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A ciência do movimento segundo Descartes

The science of motion according to Descartes

Resumos

Este trabalho traça um panorama da teoria do movimento formulada por René Descartes. Procuramos mostrar como essa ciência nasce de um sistema filosófico-metodológico mais amplo e dele se desdobra. Apresentamos as contribuições mais importantes fornecidas por ele à mecânica, com destaque para a Lei da Inércia em sua forma direcional, para o tratamento das dinâmicas do movimento curvilíneo e dos vórtices etéreos, bem como do problema das colisões. Por fim, trazemos uma pequena síntese das repercussões da mecânica cartesiana, apresentando, por um lado, algumas críticas que lhe foram apostas, por outro, a longevidade do prestígio do paradigma mecanicista por ele elaborado.

Palavras-chave:
História da Física; Mecânica; Descartes


We outline an overview of the theory of motion as formulated by René Descartes. We try to show how this science is born from a broader philosophical-methodological system and unfolds from it. We present the most important contributions Descartes made to mechanics, with emphasis on the Law of Inertia in its directional form, on the treatment of the dynamics of curvilinear motion and ethereal vortices, as well as on the problem of collisions. Finally, we bring a small summary of the repercussions of Cartesian mechanics, presenting, on the one hand, some criticisms that were raised against it, on the other hand, the longevity of the prestige of the mechanistic paradigm elaborated by him.

Keywords:
History of Physics; Mechanics; Descartes


1. Introdução

O pensamento científico de Descartes foi extremamente influente no meio intelectual europeu ao longo dos quase cem anos que sucederam a sua morte. Alguns de seus elementos básicos, como a concepção mecanicista – embora não exclusiva dele – e a hipótese plenista, isto é, a inexistência de espaços vazios de matéria, constituíram fortes paradigmas científicos para toda a física da segunda metade do século XVII e início do seguinte.

Menos de meio século separam as físicas de Descartes e Newton, porém os espíritos são significativamente diferentes. Houve um período em que os dois paradigmas científicos disputaram abertamente o campo do pensamento ocidental: o primeiro era hegemônico no continente europeu, enquanto o segundo prevalecia nas ilhas Britânicas [1[1] A. Koyré, Études Newtoniennes (Gallimard, Paris, 1968).]. A força da concepção cartesiana, de certo modo, ofereceu uma resistência à difusão da mecânica de Newton. A disputa se deu a tal ponto que Voltaire, em suas Cartas Inglesas, numa escrita sempre carregada de fina ironia, escreveu:

Um francês que chega a Londres encontra uma grande mudança na filosofia, como em tudo o mais. Ele deixou o mundo pleno, ele o encontra vazio. Em Paris vê-se o Universo composto de vórtices de matéria sutil. Em Londres, se vê nada disso. Na Inglaterra, é o mar que gravita em direção à Lua. Com seus cartesianos, tudo é feito por um impulso que ninguém entende; com Mr. Newton, o é por uma atração, cuja causa não é melhor conhecida (Cartas Inglesas)- apud. [1[1] A. Koyré, Études Newtoniennes (Gallimard, Paris, 1968).], p. 55 (T.A.).

O paradigma newtoniano foi sabidamente vitorioso; hoje, certamente, a física cartesiana é matéria superada. Entretanto, é válida a questão: quais as contribuições importantes que o pensamento físico de Descartes legou à moderna ciência mecânica? Ao longo do texto tentaremos esboçar uma resposta, já baseada em uma grande tradição historiográfica [1[1] A. Koyré, Études Newtoniennes (Gallimard, Paris, 1968)., 2[2] D. Garber, Descartes’ metaphysical physics (University of Chicago Press, Chicago, 1992)., 3[3] D. Garber, Descartes embodied (Cambridge University Press, New York, 2001)., 4[4] J. Cottingham, The Cambridge companion to Descartes (The Cambridge University Press, Cambridge, 1992)., 5[5] W. Shea, The magic of numbers and motion (Watson Publishing International, Canton, 1992)., 6[6] E.J. Aiton, The vortex theory of planetary motions (American Elsevier Publishing Co., New York, 1972)., 7[7] S. Gaukroger, Descartes’ system of natural philosophy (Cambridge University Press, Cambridge, 2002)., 8[8] S. Gaukroger, Descartes: an intelectual biography (Clarendon Press, Oxford, 1995).]. Para tanto, precisamos conhecer em maiores detalhes a essência do pensamento cartesiano, bem como um pouco de sua imensa incursão pelas ciências naturais.

Primeiramente, precisamos estabelecer que, da mesma forma que para Aristóteles, a ciência de Descartes não pode ser dissociada de sua filosofia; pelo contrário, faz parte de um sistema de pensamento que se apoia em fundamentos metafísicos, a partir dos quais até certo ponto brotam, sucessivamente, alguns conteúdos das ciências específicas, a começar pela física [6[6] E.J. Aiton, The vortex theory of planetary motions (American Elsevier Publishing Co., New York, 1972).]. De resto, o próprio Descartes enuncia o seu programa no prefácio da edição francesa dos Princípios de Filosofia, de 1646:

Assim, considerando que aquele que deseja duvidar de tudo não pode, no entanto, duvidar de que ele seja, enquanto duvida (…) eu tomei o ser ou a existência desse pensamento como o Primeiro Princípio, do qual eu deduzi muito claramente os seguintes, a saber, que há um Deus, que ele é o autor de tudo o que há no mundo, e que, sendo a fonte de toda a verdade, criou nosso entendimento de tal natureza que ele não pode absolutamente se enganar a respeito dos julgamentos que faz das coisas das quais tem uma percepção clara e distinta. São esses os princípios dos quais me sirvo, relacionados às coisas imateriais e metafísicas, e dos quais deduzi muito claramente os princípios das coisas corporais ou físicas [9[9] R. Descartes, em: Œuvres de Descartes, editado por Adam C. e P. Tannery (Leopold Cerf, Paris,1904).], pp. 9–10.

Veremos que a investigação científica de Descartes não pôde, porém, ser plenamente fiel a esse ideal filosófico, na medida em seu método não foi capaz de fornecer todas as diretrizes necessárias à completa determinação dos fenômenos físicos perante as várias alternativas logicamente possíveis. Ainda assim, podemos dizer que a ciência cartesiana é produto de uma época em que o conhecimento alimentava um ideal holístico, expresso na busca de um sistema que integrasse todos os saberes por meio de um estrito rigor metodológico. Esse sistema teria seu modelo primeiro e máximo na Matemática [7[7] S. Gaukroger, Descartes’ system of natural philosophy (Cambridge University Press, Cambridge, 2002)., 10[10] C.C. Laranjeiras, J.R.N. Chiappin e J.L. Silva, Revista Brasileira de Ensino de Física 39, e4602 (2017).], a tal ponto que toda a ciência seria como uma “Matemática Universal” [11[11] R. Descartes, Regras para Orientação do Espírito (Martins Fontes, São Paulo, 2007).].

Assim sendo, começamos nossa exposição pelos fundamentos filosóficos da ciência cartesiana, abordados na seção 2 2. As Bases Filosóficas da Ciência Cartesiana 2.1. A questão do método René Descartes nasceu na cidade francesa de La Haye, em 1596. Após a formação escolar em uma instituição de ensino jesuíta, entrou para a Universidade de Poitiers, onde obteve o grau de bacharel em direito em 1616. No entanto, Descartes não seguiu uma carreira que chamaríamos hoje de acadêmica, nem tampouco uma profissional ligada a seus estudos universitários; decidiu, em lugar disso, segundo seu próprio depoimento, buscar novas vivências em jornadas de aprendizagem mundo afora. Ingressou no exército dos Países Baixos como voluntário e foi em um acampamento militar que, conforme o relato oferecido no Discurso do Método [12], em uma noite de novembro de 1619, teve três sonhos que lhe forneceram a intuição de um novo projeto: a refundação, mediante rigoroso escrutínio, de todo o conhecimento ocidental, em sua avaliação, contaminado por conclusões de caráter duvidoso, do qual eram provas as opiniões opostas e, consequentemente, excludentes, sustentadas por filósofos e pensadores ao longo da história. Essa intuição inicial foi de natureza essencialmente metodológica: a construção do conhecimento deveria obedecer a regras formais bem precisas, de sorte a garantir a validade das conclusões atingidas. Essas regras foram apresentadas pela primeira vez na obra Regras para orientação do espírito [11] e, mais tarde, no Discurso do Método. Descartes propôs como regra metodológica fundamental do pensamento submeter à crítica qualquer afirmativa, decompondo seu conteúdo complexo em conteúdos cada vez mais simples. Só aceitaríamos como verdadeiras aquelas afirmativas cuja análise finalizar em afirmativas evidentes por si mesmas, ou seja, aquelas cuja negação implicaria uma contradição lógica. O conhecimento, assim, estaria ancorado em verdades inquestionáveis e nos seus desdobramentos lógicos. Assim, porque os nossos sentidos às vezes nos enganam, quis supor que não havia coisa alguma que fosse tal como eles nos levam a imaginar. E, porque há homens que se enganam ao raciocinar, mesmo sobre os temas mais simples de geometria, e neles cometem paralogismos, julgando que era tão sujeito ao erro como qualquer outro, rejeitei como falsas todas as razões que antes tomara por demonstrações. E, finalmente, considerando que todos os pensamentos que nós temos quando acordados também nos podem ocorrer quando dormimos, sem que nenhum seja verdadeiro, resolvi fingir que todas as coisas que haviam entrado em meu espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus sonhos [12], p. 58. No que se refere à origem dessas verdades simples e evidentes, e, consequentemente, de todo o conhecimento, Descartes faz uma clara adesão à corrente racionalista, para a qual esses fundamentos do conhecimento não provêm de nossa experiência, mas estão presentes em nós como ideias inatas. Para Descartes, a experiência, enquanto mediada por nossos sentidos, é um elemento duvidoso. Os sentidos são instrumentos enganosos de conhecimento. Esse programa metodológico seria aplicável a todo o conhecimento. De resto, Descartes, na primeira de suas “Regras para orientação do espírito”, nos adverte para a interconexão das diversas ciências: Eles o vêem: não são todas as artes que o homem deve aprender ao mesmo tempo, mas se torna mais facilmente o melhor mestre em sua arte aquele que se dedica a uma só. (…) Acreditaram eles que também se dava o mesmo com as ciências e pensaram que as distinguindo umas das outras, conforme a diferença de seus objetos, cumpria procurar adquirir separadamente cada uma delas em especial e deixar de lado todas as outras. Nisso sem dúvida alguma, enganaram-se. Pois, como todas as ciências nada mais são senão a sabedoria humana, que sempre permanece una e a mesma, seja qual for a diferença dos assuntos aos quais é aplicada (…) não é necessário impor aos espíritos nenhum limite [11], p. 2. Consagrava-se o ideal de um conhecimento que integrasse todos os saberes com base no rigor metodológico. 2.2. Os fundamentos metafísicos Segundo Descartes, o processo de dúvida metódica só se interrompe na única certeza inquestionável do nosso pensamento: se há um pensamento, há um sujeito pensante; tudo mais pode ser contestado, porém, se penso, mesmo em termos de dúvida, há um eu que duvida, ou seja, um eu cognoscente. Este é, como sabemos, o princípio fundamental da filosofia cartesiana, o chamado Cogito. Como rejeitamos assim tudo aquilo em que podemos cogitar a menor dúvida ou mesmo imaginamos ser falso, supomos facilmente, com efeito, que não há Deus, nem céu, nem corpos, e que nós mesmos não temos nem mãos nem pés, tampouco, finalmente, um corpo; mas não podemos da mesma maneira supor que não existimos quando duvidamos da verdade de todas essas coisas, pois é repugnante conceber que aquilo que pensa não existe no momento em que pensa. Por conseguinte, o conhecimento PENSO, LOGO EXISTO, é o primeiro e o mais certo que se apresenta àquele que filosofa ordenadamente [9], p. 27. No entanto, a constatação dessa evidência da existência do eu pensante não garante a certeza do conteúdo do pensamento. Mais precisamente, o fato de pensarmos sobre algo não garante que haja por trás desse pensamento algo real que lhe dê origem e lhe corresponda objetivamente. Em outras palavras, devemos, em princípio, desconfiar de que o mundo de nosso pensamento possa ser uma construção de nosso próprio eu e que não haja uma realidade subjacente que lhe sirva de base. O mundo poderia ser, então, uma ilusão do eu? Para responder a essa questão, Descartes se debruça primeiramente sobre outra: temos presente em nós a ideia de perfeição. Segundo ele, somos capazes de conceber a ideia de um ser sumamente perfeito. Ora, um ser dotado de todas as perfeições, porém que não existisse, seria menos perfeito do que outro que, além das perfeições concebidas, existisse. Dessa forma, imaginar um ser sumamente perfeito que não exista é uma contradição; faz parte de sua essência existir. Em outras palavras, sua possibilidade lógica implica sua existência. Este ser sumamente perfeito corresponde a nossa ideia de Deus. Descartes chega à conclusão da existência de Deus também por uma variante dessa via metafísica. De fato, vimos que temos em nós a ideia de perfeição e toda ideia provém de algo. Entretanto, não somos perfeitos, de modo que essa ideia não pode provir de nosso próprio ser. Pelo contrário, tal ideia deve provir de algum ser verdadeiramente perfeito, verdadeiramente existente. Por conseguinte, a existência desse ser se impõe como uma necessidade lógica. Portanto, resta apenas a ideia de Deus, na qual é preciso considerar se há algo que não possa ter vindo de mim mesmo. Pelo nome Deus entendo uma substância infinita, eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente, e, pela qual eu mesmo, e todas as outras coisas que existem (se é verdade que há coisas que existem) foram criadas e produzidas. Ora, essas vantagens são tão grandes e tão eminentes que, quanto mais atentamente as considero, menos me persuado de que a ideia que tenho dele possa tirar sua origem só de mim. E, por conseguinte, é preciso necessariamente concluir de tudo o que disse anteriormente que Deus existe; pois, ainda que a ideia da substância esteja em mim, pelo próprio fato de eu ser uma substância, eu não teria, contudo, a ideia de uma substância infinita, eu que sou um ser finito, se ela não tivesse sido posta em mim por alguma substância que fosse verdadeiramente infinita [13], p. 72. A partir da constatação da necessidade lógica da existência de um ser sumamente perfeito, Descartes analisa a existência do mundo material exterior. Segundo ele, temos a certeza de nossa alma pensante e de Deus. Por outro lado, existe em nós a ideia do mundo material. Essa ideia certamente não é inerente à alma pensante, já que esta não é material. Portanto, só pode ser implantada na alma, seja por algo realmente existente ou por Deus, a título de logro. Ora, não é compatível com a perfeição de um ente divino a perfídia de nos enganar, implantando em nós a ilusão de algo inexistente. Por conseguinte, a ideia da matéria que surge em nós só pode ter origem em uma realidade material verdadeiramente existente. Ora, não sendo Deus enganador, é muito manifesto que ele não me envia por si mesmo essas ideias [das coisas sensíveis], tampouco por intermédio de alguma criatura (…) não vejo como se poderia desculpá-lo pelo engano, se de fato tais ideias partissem ou fossem produzidas por outras causas que não as corporais. E, portanto, é preciso confessar que há coisas corporais que existem [13], p. 104. Assim Descartes conduz sua dúvida metódica para longe do ceticismo dito solipsista e afirma a realidade do mundo material exterior ao eu, que constitui então o objeto possível da ciência. E assim reconheço muito claramente que a certeza e a verdade de toda a ciência depende só do conhecimento do verdadeiro Deus; de sorte que, antes de o conhecer, eu não podia saber perfeitamente nenhuma outra coisa. E agora que o conheço, tenho o meio de adquirir uma ciência perfeita no tocante a uma infinidade de coisas, não só daquelas que estão nele, mas daquelas que pertencem à natureza corporal (…) [13], p. 95. Finalizemos essa seção chamando a atenção para um ponto importante: como dissemos, a filosofia de Descartes era essencialmente racionalista. O conhecimento certo só pode se ancorar sobre as verdades claras e evidentes, presentes de modo inato em nossa mente, jamais nos dados inconfiáveis obtidos dos sentidos. A partir dessas verdades inquestionáveis e seus desdobramentos lógicos chegaríamos às proposições complexas que comporiam a descrição científica da realidade. No entanto, esse projeto racionalista da ciência cartesiana esbarrou em seus limites. Os modos possíveis da realidade, todos eles compatíveis com os princípios evidentes do pensamento, são, frequentemente, múltiplos. A pura dedução lógica a partir das verdades inatas não é capaz de eliminar todas as hipóteses, igualmente sustentáveis pela razão, concorrentes da verdadeira. Diante desse impasse, Descartes conclui que, ainda que com algumas ressalvas, somos obrigados a adotar a experiência como critério de escolha entre as alternativas concebíveis. Vemos, pois, que sua trajetória científica não desemboca mais em um racionalismo puro, absolutamente cético em relação à validade do conhecimento empírico. Na parte seis do Discurso do Método, Descartes escreve: Quanto às experiências, notei que elas são tanto mais necessárias quanto mais avançados estamos no nosso conhecimento. (…) mas a ordem que nisto segui foi esta: primeiramente, procurei encontrar, de modo geral, os princípios ou causas primordiais de tudo o que existe ou pode existir no mundo, limitando-me, para este fim, a considerar apenas Deus que os criou, e a só tirá-los de certas sementes de verdade que existem em nossa alma. (…) Depois, quando quis descer às que eram mais particulares, tantas e tão diversas se me apresentaram que não acreditei ser possível ao espírito humano distinguir as formas e espécies de corpos existentes sobre a Terra de uma infinidade de outros que nela poderiam existir, se nela colocá-las tivesse sido a vontade de Deus, nem, por conseguinte, torná-las por nós utilizáveis, a não ser que se chegue às causas pelos efeitos e que se utilizem muitas experiências específicas. Por isso, repassando meu espírito sobre todos os objetos que jamais se apresentaram a meus sentidos, ouso dizer que neles nada encontrei que não pudesse explicar com bastante facilidade pelos princípios que encontrara. Mas também devo confessar que a potência da natureza é tão ampla e tão vasta, e esses princípios tão simples e tão gerais, que não noto quase nenhum efeito particular que de início eu não sabia que pode ser deduzido desses princípios de muitas maneiras diferentes, e que minha maior dificuldade é, geralmente, achar de qual das maneiras ele depende deles. Pois, para isso, não conheço outro expediente senão procurar novamente algumas experiências que sejam tais que seu desfecho não seja o mesmo conforme seja explicado de uma maneira ou de outra [12], p. 109. , passando logo em seguida, na seção 3 3. Matéria e Mecanicismo Como vimos, a partir da dúvida metódica Descartes conclui não só a certeza da existência de uma substância, mas também a realidade do mundo exterior formado por substâncias materiais. Essas duas formas de substâncias são essencialmente distintas. Para Descartes, a essência da substância pensante é, evidentemente, o ato de pensar, enquanto, de maneira menos óbvia, o atributo essencial da matéria é unicamente a extensão. Em sua obra Princípios de Filosofia, de 1644, Descartes expôe seu pensamento de maneira clara: Assim fazendo, saberemos que a natureza da matéria ou do corpo em geral não consiste absolutamente em que ele seja uma coisa dura, ou pesada, ou colorida, ou que toca nossos sentidos de qualquer outra maneira; mas somente em que ele é uma substância extensa em comprimento, largura e profundidade. (…) De onde se segue que a sua natureza não consiste na dureza que sentimos, eventualmente, nem tampouco a gravidade, o calor ou outras qualidades desse gênero: pois, se examinarmos qualquer corpo que seja, podemos pensar que ele não possui em si qualquer dessas qualidades, e entretanto conhecemos claramente e distintamente que ele possui tudo aquilo que faz dele um corpo, desde que tenha extensão em comprimento, largura e profundidade; de onde se segue que para ser ele não tem necessidade delas de forma alguma, e que sua natureza consiste somente em que ele é uma substância que possui extensão [9], p. 65. (T.A.) Essa relação essencial entre matéria e espaço está ligada a outra importante questão: a rejeição por Descartes da ideia de vácuo. Nesse quesito Descartes estava de acordo com Aristóteles: para ele, a ideia da existência do vazio é uma contradição lógica em si mesma; afinal, como atribuir ao não ser um predicado afirmativo como o de existir e de possuir uma extensão? Portanto, na medida em que é uma ideia absurda em si mesma, e que a realidade é compreensível pela razão, o vazio não pode existir na Natureza; o modelo de Universo de Descartes só pode ser um Universo pleno, isto é, um contínuo material, sem espaços vazios. No que se refere ao vazio no sentido em que os Filósofos tomam essa palavra, a saber, por um espaço em que não há substância alguma, é evidente que não há espaço algum como esse no Universo, porquanto a extensão do espaço ou do lugar interior não é em nada diferente da extensão do corpo. E simplesmente do fato de que um corpo se estende em comprimento, largura e profundidade, nós temos razão em concluir que ele é uma substância, já que concebemos que não é possível que aquilo que não é coisa alguma tenha extensão. Devemos concluir o mesmo do espaço que supomos vazio, a saber, uma vez que há nele extensão, há necessariamente também substância [9], pp. 71–72. (T.A.) Portanto, para Descartes, a essência da matéria se reduz à extensão. Em O Mundo, obra concluída em 1633 mas não publicada em vida, ele diz: “Mas eles não devem também achar estranho (…) se eu conceber sua extensão, ou a propriedade que ela [matéria] possui de ocupar espaço, não como um acidente, mas como sua verdadeira forma e essência.” Aqui há um ponto muito importante: ao reduzir assim a essência da matéria à espacialidade, Descartes a torna uma matéria “neutra” e inerte, desprovida das tendências e causas formais atribuídas a ela, por exemplo, por Aristóteles. Essas causas formais haviam sido um elemento determinante na construção da descrição da física e da cosmologia aristotélicas. Agora, todas as propriedades de que a matéria cartesiana goza são determinadas por suas características espaciais, como forma, tamanho, incluindo-se aí o movimento. Por conseguinte, toda a realidade material tem de ser explicada em termos de extensão e movimento da matéria. Essa concepção é a base de uma corrente de pensamento na filosofia natural chamada de “mecanicismo”. Acompanhando Andrew Pyle [14], agreguemos a esse princípio geral três outros traços distintivos, a saber: 1) a ideia de que os processos materiais são causados exclusivamente por agentes materiais externos ao móvel; 2) essa ação causal se dá por contato direto; 3) eliminam-se da descrição dos processos da Natureza as causas formais e finais, preservando-se apenas aquela modalidade de causação denominada por Aristóteles de “eficiente”, isto é, “aquele que produz a coisa”. Teremos então um paradigma filosófico-científico característico do mecanicismo estrito, extremamente influente no século XVII. A concepção de matéria de Descartes ia completamente ao encontro dessa formulação. De fato, a matéria não trazia em sua essência qualquer princípio causal interno, qualquer elemento formal que determinasse sua evolução futura nesse ou naquele sentido. Pelo contrário, o traço marcante da passividade inercial a predispunha à continuidade indeterminada de sua situação, seja do repouso, seja do movimento para o qual tinha sido encaminhada por uma ação de outro corpo material. No Universo completamente preenchido de Descartes, essa ação de fato pressupunha um contato mecânico exercido sobre o corpo estudado por suas vizinhanças. Por fim, Descartes também eliminou de seu pensamento científico a ideia – central em Aristóteles – de que todos os processos naturais ocorriam com vistas ao cumprimento de uma finalidade pré-estabelecida. As chamadas causas finais aristotélicas foram abandonadas na física cartesiana. É bem verdade que Descartes atribuía a Deus o papel de uma causa primeira, metafísica e temporalmente falando. Deus criara o Universo e atribuíra a suas partes um movimento inicial. Nesse sentido, ainda estamos diante de uma causa imaterial para os processos da Natureza. Entretanto, para Descartes, como veremos adiante, uma vez criado e dotado de uma legalidade material absolutamente cega e impessoal, o Universo passa a seguir seu curso autônomo, sem mais intervenções Divinas. A materialidade da causação passa a ser absoluta; sua violação ocorre apenas no estabelecimento das condições iniciais. Portanto, podemos dizer sem temor que o mecanicismo da concepção do mundo natural de Descartes – assim como o de outro grande pensamento científico emergente no início da Era Moderna: o neoatomismo – é firmemente estrito. , para os desdobramentos de sua concepção filosófica a respeito da matéria, notadamente, sua essência puramente extensional, desprovida de outras qualidades, que reduz ao movimento a explicação última dos processos. Destacamos o caráter mecanicista de sua concepção científica.

Na seção 4 4. A Concepção do Movimento Descartes renegou completamente a tradição da física aristotélica referente ao movimento. Para Aristóteles, o movimento era um processo de mudança que não alterava a essência do ser. Essas mudanças poderiam consistir em crescimento ou diminuição de algum elemento constituinte do móvel, no que eram chamadas por Aristóteles de mudanças quantitativas; na alteração de qualidades que não comprometessem a natureza do ser, chamadas de mudanças qualitativas, como, por exemplo, uma mudança de cor em algo que não tem uma cor determinada como traço característico; e, por fim, uma mudança de lugar, que Aristóteles chamava de movimento local. Como dissemos, em todos esses casos, a mudança não implica a descaracterização do ser, ou seja, é um processo que se dá no interior desse ser, associado à passagem de um modo de ser (ser em potência) a outro modo do mesmo ser (ser em ato). Descartes rejeitou essa definição aristotélica de movimento – “a passagem do ser em potência ao ser em ato, enquanto em potência” – como incompreensível. Para ele, a ideia de movimento se restringe apenas à modalidade aristotélica de “movimento local”, intuitivamente entendida como mudança de lugar; as demais modalidades, Descartes abandonou-as como desprovidas de sentido. Em um primeiro momento, Descartes parece ter adotado o entendimento de que o movimento era um conceito primitivo, claro à intuição e irredutível a termos mais simples, ou seja, indefinível. Mas, pelo contrário, a natureza do movimento de que pretendo aqui falar é tão fácil de compreender que os geômetras mesmos, que, entre todos os homens são os mais aptos a conceber bem distintamente as coisas que consideram, julgaram o movimento mais simples e mais inteligível do que suas superfícies e linhas; assim parece, uma vez que eles explicaram a linha a partir do movimento de um ponto, e a superfície a partir do movimento de uma linha (T.A.) [15], p. 39. No entanto, nos Princípios de Filosofia, de 1644, Descartes estabelece, sim, uma definição para movimento; segundo ele, procurava distinguí-la do conceito mais intuitivo – muito próximo do senso comum – de mudança de lugar. Ele substitui essa formulação mais direta pela alternativa de “traslado de uma parte da matéria ou de um corpo da vizinhança de uma certa porção de matéria, admitida como em repouso, a outra porção.” Assim ele escreve nos Princípios, parte II: Ora, o movimento (a saber, aquele que se faz de um lugar a outro, pois só concebo este, e não penso, tampouco, que seja necessário supor que haja outro na natureza), o movimento, pois, na forma como usualmente o tomamos, não é outra coisa além da ação pela qual um corpo passa de um lugar a outro. (…) Mas se, em lugar de nos determos naquilo que não tem outro fundamento que o uso ordinário, desejarmos saber o que é o movimento segundo a verdade, diremos, a fim de lhe atribuir uma natureza que seja determinada, que ele é o transporte de uma parte da matéria, ou de um corpo, da vizinhança dessas partes que são contíguas a ela, e que consideramos em repouso, à vizinhança de outras (T.A.) [9], pp. 75-76. A definição de Descartes procurava dar uma resposta a um relativismo da condição de repouso ou movimento, que, em seu juízo, estava presente no conceito tradicional de mudança de lugar. E da mesma forma, como acabamos de apontar, que uma coisa pode, ao mesmo tempo, mudar e não mudar de lugar, podemos dizer que se move e que não se move. Pois aquele que, por exemplo, está sentado na popa de um barco que o vento empurra crê se movimentar, quando se apercebe apenas da margem da qual se afasta e que considera imóvel, e não crê se movimentar quando se apercebe apenas do qual sobre o qual está, uma vez que não muda de situação em relação às partes daquele. [9], pp. 75-76. (T.A.) Essa definição, porém, exige a capacidade de se distinguir o que seja um corpo, em um cenário em que a matéria é um contínuo, caracterizado em si mesma somente pela extensão. Atento a esse problema, Descartes prossegue na mesma proposição dos Princípios Por um corpo, ou bem, por uma parte de matéria, entendo tudo aquilo que é transportado em conjunto, ainda que, talvez, ele seja composto de diversas partes que empregam, entretanto, sua agitação para fazer outros movimentos (T.A.) [9], p. 76. Resumindo, em um Universo que é, na verdade, um contínuo material caracterizado intrinsecamente apenas pela extensão, a individuação dos corpos se dá somente pelo movimento relativo da matéria. No entanto, essa concepção de movimento de Descartes, bem como sua ideia de individuação dos corpos a partir do movimento – que chamaríamos de relativo – não está livre de dificuldades graves. Em primeiro lugar, as próprias noções envolvem um grau de circularidade do pensamento. De fato, primeiramente temos que o movimento é a transferência das partes de um corpo do contato com certas porções de vizinhança material para o contato com outras. Ora, aqui o requisito é a identificação – individuação – do corpo, para que avaliemos se suas partes transferem-se ou não de porções contíguas a outras. Entretanto, se a identificação do corpo se dá pela solidariedade dos movimentos de suas partes, o conceito de movimento lhe é anteriormente exigido. Ao que parece, a circularidade se estabelece de modo incontestável. Em segundo lugar, temos outra questão: se o movimento é o que permite a separação dos corpos enquanto substâncias individuais, não faz sentido pensarmos em corpos em repouso; pelo contrário, eles formariam um todo com sua vizinhança em relação à qual estão imóveis. No entanto – como não poderia deixar de ser –, Descartes faz todo o tratamento referente a problemas envolvendo corpos em repouso. A mecânica de Descartes encontra aí uma contradição estrutural aparentemente incontornável. De acordo com Leibniz, um dos grandes críticos do sistema cartesiano, a concepção de uma matéria de essência puramente espacial, sem qualquer outro atributo, gera um paradoxo, cuja única saída é o abandono dessa redução geometrizante extrema. , apresentamos a concepção cartesiana de movimento, enquanto na seção 5 5. A Lei da Inércia A visão da matéria como um elemento passivo, puramente geométrico e desprovido de princípios causais internos, levou Descartes à formulação da Lei da Inércia na forma como a conhecemos hoje. Se é verdade que o conceito da perseverança do movimento, na ausência de causas externas a lhe acentuarem ou a lhe atenuarem a intensidade, foi explicitamente formulado por Galileu [16], Descartes deu a esse conceito o aspecto direcional correto: não apenas o movimento persevera em termos de ritmo, mas também sempre na mesma direção. No entanto, precisamos fazer aqui um registro histórico. Descartes encontrou Isaak Beeckman, quase dez anos mais velho do que ele, em 1619, na Holanda, quando estava alistado no exército daquele país. Na época, Beeckman já estava bem mais adiantado do que ele no estudo da filosofia da Natureza e lhe serviu como uma espécie de orientador científico. Beeckman propôs alguns problemas científicos, cuja solução Descartes abraçou, entre eles o problema da descrição cinemática (na linguagem atual) da queda livre dos corpos e questões hidrostáticas. Sua influência sobre Descartes, reconhecida por este último em cartas, é inegável. É muito possível que a concepção de Descartes sobre a inércia tenha sido gestada mais a partir da influência de Isaak Beeckman do que da leitura de Galileu. De fato, já em 1613 Beeckman escrevia que é muito simples “imaginar que o movimento no vácuo nunca atinge o repouso porque não ocorre qualquer causa que pudesse mudar o movimento. Pois nada muda sem alguma causa de mudança” ([17], p. 105). Na mesma época escrevia ele [Beeckman] que “uma coisa, uma vez movida, jamais atinge o repouso sem que seja impedida por uma causa externa ([17], p. 226), e ainda: “Aquilo que é movido, uma vez movido, sempre se move, enquanto não for impedido de fazê-lo”. Note-se que a apresentação do conceito de inércia por Galileu se deu em sua obra Diálogos sobre os dois máximos sistemas do Mundo, de 1632. Em 1618 Beeckman parece ser ainda mais explícito: “uma pedra lançada por uma mão não permanece em movimento devido a alguma força que lhe foi adicionada ou devido ao ‘temor do vácuo’, mas porque não é capaz de não continuar o movimento que possuía quando ainda estava sendo movida pela mão” ([17], p. 106). No entanto, Beeckman era um neoatomista, ou, como prefere Stephen Gaukroger [7], um corpuscularista, para enfatizar as diferenças de sua concepção em relação ao atomismo tradicional grego. Já Descartes rejeitava dois fundamentos básicos do paradigma atomista: a existência do vácuo, conforme vimos, e a indivisibilidade última dos elementos básicos da matéria. Para ele, a matéria, enquanto pura extensão espacial, era continuamente divisível ao infinito. Apesar dessas divergências, cartesianismo e neoatomismo – ou corpuscularismo – compartilhavam uma visão absolutamente mecanicista dos fenômenos materiais. Mais ainda, a despeito de sua formulação da continuidade e da divisibilidade essencial da matéria, a concepção de Descartes parece em muitos pontos conter dissonâncias, pois, como veremos adiante, no tratamento das colisões, mas também no tratamento de temas que fogem ao horizonte deste texto, como a óptica, mais precisamente, as leis de refração e reflexão da luz, sua abordagem é quase francamente corpuscularista. Descartes elaborou sua formulação da lei da Inércia primeiramente na obra inacabada e não publicada O Mundo, em que trabalhou até 1633, e depois, em sua forma final, nos Princípios de Filosofia. Essa formulação se reparte nas duas primeiras das quatro leis que apresenta como fundamentais do movimento: A primeira lei da natureza: cada coisa em particular permanece em seu estado tanto quanto possa e que jamais o alterará sem que seja pelo encontro com outras. (…) Mas uma vez que tenha começado a se movimentar, não temos qualquer razão para pensar que ela deixaria de se mover com a mesma força, enquanto não encontrar qualquer coisa que retarde ou faça cessar seu movimento. De forma que, se um corpo começar a se mover, devemos concluir que continuará sempre a mover-se, sem parar por si mesmo (T.A.) [9], p. 84. e A segunda lei da natureza: que todo corpo que se move tende a continuar seu movimento em linha reta (T.A.) [9], p. 85. Nessa divisão se observa um aspecto de sua concepção a respeito do movimento que iria gerar equívocos em suas análises posteriores, notadamente do problema das colisões. Descartes decompõe o conceito de movimento em dois elementos distintos: uma “força de movimento”, que associaríamos a uma grandeza eminentemente positiva – em nossa linguagem atual, ao módulo da velocidade –, e uma determinação, que correspoderia às características de direção e sentido. As duas leis se referem à conservação isolada de cada um desses dois aspectos. De qualquer modo, se a primeira Lei define o caráter uniforme do movimento inercial, fica nítido, no entanto, a partir da segunda Lei, seu caráter retilíneo. Essa formulação direcional da inércia é certamente uma das mais importantes contribuições de Descartes à ciência moderna, se não a mais importante. Como Koyré bem observa, a continuidade inercial de um movimento inercial é logicamente incompatível com um Universo finito, desprovido de fronteiras materiais [1]. Com efeito, o que aconteceria a um objeto que, mantendo seu movimento, atingisse os limites desse Universo? O que o deteria? Sairia do Universo? A própria pergunta já envolve um paradoxo: se por Universo entendemos tudo que existe, se torna uma contradição lógica pensar que algo possa dele sair. É verdade que o século XX reconduziu a ideia de um Universo finito à consideração física. No entanto, isso se dá em um paradigma físico-matemático completamente diferente, que pressupõe a curvatura do espaço-tempo, e no qual esse paradoxo é afastado por outros motivos. abordamos o Princípio da Inércia. Enfatizamos a importância do caráter direcional introduzido por Descartes, cuja consequência natural é a problematização dos movimentos curvilíneos. Este é o tema da seção 6 6. A Dinâmica dos Movimentos Curvilíneos e dos Vórtices Uma vez que estabelecia o caráter retilíneo do movimento inercial, Descartes retirava a naturalidade dos movimentos curvilíneos e, quase automaticamente, problematizava sua explicação. Os corpos só realizariam movimentos curvos se fossem submetidos a ações que os forçassem a tanto. Essa dinâmica precisava, pois, ser esclarecida. No artigo XXIX da Parte II do livro “Princípios de Filosofia”, Descartes trata do problema, a partir do exemplo de uma funda, isto é, uma lançadeira manual de pedras, cuja análise pode ser reduzida à situação de um homem que com a mão faz girar um corpo através de um fio, ao qual esse corpo está preso (Ver Figura (1)). Figura 1 Figura extraída do livro “Princípios de Filosofia”, de René Descartes, [9], p. 118. A dinâmica do movimento circular realizado pelo corpo (pedra) é explicada por Descartes em termos de um equilíbrio entre duas ações. Primeiramente, há que se observar que a tendência natural – inercial – do corpo seria prosseguir em linha reta, na direção da tangente em cada ponto à circunferência que descreve; jamais descrever essa circunferência. Se assim o faz, é porque há uma ação forçando-o nesse sentido. Essa ação provém, evidentemente, do fio seguro pelo homem. Entretanto, Descartes identifica na tendência à perseverança do movimento retilíneo uma ação que faz com que o corpo tenda a se afastar do centro da circunferência. Descartes deu a essa ação o nome de “esforço centrífugo” e equiparou-a, em natureza, à ação do fio. Assim, a dinâmica do corpo resultava de um balanço entre as duas ações: aquela que puxa para o centro e a que o afasta dele. No caso, tratava-se de um equilíbrio entre as duas. Sabemos hoje que essa concepção está errada. Contudo, ela influnciou imensamente o desenvolvimento subsequente da mecânica. Huygens, ao retomar o problema, adotou a concepção, tornando-a ainda mais explícita ao rebatizar o “esforço centrífugo” cartesiano de “força centrífuga”, nome que é origem de obstáculos de aprendizagem até hoje. Na verdade, o próprio Newton, em seus trabalhos iniciais, tratou o problema nos termos essencialmente cartesianos de um equiíbrio entre forças centrífugas e centrípetas (na nossa linguagem moderna) opostas. Somente a partir dos anos de 1680, ao que tudo indica por uma influência de Robert Hooke, Newton mudou sua concepção do problema, abandonando a ideia de força centrífuga e de equilíbrio dinâmico, passando a tratar a questão da forma como a entendemos hoje, ou seja, em termos de uma resultante de forças voltada para o centro da trajetória. Vê-se, por conseguinte, que foram necessários cerca de quarenta anos para que esse erro fosse abandonado. Esse problema tinha implicações de suma importância, por exemplo, na questão dos movimentos celestes. Ora, sabemos que na Antiguidade adotou-se o ideal supremo de que os movimentos dos corpos celestes eram, ou movimentos estritamente circulares, ou combinações dessa classe de movimentos, tendo em vista que as formas circulares expressavam, em sua perfeição, a própria perfeição dos corpos celestes e do Cosmos como um todo. Essa ideia se converteu quase em um dogma astronômico e foi chamada na História da Ciência de “paradigma da circularidade”. Aristóteles incorporou esse princípio a seu sistema cosmológico e o combinou à ideia de movimentos naturais: dada a matéria incorruptível (perfeita) de que eram feitos os corpos celestes, os movimentos que lhes convinham naturalmente, ou seja, ao qual tendiam naturalmente por sua essência, eram as formas perfeitas circulares. Entretanto, Aristóteles não deixou de dar a esses movimentos causas eficientes – isto é, agentes que os produziam –; no caso, postulou a existência de esferas materiais, às quais estavam presos os corpos celestes. Na medida em que essas esferas giravam – a rotação era o movimento “natural” de esferas perfeitas –, arrastavam os corpos a elas solidários, fazendo com que descrevessem movimentos circulares. Como, na prática, os movimentos dos planetas não tinham essa regularidade circular perfeita, sua realização era explicada em termos de uma combinação de rotações de esferas articuladas, tal qual um sistema de engrenagens, produzindo uma combinação de movimentos circulares. Todo esse esquema ruiu quando a existência material das esferas aristotélicas foi desafiada pelas observações astronômicas de Tycho Brahe, em fins do século XVI. Ao observar um cometa, Tycho verificou que sua trajetória se afastava muito da Terra, atingindo regiões muito mais distantes de nosso planeta do que a Lua. Para que isso fosse possível, o cometa precisaria atravessar a esfera material à qual estava ligada a Lua! Parecia um indicador claro de que essas esferas não existiam. No entanto, se as esferas não existiam, quem movia os planetas? Galileu aparentemente não se ocupou do problema, talvez porque estivesse ainda apegado à naturalidade dos movimentos circulares celestes [18]. Foi Kepler quem primeiro o tratou, em termos verdadeiramente revolucionários, mas que não cabe abordar aqui, pelo desvio que essa análise introduziria em nossa apresentação. O fato é que o problema estava colocado: como explicar os movimentos curvilíneos dos corpos celestes abandonados no espaço cósmico? Vimos que o Universo para Descartes era totalmente preenchido por matéria; para que fosse possível o movimento dos corpos sólidos, essa seria uma matéria fluida. Já que não existe espaço vazio, o espaço ocupado por um corpo que se desloca, segundo ele, é imediatamente preenchido por uma porção de fluido, que também se desloca a partir de outro lugar, e assim sucessivamente. Um cenário como esse só pode se realizar através de duas configurações: ou envolve uma quantidade infinita de matéria, tal que uma porção sempre repõe outra, em um processo sem fim, que implica uma extensão material infinita, ou então envolve uma quantidade finita de matéria, desde que com deslocamentos ao longo de linhas que se fecham sobre si mesmas. Descartes jamais fez a opção por um Universo infinito. Diante dessa questão, empregou o termo “indefinido”, referindo-se a algo tão grande que o fim, existente ou não, seria inalcançável. Portanto, a alternativa coerente com sua posição prudente é a dos deslocamentos fechados: o Universo seria preenchido por uma matéria em constante deslocamento por trajetórias fechadas, denominadas vórtices. Façamos aqui um parêntese. Nesse ponto há que se destacar um importante princípio físico- cosmológico, porém de raíz metafísica, invocado por Descartes: O Universo é uma criação Divina. Se a matéria se movimenta – e é um fato que isso acontece – ocorre porque Deus lhe comunicou no início dos tempos certa “quantidade de movimento”. Como todo ato Divino é perfeito em si, a dita quantidade de movimento atribuída ao Universo seria a ideal, e não seria possível alterá-la sem degradá-lo. Estabelece-se, pois, ainda que de forma embrionária, o princípio da Conservação da Quantidade de Movimento, que cumprirá um papel importantíssimo no desenvolvimento da Física. Com base no modelo de vórtices anteriormente mencionado, o movimento dos planetas seria explicado pelo arraste dos corpos celestes pela matéria fluida em movimento. Descartes apresenta sua concepção em O Mundo, mas o faz de maneira ainda mais detalhada na terceira parte dos Princípios de Filosofia: Após ter removido, em virtude desses raciocínios, todos os escrúpulos que se pode ter em relação ao movimento da Terra, pensemos que a matéria do Céu, na qual estão localizados os planetas, gira incessantemente em círculo, tal como o faria um turbilhão que tivesse o Sol como centro, e que partículas que estão mais próximas do Sol se movem com maior rapidez que aquelas que estão afastadas até certa distância; e pensemos que todos os planetas (entre os quais daqui por diante incluiremos a Terra) permaneçam sempre suspensos entre as mesmas partes do Céu. Somente em razão disso, e sem empregar outros mecanismos, podemos entender todos os fenômenos que observamos neles[os planetas]. Da mesma forma que, como nos meandros dos rios, onde a água se volta sobre si mesma, e, assim girando, descreve círculos, se alguma palha ou qualquer outro corpo muito leve flutua nessa água, podemos ver que ela os arrasta e os faz mover com ela em círculos; e, mesmo entre essas palhas, podemos ver que haverá alguns que girarão em torno de seu próprio centro; que aquelas que estão mais próximos do centro do turbilhão que as contém completam sua volta antes daqueles que estão mais afastados; enfim que, ainda que esses turbilhões girem em círculo, não descrevem, quase nunca, círculos inteiramente perfeitos, e se estendem, às vezes, mais segundo o comprimento, às vezes mais, segundo a largura; de modo que nem todas as partes da circunferência que descrevem estão igualmente distantes do centro. Pode-se facilmente imaginar que o mesmo ocorre com os planetas e que não é necessário mais do que isso para explicar todos os seus fenômenos. [9], p. 115-116 [T.A.] No turbilhão centrado no Sol, Descartes inclui outros, menores, que acompanham o principal, mas realizam, eles próprios, círculos, cada qual em torno de seu centro. Assim ele explica os movimentos dos satélites dos planetas, em particular a Lua. Pensemos, além disso, que nesse grande turbilhão que compõe o Céu e do qual o Sol é o centro há outros menores, que podemos comparar àqueles que às vezes se veem nos meandros dos rios, todos eles seguindo o curso do maior que os contém e movendo-se para o mesmo lado em que ele se move; e que um desses turbilhões tenha Júpiter por centro e faça mover-se com ele os quatro outros planetas que orbitam em torno desse astro, com uma velocidade de tal forma proporcionada que o mais afastado deles complete sua órbita em aproximadamente dezesseis dias, aquele que o segue em sete dias, o terceiro em oitenta e cinco horas e o mais próximo do centro em quarenta e duas; e que eles girem assim em torno de Jupiter, enquanto ele próprio descreve um grande círculo em torno do Sol; da mesma forma que um desses turbilhões, cujo centro é a Terra, faz mover a Lua em torno da Terra no espaço de um mês; e que, durante o tempo em que a Terra e a Lua percorrem esse grande círculo que lhes é comum e que produz o ano, a Terra gira sobre seu eixo aproximadamente 365 vezes, ao passo que a Lua o faz aproximadamente doze vezes em torno da Terra [9], p. 116-117. [T.A.] Na sequência dos Princípios, Descartes formula um modelo a respeito do processo de diferenciação da matéria original que compõe o Universo em três elementos. Esse processo seria totalmente mecânico, produzido por aglutinações e desagregações dos elementos materiais, a partir de suas movimentações. É um exemplo máximo da concepção mecanicista, aplicada à explicação última da formação do Universo. Mas, na medida em que não seria possível haver vazio em lugar algum do Universo e uma vez que as partes da matéria, sendo redondas, não poderiam se juntar tão estreitamente de forma tal que não deixassem pequenos intervalos ou recantos entre elas, é preciso que esses espaços sejam preenchidos por outras partículas dessa matéria; partículas que devem ser extremamente pequenas, a fim de mudar de figura a todo momento, para se acomodarem a esses lugares onde elas entram. É por isso que devemos pensar que o que sai dos ângulos das partes da matéria, à medida que elas se arredondam atritando-se, umas com as outras, é tão pequeno e adquire uma velocidade tão grande que a impetuosidade de seu movimento pode dividí-lo em incontáveis partes que, não tendo volume ou figura definida, preenchem facilmente todos os ângulos ou recantos por onde as demais partículas não podem passar. (…) Assim podemos considerar que tenhamos encontrado duas formas distintas na matéria, que podem ser consideradas como as formas dos dois primeiros elementos do mundo visível. A primeira é a dessas raspas que foram separadas das demais partes da matéria à medida que se arredondavam, e que se move com tanta velocidade que apenas a força de sua agitação é suficiente para fazer com que, chocando-se com outros corpos, ela seja …. e dividida por eles em uma infinidade de pequenas partes, cujas formas preenchem completamente todos os recantos que essas partículas se encontram em volta dos corpos. A outra é a forma de todo o resto da matéria, cujas partes são redondas e extremamente pequenas, em comparação com os corpos que vemos sobre a Terra. (…) E descobriremos logo em seguida uma terceira forma em algumas partes da matéria, a saber, aqueles que, devido a seus volumes e suas figuras, não podem ser movidas tão facilmente quanto as precedentes [9], p. 128–129. [T.A.]. Com base nessa concepção, Descartes elabora um modelo para os processos de formação dos corpos celestes: estrelas, planetas e cometas surgiriam desses mecanismos envolvendo os movimentos da matéria cósmica. Nessa dinâmica intervêm fatores como o tamanho, a densidade e o grau de fluidez dos elementos materiais, determinando como se comportam diante dessa movimentação incessante correspondente aos vórtices cósmicos. Na verdade, diante das óbvias e enormes dificuldades de formular uma abordagem matemática do problema, Descartes tenta desenvolver qualitativamente uma dinâmica dos fluidos celestes. O resultado é consideravelmente precário. Este é um dos pontos mais frágeis de sua construção científica. Esse problema da dinâmica dos corpos celestes só seria resolvido satisfatoriamente por Isaac Newton, quase quarenta anos depois, com base em outro paradigma, muito distinto. É muito importante assinalar que a dinâmica dos movimentos curvilíneos elaborada por Descartes a partir dos fenômenos tal como observados no mundo terrestre – como mostra o exemplo da funda – foi integralmente aplicada aos fenômenos celestes. Na nova ciência cartesiana, os corpos celestes não realizavam movimentos “naturais”, afeitos à sua essência – como dissemos, o mecanicismo aboliu a ideia aristotélica de causas formais –; eles realizavam movimentos curvilíneos, acompanhando os vórtices cósmicos, submetidos aos mesmos efeitos centrífugos verificados na física terrestre. É fácil aplicar às partes do segundo elemento o que acabei de dizer a respeito dessa pedra que gira em uma funda, em torno de seu centro E, (…): que cada uma de suas partes realiza uma força muito considerável para se afastar do centro do Céu em torno do qual ela gira, mas que ela é retida pelas demais que estão acima dela, do mesmo modo que a pedra é retida pela funda [9], p. 133 [T.A.]. Não se deve perder de vista a importância dessa concepção. Aqui há a consolidação da ruptura, já produzida por Kepler, da separação aristotélica entre os mundos terrestres e celestes, radicalmente distintos em sua natureza e, consequentemente, cada qual submetido a suas próprias leis. Como notavelmente destacou Alexandre Koyré, quando se unificaram as explicações dos fenômenos terrestres e celestes a partir de uma mesma base teórica, a saber, a Física, estava inaugurada a ciência moderna. Descartes também explicava a gravidade terrestre em termos do modelo de vórtices. O planeta seria circundado por vórtices da matéria etérea, de tal modo que os objetos seriam projetados em direção a ele pela própria dinâmica do movimento do fluido. Novamente, era uma explicação genuinamente mecanicista, que se contrapunha à concepção então nascente de uma atração da Terra sobre os corpos, semelhante à ação magnética. , na qual discutimos a concepção de Descartes para a dinâmica desses movimentos. Veremos aí o equívoco da equiparação da tendência inercial à ideia de força, gerando o conceito de esforço centrífugo, algo que só foi abandonado na fase madura do pensamento newtoniano.

Ainda na seção 6 6. A Dinâmica dos Movimentos Curvilíneos e dos Vórtices Uma vez que estabelecia o caráter retilíneo do movimento inercial, Descartes retirava a naturalidade dos movimentos curvilíneos e, quase automaticamente, problematizava sua explicação. Os corpos só realizariam movimentos curvos se fossem submetidos a ações que os forçassem a tanto. Essa dinâmica precisava, pois, ser esclarecida. No artigo XXIX da Parte II do livro “Princípios de Filosofia”, Descartes trata do problema, a partir do exemplo de uma funda, isto é, uma lançadeira manual de pedras, cuja análise pode ser reduzida à situação de um homem que com a mão faz girar um corpo através de um fio, ao qual esse corpo está preso (Ver Figura (1)). Figura 1 Figura extraída do livro “Princípios de Filosofia”, de René Descartes, [9], p. 118. A dinâmica do movimento circular realizado pelo corpo (pedra) é explicada por Descartes em termos de um equilíbrio entre duas ações. Primeiramente, há que se observar que a tendência natural – inercial – do corpo seria prosseguir em linha reta, na direção da tangente em cada ponto à circunferência que descreve; jamais descrever essa circunferência. Se assim o faz, é porque há uma ação forçando-o nesse sentido. Essa ação provém, evidentemente, do fio seguro pelo homem. Entretanto, Descartes identifica na tendência à perseverança do movimento retilíneo uma ação que faz com que o corpo tenda a se afastar do centro da circunferência. Descartes deu a essa ação o nome de “esforço centrífugo” e equiparou-a, em natureza, à ação do fio. Assim, a dinâmica do corpo resultava de um balanço entre as duas ações: aquela que puxa para o centro e a que o afasta dele. No caso, tratava-se de um equilíbrio entre as duas. Sabemos hoje que essa concepção está errada. Contudo, ela influnciou imensamente o desenvolvimento subsequente da mecânica. Huygens, ao retomar o problema, adotou a concepção, tornando-a ainda mais explícita ao rebatizar o “esforço centrífugo” cartesiano de “força centrífuga”, nome que é origem de obstáculos de aprendizagem até hoje. Na verdade, o próprio Newton, em seus trabalhos iniciais, tratou o problema nos termos essencialmente cartesianos de um equiíbrio entre forças centrífugas e centrípetas (na nossa linguagem moderna) opostas. Somente a partir dos anos de 1680, ao que tudo indica por uma influência de Robert Hooke, Newton mudou sua concepção do problema, abandonando a ideia de força centrífuga e de equilíbrio dinâmico, passando a tratar a questão da forma como a entendemos hoje, ou seja, em termos de uma resultante de forças voltada para o centro da trajetória. Vê-se, por conseguinte, que foram necessários cerca de quarenta anos para que esse erro fosse abandonado. Esse problema tinha implicações de suma importância, por exemplo, na questão dos movimentos celestes. Ora, sabemos que na Antiguidade adotou-se o ideal supremo de que os movimentos dos corpos celestes eram, ou movimentos estritamente circulares, ou combinações dessa classe de movimentos, tendo em vista que as formas circulares expressavam, em sua perfeição, a própria perfeição dos corpos celestes e do Cosmos como um todo. Essa ideia se converteu quase em um dogma astronômico e foi chamada na História da Ciência de “paradigma da circularidade”. Aristóteles incorporou esse princípio a seu sistema cosmológico e o combinou à ideia de movimentos naturais: dada a matéria incorruptível (perfeita) de que eram feitos os corpos celestes, os movimentos que lhes convinham naturalmente, ou seja, ao qual tendiam naturalmente por sua essência, eram as formas perfeitas circulares. Entretanto, Aristóteles não deixou de dar a esses movimentos causas eficientes – isto é, agentes que os produziam –; no caso, postulou a existência de esferas materiais, às quais estavam presos os corpos celestes. Na medida em que essas esferas giravam – a rotação era o movimento “natural” de esferas perfeitas –, arrastavam os corpos a elas solidários, fazendo com que descrevessem movimentos circulares. Como, na prática, os movimentos dos planetas não tinham essa regularidade circular perfeita, sua realização era explicada em termos de uma combinação de rotações de esferas articuladas, tal qual um sistema de engrenagens, produzindo uma combinação de movimentos circulares. Todo esse esquema ruiu quando a existência material das esferas aristotélicas foi desafiada pelas observações astronômicas de Tycho Brahe, em fins do século XVI. Ao observar um cometa, Tycho verificou que sua trajetória se afastava muito da Terra, atingindo regiões muito mais distantes de nosso planeta do que a Lua. Para que isso fosse possível, o cometa precisaria atravessar a esfera material à qual estava ligada a Lua! Parecia um indicador claro de que essas esferas não existiam. No entanto, se as esferas não existiam, quem movia os planetas? Galileu aparentemente não se ocupou do problema, talvez porque estivesse ainda apegado à naturalidade dos movimentos circulares celestes [18]. Foi Kepler quem primeiro o tratou, em termos verdadeiramente revolucionários, mas que não cabe abordar aqui, pelo desvio que essa análise introduziria em nossa apresentação. O fato é que o problema estava colocado: como explicar os movimentos curvilíneos dos corpos celestes abandonados no espaço cósmico? Vimos que o Universo para Descartes era totalmente preenchido por matéria; para que fosse possível o movimento dos corpos sólidos, essa seria uma matéria fluida. Já que não existe espaço vazio, o espaço ocupado por um corpo que se desloca, segundo ele, é imediatamente preenchido por uma porção de fluido, que também se desloca a partir de outro lugar, e assim sucessivamente. Um cenário como esse só pode se realizar através de duas configurações: ou envolve uma quantidade infinita de matéria, tal que uma porção sempre repõe outra, em um processo sem fim, que implica uma extensão material infinita, ou então envolve uma quantidade finita de matéria, desde que com deslocamentos ao longo de linhas que se fecham sobre si mesmas. Descartes jamais fez a opção por um Universo infinito. Diante dessa questão, empregou o termo “indefinido”, referindo-se a algo tão grande que o fim, existente ou não, seria inalcançável. Portanto, a alternativa coerente com sua posição prudente é a dos deslocamentos fechados: o Universo seria preenchido por uma matéria em constante deslocamento por trajetórias fechadas, denominadas vórtices. Façamos aqui um parêntese. Nesse ponto há que se destacar um importante princípio físico- cosmológico, porém de raíz metafísica, invocado por Descartes: O Universo é uma criação Divina. Se a matéria se movimenta – e é um fato que isso acontece – ocorre porque Deus lhe comunicou no início dos tempos certa “quantidade de movimento”. Como todo ato Divino é perfeito em si, a dita quantidade de movimento atribuída ao Universo seria a ideal, e não seria possível alterá-la sem degradá-lo. Estabelece-se, pois, ainda que de forma embrionária, o princípio da Conservação da Quantidade de Movimento, que cumprirá um papel importantíssimo no desenvolvimento da Física. Com base no modelo de vórtices anteriormente mencionado, o movimento dos planetas seria explicado pelo arraste dos corpos celestes pela matéria fluida em movimento. Descartes apresenta sua concepção em O Mundo, mas o faz de maneira ainda mais detalhada na terceira parte dos Princípios de Filosofia: Após ter removido, em virtude desses raciocínios, todos os escrúpulos que se pode ter em relação ao movimento da Terra, pensemos que a matéria do Céu, na qual estão localizados os planetas, gira incessantemente em círculo, tal como o faria um turbilhão que tivesse o Sol como centro, e que partículas que estão mais próximas do Sol se movem com maior rapidez que aquelas que estão afastadas até certa distância; e pensemos que todos os planetas (entre os quais daqui por diante incluiremos a Terra) permaneçam sempre suspensos entre as mesmas partes do Céu. Somente em razão disso, e sem empregar outros mecanismos, podemos entender todos os fenômenos que observamos neles[os planetas]. Da mesma forma que, como nos meandros dos rios, onde a água se volta sobre si mesma, e, assim girando, descreve círculos, se alguma palha ou qualquer outro corpo muito leve flutua nessa água, podemos ver que ela os arrasta e os faz mover com ela em círculos; e, mesmo entre essas palhas, podemos ver que haverá alguns que girarão em torno de seu próprio centro; que aquelas que estão mais próximos do centro do turbilhão que as contém completam sua volta antes daqueles que estão mais afastados; enfim que, ainda que esses turbilhões girem em círculo, não descrevem, quase nunca, círculos inteiramente perfeitos, e se estendem, às vezes, mais segundo o comprimento, às vezes mais, segundo a largura; de modo que nem todas as partes da circunferência que descrevem estão igualmente distantes do centro. Pode-se facilmente imaginar que o mesmo ocorre com os planetas e que não é necessário mais do que isso para explicar todos os seus fenômenos. [9], p. 115-116 [T.A.] No turbilhão centrado no Sol, Descartes inclui outros, menores, que acompanham o principal, mas realizam, eles próprios, círculos, cada qual em torno de seu centro. Assim ele explica os movimentos dos satélites dos planetas, em particular a Lua. Pensemos, além disso, que nesse grande turbilhão que compõe o Céu e do qual o Sol é o centro há outros menores, que podemos comparar àqueles que às vezes se veem nos meandros dos rios, todos eles seguindo o curso do maior que os contém e movendo-se para o mesmo lado em que ele se move; e que um desses turbilhões tenha Júpiter por centro e faça mover-se com ele os quatro outros planetas que orbitam em torno desse astro, com uma velocidade de tal forma proporcionada que o mais afastado deles complete sua órbita em aproximadamente dezesseis dias, aquele que o segue em sete dias, o terceiro em oitenta e cinco horas e o mais próximo do centro em quarenta e duas; e que eles girem assim em torno de Jupiter, enquanto ele próprio descreve um grande círculo em torno do Sol; da mesma forma que um desses turbilhões, cujo centro é a Terra, faz mover a Lua em torno da Terra no espaço de um mês; e que, durante o tempo em que a Terra e a Lua percorrem esse grande círculo que lhes é comum e que produz o ano, a Terra gira sobre seu eixo aproximadamente 365 vezes, ao passo que a Lua o faz aproximadamente doze vezes em torno da Terra [9], p. 116-117. [T.A.] Na sequência dos Princípios, Descartes formula um modelo a respeito do processo de diferenciação da matéria original que compõe o Universo em três elementos. Esse processo seria totalmente mecânico, produzido por aglutinações e desagregações dos elementos materiais, a partir de suas movimentações. É um exemplo máximo da concepção mecanicista, aplicada à explicação última da formação do Universo. Mas, na medida em que não seria possível haver vazio em lugar algum do Universo e uma vez que as partes da matéria, sendo redondas, não poderiam se juntar tão estreitamente de forma tal que não deixassem pequenos intervalos ou recantos entre elas, é preciso que esses espaços sejam preenchidos por outras partículas dessa matéria; partículas que devem ser extremamente pequenas, a fim de mudar de figura a todo momento, para se acomodarem a esses lugares onde elas entram. É por isso que devemos pensar que o que sai dos ângulos das partes da matéria, à medida que elas se arredondam atritando-se, umas com as outras, é tão pequeno e adquire uma velocidade tão grande que a impetuosidade de seu movimento pode dividí-lo em incontáveis partes que, não tendo volume ou figura definida, preenchem facilmente todos os ângulos ou recantos por onde as demais partículas não podem passar. (…) Assim podemos considerar que tenhamos encontrado duas formas distintas na matéria, que podem ser consideradas como as formas dos dois primeiros elementos do mundo visível. A primeira é a dessas raspas que foram separadas das demais partes da matéria à medida que se arredondavam, e que se move com tanta velocidade que apenas a força de sua agitação é suficiente para fazer com que, chocando-se com outros corpos, ela seja …. e dividida por eles em uma infinidade de pequenas partes, cujas formas preenchem completamente todos os recantos que essas partículas se encontram em volta dos corpos. A outra é a forma de todo o resto da matéria, cujas partes são redondas e extremamente pequenas, em comparação com os corpos que vemos sobre a Terra. (…) E descobriremos logo em seguida uma terceira forma em algumas partes da matéria, a saber, aqueles que, devido a seus volumes e suas figuras, não podem ser movidas tão facilmente quanto as precedentes [9], p. 128–129. [T.A.]. Com base nessa concepção, Descartes elabora um modelo para os processos de formação dos corpos celestes: estrelas, planetas e cometas surgiriam desses mecanismos envolvendo os movimentos da matéria cósmica. Nessa dinâmica intervêm fatores como o tamanho, a densidade e o grau de fluidez dos elementos materiais, determinando como se comportam diante dessa movimentação incessante correspondente aos vórtices cósmicos. Na verdade, diante das óbvias e enormes dificuldades de formular uma abordagem matemática do problema, Descartes tenta desenvolver qualitativamente uma dinâmica dos fluidos celestes. O resultado é consideravelmente precário. Este é um dos pontos mais frágeis de sua construção científica. Esse problema da dinâmica dos corpos celestes só seria resolvido satisfatoriamente por Isaac Newton, quase quarenta anos depois, com base em outro paradigma, muito distinto. É muito importante assinalar que a dinâmica dos movimentos curvilíneos elaborada por Descartes a partir dos fenômenos tal como observados no mundo terrestre – como mostra o exemplo da funda – foi integralmente aplicada aos fenômenos celestes. Na nova ciência cartesiana, os corpos celestes não realizavam movimentos “naturais”, afeitos à sua essência – como dissemos, o mecanicismo aboliu a ideia aristotélica de causas formais –; eles realizavam movimentos curvilíneos, acompanhando os vórtices cósmicos, submetidos aos mesmos efeitos centrífugos verificados na física terrestre. É fácil aplicar às partes do segundo elemento o que acabei de dizer a respeito dessa pedra que gira em uma funda, em torno de seu centro E, (…): que cada uma de suas partes realiza uma força muito considerável para se afastar do centro do Céu em torno do qual ela gira, mas que ela é retida pelas demais que estão acima dela, do mesmo modo que a pedra é retida pela funda [9], p. 133 [T.A.]. Não se deve perder de vista a importância dessa concepção. Aqui há a consolidação da ruptura, já produzida por Kepler, da separação aristotélica entre os mundos terrestres e celestes, radicalmente distintos em sua natureza e, consequentemente, cada qual submetido a suas próprias leis. Como notavelmente destacou Alexandre Koyré, quando se unificaram as explicações dos fenômenos terrestres e celestes a partir de uma mesma base teórica, a saber, a Física, estava inaugurada a ciência moderna. Descartes também explicava a gravidade terrestre em termos do modelo de vórtices. O planeta seria circundado por vórtices da matéria etérea, de tal modo que os objetos seriam projetados em direção a ele pela própria dinâmica do movimento do fluido. Novamente, era uma explicação genuinamente mecanicista, que se contrapunha à concepção então nascente de uma atração da Terra sobre os corpos, semelhante à ação magnética. discutimos o paradigma cosmológico cartesiano, fundado na dinâmica dos vórtices etéreos. Vemos como Descartes empregava esse modelo para explicar não só os movimentos planetários mas também o fenômeno da gravidade terrestre e do magnetismo.

Na seção 7 7. O Problema das Colisões Descartes se dedicou com profundidade a outro importante problema mecânico, o das colisões. Sua concepção vinculada à exclusividade das ações por contato direto o conduziu diretamente a esse problema. Na verdade, o problema das colisões absorveu grande parte da atividade científica de Descartes. Ele deu ao longo da vida diferentes tratamentos a essa questão. O elemento comum a todos eles era o princípio da conservação da quantidade de movimento. É importante, pois, analisarmos algumas etapas dessa evolução cronológica. A primeira abordagem do problema está presente na obra O Mundo, de 1632-33. Esse livro descrevia a organização física e cosmológica de um mundo hipotético1. No capítulo sobre as leis da Natureza, Descartes apresenta três regras fundamentais. A primeira e a terceira regras estão relacionadas ao conceito de inércia. A primeira enuncia que o estado dos objetos tende a permanecer imutável: A primeira é que cada parte da matéria, tomada individualmente, continua sempre no mesmo estado enquanto não encontrar outra parte que lhe force a mudar; (T.A.) [15], p. 38. A terceira regra contém explicitamente o princípio que ficou consagrado como Lei da Inércia, como já vimos na seção (6): A minha terceira regra consiste no seguinte: que quando um corpo se move, ainda que seu movimento, na grande maioria das vezes, se faça em linha curva, e que esse corpo não possa jamais fazer qualquer movimento que não seja de algum modo circular, como já dissemos acima, cada uma das suas partes em particular tende sempre a continuar o seu movimento em linha reta (T.A.) [15], p. 43–44. A regra que mais diretamente trata do problema das colisões é a segunda. Ela é, na verdade, uma lei de conservação de uma grandeza denominada quantidade de movimento, em direção a cuja definição Descartes dá os primeiros passos: Como segunda regra, suponho que, quando um corpo empurra outro, ele não pode lhe transmitir movimento algum sem que perca, simultaneamente, um tanto do seu próprio movimento, nem tampouco lhe retirar movimento sem que o seu próprio aumente na mesma quantidade. Essa regra, junto com a precedente, se refere a todas as experiências em que um corpo começa ou cessa seu movimento, na medida em que é empurrado ou parado por outro (T.A.) [15], p. 41. Descartes aplica essa segunda regra à solução do problema de se explicar por que um objeto, como, por exemplo, uma pedra, quando lançada ao ar, não se movimenta indefinidamente: Não devemos nos perguntar primeiro por que ela não continua a se mover para sempre? Mas a razão disso é simples, pois, quem pode negar que o ar no qual ela se move lhe ofereça certa resistência? (…) Mas se deixarmos de explicar o efeito da resistência segundo nossa segunda regra e pensarmos que, quanto mais um corpo possa resistir, mais ele será capaz de deter o movimento dos outros, como poderíamos nos persuadir, em princípio, teremos novamente muita dificuldade em explicar por que o movimento dessa pedra se amortece mais ao encontrar um corpo mole, cuja resistência é medíocre, do que ao encontrar outro mais duro e que lhe resiste mais; e por que, tão logo ela faça um pouco de esforço contra esse último, ela retorne imediatamente, como sobre seus próprios passos, em lugar de se deter ou interromper seu movimento por causa daquele. Ao passo que, supondo a segunda Regra, não há nisso dificuldade alguma, pois ela nos ensina que o movimento de um corpo não é retardado pela colisão com outro na proporção em que esse último lhe resiste, mas sim na proporção em que essa resistência é superada; e que, na medida em que esse último se submete, ele recebe a mesma força de se movimentar que o outro perde (T.A) [15], p. 42. Descartes apresenta aqui uma concepção que será devidamente explicitada nos Princípios de Filosofia, a saber, quando um corpo colidir com outro, haverá um embate entre a capacidade de o primeiro mover o segundo e a capacidade de o segundo resistir ao primeiro. Desse embate podem resultar dois cenários excludentemente alternativos: se a capacidade de resistência do corpo atingido for superior à capacidade do corpo incidente de movê-lo, este último não terá êxito nessa ação e não transmitirá qualquer movimento ao outro. Logo, ele conservará todo seu “ movimento”, retornando com a mesma velocidade com que incidiu. Já se a capacidade de o objeto incidente movimentar o alvo for maior do que a de esse lhe oferecer resistência, então ele comunicará ao segundo parte do seu movimento. Essa parte será tão maior quanto menor for a resistência daquele, fazendo com o corpo incidente perca maior quantidade de seu movimento original. Voltando ao problema mencionado do lançamento da pedra, o ar, opondo-lhe baixa resistência, recebe dela uma grande quantidade de movimento e, portanto, se move, ao passo que a pedra, ao comunicar o seu movimento, termina por parar. Já quando a pedra se choca com alguma superfície dura, que lhe oferece grande resistência, não consegue superá-la e, então, retorna em sentido oposto ao incidente, com a mesma velocidade – diríamos hoje “em módulo” – com que incidiu. Fica visível aqui uma deficiência no conceito de quantidade de movimento tal como viria a ser formulado por Descartes. Essa grandeza seria associada ao produto de uma medida do “tamanho” do corpo pela sua velocidade. No entanto, independentemente do sentido dessa velocidade – para um lado ou para o outro, segundo a mesma direção – a quantidade de movimento atribuída ao corpo por Descartes seria a mesma, sempre positiva. Em outras palavras, não existiria distinção de sinais no modo pelo qual a velocidade entra na composição dessa grandeza. Descartes não contemplou na descrição do problema a possibilidade de utilização de números negativos – é preciso que se diga, no entanto, que o conceito de números negativos e sua interpretação associada a problemas reais estavam sendo formulados à mesma época em que Descartes fazia sua incursão à análise física das colisões. Em O Mundo Descartes apenas esboçou um tratamento do problema. Ele não apresentou ali uma maneira de se quantificar a dita capacidade de um corpo resistir a outro, determinando com isso o desfecho do embate entre a, por assim dizer, “força de movimento” do corpo incidente e a capacidade de resistência do corpo atingido. Em resumo, não há uma verdadeira solução quantitativa do problema, algo que seria adiado até a obra Princípios de Filosofia, de 1644. Já nos Princípios de Filosofia, Descartes apresenta, como já salientamos, um tratamento quantitativo do sistema. Esse tratamento se baseia em um conjunto de três leis fundamentais, que, por sua vez, se desdobram em regras a serem obedecidas nos processos de colisão. Dessas três leis, as duas primeiras essencialmente reafirmam a primeira e a terceira regras formuladas em O Mundo. Textualmente, temos: A primeira lei da natureza: cada coisa em particular permanece em seu estado tanto quanto possa e que jamais o alterará sem que seja pelo encontro com outras. (…) Mas uma vez que tenha começado a se movimentar, não temos qualquer razão para pensar que ela deixaria de se mover com a mesma força, enquanto não encontrar qualquer coisa que retarde ou faça cessar seu movimento. De forma que, se um corpo começar a se mover, devemos concluir que continuará sempre a mover-se, sem parar por si mesmo (T.A.) [9], p. 84. A segunda lei da natureza: que todo corpo que se move tende a continuar seu movimento em linha reta (T.A.) [9], p. 85. A terceira lei enunciada nos Princípios é a que trata diretamente das colisões, estabelecendo regras para o resultado desses fenômenos, conforme o corpo atingido seja mais ou menos “forte” do que aquele que o atingiu. Mais precisamente, segundo Descartes há uma disputa entre a “força” que o corpo incidente possui de prosseguir em seu movimento e a “força” que o alvo possui de lhe resistir. A questão do embate, apenas esboçada em O Mundo, agora é explicitada. A terceira lei: se um corpo que se move encontrar outro mais forte, o seu movimento não diminui em nada; se encontrar um corpo mais fraco, que consiga mover, só perderá o movimento que lhe transmitir. A terceira lei que observo na natureza é que, se um corpo que está em movimento e encontra outro tiver menos força para continuar a mover-se em linha reta do que esse para lhe resistir, ele perderá sua determinação, sem nada perder de seu movimento; e que se tiver mais força, ele moverá consigo o outro corpo e perderá tanto movimento quanto lhe der (T.A.) [9], p. 87. Nesta lei, Descartes estabelece as condições em que o corpo incidente é refletido pelo corpo atingido, ou então em que transfere a esse último parte de sua quantidade de movimento. Quando B incide sobre C, se a “força” de B em prosseguir for inferior à “força” de C em resistir a ele, B preservará completamente a quantidade de seu movimento, sem nada transmitir a C, apenas invertendo o seu sentido; se, ao contrário, a “força” de B supera a de C, então B vence o “combate”, mantendo o sentido de seu movimento e transmitindo parte dele a C. Façamos aqui um pequeno parêntese, destacando o emprego do termo “força”2, não como uma ação externa, exercida a partir de fora por outro corpo, mas algo que é como uma potencialidade do próprio corpo. De certo modo, parece haver aqui um deslize em direção ao sentido do termo tal como adotado pelo senso comum. O fato chama a atenção uma vez que a experiência didática aponta que essa formulação muitas vezes coincide com as concepções espontâneas dos estudantes. Feita essa observação, voltemos à elaboração do problema por Descartes. Com base nas leis gerais, ele estabelece sete regras aplicáveis às colisões. Essas regras são exemplos de aplicação de sua terceira lei geral, submetidos às seguintes restrições: i) as colisões se dão entre dois corpos apenas; ii) os corpos que colidem são duros; iii) os movimentos não são perturbados por qualquer outro corpo que não aqueles envolvidos na colisão; iv) trata-se daquilo que hoje chamaríamos de colisões frontais. Com efeito, acontece frequentemente que a experiência pode parecer de início repugnar às regras que eu acabei de estabelecer, porém a razão é evidente, pois elas pressupõem que os dois corpos, B e C, são perfeitamente duros e estão afastados de todos os demais; que não há qualquer corpo em torno deles que possa ajudar ou impedir seus movimentos; e nós não vemos nada de semelhante no mundo (T.A.) [9], p. 93. Descartes introduz as ressalvas necessárias a essa abordagem: É por isso que, antes que sejamos capazes de julgar se eles se obstruem ou não, não basta saber como dois corpos, tais quais B e C, podem agir um contra o outro quando se encontrarem, mas é necessário, além disso, considerar de que forma os corpos que os rodeiam podem aumentar ou diminuir sua ação Estabelecidas essas bases, Descartes passa à formulação das regras. As três primeiras se referem à situação de dois corpos, B e C, movendo-se em sentido contrário. A primeira delas consiste em que, se esses dois corpos [que colidem], por exemplo B e C, forem exatamente iguais e se movam com velocidades iguais em linha reta, um em direção ao outro, quando se encontrarem, ambos se empurrarão igualmente e retornarão para o lado de onde vieram, sem perder nada de suas velocidades. Pois não há causa alguma que possa retirá-las deles, porém há uma, muito evidente, que deve forçá-los a retornar, refletidos; e, uma vez que essa causa será igual, para um e para outro, os dois serão refletidos da mesma maneira. (…) A segunda consiste em que, se B é, por pouco que seja, maior do que C, caso eles se encontrem com a mesma velocidade, somente C retornará em direção ao lado de onde tiver vindo, e eles continuarão seu movimento juntos em direção a esse mesmo lado. Pois B, tendo mais força do que C, não poderia ser forçado por ele a retroceder. (…) A terceira: se esses dois corpos são de mesmo tamanho, mas se B é, por pouco que seja, mais veloz do que C, após terem-se encontrado, não somente C retrocederá, mas eles se movimentarão juntos, como anteriormente, em direção ao lado de onde veio C; mas também seria necessário que B transferisse a C metade da velocidade que tivesse a mais, já que, lhe tendo diante de si, não poderia ir mais rápido do que ele, de modo que se B tivesse, por exemplo, seis graus de velocidade antes do encontro e C somente quatro, B lhe transferiria um dos dois graus que tivesse a mais e, assim, eles iriam, após, cada qual com cinco graus de velocidade: pois a B é muito mais fácil comunicar um de seus graus de velocidade a C do que é para C mudar o curso de todo o movimento que está em B (T.A.) [9], p. 90. Descartes não utilizou explicitamente o conceito de massa3 – que, aliás, só seria explicitado em Newton; muito menos utilizou o termo módulo, inexistente então. Isso posto, podemos traduzir essas regras em termos de linguagem física mais moderna, ainda que anacrônica: sejam MB e MC as massas de B e de C, respectivamente, vB e vC os módulos de suas respectivas velocidades antes do choque, e vB′ e vC′ os módulos de suas respectivas velocidades após o choque. I – A primeira regra trata do caso em que tanto as massas como os módulos das velocidades iniciais são iguais. Se MB = MC e vB = vC, então vB′=vC′=vC=vB. Tanto B como C movem-se em sentidos opostos aos seus respectivos sentidos originais (Ver Figura (2)). Figura 2 Esquema de uma colisão entre dois corpos iguais e de velocidades iguais, porém de sentidos opostos, segundo Descartes. II – A segunda regra trata do caso em que a massa de B é pelo menos um pouco maior do que a de C, porém os módulos de suas velocidades são iguais. Se MB > MC e vB = vC, então vB′=vC′. B continua a se mover no mesmo sentido, mas inverte o sentido do movimento de C (Ver Figura (3)). Figura 3 Esquema de uma colisão entre um corpo maior e outro, menor, de velocidades iguais, porém de sentidos opostos, segundo Descartes. III – A terceira regra trata do caso em que B e C têm a mesma massa, porém B está mais rápido do que C. Se MB = MC e vB > vC, então vB′=vC′=vC+(vB−vC)2. B continua a se mover no mesmo sentido, mas novamente inverte-se o sentido do movimento de C (Ver Figura (4)). Figura 4 Esquema de uma colisão entre dois corpos iguais, porém B com velocidade maior do que C (sentidos opostos), segundo Descartes. As regras de quatro a seis tratam do caso em que o corpo C está em repouso. A quarta consiste em que, se o corpo C for, por pouco que seja, maior que B e estiver inteiramente em repouso - quer dizer, que ele não somente não tenha movimento aparente, mas que tampouco fosse circundado por ar ou quaisquer outros corpos líquidos, os quais, como direi a seguir, dispõem os corpos duros que circundam a serem movidos muito facilmente - qualquer que seja a velocidade com que B possa vir em direção a ele jamais terá a força de movê-lo, porém será obrigado a retroceder em direção ao mesmo lado de onde veio. A quinta regra consiste em que, se, pelo contrário, o corpo C, por pouco que seja, é menor do que B, este não poderia ir tão lentamente em direção ao primeiro - novamente suposto perfeitamente em repouso - que não tivesse força de empurrá-lo e transferir-lhe a parte do seu movimento necessária para que, após, se movessem juntos com a mesma velocidade. Assim, se B é o dobro de C, ele lhe transferiria um terço de seu movimento, devido ao fato de que o terço de seu movimento faria C mover-se tão rapidamente quanto os dois terços restantes fariam com B, já que o supusemos duas vezes maior do que C. Logo, depois que B tiver encontrado com C, ele irá um terço mais lentamente do que antes, de tal modo que, no mesmo tempo em que antes ele teria percorrido três espaços, agora ele percorrerá apenas dois. (…) A sexta regra consiste em que o Corpo C, estando em repouso e sendo perfeitamente igual em grandeza ao corpo B, que se move em direção a ele, seria necessário que, em parte, fosse empurrado por B e, em parte, o fizesse retornar, de tal modo que, se B viesse em direção a C com quatro graus de velocidade, seria preciso que lhe transferisse um e que retornasse com os outros três em direção ao lado de onde tivesse vindo. Com efeito, sendo necessário que ou B empurre C sem retroceder e, deste modo, lhe transfira dois graus de seu movimento, ou então que ele retroceda sem empurrar C e, consequentemente, ele retenha seus dois graus de velocidade juntamente com os dois outros que não lhe podem ser retirados; ou ainda que ele retrocedesse com uma parte desses dois graus e que empurrasse C, transferindo-lhe a outra parte. É evidente que, sendo ambos iguais e, portanto, não havendo mais razão para que ele deva retroceder do que para empurrar C, esses dois efeitos devem ser igualmente repartidos, isto é, B deve transferir a C um de seus graus de velocidade e retroceder com o outro (T.A.) [9], pp. 90-92. Da mesma forma que as primeiras, essas regras quatro, cinco e seis podem ser traduzidas em linguagem atual da seguinte maneira: IV – Se MB < MC e vC = 0, então vB′=vB e vC′=0. Independentemente do valor de sua velocidade, B inverte o sentido do seu movimento e C continua parado (Ver Figura (5)). Figura 5 Esquema de uma colisão entre B (menor) e C(maior), parado, segundo Descartes. V – Se MB > MC e vC = 0, então vB′=vC′=V′ e, aparentemente, V′=MBvBMB+MC. Independentemente do valor de sua velocidade, B mantém o sentido do seu movimento e leva C consigo, com uma velocidade estabelecida em função de sua velocidade inicial e das massas de ambos (Ver Figura (6)). Figura 6 Esquema de uma colisão entre B (menor) e C(maior), parado, segundo Descartes. Tudo leva a crer que Descartes emprega aqui uma lei de conservação de quantidade de movimento, grandeza essa dada pelo produto do “tamanho” do corpo por sua velocidade. Em linguagem moderna, Descartes parece raciocinar do seguinte modo:(1)MBvB +MCvC = (MB+MC)V′. VI – Se MB = MC e vC = 0, então v′B=3vB4 e v′C=vB4. B inverte o sentido do seu movimento e transfere movimento para C, fazendo com que esse último movimente-se no sentido incidente de B. (Ver Figura (7)). Figura 7 Esquema de uma colisão entre B (menor) e C(maior), parado, segundo Descartes. Entretanto, essas regras que dizem respeito ao repouso de um dos corpos, além de sabermos que são erradas, apresentam claras dificuldades lógicas. De fato, se a massa de B é ligeiramente menor do que a de C, B retornará, ao passo que se for ligeiramente maior, B continuará. Existe, pois, uma evidente descontinuidade no processo, que se verifica para a massa de B igual à de C. Salientemos, por fim, que o tratamento expresso por essas regras, apresentado nos “Princípios”, aparentemente representa uma modificação das concepções alimentadas por Descartes em algum momento desde O Mundo. Assim, em uma carta a Marin Mersenne, de dezembro de 1639, ele escreveu: Se um corpo de certo tamanho, que se move com certa velocidade, encontra outro, igual em tamanho e que não possui movimento, comunicará a ele metade de seu movimento, de forma que ambos irão juntos, com metade da velocidade com que vinha inicialmente o primeiro. Contudo, se ele encontra outro com o dobro de seu tamanho, comunicará a ele dois terços de seu movimento, de modo que, juntos, não percorrerão mais espaços em três medidas de tempo do que o primeiro em uma. (T.A.) [19], p. 627. Em resumo, Descartes realizou um esforço de construção de um pensamento sistemático sobre o problema das colisões que se apoiasse em princípios fundamentais, como o esboço da conservação da quantidade de movimento. Todavia, seu tratamento apresentava diversas inconsistências. A solução correta ainda aguardava a intervenção de outros estudiosos, notadamente os trabalhos de Christiaan Huygens, John Wallis e Christopher Wren. passamos à discussão de um tema a que o pensamento de Descartes mais se dedicou: o problema das colisões. Encontraremos aí o embrião de um importantíssimo princípio da mecânica, o da conservação da quantidade de movimento, gerado sobre uma base metafísica. Veremos que o princípio ainda sofre de carências agudas, notadamente a falta de atribuição à quantidade de movimento de um caráter vetorial – mesmo que implícito – tal como ficou consolidado posteriormente na mecânica pós-newtoniana, ou, pelo menos, de uma representação algébrica dessa quantidade dotada de sinal, a diferenciar os sentidos possíveis do movimento.

Por fim, na seção 8 8. A Crítica à Solução de Descartes Para o Problema das Colisões e as Repercussões Gerais de Sua Concepção Mecânica A solução para o problema das colisões formulada por Descartes era empiricamente errada em diversos casos. A quarta regra, a de que um corpo menor jamais consegue mover um maior, é especialmente conflitante com a Natureza. Descartes tinha consciência de que havia contradições com o que ocorre na realidade. Atribuía isso ao fato de que abordavam situações idealizadas, como se lê nos Princípios: De fato, frequentemente ocorre que a experiência conflite com as regras que acabei de explicar, porém a razão é evidente. Pois elas pressupõem que os dois corpos, B e C, sejam perfeitamente duros e totalmente separados de todos os outros, que não haja corpo algum em torno deles que possa ajudar ou impedir o movimento; e não encontramos corpo algum nessa situação em nosso mundo [9], p. 93. Na verdade, encontramos aqui uma dissonância do pensamento de Descartes, embora sutil, qual seja, entre as hipóteses adotadas para seu tratamento de colisões está a restrição de que elas envolvam apenas dois corpos, sem a interferência de outros. Ora, na concepção plenista de universo adotada por Descartes, em que todo o espaço é ocupado por matéria, ao ponto em que matéria e extensão se identificam, é difícil imaginar a possibilidade da ausência de influência do meio intermediário e, assim, de esta hipótese se realizar, sobretudo se pensarmos que essa influência é efetiva o bastante para provocar, entre outras coisas, fenômenos cruciais como a gravidade terrestre. A abordagem cartesiana parece, na verdade, muito mais harmoniosa com uma concepção atomista da realidade, com corpos materiais separados pelo vazio. Ocorre que, como já salientamos, Descartes era um anti-atomista, entendendo que fosse um absurdo imaginar que a matéria, reduzida a uma extensão espacial – não pudesse ser continuamente dividida à exaustão, encontrando, pelo contrário, a irredutibilidade de unidades básicas indestrutíveis. Além disso, a própria definição de movimento formulada por Descartes se baseia na contiguidade com outros corpos. Fica muito difícil nesse contexto, imaginar a validade das hipóteses assumidas nas regras propostas. Outro dos grandes problemas da abordagem cartesiana reside na falibilidade do princípio de conservação de quantidade de movimento tal como formulado por ele, isso é, sem levar em consideração o sentido da velocidade – e, consequentemente, da quantidade de movimento. Christiaan Huygens reconheceu esse problema e buscou uma abordagem alternativa, associando a conservação do produto de uma medida de grandeza do corpo pela velocidade, agora considerada como um número algébrico, podendo assumir valores negativos, e uma conservação de outra quantidade, definida pelo produto da “grandeza” pelo quadrado da velocidade. Essa quantidade viria a se chamar “força viva” e, posteriormente, energia cinética (quando dividida por dois). A partir dessa formulação, Huygens foi capaz de encontrar a solução para problemas de certas colisões – hoje chamadas de elásticas –, obtendo respostas distintas das de Descartes. De fato, a grandeza quantidade de movimento concebida por Descartes não era ainda aquela que se consagraria na história da mecânica, devido exatamente às inconsistências geradas pela sua independência do sentido da velocidade. Somente quando esse elemento foi devidamente incorporado à definição da grandeza foi possível formular corretamente um princípio de conservação associado a ela. Por fim, cumpre ressaltar aqui um ponto já mencionado: a concepção da colisão como uma disputa entre as “forças” dos corpos em movimento, entendidas como “potencialidades” nele contidas. Parece-nos que essa interpretação se torna em alguma medida um obstáculo cognitivo à formulação do problema em termos de quantidades de movimento de valor algébrico positivo ou negativo; afinal, não faria muito sentido associarmos a corpos que se movimentassem em sentidos contrários “forças” negativas… Em outras palavras, a ideia de “força” como capacidade é muito mais harmonizável com a adoção de quantidades estritamente positivas (em módulo). Em que pesem as lacunas, contradições e erros na doutrina do movimento de Descartes, ela foi extremamente influente ao longo da segunda metade do século XVII, sobretudo na Europa continental. Citemos, novamente, o nome de outro grande cientista do século XVII: Huygens. Em 1673, Huygens publicou o resultado, por ele obtido, da expressão quantitativa daquilo que ele chamou, conforme vimos, de “força centrífuga”, qual seja, de que a intensidade dessa força dependeria do quadrado da velocidade e do inverso da distância ao centro da circunferência descrita. Huygens aplicou esse conhecimento à teoria cartesiana dos vórtices. Em particular, Huygens concebeu um experimento que exibisse como se dá o efeito da gravidade, ou seja, do movimento dos corpos em direção à Terra sob a ação dos vórtices etéreos. O experimento consistia de um vaso cilíndrico, cheio de água, na qual estava imersa uma pequena bola. A bola L tinha seus movimentos limitados por três fios horizontais paralelos, AA’, BB’ e KK’, todos eles tangentes a ela, porém KK’ passando por cima, na forma mostrada na figura abaixo (Figura 8). Figura 8 O experimento de Huygens: vista de cima do vaso e da bola. O vaso é girado em torno de um eixo vertical, fazendo com que o líquido gire. Em certo instante, detém-se repentinamente o movimento do vaso. O líquido continua girando, entretanto a bola é impedida pelos fios de acompanhar seu movimento. Ela é, então, impulsionada pela ação do fluido girante em direção ao centro do vaso. O fenômeno ilustraria a ação dos vórtices que circundam a Terra, impulsionando os objetos em direção a ela. Outro grande expoente do pensamento ocidental, Gottfried Leibniz, construiu um modelo planetário baseado na doutrina dos vórtices etéreos de Descartes. Em um trabalho publicado em 16894 chamado Tentamen de motuum coelestium causis, Leibniz procurou promover a conciliação das Leis de Kepler com a dinâmica cartesiana. Segundo o já anunciado por Kepler, o movimento dos planetas era elíptico. Por outro lado, os vórtices cartesianos fariam-nos moverem-se circularmente. Portanto, seria necessário adicionar ao arraste do fluido etéreo um movimento radial. Esse último movimento, Leibniz descreveu como uma disputa entre uma força solar e uma força centrífuga, do tipo concebido por Huygens, oriunda exatamente da curvilinearidade do movimento. Aplicando as ferramentas nascentes do cálculo infinitesimal, Leibniz foi capaz de promover a conciliação desejada, extraindo de suas hipóteses de matiz cartesiano as leis de Kepler. No entanto, apesar dos trabalhos e das elaborações de Huygens e Leibniz, a explicação adequada da gravidade terrestre continuou a desafiar a dinâmica de vórtices. Mesmo após o advento da teoria da gravitação de Newton, os estudos ancorados no paradigma cartesiano prosseguiram [6]. Os trabalhos de Philippe Villemot (1707), Nicolas Malebranche (1712), M.Saulmon (1715), Georg Bullfinger (1728) e Jacques de Mairan (1729) são exemplos disso e mostram a força dessa concepção mecanicista. fazemos uma análise crítica da mecânica cartesiana, trazendo não apenas as objeções apresentadas pelos seus sucessores, mas também procurando mostrar como, em que pesem as incoerências ou inconsistências da formulação física de Descartes, sua concepção foi muito influente ao longo de quase um século após sua morte, oferecendo, inclusive, certa resistência à difusão do paradigma newtoniano.

A essa seção seguem-se as conclusões.

2. As Bases Filosóficas da Ciência Cartesiana

2.1. A questão do método

René Descartes nasceu na cidade francesa de La Haye, em 1596. Após a formação escolar em uma instituição de ensino jesuíta, entrou para a Universidade de Poitiers, onde obteve o grau de bacharel em direito em 1616. No entanto, Descartes não seguiu uma carreira que chamaríamos hoje de acadêmica, nem tampouco uma profissional ligada a seus estudos universitários; decidiu, em lugar disso, segundo seu próprio depoimento, buscar novas vivências em jornadas de aprendizagem mundo afora. Ingressou no exército dos Países Baixos como voluntário e foi em um acampamento militar que, conforme o relato oferecido no Discurso do Método [12[12] R. Descartes, Discurso do Método (Martins Fontes, São Paulo, 2007).], em uma noite de novembro de 1619, teve três sonhos que lhe forneceram a intuição de um novo projeto: a refundação, mediante rigoroso escrutínio, de todo o conhecimento ocidental, em sua avaliação, contaminado por conclusões de caráter duvidoso, do qual eram provas as opiniões opostas e, consequentemente, excludentes, sustentadas por filósofos e pensadores ao longo da história.

Essa intuição inicial foi de natureza essencialmente metodológica: a construção do conhecimento deveria obedecer a regras formais bem precisas, de sorte a garantir a validade das conclusões atingidas. Essas regras foram apresentadas pela primeira vez na obra Regras para orientação do espírito [11[11] R. Descartes, Regras para Orientação do Espírito (Martins Fontes, São Paulo, 2007).] e, mais tarde, no Discurso do Método.

Descartes propôs como regra metodológica fundamental do pensamento submeter à crítica qualquer afirmativa, decompondo seu conteúdo complexo em conteúdos cada vez mais simples. Só aceitaríamos como verdadeiras aquelas afirmativas cuja análise finalizar em afirmativas evidentes por si mesmas, ou seja, aquelas cuja negação implicaria uma contradição lógica. O conhecimento, assim, estaria ancorado em verdades inquestionáveis e nos seus desdobramentos lógicos.

Assim, porque os nossos sentidos às vezes nos enganam, quis supor que não havia coisa alguma que fosse tal como eles nos levam a imaginar. E, porque há homens que se enganam ao raciocinar, mesmo sobre os temas mais simples de geometria, e neles cometem paralogismos, julgando que era tão sujeito ao erro como qualquer outro, rejeitei como falsas todas as razões que antes tomara por demonstrações. E, finalmente, considerando que todos os pensamentos que nós temos quando acordados também nos podem ocorrer quando dormimos, sem que nenhum seja verdadeiro, resolvi fingir que todas as coisas que haviam entrado em meu espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus sonhos [12[12] R. Descartes, Discurso do Método (Martins Fontes, São Paulo, 2007).], p. 58.

No que se refere à origem dessas verdades simples e evidentes, e, consequentemente, de todo o conhecimento, Descartes faz uma clara adesão à corrente racionalista, para a qual esses fundamentos do conhecimento não provêm de nossa experiência, mas estão presentes em nós como ideias inatas. Para Descartes, a experiência, enquanto mediada por nossos sentidos, é um elemento duvidoso. Os sentidos são instrumentos enganosos de conhecimento.

Esse programa metodológico seria aplicável a todo o conhecimento. De resto, Descartes, na primeira de suas “Regras para orientação do espírito”, nos adverte para a interconexão das diversas ciências:

Eles o vêem: não são todas as artes que o homem deve aprender ao mesmo tempo, mas se torna mais facilmente o melhor mestre em sua arte aquele que se dedica a uma só. (…) Acreditaram eles que também se dava o mesmo com as ciências e pensaram que as distinguindo umas das outras, conforme a diferença de seus objetos, cumpria procurar adquirir separadamente cada uma delas em especial e deixar de lado todas as outras. Nisso sem dúvida alguma, enganaram-se. Pois, como todas as ciências nada mais são senão a sabedoria humana, que sempre permanece una e a mesma, seja qual for a diferença dos assuntos aos quais é aplicada (…) não é necessário impor aos espíritos nenhum limite [11[11] R. Descartes, Regras para Orientação do Espírito (Martins Fontes, São Paulo, 2007).], p. 2.

Consagrava-se o ideal de um conhecimento que integrasse todos os saberes com base no rigor metodológico.

2.2. Os fundamentos metafísicos

Segundo Descartes, o processo de dúvida metódica só se interrompe na única certeza inquestionável do nosso pensamento: se há um pensamento, há um sujeito pensante; tudo mais pode ser contestado, porém, se penso, mesmo em termos de dúvida, há um eu que duvida, ou seja, um eu cognoscente. Este é, como sabemos, o princípio fundamental da filosofia cartesiana, o chamado Cogito.

Como rejeitamos assim tudo aquilo em que podemos cogitar a menor dúvida ou mesmo imaginamos ser falso, supomos facilmente, com efeito, que não há Deus, nem céu, nem corpos, e que nós mesmos não temos nem mãos nem pés, tampouco, finalmente, um corpo; mas não podemos da mesma maneira supor que não existimos quando duvidamos da verdade de todas essas coisas, pois é repugnante conceber que aquilo que pensa não existe no momento em que pensa. Por conseguinte, o conhecimento PENSO, LOGO EXISTO, é o primeiro e o mais certo que se apresenta àquele que filosofa ordenadamente [9[9] R. Descartes, em: Œuvres de Descartes, editado por Adam C. e P. Tannery (Leopold Cerf, Paris,1904).], p. 27.

No entanto, a constatação dessa evidência da existência do eu pensante não garante a certeza do conteúdo do pensamento. Mais precisamente, o fato de pensarmos sobre algo não garante que haja por trás desse pensamento algo real que lhe dê origem e lhe corresponda objetivamente. Em outras palavras, devemos, em princípio, desconfiar de que o mundo de nosso pensamento possa ser uma construção de nosso próprio eu e que não haja uma realidade subjacente que lhe sirva de base.

O mundo poderia ser, então, uma ilusão do eu?

Para responder a essa questão, Descartes se debruça primeiramente sobre outra: temos presente em nós a ideia de perfeição. Segundo ele, somos capazes de conceber a ideia de um ser sumamente perfeito. Ora, um ser dotado de todas as perfeições, porém que não existisse, seria menos perfeito do que outro que, além das perfeições concebidas, existisse. Dessa forma, imaginar um ser sumamente perfeito que não exista é uma contradição; faz parte de sua essência existir. Em outras palavras, sua possibilidade lógica implica sua existência. Este ser sumamente perfeito corresponde a nossa ideia de Deus.

Descartes chega à conclusão da existência de Deus também por uma variante dessa via metafísica. De fato, vimos que temos em nós a ideia de perfeição e toda ideia provém de algo. Entretanto, não somos perfeitos, de modo que essa ideia não pode provir de nosso próprio ser. Pelo contrário, tal ideia deve provir de algum ser verdadeiramente perfeito, verdadeiramente existente. Por conseguinte, a existência desse ser se impõe como uma necessidade lógica.

Portanto, resta apenas a ideia de Deus, na qual é preciso considerar se há algo que não possa ter vindo de mim mesmo. Pelo nome Deus entendo uma substância infinita, eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente, e, pela qual eu mesmo, e todas as outras coisas que existem (se é verdade que há coisas que existem) foram criadas e produzidas. Ora, essas vantagens são tão grandes e tão eminentes que, quanto mais atentamente as considero, menos me persuado de que a ideia que tenho dele possa tirar sua origem só de mim. E, por conseguinte, é preciso necessariamente concluir de tudo o que disse anteriormente que Deus existe; pois, ainda que a ideia da substância esteja em mim, pelo próprio fato de eu ser uma substância, eu não teria, contudo, a ideia de uma substância infinita, eu que sou um ser finito, se ela não tivesse sido posta em mim por alguma substância que fosse verdadeiramente infinita [13[13] R. Descartes, Meditações Metafísicas (Levoir, São Paulo, 2015).], p. 72.

A partir da constatação da necessidade lógica da existência de um ser sumamente perfeito, Descartes analisa a existência do mundo material exterior.

Segundo ele, temos a certeza de nossa alma pensante e de Deus. Por outro lado, existe em nós a ideia do mundo material. Essa ideia certamente não é inerente à alma pensante, já que esta não é material. Portanto, só pode ser implantada na alma, seja por algo realmente existente ou por Deus, a título de logro. Ora, não é compatível com a perfeição de um ente divino a perfídia de nos enganar, implantando em nós a ilusão de algo inexistente. Por conseguinte, a ideia da matéria que surge em nós só pode ter origem em uma realidade material verdadeiramente existente.

Ora, não sendo Deus enganador, é muito manifesto que ele não me envia por si mesmo essas ideias [das coisas sensíveis], tampouco por intermédio de alguma criatura (…) não vejo como se poderia desculpá-lo pelo engano, se de fato tais ideias partissem ou fossem produzidas por outras causas que não as corporais. E, portanto, é preciso confessar que há coisas corporais que existem [13[13] R. Descartes, Meditações Metafísicas (Levoir, São Paulo, 2015).], p. 104.

Assim Descartes conduz sua dúvida metódica para longe do ceticismo dito solipsista e afirma a realidade do mundo material exterior ao eu, que constitui então o objeto possível da ciência.

E assim reconheço muito claramente que a certeza e a verdade de toda a ciência depende só do conhecimento do verdadeiro Deus; de sorte que, antes de o conhecer, eu não podia saber perfeitamente nenhuma outra coisa. E agora que o conheço, tenho o meio de adquirir uma ciência perfeita no tocante a uma infinidade de coisas, não só daquelas que estão nele, mas daquelas que pertencem à natureza corporal (…) [13[13] R. Descartes, Meditações Metafísicas (Levoir, São Paulo, 2015).], p. 95.

Finalizemos essa seção chamando a atenção para um ponto importante: como dissemos, a filosofia de Descartes era essencialmente racionalista. O conhecimento certo só pode se ancorar sobre as verdades claras e evidentes, presentes de modo inato em nossa mente, jamais nos dados inconfiáveis obtidos dos sentidos. A partir dessas verdades inquestionáveis e seus desdobramentos lógicos chegaríamos às proposições complexas que comporiam a descrição científica da realidade.

No entanto, esse projeto racionalista da ciência cartesiana esbarrou em seus limites. Os modos possíveis da realidade, todos eles compatíveis com os princípios evidentes do pensamento, são, frequentemente, múltiplos. A pura dedução lógica a partir das verdades inatas não é capaz de eliminar todas as hipóteses, igualmente sustentáveis pela razão, concorrentes da verdadeira. Diante desse impasse, Descartes conclui que, ainda que com algumas ressalvas, somos obrigados a adotar a experiência como critério de escolha entre as alternativas concebíveis. Vemos, pois, que sua trajetória científica não desemboca mais em um racionalismo puro, absolutamente cético em relação à validade do conhecimento empírico.

Na parte seis do Discurso do Método, Descartes escreve:

Quanto às experiências, notei que elas são tanto mais necessárias quanto mais avançados estamos no nosso conhecimento. (…) mas a ordem que nisto segui foi esta: primeiramente, procurei encontrar, de modo geral, os princípios ou causas primordiais de tudo o que existe ou pode existir no mundo, limitando-me, para este fim, a considerar apenas Deus que os criou, e a só tirá-los de certas sementes de verdade que existem em nossa alma. (…) Depois, quando quis descer às que eram mais particulares, tantas e tão diversas se me apresentaram que não acreditei ser possível ao espírito humano distinguir as formas e espécies de corpos existentes sobre a Terra de uma infinidade de outros que nela poderiam existir, se nela colocá-las tivesse sido a vontade de Deus, nem, por conseguinte, torná-las por nós utilizáveis, a não ser que se chegue às causas pelos efeitos e que se utilizem muitas experiências específicas. Por isso, repassando meu espírito sobre todos os objetos que jamais se apresentaram a meus sentidos, ouso dizer que neles nada encontrei que não pudesse explicar com bastante facilidade pelos princípios que encontrara. Mas também devo confessar que a potência da natureza é tão ampla e tão vasta, e esses princípios tão simples e tão gerais, que não noto quase nenhum efeito particular que de início eu não sabia que pode ser deduzido desses princípios de muitas maneiras diferentes, e que minha maior dificuldade é, geralmente, achar de qual das maneiras ele depende deles. Pois, para isso, não conheço outro expediente senão procurar novamente algumas experiências que sejam tais que seu desfecho não seja o mesmo conforme seja explicado de uma maneira ou de outra [12[12] R. Descartes, Discurso do Método (Martins Fontes, São Paulo, 2007).], p. 109.

3. Matéria e Mecanicismo

Como vimos, a partir da dúvida metódica Descartes conclui não só a certeza da existência de uma substância, mas também a realidade do mundo exterior formado por substâncias materiais. Essas duas formas de substâncias são essencialmente distintas. Para Descartes, a essência da substância pensante é, evidentemente, o ato de pensar, enquanto, de maneira menos óbvia, o atributo essencial da matéria é unicamente a extensão. Em sua obra Princípios de Filosofia, de 1644, Descartes expôe seu pensamento de maneira clara:

Assim fazendo, saberemos que a natureza da matéria ou do corpo em geral não consiste absolutamente em que ele seja uma coisa dura, ou pesada, ou colorida, ou que toca nossos sentidos de qualquer outra maneira; mas somente em que ele é uma substância extensa em comprimento, largura e profundidade. (…) De onde se segue que a sua natureza não consiste na dureza que sentimos, eventualmente, nem tampouco a gravidade, o calor ou outras qualidades desse gênero: pois, se examinarmos qualquer corpo que seja, podemos pensar que ele não possui em si qualquer dessas qualidades, e entretanto conhecemos claramente e distintamente que ele possui tudo aquilo que faz dele um corpo, desde que tenha extensão em comprimento, largura e profundidade; de onde se segue que para ser ele não tem necessidade delas de forma alguma, e que sua natureza consiste somente em que ele é uma substância que possui extensão [9[9] R. Descartes, em: Œuvres de Descartes, editado por Adam C. e P. Tannery (Leopold Cerf, Paris,1904).], p. 65. (T.A.)

Essa relação essencial entre matéria e espaço está ligada a outra importante questão: a rejeição por Descartes da ideia de vácuo. Nesse quesito Descartes estava de acordo com Aristóteles: para ele, a ideia da existência do vazio é uma contradição lógica em si mesma; afinal, como atribuir ao não ser um predicado afirmativo como o de existir e de possuir uma extensão? Portanto, na medida em que é uma ideia absurda em si mesma, e que a realidade é compreensível pela razão, o vazio não pode existir na Natureza; o modelo de Universo de Descartes só pode ser um Universo pleno, isto é, um contínuo material, sem espaços vazios.

No que se refere ao vazio no sentido em que os Filósofos tomam essa palavra, a saber, por um espaço em que não há substância alguma, é evidente que não há espaço algum como esse no Universo, porquanto a extensão do espaço ou do lugar interior não é em nada diferente da extensão do corpo. E simplesmente do fato de que um corpo se estende em comprimento, largura e profundidade, nós temos razão em concluir que ele é uma substância, já que concebemos que não é possível que aquilo que não é coisa alguma tenha extensão. Devemos concluir o mesmo do espaço que supomos vazio, a saber, uma vez que há nele extensão, há necessariamente também substância [9[9] R. Descartes, em: Œuvres de Descartes, editado por Adam C. e P. Tannery (Leopold Cerf, Paris,1904).], pp. 71–72. (T.A.)

Portanto, para Descartes, a essência da matéria se reduz à extensão. Em O Mundo, obra concluída em 1633 mas não publicada em vida, ele diz: “Mas eles não devem também achar estranho (…) se eu conceber sua extensão, ou a propriedade que ela [matéria] possui de ocupar espaço, não como um acidente, mas como sua verdadeira forma e essência.

Aqui há um ponto muito importante: ao reduzir assim a essência da matéria à espacialidade, Descartes a torna uma matéria “neutra” e inerte, desprovida das tendências e causas formais atribuídas a ela, por exemplo, por Aristóteles. Essas causas formais haviam sido um elemento determinante na construção da descrição da física e da cosmologia aristotélicas. Agora, todas as propriedades de que a matéria cartesiana goza são determinadas por suas características espaciais, como forma, tamanho, incluindo-se aí o movimento. Por conseguinte, toda a realidade material tem de ser explicada em termos de extensão e movimento da matéria.

Essa concepção é a base de uma corrente de pensamento na filosofia natural chamada de “mecanicismo”. Acompanhando Andrew Pyle [14[14] A. Pyle, Atomism and its Critics: from Democritus to Newton (Thoemmes Press, Bristol, 1997).], agreguemos a esse princípio geral três outros traços distintivos, a saber: 1) a ideia de que os processos materiais são causados exclusivamente por agentes materiais externos ao móvel; 2) essa ação causal se dá por contato direto; 3) eliminam-se da descrição dos processos da Natureza as causas formais e finais, preservando-se apenas aquela modalidade de causação denominada por Aristóteles de “eficiente”, isto é, “aquele que produz a coisa”. Teremos então um paradigma filosófico-científico característico do mecanicismo estrito, extremamente influente no século XVII.

A concepção de matéria de Descartes ia completamente ao encontro dessa formulação. De fato, a matéria não trazia em sua essência qualquer princípio causal interno, qualquer elemento formal que determinasse sua evolução futura nesse ou naquele sentido. Pelo contrário, o traço marcante da passividade inercial a predispunha à continuidade indeterminada de sua situação, seja do repouso, seja do movimento para o qual tinha sido encaminhada por uma ação de outro corpo material. No Universo completamente preenchido de Descartes, essa ação de fato pressupunha um contato mecânico exercido sobre o corpo estudado por suas vizinhanças.

Por fim, Descartes também eliminou de seu pensamento científico a ideia – central em Aristóteles – de que todos os processos naturais ocorriam com vistas ao cumprimento de uma finalidade pré-estabelecida. As chamadas causas finais aristotélicas foram abandonadas na física cartesiana.

É bem verdade que Descartes atribuía a Deus o papel de uma causa primeira, metafísica e temporalmente falando. Deus criara o Universo e atribuíra a suas partes um movimento inicial. Nesse sentido, ainda estamos diante de uma causa imaterial para os processos da Natureza. Entretanto, para Descartes, como veremos adiante, uma vez criado e dotado de uma legalidade material absolutamente cega e impessoal, o Universo passa a seguir seu curso autônomo, sem mais intervenções Divinas. A materialidade da causação passa a ser absoluta; sua violação ocorre apenas no estabelecimento das condições iniciais. Portanto, podemos dizer sem temor que o mecanicismo da concepção do mundo natural de Descartes – assim como o de outro grande pensamento científico emergente no início da Era Moderna: o neoatomismo – é firmemente estrito.

4. A Concepção do Movimento

Descartes renegou completamente a tradição da física aristotélica referente ao movimento. Para Aristóteles, o movimento era um processo de mudança que não alterava a essência do ser. Essas mudanças poderiam consistir em crescimento ou diminuição de algum elemento constituinte do móvel, no que eram chamadas por Aristóteles de mudanças quantitativas; na alteração de qualidades que não comprometessem a natureza do ser, chamadas de mudanças qualitativas, como, por exemplo, uma mudança de cor em algo que não tem uma cor determinada como traço característico; e, por fim, uma mudança de lugar, que Aristóteles chamava de movimento local. Como dissemos, em todos esses casos, a mudança não implica a descaracterização do ser, ou seja, é um processo que se dá no interior desse ser, associado à passagem de um modo de ser (ser em potência) a outro modo do mesmo ser (ser em ato).

Descartes rejeitou essa definição aristotélica de movimento – “a passagem do ser em potência ao ser em ato, enquanto em potência” – como incompreensível. Para ele, a ideia de movimento se restringe apenas à modalidade aristotélica de “movimento local”, intuitivamente entendida como mudança de lugar; as demais modalidades, Descartes abandonou-as como desprovidas de sentido.

Em um primeiro momento, Descartes parece ter adotado o entendimento de que o movimento era um conceito primitivo, claro à intuição e irredutível a termos mais simples, ou seja, indefinível.

Mas, pelo contrário, a natureza do movimento de que pretendo aqui falar é tão fácil de compreender que os geômetras mesmos, que, entre todos os homens são os mais aptos a conceber bem distintamente as coisas que consideram, julgaram o movimento mais simples e mais inteligível do que suas superfícies e linhas; assim parece, uma vez que eles explicaram a linha a partir do movimento de um ponto, e a superfície a partir do movimento de uma linha (T.A.) [15[15] R. Descartes, em: Œuvres de Descartes, editado por Adam C. e P. Tannery (Leopold Cerf, Paris, 1909).], p. 39.

No entanto, nos Princípios de Filosofia, de 1644, Descartes estabelece, sim, uma definição para movimento; segundo ele, procurava distinguí-la do conceito mais intuitivo – muito próximo do senso comum – de mudança de lugar. Ele substitui essa formulação mais direta pela alternativa de “traslado de uma parte da matéria ou de um corpo da vizinhança de uma certa porção de matéria, admitida como em repouso, a outra porção.” Assim ele escreve nos Princípios, parte II:

Ora, o movimento (a saber, aquele que se faz de um lugar a outro, pois só concebo este, e não penso, tampouco, que seja necessário supor que haja outro na natureza), o movimento, pois, na forma como usualmente o tomamos, não é outra coisa além da ação pela qual um corpo passa de um lugar a outro.

(…)

Mas se, em lugar de nos determos naquilo que não tem outro fundamento que o uso ordinário, desejarmos saber o que é o movimento segundo a verdade, diremos, a fim de lhe atribuir uma natureza que seja determinada, que ele é o transporte de uma parte da matéria, ou de um corpo, da vizinhança dessas partes que são contíguas a ela, e que consideramos em repouso, à vizinhança de outras (T.A.) [9[9] R. Descartes, em: Œuvres de Descartes, editado por Adam C. e P. Tannery (Leopold Cerf, Paris,1904).], pp. 75-76.

A definição de Descartes procurava dar uma resposta a um relativismo da condição de repouso ou movimento, que, em seu juízo, estava presente no conceito tradicional de mudança de lugar.

E da mesma forma, como acabamos de apontar, que uma coisa pode, ao mesmo tempo, mudar e não mudar de lugar, podemos dizer que se move e que não se move. Pois aquele que, por exemplo, está sentado na popa de um barco que o vento empurra crê se movimentar, quando se apercebe apenas da margem da qual se afasta e que considera imóvel, e não crê se movimentar quando se apercebe apenas do qual sobre o qual está, uma vez que não muda de situação em relação às partes daquele. [9[9] R. Descartes, em: Œuvres de Descartes, editado por Adam C. e P. Tannery (Leopold Cerf, Paris,1904).], pp. 75-76. (T.A.)

Essa definição, porém, exige a capacidade de se distinguir o que seja um corpo, em um cenário em que a matéria é um contínuo, caracterizado em si mesma somente pela extensão. Atento a esse problema, Descartes prossegue na mesma proposição dos Princípios

Por um corpo, ou bem, por uma parte de matéria, entendo tudo aquilo que é transportado em conjunto, ainda que, talvez, ele seja composto de diversas partes que empregam, entretanto, sua agitação para fazer outros movimentos (T.A.) [9[9] R. Descartes, em: Œuvres de Descartes, editado por Adam C. e P. Tannery (Leopold Cerf, Paris,1904).], p. 76.

Resumindo, em um Universo que é, na verdade, um contínuo material caracterizado intrinsecamente apenas pela extensão, a individuação dos corpos se dá somente pelo movimento relativo da matéria.

No entanto, essa concepção de movimento de Descartes, bem como sua ideia de individuação dos corpos a partir do movimento – que chamaríamos de relativo – não está livre de dificuldades graves. Em primeiro lugar, as próprias noções envolvem um grau de circularidade do pensamento. De fato, primeiramente temos que o movimento é a transferência das partes de um corpo do contato com certas porções de vizinhança material para o contato com outras. Ora, aqui o requisito é a identificação – individuação – do corpo, para que avaliemos se suas partes transferem-se ou não de porções contíguas a outras. Entretanto, se a identificação do corpo se dá pela solidariedade dos movimentos de suas partes, o conceito de movimento lhe é anteriormente exigido. Ao que parece, a circularidade se estabelece de modo incontestável. Em segundo lugar, temos outra questão: se o movimento é o que permite a separação dos corpos enquanto substâncias individuais, não faz sentido pensarmos em corpos em repouso; pelo contrário, eles formariam um todo com sua vizinhança em relação à qual estão imóveis. No entanto – como não poderia deixar de ser –, Descartes faz todo o tratamento referente a problemas envolvendo corpos em repouso. A mecânica de Descartes encontra aí uma contradição estrutural aparentemente incontornável. De acordo com Leibniz, um dos grandes críticos do sistema cartesiano, a concepção de uma matéria de essência puramente espacial, sem qualquer outro atributo, gera um paradoxo, cuja única saída é o abandono dessa redução geometrizante extrema.

5. A Lei da Inércia

A visão da matéria como um elemento passivo, puramente geométrico e desprovido de princípios causais internos, levou Descartes à formulação da Lei da Inércia na forma como a conhecemos hoje. Se é verdade que o conceito da perseverança do movimento, na ausência de causas externas a lhe acentuarem ou a lhe atenuarem a intensidade, foi explicitamente formulado por Galileu [16[16] G. Galilei, Dialogue Concerning the Two Chief World Systems (University of California Press, Berkeley, 1967).], Descartes deu a esse conceito o aspecto direcional correto: não apenas o movimento persevera em termos de ritmo, mas também sempre na mesma direção.

No entanto, precisamos fazer aqui um registro histórico. Descartes encontrou Isaak Beeckman, quase dez anos mais velho do que ele, em 1619, na Holanda, quando estava alistado no exército daquele país. Na época, Beeckman já estava bem mais adiantado do que ele no estudo da filosofia da Natureza e lhe serviu como uma espécie de orientador científico. Beeckman propôs alguns problemas científicos, cuja solução Descartes abraçou, entre eles o problema da descrição cinemática (na linguagem atual) da queda livre dos corpos e questões hidrostáticas. Sua influência sobre Descartes, reconhecida por este último em cartas, é inegável.

É muito possível que a concepção de Descartes sobre a inércia tenha sido gestada mais a partir da influência de Isaak Beeckman do que da leitura de Galileu. De fato, já em 1613 Beeckman escrevia que é muito simples “imaginar que o movimento no vácuo nunca atinge o repouso porque não ocorre qualquer causa que pudesse mudar o movimento. Pois nada muda sem alguma causa de mudança” ([17[17] K. Van Berkel, Isaak Beeckman on matter and motion (The John Hopkins University Press, Baltimore, 2013).], p. 105). Na mesma época escrevia ele [Beeckman] que “uma coisa, uma vez movida, jamais atinge o repouso sem que seja impedida por uma causa externa ([17[17] K. Van Berkel, Isaak Beeckman on matter and motion (The John Hopkins University Press, Baltimore, 2013).], p. 226), e ainda: “Aquilo que é movido, uma vez movido, sempre se move, enquanto não for impedido de fazê-lo”. Note-se que a apresentação do conceito de inércia por Galileu se deu em sua obra Diálogos sobre os dois máximos sistemas do Mundo, de 1632. Em 1618 Beeckman parece ser ainda mais explícito: “uma pedra lançada por uma mão não permanece em movimento devido a alguma força que lhe foi adicionada ou devido ao ‘temor do vácuo’, mas porque não é capaz de não continuar o movimento que possuía quando ainda estava sendo movida pela mão” ([17[17] K. Van Berkel, Isaak Beeckman on matter and motion (The John Hopkins University Press, Baltimore, 2013).], p. 106).

No entanto, Beeckman era um neoatomista, ou, como prefere Stephen Gaukroger [7[7] S. Gaukroger, Descartes’ system of natural philosophy (Cambridge University Press, Cambridge, 2002).], um corpuscularista, para enfatizar as diferenças de sua concepção em relação ao atomismo tradicional grego. Já Descartes rejeitava dois fundamentos básicos do paradigma atomista: a existência do vácuo, conforme vimos, e a indivisibilidade última dos elementos básicos da matéria. Para ele, a matéria, enquanto pura extensão espacial, era continuamente divisível ao infinito.

Apesar dessas divergências, cartesianismo e neoatomismo – ou corpuscularismo – compartilhavam uma visão absolutamente mecanicista dos fenômenos materiais. Mais ainda, a despeito de sua formulação da continuidade e da divisibilidade essencial da matéria, a concepção de Descartes parece em muitos pontos conter dissonâncias, pois, como veremos adiante, no tratamento das colisões, mas também no tratamento de temas que fogem ao horizonte deste texto, como a óptica, mais precisamente, as leis de refração e reflexão da luz, sua abordagem é quase francamente corpuscularista.

Descartes elaborou sua formulação da lei da Inércia primeiramente na obra inacabada e não publicada O Mundo, em que trabalhou até 1633, e depois, em sua forma final, nos Princípios de Filosofia. Essa formulação se reparte nas duas primeiras das quatro leis que apresenta como fundamentais do movimento:

A primeira lei da natureza: cada coisa em particular permanece em seu estado tanto quanto possa e que jamais o alterará sem que seja pelo encontro com outras. (…) Mas uma vez que tenha começado a se movimentar, não temos qualquer razão para pensar que ela deixaria de se mover com a mesma força, enquanto não encontrar qualquer coisa que retarde ou faça cessar seu movimento. De forma que, se um corpo começar a se mover, devemos concluir que continuará sempre a mover-se, sem parar por si mesmo (T.A.) [9[9] R. Descartes, em: Œuvres de Descartes, editado por Adam C. e P. Tannery (Leopold Cerf, Paris,1904).], p. 84.

e

A segunda lei da natureza: que todo corpo que se move tende a continuar seu movimento em linha reta (T.A.) [9[9] R. Descartes, em: Œuvres de Descartes, editado por Adam C. e P. Tannery (Leopold Cerf, Paris,1904).], p. 85.

Nessa divisão se observa um aspecto de sua concepção a respeito do movimento que iria gerar equívocos em suas análises posteriores, notadamente do problema das colisões. Descartes decompõe o conceito de movimento em dois elementos distintos: uma “força de movimento”, que associaríamos a uma grandeza eminentemente positiva – em nossa linguagem atual, ao módulo da velocidade –, e uma determinação, que correspoderia às características de direção e sentido. As duas leis se referem à conservação isolada de cada um desses dois aspectos. De qualquer modo, se a primeira Lei define o caráter uniforme do movimento inercial, fica nítido, no entanto, a partir da segunda Lei, seu caráter retilíneo.

Essa formulação direcional da inércia é certamente uma das mais importantes contribuições de Descartes à ciência moderna, se não a mais importante. Como Koyré bem observa, a continuidade inercial de um movimento inercial é logicamente incompatível com um Universo finito, desprovido de fronteiras materiais [1[1] A. Koyré, Études Newtoniennes (Gallimard, Paris, 1968).]. Com efeito, o que aconteceria a um objeto que, mantendo seu movimento, atingisse os limites desse Universo? O que o deteria? Sairia do Universo? A própria pergunta já envolve um paradoxo: se por Universo entendemos tudo que existe, se torna uma contradição lógica pensar que algo possa dele sair. É verdade que o século XX reconduziu a ideia de um Universo finito à consideração física. No entanto, isso se dá em um paradigma físico-matemático completamente diferente, que pressupõe a curvatura do espaço-tempo, e no qual esse paradoxo é afastado por outros motivos.

6. A Dinâmica dos Movimentos Curvilíneos e dos Vórtices

Uma vez que estabelecia o caráter retilíneo do movimento inercial, Descartes retirava a naturalidade dos movimentos curvilíneos e, quase automaticamente, problematizava sua explicação. Os corpos só realizariam movimentos curvos se fossem submetidos a ações que os forçassem a tanto. Essa dinâmica precisava, pois, ser esclarecida.

No artigo XXIX da Parte II do livro “Princípios de Filosofia”, Descartes trata do problema, a partir do exemplo de uma funda, isto é, uma lançadeira manual de pedras, cuja análise pode ser reduzida à situação de um homem que com a mão faz girar um corpo através de um fio, ao qual esse corpo está preso (Ver Figura (1)).

Figura 1
Figura extraída do livro “Princípios de Filosofia”, de René Descartes, [9[9] R. Descartes, em: Œuvres de Descartes, editado por Adam C. e P. Tannery (Leopold Cerf, Paris,1904).], p. 118.

A dinâmica do movimento circular realizado pelo corpo (pedra) é explicada por Descartes em termos de um equilíbrio entre duas ações. Primeiramente, há que se observar que a tendência natural – inercial – do corpo seria prosseguir em linha reta, na direção da tangente em cada ponto à circunferência que descreve; jamais descrever essa circunferência. Se assim o faz, é porque há uma ação forçando-o nesse sentido. Essa ação provém, evidentemente, do fio seguro pelo homem.

Entretanto, Descartes identifica na tendência à perseverança do movimento retilíneo uma ação que faz com que o corpo tenda a se afastar do centro da circunferência. Descartes deu a essa ação o nome de “esforço centrífugo” e equiparou-a, em natureza, à ação do fio. Assim, a dinâmica do corpo resultava de um balanço entre as duas ações: aquela que puxa para o centro e a que o afasta dele. No caso, tratava-se de um equilíbrio entre as duas.

Sabemos hoje que essa concepção está errada. Contudo, ela influnciou imensamente o desenvolvimento subsequente da mecânica. Huygens, ao retomar o problema, adotou a concepção, tornando-a ainda mais explícita ao rebatizar o “esforço centrífugo” cartesiano de “força centrífuga”, nome que é origem de obstáculos de aprendizagem até hoje. Na verdade, o próprio Newton, em seus trabalhos iniciais, tratou o problema nos termos essencialmente cartesianos de um equiíbrio entre forças centrífugas e centrípetas (na nossa linguagem moderna) opostas. Somente a partir dos anos de 1680, ao que tudo indica por uma influência de Robert Hooke, Newton mudou sua concepção do problema, abandonando a ideia de força centrífuga e de equilíbrio dinâmico, passando a tratar a questão da forma como a entendemos hoje, ou seja, em termos de uma resultante de forças voltada para o centro da trajetória. Vê-se, por conseguinte, que foram necessários cerca de quarenta anos para que esse erro fosse abandonado.

Esse problema tinha implicações de suma importância, por exemplo, na questão dos movimentos celestes. Ora, sabemos que na Antiguidade adotou-se o ideal supremo de que os movimentos dos corpos celestes eram, ou movimentos estritamente circulares, ou combinações dessa classe de movimentos, tendo em vista que as formas circulares expressavam, em sua perfeição, a própria perfeição dos corpos celestes e do Cosmos como um todo. Essa ideia se converteu quase em um dogma astronômico e foi chamada na História da Ciência de “paradigma da circularidade”.

Aristóteles incorporou esse princípio a seu sistema cosmológico e o combinou à ideia de movimentos naturais: dada a matéria incorruptível (perfeita) de que eram feitos os corpos celestes, os movimentos que lhes convinham naturalmente, ou seja, ao qual tendiam naturalmente por sua essência, eram as formas perfeitas circulares. Entretanto, Aristóteles não deixou de dar a esses movimentos causas eficientes – isto é, agentes que os produziam –; no caso, postulou a existência de esferas materiais, às quais estavam presos os corpos celestes. Na medida em que essas esferas giravam – a rotação era o movimento “natural” de esferas perfeitas –, arrastavam os corpos a elas solidários, fazendo com que descrevessem movimentos circulares. Como, na prática, os movimentos dos planetas não tinham essa regularidade circular perfeita, sua realização era explicada em termos de uma combinação de rotações de esferas articuladas, tal qual um sistema de engrenagens, produzindo uma combinação de movimentos circulares.

Todo esse esquema ruiu quando a existência material das esferas aristotélicas foi desafiada pelas observações astronômicas de Tycho Brahe, em fins do século XVI. Ao observar um cometa, Tycho verificou que sua trajetória se afastava muito da Terra, atingindo regiões muito mais distantes de nosso planeta do que a Lua. Para que isso fosse possível, o cometa precisaria atravessar a esfera material à qual estava ligada a Lua! Parecia um indicador claro de que essas esferas não existiam.

No entanto, se as esferas não existiam, quem movia os planetas?

Galileu aparentemente não se ocupou do problema, talvez porque estivesse ainda apegado à naturalidade dos movimentos circulares celestes [18[18] A. Koyré, Études Galiléennes (Hermann, Paris, 1966).]. Foi Kepler quem primeiro o tratou, em termos verdadeiramente revolucionários, mas que não cabe abordar aqui, pelo desvio que essa análise introduziria em nossa apresentação. O fato é que o problema estava colocado: como explicar os movimentos curvilíneos dos corpos celestes abandonados no espaço cósmico?

Vimos que o Universo para Descartes era totalmente preenchido por matéria; para que fosse possível o movimento dos corpos sólidos, essa seria uma matéria fluida. Já que não existe espaço vazio, o espaço ocupado por um corpo que se desloca, segundo ele, é imediatamente preenchido por uma porção de fluido, que também se desloca a partir de outro lugar, e assim sucessivamente. Um cenário como esse só pode se realizar através de duas configurações: ou envolve uma quantidade infinita de matéria, tal que uma porção sempre repõe outra, em um processo sem fim, que implica uma extensão material infinita, ou então envolve uma quantidade finita de matéria, desde que com deslocamentos ao longo de linhas que se fecham sobre si mesmas.

Descartes jamais fez a opção por um Universo infinito. Diante dessa questão, empregou o termo “indefinido”, referindo-se a algo tão grande que o fim, existente ou não, seria inalcançável. Portanto, a alternativa coerente com sua posição prudente é a dos deslocamentos fechados: o Universo seria preenchido por uma matéria em constante deslocamento por trajetórias fechadas, denominadas vórtices.

Façamos aqui um parêntese. Nesse ponto há que se destacar um importante princípio físico- cosmológico, porém de raíz metafísica, invocado por Descartes: O Universo é uma criação Divina. Se a matéria se movimenta – e é um fato que isso acontece – ocorre porque Deus lhe comunicou no início dos tempos certa “quantidade de movimento”. Como todo ato Divino é perfeito em si, a dita quantidade de movimento atribuída ao Universo seria a ideal, e não seria possível alterá-la sem degradá-lo. Estabelece-se, pois, ainda que de forma embrionária, o princípio da Conservação da Quantidade de Movimento, que cumprirá um papel importantíssimo no desenvolvimento da Física.

Com base no modelo de vórtices anteriormente mencionado, o movimento dos planetas seria explicado pelo arraste dos corpos celestes pela matéria fluida em movimento.

Descartes apresenta sua concepção em O Mundo, mas o faz de maneira ainda mais detalhada na terceira parte dos Princípios de Filosofia:

Após ter removido, em virtude desses raciocínios, todos os escrúpulos que se pode ter em relação ao movimento da Terra, pensemos que a matéria do Céu, na qual estão localizados os planetas, gira incessantemente em círculo, tal como o faria um turbilhão que tivesse o Sol como centro, e que partículas que estão mais próximas do Sol se movem com maior rapidez que aquelas que estão afastadas até certa distância; e pensemos que todos os planetas (entre os quais daqui por diante incluiremos a Terra) permaneçam sempre suspensos entre as mesmas partes do Céu. Somente em razão disso, e sem empregar outros mecanismos, podemos entender todos os fenômenos que observamos neles[os planetas]. Da mesma forma que, como nos meandros dos rios, onde a água se volta sobre si mesma, e, assim girando, descreve círculos, se alguma palha ou qualquer outro corpo muito leve flutua nessa água, podemos ver que ela os arrasta e os faz mover com ela em círculos; e, mesmo entre essas palhas, podemos ver que haverá alguns que girarão em torno de seu próprio centro; que aquelas que estão mais próximos do centro do turbilhão que as contém completam sua volta antes daqueles que estão mais afastados; enfim que, ainda que esses turbilhões girem em círculo, não descrevem, quase nunca, círculos inteiramente perfeitos, e se estendem, às vezes, mais segundo o comprimento, às vezes mais, segundo a largura; de modo que nem todas as partes da circunferência que descrevem estão igualmente distantes do centro. Pode-se facilmente imaginar que o mesmo ocorre com os planetas e que não é necessário mais do que isso para explicar todos os seus fenômenos. [9[9] R. Descartes, em: Œuvres de Descartes, editado por Adam C. e P. Tannery (Leopold Cerf, Paris,1904).], p. 115-116 [T.A.]

No turbilhão centrado no Sol, Descartes inclui outros, menores, que acompanham o principal, mas realizam, eles próprios, círculos, cada qual em torno de seu centro. Assim ele explica os movimentos dos satélites dos planetas, em particular a Lua.

Pensemos, além disso, que nesse grande turbilhão que compõe o Céu e do qual o Sol é o centro há outros menores, que podemos comparar àqueles que às vezes se veem nos meandros dos rios, todos eles seguindo o curso do maior que os contém e movendo-se para o mesmo lado em que ele se move; e que um desses turbilhões tenha Júpiter por centro e faça mover-se com ele os quatro outros planetas que orbitam em torno desse astro, com uma velocidade de tal forma proporcionada que o mais afastado deles complete sua órbita em aproximadamente dezesseis dias, aquele que o segue em sete dias, o terceiro em oitenta e cinco horas e o mais próximo do centro em quarenta e duas; e que eles girem assim em torno de Jupiter, enquanto ele próprio descreve um grande círculo em torno do Sol; da mesma forma que um desses turbilhões, cujo centro é a Terra, faz mover a Lua em torno da Terra no espaço de um mês; e que, durante o tempo em que a Terra e a Lua percorrem esse grande círculo que lhes é comum e que produz o ano, a Terra gira sobre seu eixo aproximadamente 365 vezes, ao passo que a Lua o faz aproximadamente doze vezes em torno da Terra [9[9] R. Descartes, em: Œuvres de Descartes, editado por Adam C. e P. Tannery (Leopold Cerf, Paris,1904).], p. 116-117. [T.A.]

Na sequência dos Princípios, Descartes formula um modelo a respeito do processo de diferenciação da matéria original que compõe o Universo em três elementos. Esse processo seria totalmente mecânico, produzido por aglutinações e desagregações dos elementos materiais, a partir de suas movimentações. É um exemplo máximo da concepção mecanicista, aplicada à explicação última da formação do Universo.

Mas, na medida em que não seria possível haver vazio em lugar algum do Universo e uma vez que as partes da matéria, sendo redondas, não poderiam se juntar tão estreitamente de forma tal que não deixassem pequenos intervalos ou recantos entre elas, é preciso que esses espaços sejam preenchidos por outras partículas dessa matéria; partículas que devem ser extremamente pequenas, a fim de mudar de figura a todo momento, para se acomodarem a esses lugares onde elas entram. É por isso que devemos pensar que o que sai dos ângulos das partes da matéria, à medida que elas se arredondam atritando-se, umas com as outras, é tão pequeno e adquire uma velocidade tão grande que a impetuosidade de seu movimento pode dividí-lo em incontáveis partes que, não tendo volume ou figura definida, preenchem facilmente todos os ângulos ou recantos por onde as demais partículas não podem passar.

(…) Assim podemos considerar que tenhamos encontrado duas formas distintas na matéria, que podem ser consideradas como as formas dos dois primeiros elementos do mundo visível. A primeira é a dessas raspas que foram separadas das demais partes da matéria à medida que se arredondavam, e que se move com tanta velocidade que apenas a força de sua agitação é suficiente para fazer com que, chocando-se com outros corpos, ela seja …. e dividida por eles em uma infinidade de pequenas partes, cujas formas preenchem completamente todos os recantos que essas partículas se encontram em volta dos corpos. A outra é a forma de todo o resto da matéria, cujas partes são redondas e extremamente pequenas, em comparação com os corpos que vemos sobre a Terra. (…) E descobriremos logo em seguida uma terceira forma em algumas partes da matéria, a saber, aqueles que, devido a seus volumes e suas figuras, não podem ser movidas tão facilmente quanto as precedentes [9[9] R. Descartes, em: Œuvres de Descartes, editado por Adam C. e P. Tannery (Leopold Cerf, Paris,1904).], p. 128–129. [T.A.].

Com base nessa concepção, Descartes elabora um modelo para os processos de formação dos corpos celestes: estrelas, planetas e cometas surgiriam desses mecanismos envolvendo os movimentos da matéria cósmica. Nessa dinâmica intervêm fatores como o tamanho, a densidade e o grau de fluidez dos elementos materiais, determinando como se comportam diante dessa movimentação incessante correspondente aos vórtices cósmicos.

Na verdade, diante das óbvias e enormes dificuldades de formular uma abordagem matemática do problema, Descartes tenta desenvolver qualitativamente uma dinâmica dos fluidos celestes. O resultado é consideravelmente precário. Este é um dos pontos mais frágeis de sua construção científica. Esse problema da dinâmica dos corpos celestes só seria resolvido satisfatoriamente por Isaac Newton, quase quarenta anos depois, com base em outro paradigma, muito distinto.

É muito importante assinalar que a dinâmica dos movimentos curvilíneos elaborada por Descartes a partir dos fenômenos tal como observados no mundo terrestre – como mostra o exemplo da funda – foi integralmente aplicada aos fenômenos celestes. Na nova ciência cartesiana, os corpos celestes não realizavam movimentos “naturais”, afeitos à sua essência – como dissemos, o mecanicismo aboliu a ideia aristotélica de causas formais –; eles realizavam movimentos curvilíneos, acompanhando os vórtices cósmicos, submetidos aos mesmos efeitos centrífugos verificados na física terrestre.

É fácil aplicar às partes do segundo elemento o que acabei de dizer a respeito dessa pedra que gira em uma funda, em torno de seu centro E, (…): que cada uma de suas partes realiza uma força muito considerável para se afastar do centro do Céu em torno do qual ela gira, mas que ela é retida pelas demais que estão acima dela, do mesmo modo que a pedra é retida pela funda [9[9] R. Descartes, em: Œuvres de Descartes, editado por Adam C. e P. Tannery (Leopold Cerf, Paris,1904).], p. 133 [T.A.].

Não se deve perder de vista a importância dessa concepção. Aqui há a consolidação da ruptura, já produzida por Kepler, da separação aristotélica entre os mundos terrestres e celestes, radicalmente distintos em sua natureza e, consequentemente, cada qual submetido a suas próprias leis. Como notavelmente destacou Alexandre Koyré, quando se unificaram as explicações dos fenômenos terrestres e celestes a partir de uma mesma base teórica, a saber, a Física, estava inaugurada a ciência moderna.

Descartes também explicava a gravidade terrestre em termos do modelo de vórtices. O planeta seria circundado por vórtices da matéria etérea, de tal modo que os objetos seriam projetados em direção a ele pela própria dinâmica do movimento do fluido. Novamente, era uma explicação genuinamente mecanicista, que se contrapunha à concepção então nascente de uma atração da Terra sobre os corpos, semelhante à ação magnética.

7. O Problema das Colisões

Descartes se dedicou com profundidade a outro importante problema mecânico, o das colisões. Sua concepção vinculada à exclusividade das ações por contato direto o conduziu diretamente a esse problema.

Na verdade, o problema das colisões absorveu grande parte da atividade científica de Descartes. Ele deu ao longo da vida diferentes tratamentos a essa questão. O elemento comum a todos eles era o princípio da conservação da quantidade de movimento. É importante, pois, analisarmos algumas etapas dessa evolução cronológica.

A primeira abordagem do problema está presente na obra O Mundo, de 1632-33. Esse livro descrevia a organização física e cosmológica de um mundo hipotético1 1 Os historiadores têm conjecturado se o impacto da condenação de Galileu pela Inquisição, em 1632, fez com que Descartes adotasse prudentemente a ideia de “mundo” convenientemente hipotético. . No capítulo sobre as leis da Natureza, Descartes apresenta três regras fundamentais.

A primeira e a terceira regras estão relacionadas ao conceito de inércia. A primeira enuncia que o estado dos objetos tende a permanecer imutável:

A primeira é que cada parte da matéria, tomada individualmente, continua sempre no mesmo estado enquanto não encontrar outra parte que lhe force a mudar; (T.A.) [15[15] R. Descartes, em: Œuvres de Descartes, editado por Adam C. e P. Tannery (Leopold Cerf, Paris, 1909).], p. 38.

A terceira regra contém explicitamente o princípio que ficou consagrado como Lei da Inércia, como já vimos na seção (6):

A minha terceira regra consiste no seguinte: que quando um corpo se move, ainda que seu movimento, na grande maioria das vezes, se faça em linha curva, e que esse corpo não possa jamais fazer qualquer movimento que não seja de algum modo circular, como já dissemos acima, cada uma das suas partes em particular tende sempre a continuar o seu movimento em linha reta (T.A.) [15[15] R. Descartes, em: Œuvres de Descartes, editado por Adam C. e P. Tannery (Leopold Cerf, Paris, 1909).], p. 43–44.

A regra que mais diretamente trata do problema das colisões é a segunda. Ela é, na verdade, uma lei de conservação de uma grandeza denominada quantidade de movimento, em direção a cuja definição Descartes dá os primeiros passos:

Como segunda regra, suponho que, quando um corpo empurra outro, ele não pode lhe transmitir movimento algum sem que perca, simultaneamente, um tanto do seu próprio movimento, nem tampouco lhe retirar movimento sem que o seu próprio aumente na mesma quantidade. Essa regra, junto com a precedente, se refere a todas as experiências em que um corpo começa ou cessa seu movimento, na medida em que é empurrado ou parado por outro (T.A.) [15[15] R. Descartes, em: Œuvres de Descartes, editado por Adam C. e P. Tannery (Leopold Cerf, Paris, 1909).], p. 41.

Descartes aplica essa segunda regra à solução do problema de se explicar por que um objeto, como, por exemplo, uma pedra, quando lançada ao ar, não se movimenta indefinidamente:

Não devemos nos perguntar primeiro por que ela não continua a se mover para sempre? Mas a razão disso é simples, pois, quem pode negar que o ar no qual ela se move lhe ofereça certa resistência? (…) Mas se deixarmos de explicar o efeito da resistência segundo nossa segunda regra e pensarmos que, quanto mais um corpo possa resistir, mais ele será capaz de deter o movimento dos outros, como poderíamos nos persuadir, em princípio, teremos novamente muita dificuldade em explicar por que o movimento dessa pedra se amortece mais ao encontrar um corpo mole, cuja resistência é medíocre, do que ao encontrar outro mais duro e que lhe resiste mais; e por que, tão logo ela faça um pouco de esforço contra esse último, ela retorne imediatamente, como sobre seus próprios passos, em lugar de se deter ou interromper seu movimento por causa daquele. Ao passo que, supondo a segunda Regra, não há nisso dificuldade alguma, pois ela nos ensina que o movimento de um corpo não é retardado pela colisão com outro na proporção em que esse último lhe resiste, mas sim na proporção em que essa resistência é superada; e que, na medida em que esse último se submete, ele recebe a mesma força de se movimentar que o outro perde (T.A) [15[15] R. Descartes, em: Œuvres de Descartes, editado por Adam C. e P. Tannery (Leopold Cerf, Paris, 1909).], p. 42.

Descartes apresenta aqui uma concepção que será devidamente explicitada nos Princípios de Filosofia, a saber, quando um corpo colidir com outro, haverá um embate entre a capacidade de o primeiro mover o segundo e a capacidade de o segundo resistir ao primeiro. Desse embate podem resultar dois cenários excludentemente alternativos: se a capacidade de resistência do corpo atingido for superior à capacidade do corpo incidente de movê-lo, este último não terá êxito nessa ação e não transmitirá qualquer movimento ao outro. Logo, ele conservará todo seu “ movimento”, retornando com a mesma velocidade com que incidiu. Já se a capacidade de o objeto incidente movimentar o alvo for maior do que a de esse lhe oferecer resistência, então ele comunicará ao segundo parte do seu movimento. Essa parte será tão maior quanto menor for a resistência daquele, fazendo com o corpo incidente perca maior quantidade de seu movimento original.

Voltando ao problema mencionado do lançamento da pedra, o ar, opondo-lhe baixa resistência, recebe dela uma grande quantidade de movimento e, portanto, se move, ao passo que a pedra, ao comunicar o seu movimento, termina por parar. Já quando a pedra se choca com alguma superfície dura, que lhe oferece grande resistência, não consegue superá-la e, então, retorna em sentido oposto ao incidente, com a mesma velocidade – diríamos hoje “em módulo” – com que incidiu.

Fica visível aqui uma deficiência no conceito de quantidade de movimento tal como viria a ser formulado por Descartes. Essa grandeza seria associada ao produto de uma medida do “tamanho” do corpo pela sua velocidade. No entanto, independentemente do sentido dessa velocidade – para um lado ou para o outro, segundo a mesma direção – a quantidade de movimento atribuída ao corpo por Descartes seria a mesma, sempre positiva. Em outras palavras, não existiria distinção de sinais no modo pelo qual a velocidade entra na composição dessa grandeza. Descartes não contemplou na descrição do problema a possibilidade de utilização de números negativos – é preciso que se diga, no entanto, que o conceito de números negativos e sua interpretação associada a problemas reais estavam sendo formulados à mesma época em que Descartes fazia sua incursão à análise física das colisões.

Em O Mundo Descartes apenas esboçou um tratamento do problema. Ele não apresentou ali uma maneira de se quantificar a dita capacidade de um corpo resistir a outro, determinando com isso o desfecho do embate entre a, por assim dizer, “força de movimento” do corpo incidente e a capacidade de resistência do corpo atingido. Em resumo, não há uma verdadeira solução quantitativa do problema, algo que seria adiado até a obra Princípios de Filosofia, de 1644.

Já nos Princípios de Filosofia, Descartes apresenta, como já salientamos, um tratamento quantitativo do sistema. Esse tratamento se baseia em um conjunto de três leis fundamentais, que, por sua vez, se desdobram em regras a serem obedecidas nos processos de colisão. Dessas três leis, as duas primeiras essencialmente reafirmam a primeira e a terceira regras formuladas em O Mundo. Textualmente, temos:

A primeira lei da natureza: cada coisa em particular permanece em seu estado tanto quanto possa e que jamais o alterará sem que seja pelo encontro com outras. (…) Mas uma vez que tenha começado a se movimentar, não temos qualquer razão para pensar que ela deixaria de se mover com a mesma força, enquanto não encontrar qualquer coisa que retarde ou faça cessar seu movimento. De forma que, se um corpo começar a se mover, devemos concluir que continuará sempre a mover-se, sem parar por si mesmo (T.A.) [9[9] R. Descartes, em: Œuvres de Descartes, editado por Adam C. e P. Tannery (Leopold Cerf, Paris,1904).], p. 84.

A segunda lei da natureza: que todo corpo que se move tende a continuar seu movimento em linha reta (T.A.) [9[9] R. Descartes, em: Œuvres de Descartes, editado por Adam C. e P. Tannery (Leopold Cerf, Paris,1904).], p. 85.

A terceira lei enunciada nos Princípios é a que trata diretamente das colisões, estabelecendo regras para o resultado desses fenômenos, conforme o corpo atingido seja mais ou menos “forte” do que aquele que o atingiu. Mais precisamente, segundo Descartes há uma disputa entre a “força” que o corpo incidente possui de prosseguir em seu movimento e a “força” que o alvo possui de lhe resistir. A questão do embate, apenas esboçada em O Mundo, agora é explicitada.

A terceira lei: se um corpo que se move encontrar outro mais forte, o seu movimento não diminui em nada; se encontrar um corpo mais fraco, que consiga mover, só perderá o movimento que lhe transmitir.

A terceira lei que observo na natureza é que, se um corpo que está em movimento e encontra outro tiver menos força para continuar a mover-se em linha reta do que esse para lhe resistir, ele perderá sua determinação, sem nada perder de seu movimento; e que se tiver mais força, ele moverá consigo o outro corpo e perderá tanto movimento quanto lhe der (T.A.) [9[9] R. Descartes, em: Œuvres de Descartes, editado por Adam C. e P. Tannery (Leopold Cerf, Paris,1904).], p. 87.

Nesta lei, Descartes estabelece as condições em que o corpo incidente é refletido pelo corpo atingido, ou então em que transfere a esse último parte de sua quantidade de movimento. Quando B incide sobre C, se a “força” de B em prosseguir for inferior à “força” de C em resistir a ele, B preservará completamente a quantidade de seu movimento, sem nada transmitir a C, apenas invertendo o seu sentido; se, ao contrário, a “força” de B supera a de C, então B vence o “combate”, mantendo o sentido de seu movimento e transmitindo parte dele a C.

Façamos aqui um pequeno parêntese, destacando o emprego do termo “força”2 2 No original em francês, encontra-se a palavra force. , não como uma ação externa, exercida a partir de fora por outro corpo, mas algo que é como uma potencialidade do próprio corpo. De certo modo, parece haver aqui um deslize em direção ao sentido do termo tal como adotado pelo senso comum. O fato chama a atenção uma vez que a experiência didática aponta que essa formulação muitas vezes coincide com as concepções espontâneas dos estudantes.

Feita essa observação, voltemos à elaboração do problema por Descartes. Com base nas leis gerais, ele estabelece sete regras aplicáveis às colisões. Essas regras são exemplos de aplicação de sua terceira lei geral, submetidos às seguintes restrições:

  • i)

    as colisões se dão entre dois corpos apenas;

  • ii)

    os corpos que colidem são duros;

  • iii)

    os movimentos não são perturbados por qualquer outro corpo que não aqueles envolvidos na colisão;

  • iv)

    trata-se daquilo que hoje chamaríamos de colisões frontais.

Com efeito, acontece frequentemente que a experiência pode parecer de início repugnar às regras que eu acabei de estabelecer, porém a razão é evidente, pois elas pressupõem que os dois corpos, B e C, são perfeitamente duros e estão afastados de todos os demais; que não há qualquer corpo em torno deles que possa ajudar ou impedir seus movimentos; e nós não vemos nada de semelhante no mundo (T.A.) [9[9] R. Descartes, em: Œuvres de Descartes, editado por Adam C. e P. Tannery (Leopold Cerf, Paris,1904).], p. 93.

Descartes introduz as ressalvas necessárias a essa abordagem:

É por isso que, antes que sejamos capazes de julgar se eles se obstruem ou não, não basta saber como dois corpos, tais quais B e C, podem agir um contra o outro quando se encontrarem, mas é necessário, além disso, considerar de que forma os corpos que os rodeiam podem aumentar ou diminuir sua ação

Estabelecidas essas bases, Descartes passa à formulação das regras. As três primeiras se referem à situação de dois corpos, B e C, movendo-se em sentido contrário.

A primeira delas consiste em que, se esses dois corpos [que colidem], por exemplo B e C, forem exatamente iguais e se movam com velocidades iguais em linha reta, um em direção ao outro, quando se encontrarem, ambos se empurrarão igualmente e retornarão para o lado de onde vieram, sem perder nada de suas velocidades. Pois não há causa alguma que possa retirá-las deles, porém há uma, muito evidente, que deve forçá-los a retornar, refletidos; e, uma vez que essa causa será igual, para um e para outro, os dois serão refletidos da mesma maneira.

(…)

A segunda consiste em que, se B é, por pouco que seja, maior do que C, caso eles se encontrem com a mesma velocidade, somente C retornará em direção ao lado de onde tiver vindo, e eles continuarão seu movimento juntos em direção a esse mesmo lado. Pois B, tendo mais força do que C, não poderia ser forçado por ele a retroceder.

(…)

A terceira: se esses dois corpos são de mesmo tamanho, mas se B é, por pouco que seja, mais veloz do que C, após terem-se encontrado, não somente C retrocederá, mas eles se movimentarão juntos, como anteriormente, em direção ao lado de onde veio C; mas também seria necessário que B transferisse a C metade da velocidade que tivesse a mais, já que, lhe tendo diante de si, não poderia ir mais rápido do que ele, de modo que se B tivesse, por exemplo, seis graus de velocidade antes do encontro e C somente quatro, B lhe transferiria um dos dois graus que tivesse a mais e, assim, eles iriam, após, cada qual com cinco graus de velocidade: pois a B é muito mais fácil comunicar um de seus graus de velocidade a C do que é para C mudar o curso de todo o movimento que está em B (T.A.) [9[9] R. Descartes, em: Œuvres de Descartes, editado por Adam C. e P. Tannery (Leopold Cerf, Paris,1904).], p. 90.

Descartes não utilizou explicitamente o conceito de massa3 3 No original ele utiliza a palavra grandeur. – que, aliás, só seria explicitado em Newton; muito menos utilizou o termo módulo, inexistente então. Isso posto, podemos traduzir essas regras em termos de linguagem física mais moderna, ainda que anacrônica: sejam MB e MC as massas de B e de C, respectivamente, vB e vC os módulos de suas respectivas velocidades antes do choque, e vB e vC os módulos de suas respectivas velocidades após o choque.

I – A primeira regra trata do caso em que tanto as massas como os módulos das velocidades iniciais são iguais.

Se MB = MC e vB = vC, então vB=vC=vC=vB. Tanto B como C movem-se em sentidos opostos aos seus respectivos sentidos originais (Ver Figura (2)).

Figura 2
Esquema de uma colisão entre dois corpos iguais e de velocidades iguais, porém de sentidos opostos, segundo Descartes.

II – A segunda regra trata do caso em que a massa de B é pelo menos um pouco maior do que a de C, porém os módulos de suas velocidades são iguais.

Se MB > MC e vB = vC, então vB=vC. B continua a se mover no mesmo sentido, mas inverte o sentido do movimento de C (Ver Figura (3)).

Figura 3
Esquema de uma colisão entre um corpo maior e outro, menor, de velocidades iguais, porém de sentidos opostos, segundo Descartes.

III – A terceira regra trata do caso em que B e C têm a mesma massa, porém B está mais rápido do que C.

Se MB = MC e vB > vC, então vB=vC=vC+(vBvC)2. B continua a se mover no mesmo sentido, mas novamente inverte-se o sentido do movimento de C (Ver Figura (4)).

Figura 4
Esquema de uma colisão entre dois corpos iguais, porém B com velocidade maior do que C (sentidos opostos), segundo Descartes.

As regras de quatro a seis tratam do caso em que o corpo C está em repouso.

A quarta consiste em que, se o corpo C for, por pouco que seja, maior que B e estiver inteiramente em repouso - quer dizer, que ele não somente não tenha movimento aparente, mas que tampouco fosse circundado por ar ou quaisquer outros corpos líquidos, os quais, como direi a seguir, dispõem os corpos duros que circundam a serem movidos muito facilmente - qualquer que seja a velocidade com que B possa vir em direção a ele jamais terá a força de movê-lo, porém será obrigado a retroceder em direção ao mesmo lado de onde veio.

A quinta regra consiste em que, se, pelo contrário, o corpo C, por pouco que seja, é menor do que B, este não poderia ir tão lentamente em direção ao primeiro - novamente suposto perfeitamente em repouso - que não tivesse força de empurrá-lo e transferir-lhe a parte do seu movimento necessária para que, após, se movessem juntos com a mesma velocidade. Assim, se B é o dobro de C, ele lhe transferiria um terço de seu movimento, devido ao fato de que o terço de seu movimento faria C mover-se tão rapidamente quanto os dois terços restantes fariam com B, já que o supusemos duas vezes maior do que C. Logo, depois que B tiver encontrado com C, ele irá um terço mais lentamente do que antes, de tal modo que, no mesmo tempo em que antes ele teria percorrido três espaços, agora ele percorrerá apenas dois.

(…)

A sexta regra consiste em que o Corpo C, estando em repouso e sendo perfeitamente igual em grandeza ao corpo B, que se move em direção a ele, seria necessário que, em parte, fosse empurrado por B e, em parte, o fizesse retornar, de tal modo que, se B viesse em direção a C com quatro graus de velocidade, seria preciso que lhe transferisse um e que retornasse com os outros três em direção ao lado de onde tivesse vindo. Com efeito, sendo necessário que ou B empurre C sem retroceder e, deste modo, lhe transfira dois graus de seu movimento, ou então que ele retroceda sem empurrar C e, consequentemente, ele retenha seus dois graus de velocidade juntamente com os dois outros que não lhe podem ser retirados; ou ainda que ele retrocedesse com uma parte desses dois graus e que empurrasse C, transferindo-lhe a outra parte. É evidente que, sendo ambos iguais e, portanto, não havendo mais razão para que ele deva retroceder do que para empurrar C, esses dois efeitos devem ser igualmente repartidos, isto é, B deve transferir a C um de seus graus de velocidade e retroceder com o outro (T.A.) [9[9] R. Descartes, em: Œuvres de Descartes, editado por Adam C. e P. Tannery (Leopold Cerf, Paris,1904).], pp. 90-92.

Da mesma forma que as primeiras, essas regras quatro, cinco e seis podem ser traduzidas em linguagem atual da seguinte maneira:

IV – Se MB < MC e vC = 0, então vB=vB e vC=0. Independentemente do valor de sua velocidade, B inverte o sentido do seu movimento e C continua parado (Ver Figura (5)).

Figura 5
Esquema de uma colisão entre B (menor) e C(maior), parado, segundo Descartes.

V – Se MB > MC e vC = 0, então vB=vC=V e, aparentemente, V=MBvBMB+MC. Independentemente do valor de sua velocidade, B mantém o sentido do seu movimento e leva C consigo, com uma velocidade estabelecida em função de sua velocidade inicial e das massas de ambos (Ver Figura (6)).

Figura 6
Esquema de uma colisão entre B (menor) e C(maior), parado, segundo Descartes.

Tudo leva a crer que Descartes emprega aqui uma lei de conservação de quantidade de movimento, grandeza essa dada pelo produto do “tamanho” do corpo por sua velocidade. Em linguagem moderna, Descartes parece raciocinar do seguinte modo:

(1)MBvB +MCvC = (MB+MC)V.

VI – Se MB = MC e vC = 0, então vB=3vB4 e vC=vB4. B inverte o sentido do seu movimento e transfere movimento para C, fazendo com que esse último movimente-se no sentido incidente de B. (Ver Figura (7)).

Figura 7
Esquema de uma colisão entre B (menor) e C(maior), parado, segundo Descartes.

Entretanto, essas regras que dizem respeito ao repouso de um dos corpos, além de sabermos que são erradas, apresentam claras dificuldades lógicas. De fato, se a massa de B é ligeiramente menor do que a de C, B retornará, ao passo que se for ligeiramente maior, B continuará. Existe, pois, uma evidente descontinuidade no processo, que se verifica para a massa de B igual à de C.

Salientemos, por fim, que o tratamento expresso por essas regras, apresentado nos “Princípios”, aparentemente representa uma modificação das concepções alimentadas por Descartes em algum momento desde O Mundo. Assim, em uma carta a Marin Mersenne, de dezembro de 1639, ele escreveu:

Se um corpo de certo tamanho, que se move com certa velocidade, encontra outro, igual em tamanho e que não possui movimento, comunicará a ele metade de seu movimento, de forma que ambos irão juntos, com metade da velocidade com que vinha inicialmente o primeiro. Contudo, se ele encontra outro com o dobro de seu tamanho, comunicará a ele dois terços de seu movimento, de modo que, juntos, não percorrerão mais espaços em três medidas de tempo do que o primeiro em uma. (T.A.) [19[19] R. Descartes, em: Œuvres de Descartes, editado por Adam C. e P. Tannery (Leopold Cerf, Paris, 1898).], p. 627.

Em resumo, Descartes realizou um esforço de construção de um pensamento sistemático sobre o problema das colisões que se apoiasse em princípios fundamentais, como o esboço da conservação da quantidade de movimento. Todavia, seu tratamento apresentava diversas inconsistências. A solução correta ainda aguardava a intervenção de outros estudiosos, notadamente os trabalhos de Christiaan Huygens, John Wallis e Christopher Wren.

8. A Crítica à Solução de Descartes Para o Problema das Colisões e as Repercussões Gerais de Sua Concepção Mecânica

A solução para o problema das colisões formulada por Descartes era empiricamente errada em diversos casos. A quarta regra, a de que um corpo menor jamais consegue mover um maior, é especialmente conflitante com a Natureza. Descartes tinha consciência de que havia contradições com o que ocorre na realidade. Atribuía isso ao fato de que abordavam situações idealizadas, como se lê nos Princípios:

De fato, frequentemente ocorre que a experiência conflite com as regras que acabei de explicar, porém a razão é evidente. Pois elas pressupõem que os dois corpos, B e C, sejam perfeitamente duros e totalmente separados de todos os outros, que não haja corpo algum em torno deles que possa ajudar ou impedir o movimento; e não encontramos corpo algum nessa situação em nosso mundo [9[9] R. Descartes, em: Œuvres de Descartes, editado por Adam C. e P. Tannery (Leopold Cerf, Paris,1904).], p. 93.

Na verdade, encontramos aqui uma dissonância do pensamento de Descartes, embora sutil, qual seja, entre as hipóteses adotadas para seu tratamento de colisões está a restrição de que elas envolvam apenas dois corpos, sem a interferência de outros. Ora, na concepção plenista de universo adotada por Descartes, em que todo o espaço é ocupado por matéria, ao ponto em que matéria e extensão se identificam, é difícil imaginar a possibilidade da ausência de influência do meio intermediário e, assim, de esta hipótese se realizar, sobretudo se pensarmos que essa influência é efetiva o bastante para provocar, entre outras coisas, fenômenos cruciais como a gravidade terrestre. A abordagem cartesiana parece, na verdade, muito mais harmoniosa com uma concepção atomista da realidade, com corpos materiais separados pelo vazio. Ocorre que, como já salientamos, Descartes era um anti-atomista, entendendo que fosse um absurdo imaginar que a matéria, reduzida a uma extensão espacial – não pudesse ser continuamente dividida à exaustão, encontrando, pelo contrário, a irredutibilidade de unidades básicas indestrutíveis.

Além disso, a própria definição de movimento formulada por Descartes se baseia na contiguidade com outros corpos. Fica muito difícil nesse contexto, imaginar a validade das hipóteses assumidas nas regras propostas.

Outro dos grandes problemas da abordagem cartesiana reside na falibilidade do princípio de conservação de quantidade de movimento tal como formulado por ele, isso é, sem levar em consideração o sentido da velocidade – e, consequentemente, da quantidade de movimento. Christiaan Huygens reconheceu esse problema e buscou uma abordagem alternativa, associando a conservação do produto de uma medida de grandeza do corpo pela velocidade, agora considerada como um número algébrico, podendo assumir valores negativos, e uma conservação de outra quantidade, definida pelo produto da “grandeza” pelo quadrado da velocidade. Essa quantidade viria a se chamar “força viva” e, posteriormente, energia cinética (quando dividida por dois). A partir dessa formulação, Huygens foi capaz de encontrar a solução para problemas de certas colisões – hoje chamadas de elásticas –, obtendo respostas distintas das de Descartes.

De fato, a grandeza quantidade de movimento concebida por Descartes não era ainda aquela que se consagraria na história da mecânica, devido exatamente às inconsistências geradas pela sua independência do sentido da velocidade. Somente quando esse elemento foi devidamente incorporado à definição da grandeza foi possível formular corretamente um princípio de conservação associado a ela.

Por fim, cumpre ressaltar aqui um ponto já mencionado: a concepção da colisão como uma disputa entre as “forças” dos corpos em movimento, entendidas como “potencialidades” nele contidas. Parece-nos que essa interpretação se torna em alguma medida um obstáculo cognitivo à formulação do problema em termos de quantidades de movimento de valor algébrico positivo ou negativo; afinal, não faria muito sentido associarmos a corpos que se movimentassem em sentidos contrários “forças” negativas… Em outras palavras, a ideia de “força” como capacidade é muito mais harmonizável com a adoção de quantidades estritamente positivas (em módulo).

Em que pesem as lacunas, contradições e erros na doutrina do movimento de Descartes, ela foi extremamente influente ao longo da segunda metade do século XVII, sobretudo na Europa continental.

Citemos, novamente, o nome de outro grande cientista do século XVII: Huygens. Em 1673, Huygens publicou o resultado, por ele obtido, da expressão quantitativa daquilo que ele chamou, conforme vimos, de “força centrífuga”, qual seja, de que a intensidade dessa força dependeria do quadrado da velocidade e do inverso da distância ao centro da circunferência descrita. Huygens aplicou esse conhecimento à teoria cartesiana dos vórtices. Em particular, Huygens concebeu um experimento que exibisse como se dá o efeito da gravidade, ou seja, do movimento dos corpos em direção à Terra sob a ação dos vórtices etéreos.

O experimento consistia de um vaso cilíndrico, cheio de água, na qual estava imersa uma pequena bola. A bola L tinha seus movimentos limitados por três fios horizontais paralelos, AA’, BB’ e KK’, todos eles tangentes a ela, porém KK’ passando por cima, na forma mostrada na figura abaixo (Figura 8).

Figura 8
O experimento de Huygens: vista de cima do vaso e da bola.

O vaso é girado em torno de um eixo vertical, fazendo com que o líquido gire. Em certo instante, detém-se repentinamente o movimento do vaso. O líquido continua girando, entretanto a bola é impedida pelos fios de acompanhar seu movimento. Ela é, então, impulsionada pela ação do fluido girante em direção ao centro do vaso. O fenômeno ilustraria a ação dos vórtices que circundam a Terra, impulsionando os objetos em direção a ela.

Outro grande expoente do pensamento ocidental, Gottfried Leibniz, construiu um modelo planetário baseado na doutrina dos vórtices etéreos de Descartes. Em um trabalho publicado em 16894 4 Apesar da data – os Princípios de Newton haviam sido publicados em 1687 – Leibniz disse que seu trabalho foi elaborado antes de que tivesse conhecimento da obra de Newton. Essa alegação parece verossímil pelo tratamento que ele dá ao problema do movimento curvilíneo, mais primitivo do que o que foi apresentado por Newton. chamado Tentamen de motuum coelestium causis, Leibniz procurou promover a conciliação das Leis de Kepler com a dinâmica cartesiana.

Segundo o já anunciado por Kepler, o movimento dos planetas era elíptico. Por outro lado, os vórtices cartesianos fariam-nos moverem-se circularmente. Portanto, seria necessário adicionar ao arraste do fluido etéreo um movimento radial. Esse último movimento, Leibniz descreveu como uma disputa entre uma força solar e uma força centrífuga, do tipo concebido por Huygens, oriunda exatamente da curvilinearidade do movimento. Aplicando as ferramentas nascentes do cálculo infinitesimal, Leibniz foi capaz de promover a conciliação desejada, extraindo de suas hipóteses de matiz cartesiano as leis de Kepler.

No entanto, apesar dos trabalhos e das elaborações de Huygens e Leibniz, a explicação adequada da gravidade terrestre continuou a desafiar a dinâmica de vórtices. Mesmo após o advento da teoria da gravitação de Newton, os estudos ancorados no paradigma cartesiano prosseguiram [6[6] E.J. Aiton, The vortex theory of planetary motions (American Elsevier Publishing Co., New York, 1972).]. Os trabalhos de Philippe Villemot (1707), Nicolas Malebranche (1712), M.Saulmon (1715), Georg Bullfinger (1728) e Jacques de Mairan (1729) são exemplos disso e mostram a força dessa concepção mecanicista.

9. Conclusão

A ciência do movimento de Descartes tem a marca de um projeto racionalista de pensamento fundamentado no rigor metodológico e na certeza das ideias claras e evidentes. Seus princípios gerais nascem da investigação metafísica, conduzida a partir de primeiras verdades inquestionáveis. O ideal ambicionado de início rejeitava o elemento empírico como fonte inconfiável de conhecimento. Entretanto, à medida que avançava na formulação de sua ciência da Natureza, Descartes constatava que a razão e os princípios lógicos, por si sós, não eram capazes de esgotar a descrição do real, selecionando apenas uma entre as múltiplas formas, todas elas logicamente consistentes, em que o mundo material podia se organizar. A razão necessitava da luz proporcionada pela experiência.

Em nenhum outro ponto, talvez, essa tensão entre racionalismo e empirismo tenha estado mais presente do que na sua teoria das colisões. Os princípios filosóficos levaram Descartes à rejeição da indivisibilidade final da matéria e da existência do vazio, pilares do atomismo. No entanto, podemos dizer que sua doutrina das colisões tende a ser francamente corpularista. O próprio Descartes invoca a impossibilidade de realização no Universo pleno, tal como o seu, das condições hipotéticas de validade de sua doutrina para justificar as discordâncias – algumas delas flagrantes – entre as previsões que ela fornece e os dados empíricos.

Tampouco sua própria definição de movimento estava isenta de incoerências, como vimos. A caracterização do movimento em termos de contiguidade do móvel com partes de outros corpos involvia a necessidade de sermos capacidade de os individuarmos claramente. Entretanto, para Descartes essa individuação era, por sua vez, determinada pela adesão das partes da matéria, solidariamente, a um mesmo movimento, o que envolve uma evidente circularidade de raciocínio.

Contudo, em que pesem algumas incoerências, o pensamento de Descartes deixou importantes contribuições para a moderna ciência do movimento. Algumas delas assumiram um caráter definitivo, notadamente a formulação direcional do princípio da inércia; outras atingiram somente uma fase embrionária dos desenvolvimentos posteriores nos quais se estabeleceu a mecânica atual, como o princípio da conservação de uma quantidade de movimento – não apenas equivocadamente escalar, mas também destituída de sinal algébrico associado ao sentido do movimento – e como a dinâmica do movimento curvilíneo, baseada na ideia de esforço centrífugo. É interessante notar, porém, que nos dois casos há uma aproximação bastante visível do tratamento dado por Descartes com as concepções intuitivas de estudantes: no primeiro caso, uma representação da colisão como um embate entre corpos a ser decidido a partir de uma “força” que cada um possui, relacionada a sua massa; no segundo caso, a ideia de uma “força centrífuga”, atuante em movimentos curvilíneos, a empurrar os corpos para longe do centro de sua trajetória. Parece-nos, ainda, que, novamente nos dois casos falta a Descartes uma concepção mais clara do conceito de força, tal como mais tarde consolidado na mecânica: na primeira situação, temos a ideia de “força de movimento” como uma potencialidade própria do corpo em movimento, pronta a se transformar em causalidade ativa no momento da colisão; na segunda situação, uma confusão entre força enquanto ação causal externa exercida sobre o corpo e como tendência de movimento inerente a ele (centrífuga).

Já a doutrina mecanicista dos vórtices, apesar de muito influente, conforme vimos, na explicação dos fenômenos que, mais tarde, seria compreendidos em termos gravitacionais, constituiu um paradigma superado – porém, não de imediato – pela dinâmica newtoniana no plano da mecânica. Ainda assim, podemos talvez reconhecer nos vórtices magnéticos – de inspiração mecânica – do eletromagnetismo de Maxwell alguns traços da dinâmica do éter concebida por Descartes.

Referências

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    A. Koyré, Études Galiléennes (Hermann, Paris, 1966).
  • [19]
    R. Descartes, em: Œuvres de Descartes, editado por Adam C. e P. Tannery (Leopold Cerf, Paris, 1898).
  • 1
    Os historiadores têm conjecturado se o impacto da condenação de Galileu pela Inquisição, em 1632, fez com que Descartes adotasse prudentemente a ideia de “mundo” convenientemente hipotético.
  • 2
    No original em francês, encontra-se a palavra force.
  • 3
    No original ele utiliza a palavra grandeur.
  • 4
    Apesar da data – os Princípios de Newton haviam sido publicados em 1687 – Leibniz disse que seu trabalho foi elaborado antes de que tivesse conhecimento da obra de Newton. Essa alegação parece verossímil pelo tratamento que ele dá ao problema do movimento curvilíneo, mais primitivo do que o que foi apresentado por Newton.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    16 Jan 2024
  • Revisado
    16 Abr 2024
  • Aceito
    05 Maio 2024
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