloom, P. (2015). Organizational reputation, the content of public allegations and regulatory communication. Journal of Public Administration Research and Theory, 25(2), 451–478. doi:310.1093/jopart/mut041
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). Tais discursos ressaltavam o rigor e as exigências expressos pelo enforcement da agência, e, ao mesmo tempo, observava-se a compliance ajustada ao que determinava tal enforcement.

Assim sendo, a visão de rigor com que a Anatel trataria o tema estava traduzida na matéria do jornal Valor Econômico do dia 24 de julho de 2012. Ao reproduzir as palavras do superintendente de serviços privados, a matéria afirmava que a Anatel deu mostras de que seria rigorosa na aprovação dos planos: as operadoras teriam reuniões todos os dias da semana e a projeção de demanda das empresas deveria levar em consideração a quantidade de clientes que a operadora passaria a ter, a capacidade de rede e, ainda, a estratégia de marketing que deveria estar vinculada à dos investimentos. A disposição das operadoras na construção da solução também era ressaltada pela Anatel por meio do mesmo informante, quando este comentava que as operadoras haviam feito o “dever de casa”, ainda que os planos devessem passar por ajustes.

Todo esse processo de apresentação de planos de melhorias pelas operadoras para atendimento das exigências da Anatel, com as operadoras fazendo “o dever de casa”, está consonante com o que indica Costa (2012)Costa, M. (2012). Educação e governança dos sistemas nacionais de recursos hídricos no período 1977-2010: Um estudo comparativo entre Brasil e Canadá (Dissertação de mestrado, Universidade Positivo, Curitiba, PR, Brasil). como uma construção temporal revista de acordo com os atores envolvidos, numa perspectiva política em que estes, por meio de interesses comuns, tornam a conformidade tolerável para todos (Coslovsky et al., 2010Coslovsky, S, Pires, R., & Silbey, S. (2010). The pragmatic politics of regulatory enforcement (Working Paper Nº. 29). Jerusalem Papers in Regulation & Governance.; Short, 2019Short, J. L. (2019). The politics of regulatory enforcement and compliance: Theorizing and operationalizing political influences. Regulation & Governance, Early View, 1–33. doi:10.1111/rego.12291
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).

Os discursos foram então utilizados para construir o enforcement representado pelas reuniões e exigências de planos de investimentos e melhorias pela agência, e a compliance, pela observação das operadoras quanto às exigências e à divulgação imediata para a audiência em busca da ressonância, visando à consolidação da legitimidade do modelo de regulação da Anatel, numa conexão entre ação e discurso, com a produção dos textos direcionados para o entendimento da maneira pretendida (Phillips et al., 2004Phillips, N., Lawrence, T., & Hardy, C. (2004). Discourse and institutions. Academy of Management Journal, 29(4), 635–652. doi:10.2307/20159075
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).

Essa análise das ações da Anatel demonstra os conteúdos simbólicos de tais atos, cujas razões estão vinculadas à legitimação de seu modelo de regulação (Lokanan, 2015Lokanan, M. (2015). Securities regulation: Opportunities exist for IIROC to regulate responsively. Administration & Society, 50(3), 402–428. doi:10.1177/00953999715584637
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), que se tornava imperativa, haja vista que, como ressaltam Morgan e Yeung (2007)Morgan, B., & Yeung, K. (2007). An introduction to law and regulation. Cambridge: Cambridge University Press., a conversação e a cooperação com regulados na impossibilidade de ações mais fortes provocam uma situação de menor credibilidade para a agência reguladora (Gilad et al., 2015Gilad, S. (2015). Political pressures, organizational identity and attention to tasks: Illustrations from pre-crisis financial regulation. Public Administration, 93(3), 593–608. doi:10.1111/padm.12155
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), dentro do que representa a compliance trap, ainda mais em função das pressões anteriores perante as audiências identificadas como fontes de legitimidade (Deephouse & Suchman, 2008Deephouse, D., & Suchman, M. (2008). Legitimacy in organizational institutionalism. In R. Greenwod, C. Oliver, K. Sahlin, & R. Sudabby (Orgs.), The Sage handbook of organizational institutionalism. London: Sage.), ou seja, governo federal e sociedade.

O cerimonialismo adotado pela Anatel na busca da legitimação de seu modelo de regulação foi ressaltado por editorial da Folha de S.Paulo, que questionava a “teatralidade” e a gesticulação política da medida: o consultor Eduardo Tude, presidente da consultoria especializada em telecomunicações Teleco, avaliava que a suspensão de vendas deveria ter pouca eficácia em curto prazo, classificando a ação como “pirotecnia”.

Lembrando as situações em que critérios simbólicos construídos vão de encontro às necessidades dos reguladores, porém sem fundamentalmente romper as rotinas estabelecidas no setor (Edelman & Suchman, 1997Edelman, L., & Suchman, M. (1997). The legal environments of organizations. Annual Review of Sociology, 23, 479–515. doi:10.1146/annurev.soc.23.1.479
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), o processo de suspensão das vendas parecia ter um dia para terminar, haja vista a então proximidade do Dia dos Pais, que representa um potencial de vendas significativo para o setor. A não liberação pela agência reguladora até essa data implicaria restrições de venda e, possivelmente, aspectos de arrecadação pela Anatel, o que poderia provocar desgastes entre a agência e o governo. De fato, a liberação das vendas foi efetivada anteriormente ao Dia dos Pais, então com os planos de melhoria apresentados e aprovados pela Anatel.

Um executivo ligado a uma das entidades de classe do setor ressaltava o aspecto cerimonial de todo o processo:

Na condução das discussões dos planos com as operadoras, parte do processo da Anatel foi midiático, uma vez que sofre pressões da sociedade civil e dos organismos públicos e precisa dessa forma dar uma satisfação a esses segmentos. A questão da qualidade de serviço é um aspecto muito complexo, os planos que as empresas apresentaram, com investimentos na faixa de bilhões de reais, evidentemente não foram elaborados em uma semana, já existiam, talvez houvesse uma previsão de execução em tempo menor que os estabelecidos anteriormente (Entrevistado A).

De fato, a elaboração e a apresentação dos planos pelas operadoras apresentavam indícios de cerimonialismo em suas essências, como ressaltaram os executivos da TIM e da Claro, enfatizando que os planos haviam sido consistentes em seus prazos e que os indicadores de evolução, embora montados com informações já existentes nas empresas, foram apresentados em uma “nova sistemática”.

Inclusive, a TIM, por intermédio de seu diretor de assuntos regulatórios, declarava à imprensa que não pretendia aumentar a previsão de investimentos para o ano apenas realocando R$ 450 milhões em investimentos de redes. A Claro, nas palavras de um de seus executivos, também indicou apenas antecipações de investimentos já programados. Da mesma forma, a Oi também sinalizava apenas a realocação de investimentos: prometia o seu vice-presidente de planejamento investir dois bilhões de reais em ações para melhorar o atendimento, porém sem adicionais aos já programados para os próximos anos.

A verificação da efetividade do processo como um todo pode ser avaliada a partir dos resultados indicados pela agência e não alcançados, parecendo indicar o decoupling em tais ações; por exemplo, o volume de reclamações no site da Anatel, em junho e julho de 2013Anatel (2013). Agência Nacional de Telecomunicações. Relatório Anual 2012-2013. Retrieved from http:// www.anatel.gov.br
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, já se apresentava em números superiores aos dos respectivos meses de 2012 (ver Figura 5.1.1). Inclusive, é importante lembrar que o volume de reclamações no site da Anatel é que pautou o critério para determinação das suspensões de vendas em 2012.

Figura 5.1.1
RECLAMAÇÕES NA ANATEL POR MIL ACESSOS EM SERVIÇO

O real alcance das punições refletidas nos índices operacionais das operadoras pode ser avaliado pelo fato de que as medidas da Anatel parecem não as ter afetado, tanto que se verifica crescimento na receita líquida de serviços delas, bem como no número médio de minutos de uso, nos termos da Figura 5.1.2, ao final de 2012 e nos primeiros meses de 2013.

Figura 5.1.2
RECEITA LÍQUIDA DE SERVIÇOS E BASE DE CLIENTES CONSOLIDADA ANUAL

Os aspectos de práticas cerimoniais observados neste estudo parecem ser indissociáveis dos discursos utilizados na construção do enforcement e compliance e na busca da legitimidade do respectivo modelo de regulação. Todos esses aspectos remetem ao que expressam Machado-da-Silva e Vizeu (2007)Machado-da-Silva, C., & Vizeu, F. (2007). Análise institucional de práticas formais de estratégia. Revista de Administração de Empresas, 47(4), 89–100. no sentido de que todo o processo não estava efetivamente conectado ao desempenho organizacional, mas, sim, aos critérios normativos e/ou cognitivo-culturais do campo institucional de referência.

Em síntese, pode-se afirmar que o enforcement do modelo de regulação da Anatel dentro da sua concepção pura como law-on-the-books possuía dificuldades para a sua implementação seja pela própria ineficiência de um de seus principais instrumentos, a aplicação de multas, ou pela impossibilidade de sanções mais drásticas, como a suspensão das vendas até que a qualidade dos serviços prestados fosse conduzida aos níveis percebidos pelos usuários como satisfatórios.

Essa última medida seria impraticável, haja vista que reduziria a gama de opções oferecidas ao público dentro de cada estado da Federação e ainda poderia influir no faturamento das operadoras, comprometendo, por conseguinte, a arrecadação da Anatel e ofendendo o quesito da “segurança arrecadatória”.

Nessas condições, a Anatel não teve alternativa a não ser construir socialmente o enforcement com as operadoras e utilizar a compliance como um dos instrumentos de legitimação de seu modelo de regulação, cuja credibilidade estava colocada sob questionamento. Dessa maneira, os discursos e todos os aspectos cerimoniais associados fazem parte da construção aqui tratada e, além disso, representam papel importante na defesa da legitimidade do modelo de regulação existente. Sendo assim, a Anatel minimizou a possibilidade do estabelecimento da compliance trap com o complemento de que as ações de compliance se apresentavam como respostas legitimadoras do enforcement, como se pode ver a partir das participações nas reuniões com a apresentação dos planos de melhoria, pronunciamentos sobre realocações de investimentos e falas de dirigentes das operadoras, entendendo, ao final do processo, como “justas” as medidas da agência.

5.2

Compliance trap e legitimação do modelo de regulação

Em situações de grande repercussão, como no caso aqui em estudo, há a necessidade de complementar os modelos de construção social da regulação com a explanação dos mecanismos que visam minimizar os riscos do estabelecimento da compliance trap no regime de enforcement e consequentemente com a contestação política para a compliance. Esses mecanismos servem para buscar a legitimidade dos modelos construídos socialmente perante as respectivas audiências (Lokanan, 2015Lokanan, M. (2015). Securities regulation: Opportunities exist for IIROC to regulate responsively. Administration & Society, 50(3), 402–428. doi:10.1177/00953999715584637
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) e principalmente aquela comum ao regulador e aos regulados, que é a sociedade como um todo. Os discursos têm papel relevante nesse processo ao promoverem a discussão na esfera política “comunicativa” pelos atores políticos e pelo público (Schmidt, 2011Schmidt, V. A. (2011). Reconciling ideas and institutions through discursive institutionalism. In D. Béland & R. Cox (Eds.), Ideas and politics in social science research. Oxford: Oxford University Press.), pois externalizam as ideias dentro dos contextos institucionais, exercem influência causal na realidade política em consequência da mudança ou continui dade institucional (Schmidt, 2008Schmidt, V. A. (2008). Discursive institutionalism: The explanatory power of ideas and discourse. Annual Review of Political Science, 11, 303–326. doi:101146/annurev.polisci.11.060606.135342
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) ou, em outras palavras, comunicam as ideias coordenadas entre esses atores políticos ao público em geral, na busca da legitimação de seus atos, num processo de persuasão de massas (Schmidt, 2008Schmidt, V. A. (2008). Discursive institutionalism: The explanatory power of ideas and discourse. Annual Review of Political Science, 11, 303–326. doi:101146/annurev.polisci.11.060606.135342
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, 2011).

Ao trabalhar dentro dessa lógica comunicativa, a presente pesquisa identificou, entre seus principais achados, que os mecanismos de enforcement e compliance representam relevantes objetos de legitimação (Deephouse & Suchman, 2008Deephouse, D., & Suchman, M. (2008). Legitimacy in organizational institutionalism. In R. Greenwod, C. Oliver, K. Sahlin, & R. Sudabby (Orgs.), The Sage handbook of organizational institutionalism. London: Sage.) do modelo de regulação construído entre regulador e regulados perante a principal fonte de legitimidade (Deephouse & Suchman, 2008Deephouse, D., & Suchman, M. (2008). Legitimacy in organizational institutionalism. In R. Greenwod, C. Oliver, K. Sahlin, & R. Sudabby (Orgs.), The Sage handbook of organizational institutionalism. London: Sage.) externa, no caso, a sociedade como um todo, atuando de forma recíproca durante todo o processo de construção do modelo aqui considerado.

Essas observações recuperam o exposto por Deephouse e Suchman (2008)Deephouse, D., & Suchman, M. (2008). Legitimacy in organizational institutionalism. In R. Greenwod, C. Oliver, K. Sahlin, & R. Sudabby (Orgs.), The Sage handbook of organizational institutionalism. London: Sage. quando ressaltam que uma organização torna-se legitimada quando está conectada a outras também legitimadas. No âmbito das relações específicas regulador-regulados, há elementos verificados na pesquisa que permitem sugerir a reciprocidade dos agentes de legitimação (Durand & McGuire, 2005Durand, R., & McGuire, J. (2005). Legitimating agencies in the face of selection: The case of AACSB. Organizations Studies, 26, 165–196. doi:101177/0170840605049465
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), que constroem em conjunto as diretrizes de legitimação para os mediadores perante a audiência (Deephouse & Suchman, 2008Deephouse, D., & Suchman, M. (2008). Legitimacy in organizational institutionalism. In R. Greenwod, C. Oliver, K. Sahlin, & R. Sudabby (Orgs.), The Sage handbook of organizational institutionalism. London: Sage.).

Nessa perspectiva de legitimação recíproca, estratégias discursivas foram determinantes na mitigação dos riscos das compliance trap. As estratégias discursivas da Anatel foram desenvolvidas em quatro eixos principais: 1. a pirotecnia das medidas enfatizava o rigor das punições: a Anatel ressaltava que trataria a aprovação dos planos de melhoria da qualidade com grande rigor, sem a qual as vendas não poderiam ser retomadas; 2. as exigências da Anatel eram rigorosas no estabelecimento de planos de melhoria da qualidade e novos investimentos: haveria reuniões diárias com as operadoras e os planos teriam que contemplar projeções de demanda, capacidade das redes e estratégias de marketing; 3. as operadoras tinham consciência do rigor da Anatel e estavam empenhadas no desenvolvimento de planos que atendessem aos requisitos da agência: as operadoras participavam ativamente das reuniões e estavam fazendo o “dever de casa”; 4. a Anatel tinha consciência de que a melhoria não seria imediata e que acompanharia fortemente a execução dos planos: teria que haver um tempo para que os planos de melhoria da qualidade pelas operadoras pudessem ser implementados, até que efetivamente os resultados pudessem ser percebidos.

De acordo com Rojo e Dijk (1997)Rojo, L., & Dijk, T. van (1997). “There was a problem, and it was solved!”: Legitimating the expulsion of “illegal” immigrants in Spanish parliamentary discourse. Discourse and Society, 8, 523–566. doi:10.1177/0957926597008004005
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, a legitimação pode ter as direções top-down e bottom-up, assertiva verificada na participação das operadoras na construção da legitimação do enforcement pela compliance, representados então pela elaboração dos planos de melhoria e no reconhecimento de que as medidas da Anatel foram justas, como afirmou o presidente da TIM, ao entender a sua empresa num “processo de inércia” pelos atrasos nos investimentos e pelas complexidades operacionais motivadas pelas aquisições de outras operadoras. Na mesma direção, o presidente da Vivo enfatizava as dificuldades para atender ao rigor da Anatel em função das leis “extremamente restritivas” para a instalação de antenas de celulares. O executivo da TIM entrevistado nesta pesquisa ressalta que a Anatel respondeu ao que a sociedade exigia, embora comente que a situação poderia ter sido evitada, com a atualização dos regulamentos de qualidade do setor.

6

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A suspensão das vendas imposta pela Anatel às operadoras como punição à queda da qualidade percebida no setor e a exigência da elaboração de planos de melhoria pelas operadoras – a série de reuniões entre regulador e regulados – caracterizaram a interação existente na construção social do ambiente em que regulador e regulado atuam (Edelman, 2016Edelman, L. B. (2016). Working law: Courts, corporations, and symbolic civil rights. London: The University of Chicago Press. doi:10.7208/Chicago/9780226400938.001.0001
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), ou seja, a construção do enforcement e do compliance no processo de negociação ocorrido entre Anatel e as operadoras de telefonia celular. Tais acordos construídos remetem a Coslovsky et al. (2010)Coslovsky, S, Pires, R., & Silbey, S. (2010). The pragmatic politics of regulatory enforcement (Working Paper Nº. 29). Jerusalem Papers in Regulation & Governance., que tratam dos interesses comuns que tornam a conformidade tolerável e até vantajosa para os atores envolvidos. Nos termos de Gilad (2014)Gilad, S. (2014). Beyond endogeneity: How firms and regulators co-construct the meaning of regulation. Law & Policy, 36(2), 134–136. doi:10.1111/lapo.12017
https://doi.org/10.1111/lapo.12017...
, trata-se de soluções “amalgamadas” que representarão alternativas de soluções para os problemas dos negócios e dos reguladores.

Os resultados verificados na pesquisa e que possibilitaram o entendimento do processo de construção dos acordos aqui citados, tendo em vista a busca pela mitigação do risco da compliance trap a que a Anatel estaria sujeita, estão sintetizados na Figura 6.1.

Figura 6.1
SÍNTESE DOS RESULTADOS

O processo de interação verificado teve forte influência dos discursos tanto por parte da Anatel quanto das operadoras, utilizados respectivamente para construir o enforcement representado pelas reuniões e exigências de planos de investimentos e melhorias pela agência, e a compliance, pela observação das operadoras quanto aos requerimentos do regulador, com divulgação simultânea para a audiência em busca da ressonância, visando à eliminação da compliance trap, por meio da consolidação da legitimidade do modelo de regulação da Anatel, numa conexão entre ação e discurso, com a produção dos textos direcionadas para o entendimento da maneira pretendida (Phillips et al., 2004Phillips, N., Lawrence, T., & Hardy, C. (2004). Discourse and institutions. Academy of Management Journal, 29(4), 635–652. doi:10.2307/20159075
https://doi.org/10.2307/20159075...
).

O cerimonialismo mostrou-se presente quando as práticas utilizadas pareciam estar dissociadas dos discursos utilizados no processo de construção do enforcement e da compliance e na busca pela legitimidade. Restou evidente pela afirmação de alguns consultores e órgãos de imprensa que afirmaram ter existido certa “teatralidade” e “pirotecnia” em tal processo. Inclusive, um executivo do setor classificou o processo de suspensão de vendas das operadoras de telefonia celular como midiático. Nesse sentido, é importante ressaltar que as medidas adotadas não implicaram qualquer alteração nos resultados nas empresas, seja em relação a clientes ou à receita de serviços, o volume de reclamações no site da Anatel voltou praticamente aos mesmos índices anteriores às medidas e foram frequentes as falas do presidente da Anatel ressaltando que os resultados esperados ainda não tinham sido alcançados, ou seja, houve o rompimento da intenção percebida dos regulamentos, porém sem que as suas respectivas letras fossem quebradas (Garcia et al., 2014Garcia, S., Chen, P., & Gordon, M. (2014). The letter versus the spirit of the law: A lay perspective on culpability. Judgment and Decision Making, 9(5), 479–490.). Portanto, conforme asseveram Machado-da-Silva e Vizeu (2007)Machado-da-Silva, C., & Vizeu, F. (2007). Análise institucional de práticas formais de estratégia. Revista de Administração de Empresas, 47(4), 89–100., o processo não estava efetivamente conectado ao desempenho organizacional, mas, sim, aos critérios normativos e/ou cognitivo-culturais do campo institucional de referência.

Portanto, nas situações em que se verifica a emergência de um modelo de regulação socialmente construído nos moldes do caso aqui apresentado, deve-se investigar a possibilidade de extensão do conceito de modelo de regulação em uma abrangência maior quando há um sistema de legitimação associado, além da legitimidade considerada puramente organizacional, e que possa englobar o destaque do enforcement e compliance como agentes de legitimação recíprocos para aquele modelo de regulação socialmente construído, então sob o risco da compliance trap.

Portanto, seria de muita valia que, no contexto brasileiro e de seu universo de agências reguladoras, pudesse haver a realização de estudos posteriores que analisassem as assertivas colocadas nos parágrafos anteriores, fundamentadas a partir dos indícios verificados, no presente trabalho, nos outros agentes de regulação no Brasil.

  • 3
    Práticas cerimoniais, segundo Meyer e Rowan (1977)Meyer, J., & Rowan, B. (1977). Institutionalized organizations: Formal structure as myth and ceremony. American Journal of Sociology, 83(2), 340–363., estão ligadas à adoção simbólica de produtos, serviços, técnicas, políticas e programas mesmo sem atender a critérios de eficiência, para manter conformidade aos padrões institucionalizados na sociedade.
  • 4
    “Percepção ou pressuposto generalizado de que ações de uma entidade são desejáveis, adequadas ou apropriadas em algum sistema socialmente construído de normas, valores, crenças e definições” (Suchman, 1995, p. 574Suchman, M. (1995). Managing legitimacy: Strategic and institutional approaches. The Academy of Management Review, 20(3), 571–610. doi:102307/258788
    https://doi.org/102307/258788...
    ).
  • 5
    Nos termos de Boxebaum e Jonsson (2008, p. 90)Boxebaum, E., & Jonsson, S. (2008). Isomorphism, diffusion and decoupling. In R. Greenwood, C. Oliver, K. Sahlin, & R. Sudabby (Orgs.), The Sage handbook of organizational institutionalism. London: Sage., a partir de Meyer e Rowan (1977)Meyer, J., & Rowan, B. (1977). Institutionalized organizations: Formal structure as myth and ceremony. American Journal of Sociology, 83(2), 340–363., “desconexão deliberada entre estruturas organizacionais que conferem legitimidade e práticas organizacionais que são entendidas, dentro da organização, como eficientes tecnicamente”.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    19 Dez 2019
  • Aceito
    18 Nov 2020
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