Resumos
O tunelamento quântico (ou efeito túnel) é um fenômeno que proporciona inúmeras aplicações tecnológicas através da aplicação direta dos conceitos da mecânica quântica. De acordo com este fenômeno, elétrons podem ser extraídos de superfícies metálicas sob as quais há um enorme gradiente de potencial, ou seja, um intenso campo elétrico local. Através de um dispositivo elétrico conhecido como microcatodo oco, duas camadas de metal intercaladas por uma fina camada de mica (com espessura d = 3 μm), perfurada com furo de diâmetro D = 200 μm e na pressão de 20 Torr, propiciou a emissão a frio de elétrons para um microcampo elétrico local de aproximadamente 15 V/nm. Os metais polarizados com uma diferença de potencial elétrico de aproximadamente 390 V permitiram a passagem dos elétrons através da barreira de potencial presente na região do furo catódico. A curva de Fowler-Nordheim ratificou a eficácia do fenômeno na geração de um microplasma neste furo, visível a olho nu.
tunelamento quântico; microcatodo oco; Fowler-Nordheim
The quantum tunneling is a phenomenon that provides numerous technological applications through direct application of the concepts of quantum mechanics. According to this phenomenon, electrons can be extracted from metal surfaces under which there is a huge potential gradient, ie, an intense local electric field. Through a system known as microhollow cathode two metal layers interspersed by a thin mica layer (with thickness d = 3 μm), perforated with holes of diameter D = 200 μm at a pressure of 20 Torr, led the extraction of cold electrons at a local electric microfield of approximately 15 V/nm. The voltage of about 390 V applied at these metals allowed the passage of electrons through the potential barrier at the cathode hole region. The Fowler-Nordheim curve confirmed the effectiveness of the phenomenon in the generation of microplasma inside the hole, visible to the naked eyes.
quantum tunneling; microhollow cathode; Fowler-Nordheim
Introdução
Placa metálica que apresenta microprotrusões em sua superfície pode gerar gradientes de potencial elétrico intensos na região próxima a esta superfície, quando o metal é polarizado eletricamente. Estas pequenas imperfeições na superfície, invisíveis a olho nu, alteram a direção do campo elétrico local e aumentam sua intensidade devido ao efeito das pontas [1[1] R.G. Forbes, Solid-State Electronics 45, 779 (2001).]. Para valores de intensidade do campo elétrico local da ordem de 105 – 106 Vcm−1 (dependendo da função trabalho do metal usado), há uma probabilidade de ocorrer a “emissão a frio” de elétrons da superfície metálica polarizada negativamente (superfície catódica). A emissão a frio (ou “electron field emission”) é um processo que ocorre em superfícies metálicas através da aplicação de intenso campo elétrico, onde os elétrons são extraídos através do fenômeno conhecido por tunelamento quântico ou efeito túnel. Neste fenômeno os elétrons podem transpor um estado de energia classicamente proibido, podendo escapar de regiões cercadas por barreiras de potencial mesmo quando sua energia cinética é menor que a energia potencial da barreira [2[2] R.H. Fowler and L.W. Nordheim, Proc. Roy. Soc. A119, 173 (1928).]. Em muitas situações experimentais ou de interesse prático é interessante obter uma fonte de elétrons que gere uma densidade de corrente elétrica de uma maneira não intrusiva, como a emissão a frio. Por exemplo, a emissão termiônica de elétrons não é interessante em certos casos, pois o material a ser analisado sofre grande variação de temperatura, podendo perder suas propriedades físicas e químicas, principalmente se o material for termosensível, como o biomaterial. O microscópio de varredura por tunelamento (“Scanning Tunnelling Microscope”, STM), inventado em 1981 por G. Binning e H. Rohrer, financiados pela IBM de Zurique, foi idealizado para fornecer uma imagem da superfície investigada com resolução atômica. Este instrumento segue o princípio de emissão a frio de elétrons, que se utiliza do tunelamento quântico para propiciar a passagem do elétron pela barreira de potencial elétrico que existe entre a superfície a ser analisada e uma ponta metálica (sonda do aparelho) situada próxima a superfície. A aplicação de uma diferença de potencial (U) entre a sonda e a amostra torna factível o tunelamento quântico, através da criação de níveis desocupados de energia na superfície da amostra equivalentes com a energia potencial dos elétrons da sonda. Por exemplo, para um espaçamento d = 10 nm e para U = 10 V, a intensidade do campo elétrico será ε = U/d = 109 V/m, o suficiente para “extrair” elétrons do catodo (polo negativo, que pode ser o objeto ou a ponta condutora). O efeito túnel, segundo a mecânica quântica, surge como consequência da natureza ondulatória do elétron, pois este é descrito através de uma função de onda, obedecendo ao princípio da incerteza de Heisenberg.
Outra situação que podemos exemplificar ocorre na produção de plasmas em laboratório, onde a geração de elétrons secundários a frio favorece a manutenção da descarga elétrica com a respectiva redução da tensão elétrica, aumentando a eficiência de ionização do gás. A emissão a frio foi descoberta por Wood em 1897 e mais tarde Fowler e Nordheim [2[2] R.H. Fowler and L.W. Nordheim, Proc. Roy. Soc. A119, 173 (1928).] formularam uma teoria mais robusta baseada no modelo de elétrons livre de Sommerfeld. Murphy e Good [3[3] E.L. Murphy and R.H. Good, Phys. Rev. 102, 1464 (1956).] aplicaram esta teoria para superfícies metálicas e formularam a equação generalizada de Fowler-Nordheim para a relação entre a densidade de corrente elétrica e o campo elétrico local da superfície emissora de elétrons.
Em experimento recente, verificou-se que substâncias como o metanol (álcool COH4) podem ser formadas e destruídas em ambientes extremamente frios, como no espaço intergaláctico. A explicação para este fato vem do tunelamento quântico, pois se observou que mesmo submetido a temperaturas extremamente baixas, as reações químicas envolvendo o metanol ocorrem a uma taxa 50 vezes superior comparadas com as mesmas reações em condições normais [4[4] R.J. Shannon, M.A. Blitz, A. Goddard and D.E. Heard, Nature Chemistry 5, 745 (2013).]. Estas reações levam à produção de radicais hidroxilas, mesmo a −210 °C. Na pressão atmosférica, a ação da radiação eletromagnética no vapor de metanol não resulta em reações químicas favoráveis à produção destes radicais. Porém, no espaço intergaláctico, a pressão de aproximadamente 10−1 nTorr (ou 13 nPa) facilita os processos de tunelamento quântico, o que leva à explicação para a formação do radical metoxila, altamente reativo, detectado no espaço.
De acordo com o método de Fowler-Nordheim, através da construção de um gráfico que relaciona a densidade de corrente elétrica com a diferença de potencial elétrico aplicada, é possível estimar o fator de amplificação do campo elétrico e o campo elétrico local na superfície emissora. Esta tensão elétrica é aplicada nos terminais de dois eletrodos por onde se quer que ocorra a emissão a frio e a curva característica de tensão-corrente mostra de maneira direta que o fenômeno de tunelamento quântico ocorreu, pois em um dado instante e para uma determinada diferença de potencial a densidade de corrente aumenta exponencialmente, de acordo com a previsão teórica. Este crescimento exponencial está previsto na teoria quântica na dedução do coeficiente de transmissão do pacote de onda incidente na barreira de potencial, para o caso em que a energia deste pacote é menor do que o potencial máximo da barreira.
Neste trabalho iremos apresentar um experimento que detecta o tunelamento quântico de elétrons. A montagem consiste de duas chapas de metal separadas por uma fina folha de dielétrico, sendo que o conjunto todo é perfurado com um diâmetro de 200 μm. Após a polarização das folhas de metal, a emissão a frio de elétrons é registrada por um picoamperímetro, para um determinado valor da tensão elétrica aplicada e analisada através da teoria quântica relacionada ao fenômeno de tunelamento de elétrons, devido à presença de um intenso campo elétrico externo. Para facilitar a emissão de elétrons o conjunto é colocado numa câmara evacuada e o processo é monitorado com câmera fotográfica e medidor de pressão. Quando o número de elétrons atinge um valor ótimo, um pequeno plasma é aceso no interior do orifício catódico. O plasma é um gás ionizado que contém espécies químicas importantes para aplicações nos mais diversos ramos do conhecimento humano. Mais detalhes da descarga elétrica serão descritos na seção 3.
2.Abordagem teórica
Nesta seção abordaremos a barreira de potencial e o efeito túnel ou tunelamento quântico, deduzindo a probabilidade de ocorrência deste. Uma barreira de potencial é uma região que possui uma energia potencial que impede a travessia de um lado para outro de uma partícula, a não ser que essa partícula possua energia E > Vm (de acordo com a visão clássica). Ou então, que a partícula, mesmo possuindo energia menor que o máximo da barreira, E < Vm, siga os preceitos da mecânica quântica e, assumindo um comportamento ondulatório, consiga sobrepujar a barreira pelo efeito de tunelamento quântico (ou efeito túnel) que lhe garanta uma probabilidade finita para isto. No caso clássico podemos imaginar, de uma maneira muito simples, que a partícula seja a bola de futebol da copa do mundo no Brasil e as paredes verticais do Estádio Arena Corinthians fazendo o papel da barreira de potencial. Se a bola não adquire energia cinética suficiente para transpor o Estádio, então, quanticamente ela teria que se transformar numa onda para poder ter alguma probabilidade de passar para o lado de fora. Se a bola não possuir energia cinética suficiente para vencer a barreira de energia potencial gravitacional relacionada à parede do Estádio, ela será refletida, de acordo com a visão clássica. Para explorarmos matematicamente o conceito de barreira de potencial e o fenômeno de tunelamento quântico, vamos considerar a partícula como sendo a bola de futebol e que a parede do estádio, com espessura d, tenha energia potencial máxima Vm escrita de acordo com o modelo de barreira de potencial retangular
Vamos nos concentrar no caso E < Vm, ou seja, quando a energia total E da partícula de massa m é menor que a energia potencial Vm que define a altura da barreira. A partícula se comportará agora como um pacote de ondas e, portanto, uma parte do pacote poderá passar pela barreira de potencial, o que antes era proibido pela física clássica. De acordo com a equação de Schrödinger, a partícula se move com energia E, vindo da esquerda (a bola dentro do Estádio, x < 0) e podendo se deslocar para a direita (fora do Estádio, após sair deste). É claro que para x < 0 (dentro do Estádio) a partícula poderá ser refletida e se deslocar para a esquerda. Assim, a função de onda associada a esta partícula será
onde é o vetor de onda e h é a constante de Planck. Na visão clássica, sabemos que C = 0 (a amplitude da função de onda transmitida é nula, a bola não sai do Estádio). Mas, de acordo com a mecânica quântica, Ψ(x) é uma função de onda e por isso a partícula agora terá comportamento ondulatório, que leva a resultados imprevisíveis de acordo com a visão clássica. Como há probabilidade finita de ocorrer o tunelamento quântico dentro da barreira (para partículas atômicas e, infelizmente, não para a bola), a solução da equação de Schrödinger para o intervalo 0 < x < d será sendo o vetor de onda correspondente à energia (Vm – E) nesta região. De acordo com as condições de contorno, deverá haver continuidade da função de onda e de sua derivada primeira nos limites da barreira, o que resulta para o coeficiente de transmissão da onda na condição Kd >> 1, mostrando que o decaimento exponencial deste coeficiente de transmissão ao longo da travessia da barreira (ver Fig. 1) é diferente de zero, ou seja, o tunelamento quântico pode ocorrer para a situação em que E < Vm.A primeira descrição do processo de emissão a frio de elétrons foi feita por Wood em 1897. Mais tarde, Fowler e Nordheim [2[2] R.H. Fowler and L.W. Nordheim, Proc. Roy. Soc. A119, 173 (1928).] propuseram uma teoria de emissão dos elétrons por efeito de campo elétrico, a partir de superfícies metálicas planas, através da hipótese de elétrons livres proposta por Sommerfeld. Estes pesquisadores deduziram uma equação, que relaciona a densidade de corrente emitida pelo catodo com o campo elétrico aplicado. Esta teoria da mecânica quântica de emissão de elétrons se baseia no fato dos elétrons, da banda de condução, se comportarem como partículas livres. A teoria de Fowler-Nordheim trata esta emissão de elétrons, a partir de uma superfície metálica livre de impurezas, como uma passagem dos elétrons através de uma barreira de potencial triangular, encurvada no topo, atravessando uma região classicamente proibida e escapando do metal. A Fig. 2 mostra este tunelamento dos elétrons através da barreira de potencial da superfície metálica onde E é a intensidade do campo elétrico externo que surge devido à diferença de potencial aplicada nos eletrodos, Φ é a função trabalho do metal, e εF é a energia de Fermi. Esta é a máxima energia associada ao elétron em equilíbrio térmico com o metal. Ela pode ser calculada através da equação
onde h é a constante de Planck, me é a massa do elétron e n é a densidade de elétrons livres na superfície do metal. Para o cobre, n = 8,7 × 1028 m−3, resultando em εF = 7,1 eV. A energia potencial efetiva dentro do metal é EP = εF + Φ. Na presença do campo elétrico externo, a função trabalho é reduzida para onde ε0é a permissividade do vácuo e Φef é a função trabalho efetiva. A redução na função trabalho ocorre devido à distorção da função energia potencial elétrica. Na ausência do campo elétrico externo, a energia potencial elétrica pode ser calculada através do método da carga imagem, e seu valor é dado por We = −e2/16πε0x, onde e é a carga do elétron e x é a distância medida a partir da superfície do catodo. Com a aplicação do campo elétrico, surge uma energia potencial elétrica Wf = −eEx, função linear que, adicionada à anterior, fornece a energia potencial elétrica resultante do sistema, Wt. Observa-se na Fig. 2 que esta função se aproxima de uma barreira de potencial triangular. Este tipo de barreira também possibilita o tunelamento do elétron e, através do estudo desta barreira, Fowler e Nordheim propuseram a sua teoria.Murphy e Good [3[3] E.L. Murphy and R.H. Good, Phys. Rev. 102, 1464 (1956).] revisaram, em 1956, a equação proposta por Fowler e Nordheim e, nesta nova versão, ela é conhecida como equação generalizada de Fowler-Nordheim (F-N). A equação F-N para a densidade de corrente J, como função do campo elétrico local (microscópico) da superfície emissora é proporcional ao coeficiente de transmissão (Eq. (4)) e é dada por
onde F é o campo elétrico local (microscópico), λ e μ são fatores de correção generalizadas e a e b são constantes universais dadas por [1[1] R.G. Forbes, Solid-State Electronics 45, 779 (2001).]F é usualmente dada por F = βE = βV /d (para catodo-anodo plano), onde β é o fator de amplificação do campo elétrico, e E é a intensidade do campo elétrico macroscópico. A intensidade de corrente I, para uma área de emissão S, será
o que, finalmente, resulta emQuando ln(I/V2) é plotada em função de 1/V (chamada de curva F-N), obtemos uma reta com inclinação negativa. Esta inclinação depende de Φ, β e d. A grandeza Φ, na verdade, é a função trabalho para o ponto relevante da superfície emissora, não perturbada pelo campo, e 0 < μ< 1 é o fator de correção para sua redução que, como vimos, pode ser calculada através da relação μ = Φef/Φ.
3.Procedimentos experimentais e resultados
O dispositivo mostrado na Fig. 3 foi o utilizado no experimento. Essa estrutura consiste de duas folhas finas metálicas planas separadas por uma camada de dielétrico (mica natural), sendo conhecida como microcatodo oco. A mica natural tem baixa condutividade elétrica e tem alta resistência à punctura. Ela apresenta maior perfeição de clivagem, nos proporcionando palhetas de dimensões ínfimas, da ordem de 2 μm. Foi feito um furo cilíndrico com diâmetro de 200 μm atravessando as três camadas do dispositivo de microdescarga, através de uma microretífica mecânica de precisão (Fig. 3). O dispositivo é polarizado por uma fonte de tensão elétrica contínua com resistores de carga a fim de limitar a intensidade de corrente.
O dispositivo é colocado no interior de um tubo de quartzo com diâmetro interno de 10 cm e comprimento de 16 cm (Fig. 4). A fonte de tensão de corrente contínua pode fornecer uma tensão máxima de 5 kV, operando uma corrente de descarga de até 200 mA. Também foram utilizados em nossos experimentos: jogo de capacitores a óleo da Cornell Dubilier de 200 V de 1 a 20 μF; resistores de 47 kΩ; microamperímetro analógico Engro com escala de 1 a 500 μA; picoamperímetro analógico Keithley; fonte DC HP de 0 a 1000 V com variação de 1V; barômetro de membrana capacitiva MKS de 10 mbar monitorado eletronicamente pelo controle MKS (PR4000); barômetro de diafragma Wallace & Tiernan de 0 a 200 Torr com variação de 1 Torr; barômetro de diafragma Terbrasma de 0 a 1200 mbar; câmera digital Kodak 6.1 Megapixel modelo DX7630; microscópio óptico com câmera digital acoplada; microscópio eletrônico de varredura (SEM). A injeção de ar utilizado nos experimentos foi controlada por um fluxímetro modelo MKS 247C, que possibilita um fluxo de 0 a 500 sccm (1 sccm = 1,667.10−8m3/s). Produziuse vácuo na razão de 8 m3/h com o uso de uma bomba de vácuo mecânica Edwards que forneceu vácuo final de 1,2 × 10−2 mbar.
Uma vez instalado o vácuo, o plasma pode ser aceso no interior do orifício catódico após a ruptura elétrica (electrical Breakdown). As condições ótimas de ruptura do gás encontram-se nas adjacências do mínimo da curva de Paschen, que é representada pela curva da tensão de ruptura do gás em função do produto Pd (pressão × espessura do dielétrico). Esta curva tem o formato de “U” nas descargas em pressão baixa. Assim, medimos diversos valores de tensão de modo a construímos a curva de Paschen para o dispositivo de microdescarga, variando a pressão. Para a medição da tensão de ruptura, inserimos um circuito RC (resistor-capacitor) em paralelo com o sistema a fim de possibilitar descargas contínuas em intervalos regulares de tempo. Conforme o que foi relatado anteriormente, com a redução da distância entre o catodo e o anodo se tem como resultado um campo elétrico bastante intenso. Para certos valores de campo elétrico, como veremos depois, há a possibilidade de se obter a emissão a frio de elétrons (electron field emission), ou seja, podemse extrair elétrons da superfície do catodo através de tunelamento quântico.
Podemos observar na Fig. 5 o aumento da eficiência de ionização nas descargas de microcatodo oco, assim como ocorre nas descargas convencionais de catodo oco, através das curvas de Paschen obtidas para as descargas elétricas em ar atmosférico, quando comparamos a curva teórica obtida através da teoria de Townsend [5[5] Yu. P. Raizer, Gas Discharge Physics (Springer-Verlag, New York, 1997).] e as curvas obtidas para microcatodo oco. Notamos claramente que para o microcatodo oco com dielétrico de espessura d = 20 μm há uma eficiência muito grande de ionização, pois a ruptura do gás ocorre para valores bem inferiores comparados aos da descarga convencional de catodo-anodo plano, ou mesmo da descarga de microcatodo oco com espaçamento intereletrodos maior (d = 280 μm). Deste modo, concluímos que os elétrons secundários tiveram sua origem também por emissão de campo elétrico, além do clássico modelo de emissão secundária de elétrons da descarga de Townsend pois, de acordo com a Fig. 5, a tensão de ruptura para a descarga de microcatodo oco com d= 20 μm, para uma ampla faixa de Pd, é muito inferior àquela observada para descarga com d = 280 μm.
Para mostrar que há a participação do intenso campo elétrico na emissão de elétrons pelo catodo, montamos um dispositivo de descarga elétrica convencional, constituído de catodo e anodo planos. Para se observar a emissão a frio de elétrons, colocamos espaçadores de mica natural, com apenas 10 μm de espessura, entre dois eletrodos planos de cobre e levantamos a curva de corrente-tensão até o ponto de ruptura do gás, conforme apresentado na Fig. 6. A pressão de operação foi P = 300 Torr e a tensão de ruptura do gás foi de 318 V, para Pd = 0,3 Torr cm.
Esta tensão é muito inferior àquela observada na descarga de Townsend convencional de catodo-anodo planos, conforme observado na Fig. 5 e próximo da tensão de ruptura medida na descarga de microcatodo oco com espaçamento de 20 μm. Conclui-se que a eficiência de ionização é aumentada e que há participação de outro fenômeno agindo, ou seja, a emissão por campo que pode estar presente devido ao espaçamento reduzido entre os eletrodos. Segundo Raizer [5[5] Yu. P. Raizer, Gas Discharge Physics (Springer-Verlag, New York, 1997).], uma apreciável corrente elétrica é emitida para campos macroscópicos da ordem de 106 V/cm e recentemente foi verificado experimentalmente a emissão em dispositivos de microdescarga luminescente com espaçamento intereletrodos de 70 μm, para campos uma ordem de grandeza menor que este [6[6] L. Baars-Hibbe, P. Sichler, C. Schrader, C. Gebner, K.H. Gericke and S. Buttgenbach, Surface and Coating Technology 27, 174 (2003).]. Isto é possível pelo fato de ocorrer um aumento exponencial da intensidade do campo elétrico local devido à presença de microprotrusões, que sempre existem nas superfícies metálicas. Para o microcatodo oco, devido à sua geometria cilíndrica, o campo elétrico é amplificado se comparado com eletrodos planos paralelos, além de ser bem mais intenso na superfície do catodo e nas proximidades do orifício.
A curva de corrente-tensão de uma configuração de microcatodo oco fornece o ponto de ruptura do gas. Este dispositivo tem eletrodos de cobre, furo central com diâmetro de 200 μm, mica com espessura de 3 μm, operada em ar, na pressão de 20 Torr. A ruptura do gás ocorreu na tensão de 457 V e observamos que a partir de 390 V a corrente elétrica aumentou consideravelmente, para pequenas variações de tensão. A curva de Fowler-Nordheim foi obtida para este trecho e sua inclinação negativa indicou a presença da emissão por campo. Usando-se a função trabalho do cobre, Φ = 4,65 eV, d = 3× 10−6 m e a Eq. (9), determinamos o fator de redução μ = 0,88 e obtivemos β ≅ 98. Este é um valor razoável para o fator de amplificação do campo elétrico [1[1] R.G. Forbes, Solid-State Electronics 45, 779 (2001).], resultando num campo elétrico local F ≅ 15 V/nm, que corresponde bem àquele necessário para iniciar a emissão por campo através de um microelemento emissor. A Fig. 7 mostra o exato momento em que o gás é rompido (aceso) dentro do furo catódico, na tensão de aproximadamente 460 V. Devido à presença do dispositivo RC no circuito elétrico, a energia acumulada no capacitor foi transferida ao dispositivo de microcatodo oco, o que ocasionou a avalanche em forma de microjato elétrico na região do furo catódico, com a duração de uma fração de segundos. Deste modo, consegue-se visualizar a ruptura do gás na tensão elétrica prevista pela teoria do tunelamento quântico. A Ref. [7[7] N.L. Silva Junior e A.V. Andrade-Neto, Revista Brasileira de Ensino de Física 35, 3306 (2013). ] apresenta uma descrição analítica recente para a probabilidade de tunelamento, utilizando a aproximação semi-clássica JWKB, mostrando que para funções trabalho variando de 3 a 5 eV e para F = 10 V/nm (valores bem próximos aos nossos), a probabilidade de tunelamento se encontra no intervalo (100% − 3,4%), mostrando que os resultados obtidos neste trabalho são concordantes com os divulgados na literatura.
4.Conclusão
Através do uso do microcatodo oco (um sanduíche com duas camadas metálicas intercaladas por uma fina camada de mica - com espessura d = 3 μm - perfurada com furo de diâmetro D = 200 μm e na pressão de 20 Torr) obtivemos um processo de verificação de emissão a frio de elétrons para um microcampo elétrico local muito intenso. O tunelamento quântico (ou efeito túnel), fenômeno explicado pela mecânica quântica, foi o mecanismo responsável pela extração de elétrons secundários da superfície catódica do dispositivo. De acordo com a teoria quântica, elétrons extraídos da superfície catódica (polarizada negativamente) sob a qual jaz um enorme gradiente de potencial, ou seja, um intenso campo elétrico local, propiciaram a formação de um microplasma no pertúito catódico. Após a aplicação da diferença de potencial de aproximadamente 460 V, elétrons secundários originados do catodo atravessaram a barreira de potencial na região do furo catódico. A aplicação da teoria de Fowler-Nordheim forneceu como resultado um microcampo elétrico local F ≅ 15 V/nm. A presença de microprotrusões na região do furo elevou o microcampo elétrico local através do efeito das pontas, facilitando a extração de elétrons. Após a ruptura do gas o microplasma pode ser observado a olho nu.
Agradecimentos
O autor agradece o apoio parcial das seguintes Agências de fomento: FAPESP (Processo 12/13064-4), CNPq (Processo 406035/2013-0 e 310419/2012-3DT) e CAPES (Processo 88881.030340/2013-01BJT e 23038.005804/2014-87ITA).
Referências
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[1]R.G. Forbes, Solid-State Electronics 45, 779 (2001).
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[2]R.H. Fowler and L.W. Nordheim, Proc. Roy. Soc. A119, 173 (1928).
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[3]E.L. Murphy and R.H. Good, Phys. Rev. 102, 1464 (1956).
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[4]R.J. Shannon, M.A. Blitz, A. Goddard and D.E. Heard, Nature Chemistry 5, 745 (2013).
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[5]Yu. P. Raizer, Gas Discharge Physics (Springer-Verlag, New York, 1997).
-
[6]L. Baars-Hibbe, P. Sichler, C. Schrader, C. Gebner, K.H. Gericke and S. Buttgenbach, Surface and Coating Technology 27, 174 (2003).
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[7]N.L. Silva Junior e A.V. Andrade-Neto, Revista Brasileira de Ensino de Física 35, 3306 (2013).
Figures
Modelo de barreira retangular, mostrando a partícula de massa m (bola, modelo clássico) e a onda associada à partícula (modelo quântico) que sofre tunelamento nesta barreira. A barreira tem altura Vm e a energia da partícula é E < Vm.
O dispositivo de microdescarga elétrica (à esquerda) e a imagem ampliada do furo com diâmetro de 200 μm no centro dos eletrodos, mostrando as microprotrusões na sua periferia.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
30 Mar 2015 -
Data do Fascículo
Jan-Mar 2015
Histórico
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Recebido
02 Out 2014 -
Aceito
04 Dez 2014