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A Lei de Benford e a transparência: uma análise das despesas públicas municipais

RESUMO

Este estudo visa verificar a adesão entre o nível de transparência municipal e a aplicação da Lei de Benford no processo de execução das despesas municipais. Para tanto, dois municípios do estado de Goiás foram selecionados, um com um nível de transparência maior e outro menor, de acordo com o Ranking Nacional de Transparência do Ministério Público Federal, de 2016. Em seguida, foram realizados os testes estatísticos Z e qui-quadrado nas despesas empenhadas no primeiro quadrimestre de 2016 para verificar a sua conformidade com a Lei de Benford. Com base nos dados analisados, foi possível concluir que: o município com maior transparência tem maior conformidade com a Lei de Benford; o município com menor transparência apresentou maiores discrepâncias entre as frequências esperadas e observadas; o município com menos transparência mostrou maior probabilidade de irregularidades na execução das despesas, em comparação com o município com maior transparência. Ambos os municípios apresentaram discrepâncias em relação à Lei de Benford, diferenciando-se entre si apenas pelo grau de divergência calculada no modelo.

Palavras-chave:
Auditoria de dados; Classificação da transparência municipal; Detecção de fraude contábil; Despesas municipais; Corrupção

ABSTRACT

This study aims to ascertain an adherence between the level of municipal transparency and the application of Benford's Law in implementing the municipal expenditure. Therefore, two municipalities in the state of Goiás were selected, one with a higher and one a lower level of transparency, according to the National Transparency Ranking of the Federal Public Ministry, of 2016. Then, we performed Z and chi-square tests on the expenses engaged in the first four months of 2016 to check for incompliances with the Benford’s Law. Based on the data analyzed we were able to conclude that: the municipality with greater transparency has greater conformity with Benford’s Law; the municipality with less transparency showed greatest discrepancies between the expected and observed frequencies; the municipality with less transparency showed higher likelihood of irregularities in the execution of expenditures, compared to the municipality with greater transparency. Both municipalities showed discrepancies regarding Benford's Law, differing from each other only by the degree of calculated divergences from the model.

Keywords:
Data Auditing; Ranking of Municipal Transparency; Accounting Fraud Detection; Municipal Expenditures; Corruption

1. INTRODUÇÃO

A evolução da tecnologia da informação fez com que o volume e a variedade de informações crescessem rapidamente nos últimos anos. Atualmente, os métodos tradicionais de análise financeira precisaram evoluir; para que a contabilidade pudesse analisar tempestivamente todas as transações das empresas e fornecer informações úteis para a tomada de decisões. Essas técnicas analíticas, que incluíram o uso de estatística, tornou o trabalho dos auditores mais simples e eficaz e contribuiu para identificar discrepâncias operacionais e fraudes na auditoria (DURTSCHI; HILLISON; PACINI, 2004DURTSCHI, C.; HILLISON, W.; PACINI, C. The Effective Use of Benford’ s Law to Assist in Detecting Fraud in Accounting Data. Journal of Forensic Accounting, v. 99, n. 99, p. 17-34, 2004.).

Considerando que as discrepâncias nos números contábeis relacionados a um padrão pré-definido podem ser um indicativo de fraude, este estudo pretende realizar uma análise exploratória sobre a relação entre os padrões de conformidade de valores da despesa pública e o grau de transparência dos municípios. Portanto, o objetivo deste estudo é verificar se a conformidade das despesas públicas com a Lei de Benford (LB) relaciona-se ao nível de transparência municipal, comparando dois municípios, um com maior e outro com com menor grau de transparência.

Outros estudos, principalmente a partir da década de 80, usaram a Lei de Benford na área de finanças e auditoria governamental, como: Carslaw (1988)CARSLAW, C. A. P. Anomalies in Income Numbers: Evidence of Goal Oriented Behavior. The Accounting Review, v. LXIII, n. 2, p. 321-327, 1988., Durtschi, Hillison e Pacini (2004)DURTSCHI, C.; HILLISON, W.; PACINI, C. The Effective Use of Benford’ s Law to Assist in Detecting Fraud in Accounting Data. Journal of Forensic Accounting, v. 99, n. 99, p. 17-34, 2004., Nigrini (2005)NIGRINI, M. J. An Assessment of the Change in the Incidence of Earnings Management Around the Enron‐Andersen Episode. Review of Accounting and Finance, v. 4, n. 1, p. 92-110, 2005., Santos, Diniz e Corrar (2005)SANTOS, J.; DINIZ, J. A.; CORRAR, L.J. The Focus is the Sampling Theory in the Fields of Traditional Accounting Audit and Digital Audit: testing the Newcomb-Benford Law for the first digit in public accounts. BBR Brazilian Business Review, v. 2, n. 1, p. 69-86, 2005., Krakar e Zgela (2009)KRAKAR, Z.; ZGELA, M. Application of Benford’s Law in payment systems auditing. Journal of Information and Organizational Sciences, v. 33, n. 1, p. 39-51, 2009., Costa, Santos e Travassos (2012)COSTA, J. I. F.; SANTOS, J.; TRAVASSOS, S. K. M. An Analysis of Federal Entities’ Compliance with Public Spending: Applying the Newcomb-Benford Law to the 1st and 2nd Digits of Spending in Two Brazilian States. Revista Contabilidade & Finanças, v. 23, n. 60, p. 187-198, 2012., Cunha e Bugarin (2015)CUNHA, F. C.; BUGARIN, M. S. Benford’s law for audit of public works: An analysis of overpricing in Maracanã soccer arena’s renovation. Economics Bulletin, v. 35, n. 2, p. 1168-1176, 2015.. No entanto, nenhum deles associou o modelo probabilístico com um ranking de transparência municipal. Desta forma, a importância deste estudo é demonstrar que a análise digital através de modelos preditivos de irregularidade e aplicados à informação contábil, especialmente na Administração Pública, podem ser úteis não só para detectar indícios de fraude e corrupção, mas também para qualificar a transparência de um determinado ente público.

Desta forma, utilizou-se o modelo probabilístico, conhecido como Lei de Benford, que foi originalmente apresentado em 1881 (NEWCOMB, 1881NEWCOMB, S. Note on the frequency of use of the different digits in natural numbers. American Journal of Mathematics, v. 4, n. 1, p. 39-40, 1881.; DURTSCHI; HILLISON; PACINI, 2004DURTSCHI, C.; HILLISON, W.; PACINI, C. The Effective Use of Benford’ s Law to Assist in Detecting Fraud in Accounting Data. Journal of Forensic Accounting, v. 99, n. 99, p. 17-34, 2004.) e publicamente difundido a partir de um estudo realizado por Frank Benford em 1938, devido à sua ampla aplicabilidade (BENFORD, 1938BENFORD, F. The Law of Anomalous Numbers. American Philosophical Society, v. 78, n. 4, p. 551-572, 1938.; COSTA; TRAVASSOS; SANTOS, 2013COSTA, J. I. DE F.; TRAVASSOS, S. K. DE M.; SANTOS, J. DOS. Application of Newcomb-Benford Law in Accounting Audit: a bibliometric analysis in the period from 1988 to 2011. 10th International Conference on Information Systems and Technology Management - CONTECSI. Anais...São Paulo: 2013.). Para tanto, foram analisados 3.068 empenhos em dois municípios do estado de Goiás, um com maior e outro com menor transparência, de janeiro a abril de 2016. Como parâmetro de transparência, foi adotado o ranking de transparência nacional (MPF, 2016MPF, Ministério Público Federal. Ranking Nacional da Transparência - Resultados. Disponível em: <http://combateacorrupcao.mpf.mp.br/ranking/mapa-da-transparencia/ranking/resultados>. Acessado em: 31 de julho. 2016.
http://combateacorrupcao.mpf.mp.br/ranki...
). O grau de conformidade com a Lei de Benford foi mensurado através dos testes estatísticos de Z e qui-quadrado, aplicados ao primeiro e segundo dígitos dos empenhos dos dois municípios.

Os resultados indicam que o município mais transparente apresentou maior conformidade com a Lei de Benford, quando comparado com o menos transparente. Em suma, há uma discrepância nas frequências observadas e esperadas nas despesas municipais do município menos transparente. Através deste estudo, é possível demonstrar que o uso de técnicas analíticas pode contribuir para o controle social no monitoramento das despesas públicas e no combate à corrupção. Por exemplo, a Lei de Benford poderia mostrar que algo de errado pode estar acontecendo na gestão da despesa pública, e, ao mesmo tempo, o gestor não quer dar a transparência necessária. Além disso, também foi possível contribuir para preencher uma lacuna inexplorada por outros pesquisadores, abrindo caminho para novos estudos com um maior número de entes federativos.

2. REVISÃO DA LITERATURA

2.1. TEORIA DA AGÊNCIA NO CONTEXTO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A interação governamental com os diversos agentes pode ser analisada sob a perspectiva da Teoria da Agência. A Teoria da Agência tem sido um dos modelos teóricos mais importantes no contexto da Contabilidade nos últimos 25 anos (LAMBERT, 2007LAMBERT, R. A. Agency theory and management accounting. Handbooks of management accounting research, 2006, V. 1, p. 247-268.). Segundo o autor, a Teoria da Agência aborda a relação entre o principal e o agente, e seus respectivos conflitos de relacionamento dentro do ambiente organizacional. Nesse cenário, o principal contrata o agente para tomar decisões operacionais, de investimento e financeiras e assumir os riscos, com o objetivo de alcançar os objetivos do principal, através da delegação de poder.

Dessa forma, a relação principal-agente passa a ser regida através de contratos, mas esses atores possuem interesses distintos (JENSEN; MECKLING, 1976JENSEN, C.; MECKLING, H. Theory of the Firm: Managerial Behavior, Agency Costs and Ownership Structure. Journal of Financial Economics, v. 3, p. 305-360, 1976.). Os autores afirmam que, para evitar que os agentes atuem em dissonância aos interesses do principal, estes devem suportar os custos da agência, representados pelos sistemas de controle e monitoramento, concessão de garantias e também por custos residuais, a fim de assegurar o equilíbrio contratual.

Considerando que, em um processo de delegação de autoridade, os indivíduos compartilham riscos, surge um desequilíbrio na distribuição de resultados em relação ao risco assumido no contrato, resultante das ações/decisões dos indivíduos (HOLMSTROM, 1979HOLMSTROM, B. Moral hazard and observability. The Bell Journal of Economics. 1979. v. 10, n. 1, p. 74.).

O comportamento do agente é racional em sua natureza e ao mesmo tempo individualista, pois toma decisões entre várias alternativas com base no objetivo de maximizar o interesse pessoal, em detrimento do principal. Como resultado, o conflito da agência surge, o que resulta de fatores como a aversão ao esforço, do desvio de recursos para seu próprio benefício, da falta de preocupação com o futuro da empresa e dos diferentes níveis de aversão ao risco (LAMBERT, 2007LAMBERT, R. A. Agency theory and management accounting. Handbooks of management accounting research, 2006, V. 1, p. 247-268.).

Holmstrom (1979)HOLMSTROM, B. Moral hazard and observability. The Bell Journal of Economics. 1979. v. 10, n. 1, p. 74. revela que a consequência do comportamento oportunista é o risco moral que é uma variável de influência negativa para uma relação ótima de correspondência entre o incentivo financeiro do agente e as decisões tomadas para maximizar os interesses do principal. A origem do risco moral está associada à assimetria informacional que resulta de ações individuais que não se podem ser monitoraradas em um ambiente onde uma das partes, tem informação privilegiada em relação à outra (AKERLOF, 1970AKERLOF, G. The Market for “Lemons”: Quality Uncertainty and the Market Mechanism. The Quarterly Journal of Economics, v. 84, n. 3, p. 488-500, 1970.; HOLMSTROM, 1979HOLMSTROM, B. Moral hazard and observability. The Bell Journal of Economics. 1979. v. 10, n. 1, p. 74.).

Como forma de reduzir a assimetria informacional, Holmstrom (1979)HOLMSTROM, B. Moral hazard and observability. The Bell Journal of Economics. 1979. v. 10, n. 1, p. 74. enfatiza o papel da contabilidade gerencial; no entanto, o autor não afasta a possibilidade de renegociação de contratos, dentro de certos limites, como remédio para corrigir problemas associados ao comportamento do agente, buscando a promoção de benefícios para ambas as partes.

Para Lambert (2007)LAMBERT, R. A. Agency theory and management accounting. Handbooks of management accounting research, 2006, V. 1, p. 247-268., a posição proeminente onde o agente está, assegura o acesso a informações privilegiadas, que permite aumentar seus ganhos pessoais, principalmente porque sua intenção de permanecer na empresa é menor pela parte do agente do que a do principal, por isso necessita maximizar seu interesse pessoal em um curto prazo.

Segundo Baker, Jensen e Murphy (1988)BAKER, G. P.; JENSEN, M. C.; MURPHY, K. J. Compensation and incentives: practice vs. theory. The Journal of Finance. 1988. v. 43, n. 3, p. 593., regras contratuais podem influenciar o comportamento dentro de uma organização. Desta forma, a existência de mecanismos de incentivo e remuneração por desempenho podem auxiliar o processo motivacional dos agentes. Esta política organizacional pode estar associada a uma estrutura de remuneração variável com planos de bonificação, como a incentivo à promoção por mérito e benefícios adicionais, vislumbrando a construção de uma sólida carreira por parte do agente.

No entanto, o problema de criar incentivos para agentes é muito mais complexo do que a abordagem através do modelo principal-agente (HOLMSTROM; MILGROM, 1991HOLMSTROM, B.; MILGROM, P. Multitask Principal-Agent Analyses: Incentive Contracts, Asset Ownership, and Job Design. Journal of Law Economics & Organization, v. 745, n. 18, p. 24-52, 1991.). Por exemplo, na administração pública, os contratos são de curto prazo, quatro anos em média, e uma remuneração variável que poderia incentivar o desempenho do agente nem sempre é possível. O agente político, portanto, não pode ser recompensado financeiramente pelo seu mérito, exceto pelo reconhecimento da sociedade. Dependendo da formação dos valores éticos, este agente procuraria outras formas de compensar o seu ganho financeiro buscando alternativas ilícitas associadas à corrupção para satisfazer seus interesses pessoais.

Fundenberg, Holmstrom e Milgrom (1990)FUDENBERG, D.; HOLMSTROM, B.; MILGROM, P. Short-term contracts and long-term agency relationships. Journal of Economic Theory, v. 51, n. 1, p. 1-31, 1990. apontam que os contratos de curto prazo são suficientes para apoiar mecanismos eficazes; no entanto, apenas os contratos de longo prazo podem evitar recontratações em um ambiente de assimetria informacional. Portanto, a administração pública enfrenta um dilema, pois os contratos do agente são de curto prazo, mas eles precisariam de incentivos adicionais que apenas a contratação de longo prazo fornece.

Considerando toda a problemática apresentada, também é importante mencionar o estudo realizado por Cressey (1953)CRESSEY, D. R. Other People’s Money: A study in the social psychology of embezzlement. Glencoe, IL: The free press, 1953., que relata que alguns executivos condenados por crimes do colarinho branco, aproveitando de suas habilidades técnicas, sua posição estratégica na organização e por se sentir pressionado por dificuldades financeiras, vislumbram uma oportunidade de cometer fraude, a fim de solucionar temporariamente seus problemas, embora acabem aceitando o fato como uma atitude racional e justificável.

A teoria conhecida como Triângulo de Fraude consiste de três pilares ou vértices: pressão, oportunidade e racionalização (CHOO; TAN, 2007CHOO, F.; TAN, K. An “American Dream” theory of corporate executive Fraud. Accounting Forum, v. 31, n. 2, p. 203-215, 2007.). A pressão é algo que ocorreu na vida pessoal dos fraudadores e gera uma necessidade estressante que os obriga a defraudar. A oportunidade sugere que os fraudadores tenham conhecimento do negócio e percebam isso como uma oportunidade para cometerem a fraude. Por fim, a racionalização é um processo no qual um empregado-fraudador se autocondiciona a aceitar comportamentos fraudulentos como uma atitude correta (CHOO; TAN, 2007CHOO, F.; TAN, K. An “American Dream” theory of corporate executive Fraud. Accounting Forum, v. 31, n. 2, p. 203-215, 2007.).

Por analogia, no âmbito da Administração Pública na abordagem da Teoria da Agência têm-se de um lado os cidadãos como os principais, delegando o poder de gerir os bens de uma entidade a um terceiro através do processo democrático, mas para esse fim, o agente deve comprometer-se e agir pelo interesse público. Por outro lado, o agente começa a violar a responsabilidade de confiança e a quebrar intencionalmente os contratos para seu próprio benefício ou de outros. Isso é devido ao nível de complexidade da estrutura administrativa, do acesso a informações privilegiadas pelo agente, das falhas do sistema de governança que criam uma atmosfera de assimetria informacional, além do conflito de interesses entre principal e agente.

2.2. TRANSPARÊNCIA E O COMBATE À CORRUPÇÃO

A divulgação eletrônica tem um impacto positivo na redução da corrupção, que também é reduzida pela estabilidade política de um governo (SHIM; EOM, 2008SHIM, D. C.; EOM, T. H. E-Government and Anti-Corruption: Empirical Analysis of International Data. International Journal of Public Administration, v. 31, n. 3, p. 298-316, 2008.). Esta estabilidade, juntamente com a sustentação da democracia, restringe os comportamentos corruptos, que são mais facilmente identificados em sociedades democráticas com maiores níveis de transparência e accountability (SHIM; EOM, 2008SHIM, D. C.; EOM, T. H. E-Government and Anti-Corruption: Empirical Analysis of International Data. International Journal of Public Administration, v. 31, n. 3, p. 298-316, 2008.). Nesse sentido, Justice, Melitski e Smith (2006)JUSTICE, J. B.; MELITSKI, J.; SMITH, D. L. E-Government as an Instrument of Fiscal Accountability and Responsiveness: Do the Best Practitioners Employ the Best Practices? The American Review of Public Administration, v. 36, n. 3, p. 301-322, 2006. enfatizam que a participação social no processo orçamentário é um instrumento para promover a democracia, a transparência e a responsabilidade fiscal no uso de recursos públicos.

O exercício da accountability requer disponibilidade de informações e é resultado da atuação do governo, não se limitando aos requisitos da Lei de Responsabilidade Fiscal, da Lei de Acesso à Informação e da Lei da Transparência, mas deve ir além para fornecer informações compreensíveis aos cidadãos (RAUPP; PINHO, 2013RAUPP, Fabiano M.; PINHO, José A. G. Accountability em câmaras municipais: uma investigação em portais eletrônicos. Revista de Administração, v.48, n.4, p. 770-782, 2013.). Agostineto e Raupp (2010)AGOSTINETO, R. C.; RAUPP, F. M. Prestação de contas por meio de portais eletrônicos: um estudo em câmaras municipais da grande Florianópolis. Revista Universo Contábil, p. 64-79, 2010. perceberam um crescimento no uso de ferramentas eletrônicas no processo de publicação da prestação de contas, o que facilita o acompanhamento das ações dos agentes públicos pela sociedade.

O acesso à informação e a capacidade de monitoramento pelos cidadãos através do uso de tecnologias de informação e comunicação (TIC), que estão ligados a uma obrigação legal de implementar um governo eletrônico, conduz a um processo de promoção da transparência e com isso, tem-se uma alternativa mais econômica para combater a corrupção (BERLOT; JAEGER; GRIMES, 2010BERTOT, J. C.; JAEGER, P. T.; GRIMES, J. M. Using ICTs to create a culture of transparency: E-government and social media as openness and anti-corruption tools for societies. Government Information Quarterly, v. 27, n. 3, p. 264-271, 1988.; KOLSTAD; WIIG, 2009KOLSTAD, I.; WIIG, A. Is Transparency the Key to Reducing Corruption in Resource-Rich Countries? World Development, v. 37, n. 3, p. 521-532, 2009.).

Kierkegaard (2009)KIERKEGAARD, S. Open access to public documents - More secrecy, less transparency! Computer Law and Security Review, v. 25, n. 1, p. 3-27, 2009. afirma que a disponibilidade de informação é a base da democracia e da boa administração e permite que a sociedade participe do processo de decisão política que afeta suas vidas. Além disso, o autor revela que uma gestão pública aberta desperta a população para um sentimento confiante de que o governo está agindo em prol do interesse público. Considerando o acima mencionado, a transparência pode reduzir a corrupção, tornando os atos corruptos mais arriscados (KOSTALD; WIIG, 2009KOLSTAD, I.; WIIG, A. Is Transparency the Key to Reducing Corruption in Resource-Rich Countries? World Development, v. 37, n. 3, p. 521-532, 2009.).

Um exemplo de que o governo eletrônico pode ajudar a reduzir a corrupção é o estudo realizado por Andersen (2009)ANDERSEN, T. B. E-Government as an anti-corruption strategy. Information Economics and Policy, v. 21, n. 3, p. 201-210, 2009.. O autor ao analisar o comportamento da corrupção em 146 países e durante um período de 10 anos (1996 a 2006), mostrou empiricamente que uma implementação do governo eletrônico reduziu drasticamente a corrupção. Ele mostrou que as TICs são ferramentas úteis para auxiliar os esforços globais para reduzir a corrupção, que é um obstáculo para o desenvolvimento e afeta negativamente os níveis de eficiência, de produtividade, de progresso tecnológico e a taxa de crescimento econômico a longo prazo (SALINAS-JIMÉNEZ; SALINAS-JIMÉNEZ, 2007SALINAS-JIMÉNEZ, M. DEL M.; SALINAS-JIMÉNEZ, J. Corruption, efficiency and productivity in OECD countries. Journal of Policy Modeling, v. 29, n. 6, p. 903-915, 2007.).

No entanto, o uso das tecnologias da informação nem sempre é uma garantia de sucesso. Berlot, Jaeger e Grimes (2010)BERTOT, J. C.; JAEGER, P. T.; GRIMES, J. M. Using ICTs to create a culture of transparency: E-government and social media as openness and anti-corruption tools for societies. Government Information Quarterly, v. 27, n. 3, p. 264-271, 1988. salientam que, apesar do histórico positivo sobre o uso de tecnologias, existe sempre um risco de manipulação de informação ou mesmo censura por parte de agentes públicos em razão de aspectos culturais ou interesse restritivo. Para os autores, o sucesso das iniciativas tecnológicas baseia-se em fatores como a implementação efetiva de tecnologia e acesso amplo, educação, cultura e aceitação pela população, que envolvem um processo de maturação e desenvolvimento social em um período de tempo mais longo. Kolstad e Wiig (2009)KOLSTAD, I.; WIIG, A. Is Transparency the Key to Reducing Corruption in Resource-Rich Countries? World Development, v. 37, n. 3, p. 521-532, 2009. enfatizam que, além do acesso à informação, é necessário possuir recursos disponíveis para processar a informação e incentivo para atuar sobre essas informações processadas.

Kolstad e Wiig (2009)KOLSTAD, I.; WIIG, A. Is Transparency the Key to Reducing Corruption in Resource-Rich Countries? World Development, v. 37, n. 3, p. 521-532, 2009. relatam que o papel da transparência na redução da corrupção é mal compreendido, porque em alguns casos pode aumentar a corrupção. Os autores apontaram que o excesso de transparência poderia revelar quem são os agentes mais importantes que poderiam ser alvo de contatos com o objetivo de ser assediado para a obtenção de vantagem injusta daqueles que subornam, aumentando o grau de corrupção. Por outro lado, o impacto positivo da transparência depende do nível de educação do eleitorado, do grau de poder que os stakeholders têm em responsabilizar um governo e da natureza coletiva ou privada sobre a qual a informação é fornecida.

No ramo da administração pública, poucos estudos abordam a relação entre os dados de gestão financeira pública e os padrões de transparência e as consequentes implicações no julgamento das contas. O julgamento pela irregularidade das contas poderia se um indicativo de erros, fraude ou mesmo a confirmação da presença da corrupção. Além disso, o estudo procura contribuir para reduzir a falta de estudos que se concentrem nos métodos de detecção de fraudes (DORMINEY et al., 2012). Este estudo pretende preencher a lacuna na literatura e verificar se existe uma aderência entre o nível de transparência municipal e o modelo da Lei de Benford, no processo de execução das despesas públicas municipais.

3. METODOLOGIA DE PESQUISA

Este estudo pode ser caracterizado como uma pesquisa exploratória. A pesquisa exploratória visa trazer uma visão geral sobre um assunto em particular, ainda que pouco explorado, esclarecendo e simultaneamente incentivando futuros estudos através de procedimentos mais sistemáticos (GIL, 2012GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6ª ed São Paulo: Atlas, 2012.).

A pesquisa sobre a aplicação da Lei de Benford no contexto da contabilidade e auditoria evoluiu nos últimos 20 anos. No entanto, a associação entre a divulgação das despesas públicas e transparência municipal ainda é um campo relativamente inexplorado por pesquisadores. Perguntas como: “Um município com um maior índice de transparência tem uma maior correspondência com a Lei de Benford?” ainda não foram respondidas. É por isso que este estudo está inserido em pesquisas exploratórias.

A Lei de Benford foi originalmente descrita pelo astrônomo e matemático canadense-americano Simon Newcomb, em 1881NEWCOMB, S. Note on the frequency of use of the different digits in natural numbers. American Journal of Mathematics, v. 4, n. 1, p. 39-40, 1881., quando este percebeu que as tabelas de logaritmos tinham desgaste maior nas primeiras do que nas últimas páginas, isto é, a frequência de uso diminuía à medida que os números se aproximavam de nove. Assim, Newcomb (1881)NEWCOMB, S. Note on the frequency of use of the different digits in natural numbers. American Journal of Mathematics, v. 4, n. 1, p. 39-40, 1881. foi bem sucedido em estabelecer uma relação de probabilidade de ocorrência do primeiro e segundo dígitos associados ao uso das tabelas de logaritmos.

A Tabela 1 mostra a distribuição de probabilidade para a ocorrência do primeiro e segundo dígitos verificados por Newcomb.

Tabela 1
Probabilidade de ocorrência do primeiro e segundo dígito

O estudo de Newcomb permaneceu no esquecimento por vários anos até ser redescoberto pelo físico e engenheiro eletricista norte-americano Frank Benford (1938)BENFORD, F. The Law of Anomalous Numbers. American Philosophical Society, v. 78, n. 4, p. 551-572, 1938., que generalizou os estudos sobre a probabilidade de ocorrência de dígitos para várias outras aplicações, como o peso molecular, comprimento dos rios, população dos Estados Unidos, taxas de mortalidade.

Benford chegou à mesma conclusão que Newcomb, que as pessoas geralmente buscam números de dígitos inferiores aos dígitos mais altos (DURTSCHI; HILLISON; PACINI, 2004DURTSCHI, C.; HILLISON, W.; PACINI, C. The Effective Use of Benford’ s Law to Assist in Detecting Fraud in Accounting Data. Journal of Forensic Accounting, v. 99, n. 99, p. 17-34, 2004.). Durtschi, Hillison e Pacini (2004)DURTSCHI, C.; HILLISON, W.; PACINI, C. The Effective Use of Benford’ s Law to Assist in Detecting Fraud in Accounting Data. Journal of Forensic Accounting, v. 99, n. 99, p. 17-34, 2004. destacam que a Lei de Benford já faz parte de vários softwares de auditoria devido à sua utilidade, entre os quais ACL® e CaseWare®. Estes mesmos auxiliam na detecção de possíveis erros, fraudes e outras irregularidades e atuam como uma ferramenta analítica para a fase de planejamento de auditoria.

A análise de Benford ganhou uma grande repercussão em consequência de sua ampla aplicação. A partir desse ponto, vários estudos foram realizados com o modelo de probabilidade dos dígitos. A inclusão de dados falsos em bancos de dados (DEBRECENY; GRAY, 2010DEBRECENY, R. S.; GRAY, G. L. Data mining journal entries for fraud detection: An exploratory study. International Journal of Accounting Information Systems, v. 11, n. 3, p. 157-181, 2010.) e associação à falsificação de imagens e documentos (USTUBIOGLU, 2016USTUBIOGLU, B. et al. A new copy move forgery detection technique with automatic threshold determination. AEU - International Journal of Electronics and Communications, v. 70, n. 8, p. 1076-1087, 2016.) foi analisada na área de Tecnologia da Informação. No campo da Estatística, anomalias foram identificadas no PIB da China, o que poderia indicar uma manipulação de valores (HOLS, 2014HOLZ, C. A. The quality of China’s GDP statistics. China Economic Review, v. 30, n. June 2012, p. 309-338, 2014.). A Lei de Benford também indicou possíveis manipulações de estatísticas da qualidade do ar em Pequim (STOERK, 2016STOERK, T. Statistical corruption in Beijing’s air quality data has likely ended in 2012. Atmospheric Environment, v. 127, p. 365-371, 2016.). Leeman e Bochsler (2014)LEEMANN, L.; BOCHSLER, D. A systematic approach to study electoral fraud. Electoral Studies, v. 35, p. 33-47, 2014. adotaram o modelo para detectar fraude eleitoral.

O primeiro estudo de aplicação da Lei de Benford no campo da contabilidade e auditoria, de acordo com Costa, Santos e Travassos (2013)COSTA, J. I. DE F.; TRAVASSOS, S. K. DE M.; SANTOS, J. DOS. Application of Newcomb-Benford Law in Accounting Audit: a bibliometric analysis in the period from 1988 to 2011. 10th International Conference on Information Systems and Technology Management - CONTECSI. Anais...São Paulo: 2013., foi o de Carslaw, que comparou a frequência esperada do primeiro dígito do lucro bruto antes dos impostos com o lucro líquido de 220 empresas com ações negociadas na Nova Zelândia.

Outros estudos também foram observados na auditoria. Nigrini (2005)NIGRINI, M. J. An Assessment of the Change in the Incidence of Earnings Management Around the Enron‐Andersen Episode. Review of Accounting and Finance, v. 4, n. 1, p. 92-110, 2005., por exemplo, identificou ao usar a Lei de Benford, a manipulação de valores de receita e lucro por ação nos relatórios financeiros de 2001 e 2002 da Enron, que deu origem a sua falência. Cunha e Bugarin (2015)CUNHA, F. C.; BUGARIN, M. S. Benford’s law for audit of public works: An analysis of overpricing in Maracanã soccer arena’s renovation. Economics Bulletin, v. 35, n. 2, p. 1168-1176, 2015. usaram a Lei de Benford como ferramenta de auditoria de obras públicas e dos contratos de reforma do estádio de Futebol Maracanã para a copa do mundo de 2014 e detectaram a ocorrência de superfaturamento.

O teste Z e teste de qui-quadrado estão entre os mais utilizados para verificar a conformidade com a Lei de Benford (NIGRINI, 2012NIGRINI, M. J. Applications for forensic accounting, auditing, and fraud detection. John Wiley & Sons, Inc.: Hoboken, New Jersey. 2012.). Costa, Santos e Travassos (2012)COSTA, J. I. F.; SANTOS, J.; TRAVASSOS, S. K. M. An Analysis of Federal Entities’ Compliance with Public Spending: Applying the Newcomb-Benford Law to the 1st and 2nd Digits of Spending in Two Brazilian States. Revista Contabilidade & Finanças, v. 23, n. 60, p. 187-198, 2012., Santos, Tenório e Silva (2003)SANTOS, J.; TENÓRIO, J. N. B.; SILVA, L. G. C. Uma aplicação da teoria das probabilidades na Contabilometria: A Lei Newcomb-Benford como medida para análise de dados no campo da Auditoria Contábil. Contabilidade, Gestão e Governança, v. 6, n. 1, p. 35-54, 2003. e Santos et al. (2009)SANTOS, J. DOS et al. Aplicações da lei de Newcomb-Benford na auditoria tributária do imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISS). Revista Contabilidade & Finanças, v. 20, n. 49, p. 79-94, 2009. também adotaram uma metodologia semelhante à de Carslaw (1988)CARSLAW, C. A. P. Anomalies in Income Numbers: Evidence of Goal Oriented Behavior. The Accounting Review, v. LXIII, n. 2, p. 321-327, 1988. quanto ao uso dos testes estatísticos Z e Qui-quadrado.

Os testes Z e Qui-quadrado são estatisticamente mais significativos e práticos para emitir conclusões nas atividades de auditoria, especialmente quando aplicadas a um grande volume de dados (KRAKAR; ZGELA, 2009KRAKAR, Z.; ZGELA, M. Application of Benford’s Law in payment systems auditing. Journal of Information and Organizational Sciences, v. 33, n. 1, p. 39-51, 2009.).

O objeto de estudo deste trabalho é a despesa pública e o tema é a Lei de Benford e a transparência municipal. Para tanto, duas fontes de informação secundária para realizar o estudo foram utilizadas: Ranking Nacional de Transparência do Ministério Público Federal (MPF) e os portais de transparência dos municípios selecionados.

Foi utilizado o mais recente Ranking Nacional de Transparência para os municípios de Goiás, desenvolvido pelo MPF (MPF, 2016MPF, Ministério Público Federal. Ranking Nacional da Transparência - Resultados. Disponível em: <http://combateacorrupcao.mpf.mp.br/ranking/mapa-da-transparencia/ranking/resultados>. Acessado em: 31 de julho. 2016.
http://combateacorrupcao.mpf.mp.br/ranki...
), resultado da segunda avaliação nacional. O ranking foi escolhido com base no tamanho da proposta, que era de nível nacional e tinha apoio de órgãos nacionais de controle, e por causa dos recentes resultados alcançados pelas ações promovidas pelo MPF. Essas ações recentes mostraram uma melhoria no ranking de transparência em 31%, de acordo com informações do Observatório Social (OBSERVATÓRIO SOCIAL, 2016OBSERVATÓRIO SOCIAL DO BRASIL. Ranking Nacional de Transparência do MPF constata 31% de elevação em 6 meses. Disponível em: <http://osbrasil.org.br/ranking-nacional-de-transparencia-do-mpf-constata-31-de-elevacao-em-6-meses/>. Acessado em: 31 de julho. 2016.
http://osbrasil.org.br/ranking-nacional-...
).

Nesta pesquisa, dois municípios no estado de Goiás foram escolhidos para fins exploratórios e comparativos: um com maior e outro com menor índice de transparência, de acordo com a classificação publicada na segunda avaliação do MPF. A pesquisa limitou-se a apenas dois municípios, assim, o nome dos municípios foi omitido para preservar a imagem de cada um e não fazer uma diferenciação injusta, adotando a tipologia isonômica de Costa, Santos e Travassos (2012)COSTA, J. I. F.; SANTOS, J.; TRAVASSOS, S. K. M. An Analysis of Federal Entities’ Compliance with Public Spending: Applying the Newcomb-Benford Law to the 1st and 2nd Digits of Spending in Two Brazilian States. Revista Contabilidade & Finanças, v. 23, n. 60, p. 187-198, 2012..

O município com maior transparência será denominado “Município A” e aquele com menor transparência, “Município B”. O critério para a seleção dos dois municípios foi o uso do mesmo sistema ou a adoção de um sistema similar de divulgação de informações de despesa pública, ou seja, através do portal de transparência. Além disso, verificou-se se o potencial do sistema para exportar dados em formato de planilha compatível com o Microsoft Excel®.

Considerando que o Estado de Goiás tem 246 municípios, foram selecionados dois municípios com características similares: pequeno porte (população entre 15.000 a 20.000 habitantes); crescimento populacional inferior a 2%; ambos localizados fora da região metropolitana (mais de 300 km da Capital); com valor adicionado bruto a preço básico da administração pública próximo a R$ 60 milhões/ano (dados baseados em 2014). As despesas municipais atuais para 2014 variam de 30 a 40 milhões de reais; mesmo número de escolas em 2015; e índice de desenvolvimento humano (IDH) classificado como próximo de alto (0,700) no último censo (2010). As informações sobre os municípios foram obtidas através do Instituto Mauro Borges (IMB, 2016IMB, INSTITUTO MAURO BORGES. Perfil Socioeconômico dos Municípios Goianos. Available at: < http://www.imb.go.gov.br/> Visited: 27 fev. 2017.
http://www.imb.go.gov.br/...
).

O município com maior transparência (+ T) estava classificado no primeiro decil (posição 1 a 24) da classificação do MPF e o de menor transparência (-t) no oitavo decil (posição 175 a 199) devido à capacidade dos portais de transparência para exportação dos arquivos das despesas públicas.

3.1. COLETA DE DADOS

A pesquisa do MPF foi realizada em meados de maio de 2016. Portanto, uma amostra equivalente a todas as despesas empenhadas por cada um dos dois municípios no primeiro quadrimestre do exercício corrente foi selecionada para realizar esta pesquisa exploratória. Em outras palavras, foi coletada a amostra de janeiro a abril de 2016 e com valores acima de R$1,00, para garantir que o primeiro dígito diferisse de zero, como forma de validar a Lei de Benford.

A amostra do município “A” representou um total de 1.453 empenhos no montante de R$21.291.309,23 relativos a três unidades gestoras. A amostra do município “B” foi de 1.615 empenhos, totalizando R$17.877.974,15 de cinco unidades de gestoras. Por esse motivo, este estudo considera para os dois municípios um total de 3.068 empenhos no montante de R$39.116.283,38, ou seja, um pouco menos de 40 milhões de reais. Os dados foram extraídos dos portais de transparência de cada município e transportados para planilhas eletrônicas, com auxílio do software Microsoft Excel®.

3.2. MODELO ESTATÍSTICO

Foram aplicadas neste estudo os testes estatísticos Z e qui-quadrado ou teste χ2, adotando o modelo de Nigrini (2012)NIGRINI, M. J. Applications for forensic accounting, auditing, and fraud detection. John Wiley & Sons, Inc.: Hoboken, New Jersey. 2012., que é semelhante ao modelo da Carslaw (1988)CARSLAW, C. A. P. Anomalies in Income Numbers: Evidence of Goal Oriented Behavior. The Accounting Review, v. LXIII, n. 2, p. 321-327, 1988., Costa et al. (2012)COSTA, J. I. F.; SANTOS, J.; TRAVASSOS, S. K. M. An Analysis of Federal Entities’ Compliance with Public Spending: Applying the Newcomb-Benford Law to the 1st and 2nd Digits of Spending in Two Brazilian States. Revista Contabilidade & Finanças, v. 23, n. 60, p. 187-198, 2012., Santos et al. (2003)SANTOS, J.; TENÓRIO, J. N. B.; SILVA, L. G. C. Uma aplicação da teoria das probabilidades na Contabilometria: A Lei Newcomb-Benford como medida para análise de dados no campo da Auditoria Contábil. Contabilidade, Gestão e Governança, v. 6, n. 1, p. 35-54, 2003. e Santos et al. (2009)SANTOS, J. DOS et al. Aplicações da lei de Newcomb-Benford na auditoria tributária do imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISS). Revista Contabilidade & Finanças, v. 20, n. 49, p. 79-94, 2009.. Portanto, adotou-se os testes de hipóteses para detectar diferenças de distribuição de probabilidade nos testes Z (1) e teste de qui-quadrado (2 e 3) para analisar a probabilidade de distribuição esperada e a probabilidade observada de acordo com a Lei de Benford, de acordo com as seguintes equações:

(1) Z = p o p e 1 2 n p o 1 p e n

onde po é a probabilidade observada; obtida através da divisão entre a frequência observada para cada dígito pelo número de observações; pe é a probabilidade esperada, correspondente à probabilidade de ocorrência prevista na Lei de Benford; n é o número de observações; 1/2n é o termo de correção de continuidade e é usado apenas quando é menor do que |po-pe| . Foi adotado um nível de significância de α = 0.05, com um Zcritico = 1,96, adaptado de Costa et al. (2012)COSTA, J. I. F.; SANTOS, J.; TRAVASSOS, S. K. M. An Analysis of Federal Entities’ Compliance with Public Spending: Applying the Newcomb-Benford Law to the 1st and 2nd Digits of Spending in Two Brazilian States. Revista Contabilidade & Finanças, v. 23, n. 60, p. 187-198, 2012..

(2) χ 2 = d = 1 9 p 0 d p e d 2 p e d , aplicado ao primeiro d í gito
(3) χ 2 = d = 0 9 p 0 d p e d 2 p e d , aplicado ao segundo d í gito

onde po(d) é a proporção observada e pe(d) é a proporção esperada, definida por:

po(d) = (), onde po(d) e fo variam de acordo com cada dígito: primeiro ou segundo, de 1 a 9 ou de 0 a 9, respectivamente, pe(d) é a proporção de cada dígito, de acordo com a Lei de Benford (Tabela 1).

De forma complementar, a frequência esperada (fe) é obtida através da multiplicação da proporção esperada pe(d) pelas observações totais (n). Por exemplo, considerando-se que 424 é a frequência observada (fo) do primeiro dígito, sendo esse dígito 1. Além disso, considere que o total de observações é de 1.453. Assim, a proporção observada po(d) corresponde a 0,291 (424/1.453) e a proporção esperada pe(d) de acordo com a Lei de Benford é de 0,301 (Tabela 1).

A equação (2) é utilizada para o primeiro dígito e a equação (3) para as outras posições. Foi adotado um nível de significância α = 0,05, para um grau de liberdade 8 (primeiro dígito) e 9 (segundo dígito), obtendo-se valores críticos para o qui-quadrado de 15,507 e 16,919, adaptado de Costa, Santos e Travassos (2012)COSTA, J. I. F.; SANTOS, J.; TRAVASSOS, S. K. M. An Analysis of Federal Entities’ Compliance with Public Spending: Applying the Newcomb-Benford Law to the 1st and 2nd Digits of Spending in Two Brazilian States. Revista Contabilidade & Finanças, v. 23, n. 60, p. 187-198, 2012. e Santos, Diniz e Corrar (2005)SANTOS, J.; DINIZ, J. A.; CORRAR, L.J. The Focus is the Sampling Theory in the Fields of Traditional Accounting Audit and Digital Audit: testing the Newcomb-Benford Law for the first digit in public accounts. BBR Brazilian Business Review, v. 2, n. 1, p. 69-86, 2005..

Em razão do problema proposto neste estudo, estabeleceu-se as seguintes hipóteses para a distribuição, considerando o teste Z:

Teste Z para o primeiro dígito:

H0A: não há risco de ocorrência de irregularidades nas despesas públicas municipais

H1A: há risco de ocorrência de irregularidades nas despesas públicas municipais

Teste Z para o segundo dígito:

H0B: não há risco de ocorrência de irregularidades nas despesas públicas municipais

H1B: há risco de ocorrência de irregularidades nas despesas públicas municipais

As seguintes hipóteses foram estabelecidas para o teste de qui-quadrado:

Teste de Qui-quadrado para o primeiro dígito:

H0C: não há risco de ocorrência de irregularidades nas despesas públicas municipais

H1C: há risco de ocorrência de irregularidades nas despesas públicas municipais

Teste de Qui-quadrado para o segundo dígito:

H0D: não há risco de ocorrência de irregularidades nas despesas públicas municipais

H1D: há risco de ocorrência de irregularidades nas despesas públicas municipais.

De acordo com Nigrini (2012)NIGRINI, M. J. Applications for forensic accounting, auditing, and fraud detection. John Wiley & Sons, Inc.: Hoboken, New Jersey. 2012., o teste Z em si não combina a análise da totalidade dos dígitos para se obter uma ideia da extensão geral da não conformidade. Não se pode adicionar ou combinar as estatísticas Z de forma conjunta para ter uma idéia da extensão geral da não-conformidade. O autor considera que uma extensão da estatística Z é um teste combinado para os dígitos usando os testes qui-quadrado ou Kolmogorov-Smirnov (KS).

Considerando que o teste do qui-quadrado é mais utilizado do que o teste KS para a aplicação da Lei de Benford no âmbito da auditoria e na pesquisa sobre fraudes, o teste qui-quadrado foi escolhido. Como exemplos de escolha, estudos realizados por Santos, Diniz e Corrar (2005)SANTOS, J.; DINIZ, J. A.; CORRAR, L.J. The Focus is the Sampling Theory in the Fields of Traditional Accounting Audit and Digital Audit: testing the Newcomb-Benford Law for the first digit in public accounts. BBR Brazilian Business Review, v. 2, n. 1, p. 69-86, 2005., Nigrini (2005)NIGRINI, M. J. An Assessment of the Change in the Incidence of Earnings Management Around the Enron‐Andersen Episode. Review of Accounting and Finance, v. 4, n. 1, p. 92-110, 2005., Nigrini (2005)NIGRINI, M. J. An Assessment of the Change in the Incidence of Earnings Management Around the Enron‐Andersen Episode. Review of Accounting and Finance, v. 4, n. 1, p. 92-110, 2005., Costa, Santos e Travassos (2012)COSTA, J. I. F.; SANTOS, J.; TRAVASSOS, S. K. M. An Analysis of Federal Entities’ Compliance with Public Spending: Applying the Newcomb-Benford Law to the 1st and 2nd Digits of Spending in Two Brazilian States. Revista Contabilidade & Finanças, v. 23, n. 60, p. 187-198, 2012., Krakar e Zgela (2009)KRAKAR, Z.; ZGELA, M. Application of Benford’s Law in payment systems auditing. Journal of Information and Organizational Sciences, v. 33, n. 1, p. 39-51, 2009. e Silva, Travassos e Costa (2017)SILVA, W. B.; TRAVASSOS, S. K. M.; COSTA, J. I. F. Using the Newcomb-Benford Law as a Deviation Identification Method in Continuous Auditing Environments: A Proposal for Detecting Deviations over Time. Revista Contabilidade & Finanças, v. 28, n. 73, p. 11-26, 2017. podem ser mencionados.

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Nesta seção, os dados relativos às despesas empenhadas nos municípios “A” e “B” e relativas ao primeiro quadrimestre de 2016 (janeiro a abril) serão apresentados e analisados. As despesas consideradas neste estudo estão representadas na Tabela 2:

Tabela 2
Despesas analisadas nos dois municípios

4.1. ANÁLISE DAS DESPESAS DO MUNICÍPIO “A” (+T)

Os dados relativos à análise do primeiro dígito dos valores das despesas no município “A” são apresentados na tabela 3.

Tabela 3
Teste do 1º dígito do município "A" (+T)

Identificou-se uma discrepância em relação à Lei de Benford em empenhos emitidos com valor monetário com os números 2 e 6 considerando a aplicação do teste Z para o primeiro dígito (Tabela 3). A medida estatística Z foi maior do que o valor crítico (1,96) para ambos os números (2 e 6). O teste de qui-quadrado aplicado aos valores globais revelou um valor de 33,500, que é superior ao crítico. Isso revela que os empenhos em sua totalidade não estão em conformidade com a Lei de Benford, que sugere a decisão de rejeitar as hipóteses H0A e H0C. Portanto, esses empenhos possuem maior risco de irregularidades e devem ser avaliados com cautela devido ao total estar em desacordo com a Lei de Benford e que houve divergência individual nos números 2 e 6.

O segundo teste realizado no município “A” considerou o segundo dígito dos valores dos empenhos, conforme mostrado na Tabela 4.

Tabela 4
Teste do 2º dígito do município "A" (+T)

A aplicação do teste Z para o segundo dígito indicou discrepância da Lei de Benford em relação aos empenhos com valores monetários com os números 0, 4, 7 e 8 para o segundo dígito. A medida estatística Z ficou acima do valor crítico (1,96) para os dígitos 0, 4, 7 e 8. Para este número, o teste de qui-quadrado apresentou um resultado de 143,307, que é maior do que o valor crítico. Considerando os resultados dos testes de Z e Qui-quadrado, as hipóteses H0B e H0D foram rejeitadas. Isso revela que os empenhos em seus valores totais não estão em conformidade com o estabelecido pela Lei de Benford. Consequentemente, um sinal de alerta é evidenciado, considerando que estão em desconformidade com a Lei de Benford e que houve divergência individual nos dígitos 0, 4, 7 e 8.

4.2 ANÁLISE DAS DESPESAS DO MUNICÍPIO B (-T)

Os dados relativos à análise do primeiro dígito dos valores dos empenhos no Município “B” são apresentados na Tabela 5:

Tabela 5
Teste do 1º dígito do Município "B" (-t)

A aplicação do teste Z para o primeiro dígito mostrou discrepância em relação à Lei de Benford para os empenhos emitidos com valor monetário com os números 1, 3, 5, 6 e 9 (Tabela 5). A medida estatística Z estava acima do valor crítico (1,96) para os números 1, 3, 5, 6 e 9. O teste de qui-quadrado resultou em 67,605, que é superior ao valor crítico. Isso indica que as despesas totais não estão de acordo com a Lei de Benford, então, considerando o teste Z e teste de qui-quadrado, sugere-se a rejeição das hipóteses H0A e H0C.

É necessário dar atenção especial ao analisar esses empenhos, que têm maior probabilidade de ocorrência de irregularidades, levando em conta que as despesas empenhadas estão em desconformidade com a Lei de Benford e que houve divergência individual nos números 1, 3, 5, 6 e 9.

A Tabela 6 apresenta o outro teste realizado, em relação ao segundo dígito da despesa do município “B”.

Tabela 6
Teste do 2º dígito do Município "B" (-t)

Os testes do primeiro dígito mostraram discrepâncias em relação à Lei de Benford no Município “B”. O teste do segundo dígito apresentado na Tabela 6 agrava ainda mais as diferenças.

O teste Z para o segundo dígito apontou discrepâncias em relação à Lei de Benford para as despesas empenhadas com valor monetário com os números 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 8 e 9, em outras palavras, apenas o número 7 não mostrou diferenças significativas. O teste Z estava acima do valor crítico (1,96) para os números 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 8 e 9. Por sua vez, o teste do qui-quadrado calculado para o segundo dígito também mostrou um valor maior que o crítico. Portanto, de acordo com o teste Z e qui-quadrado, sugere-se a rejeição das hipóteses H0B e H0D. Não há conformidade com a Lei de Benford, considerando o valor total dos empenhos emitidos, principalmente devido à influência da discrepância no número 0 (teste de qui-quadrado = 218,950).

A inconformidade individual dos valores do qui-quadrado para os números 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 8, 9 e total, em relação à Lei de Benford, são um forte indicativo para as despesas empenhadas apresentarem irregularidades. No entanto, o teste aplicado ao segundo dígito aponta problemas na maioria das despesas, o que pode limitar a análise da auditoria devido ao grande tamanho da amostra, pois nove dos dez dígitos apresentam problemas.

4.3. RESUMO CONJUNTO DOS DADOS DOS DOIS MUNICÍPIOS

São mostrados na Tabela 7 os dígitos que não apresentaram conformidade com a Lei de Benford, após os testes de Z e qui-quadrado.

Tabela 7
Resumo das discrepâncias em relação aos testes Z e χ2 para os municípios "A" e "B".

A rejeição da hipótese nula para os valores globais dos empenhos emitidos pelos dois municípios é evidente, pois o qui-quadrado calculado é maior que o valor crítico para o primeiro e segundo dígitos (Tabela 7). Assim, existem fortes indícios de uma probabilidade de encontrar irregularidades nas despesas empenhadas nos dois municípios.

O município “A” (+T) apresentou menor quantidade de dígitos em discordância com a Lei de Benford, para os testes realizados com o primeiro e segundo dígitos. O município “B” (-t) apresentou um número maior de dígitos inconsistentes com a Lei de Benford no primeiro e segundo dígitos, a saber, cinco dígitos em desacordo ao testar o primeiro dígito e nove para o segundo dígito.

Quanto à discrepância dos dígitos, Santos et at. (2009)SANTOS, J. DOS et al. Aplicações da lei de Newcomb-Benford na auditoria tributária do imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISS). Revista Contabilidade & Finanças, v. 20, n. 49, p. 79-94, 2009. avaliou a aplicação da Lei de Benford em uma auditoria de impostos sobre serviços de qualquer natureza (ISS) em uma cidade do Estado do Nordeste e descobriu que as diferenças encontradas para os dígitos 2, 7 e 8 foram associados à sonegação fiscal, ou seja, o maior percentual de notas fiscais não declaradas às autoridades fiscais. O autor mostrou que o teste de qui-quadrado foi maior do que o valor crítico (67,409>15,507) e o teste Z para os dígitos 2, 7 e 8 também apresentaram valores acima do valor crítico.

Os dados dos autores acima mencionados corroboram com os resultados obtidos neste estudo, comprovando com uma aplicação prática, que existe uma maior probabilidade de fraude ou irregularidades quando os resultados do teste apresentam valores que excedem os limites críticos. Os valores de teste Z para o primeiro dígito foram extrapolados para os números 2 e 6 no município “A” (+T) e 1, 3, 5, 6 e 9 no município “B” (-t). A avaliação do segundo dígito mostrou discrepâncias para os números 0, 4, 7, 8 para o município “A” (+T) e 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 8 e 9 para o município “B” (-t). Vale ressaltar que ambos os municípios excederam o valor crítico do teste do qui-quadrado.

Nigrini (2005)NIGRINI, M. J. An Assessment of the Change in the Incidence of Earnings Management Around the Enron‐Andersen Episode. Review of Accounting and Finance, v. 4, n. 1, p. 92-110, 2005. avaliou os valores de receita e lucro por ação nas demonstrações financeiras da Enron de 2001 e 2002 e encontrou um valor do qui-quadrado de 18,90, provando ser superior ao ponto crítico de distribuição (15,51) com um nível de significância de 5%. Um padrão semelhante foi registrado neste estudo, onde o valor do qui-quadrado também foi superior ao nível crítico para o primeiro e segundo dígitos, para ambos os municípios analisados.

Costa et al. (2012)COSTA, J. I. F.; SANTOS, J.; TRAVASSOS, S. K. M. An Analysis of Federal Entities’ Compliance with Public Spending: Applying the Newcomb-Benford Law to the 1st and 2nd Digits of Spending in Two Brazilian States. Revista Contabilidade & Finanças, v. 23, n. 60, p. 187-198, 2012. observaram desvios maiores, respectivamente, nos dígitos 6, 7, 8 e 9, onde a ocorrência dos dígitos 7 e 8 aumentou e os dígitos 9 e 6 reduziu, considerando a proporção prevista pela Lei de Benford.

Krakar e Zgela (2009)KRAKAR, Z.; ZGELA, M. Application of Benford’s Law in payment systems auditing. Journal of Information and Organizational Sciences, v. 33, n. 1, p. 39-51, 2009. avaliaram 1.745.311 transações financeiras entre agentes comerciais e agentes financeiros da Croácia, de fevereiro a maio de 2008. Para tanto, os autores avaliaram o primeiro, o segundo e os primeiros dois dígitos através dos testes de qui-quadrado, Z e Desvio Médio Absoluto (DMA), e encontraram desvios significativos nos números 5 e 9 no teste do primeiro dígito, recomendando uma investigação mais detalhada dos dados.

De acordo com Silva, Travassos e Costa (2017)SILVA, W. B.; TRAVASSOS, S. K. M.; COSTA, J. I. F. Using the Newcomb-Benford Law as a Deviation Identification Method in Continuous Auditing Environments: A Proposal for Detecting Deviations over Time. Revista Contabilidade & Finanças, v. 28, n. 73, p. 11-26, 2017., a identificação de discrepâncias nas despesas públicas através do uso da Lei de Benford permite a elaboração de trilhas de auditoria. As trilhas, por sua vez, conduzirão a equipe de auditoria a uma melhor otimização de recursos humanos e tempo para a seleção da amostra com pontos relevantes no processo de fiscalização de recursos.

A Tabela 8 exibe em resumo os números que não estão em conformidade com a Lei de Benford, além da porcentagem que representa a despesa empenhada individualmente com esses algarismos (1º e 2º dígitos) em relação ao total de cada município.

Tabela 8
Despesas empenhada em que os primeiros dígitos não estão em conformidade com a Lei de Benford

O município “B” (-t) tem mais números em discordância com a Lei de Benford do que o município “A” (+T), tanto para o 1º como para o 2º dígito (Tabela 8). A disparidade entre os dois municípios é ainda mais notável em relação ao montante de despesas empenhadas em cada município. Os números em discordância no município “B” (-t) (1, 3, 5, 6 e 9), considerando o teste Z para o primeiro dígito representou 63,39% da despesa total empenhada. A discordância dos números 2 e 6 observados para o município “A” (+T) representou 29,35% da despesa empenhada.

A disparidade entre os dois municípios aumenta ainda mais ao aplicar o teste Z no segundo dígito dos valores dos empenhos. Os números em discordância no município “B” (-t) (0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 8 e 9) representaram 91,31% da despesa empenhada neste mesmo município. Por sua vez, a inconsistência dos números 0, 4, 7, 8 no município “A” (+T) corresponde a 38,16% da despesa empenhada.

Cunha e Bugarin (2015)CUNHA, F. C.; BUGARIN, M. S. Benford’s law for audit of public works: An analysis of overpricing in Maracanã soccer arena’s renovation. Economics Bulletin, v. 35, n. 2, p. 1168-1176, 2015. identificaram uma cobrança excessiva de R$ 41.601.247,32 nos primeiros dígitos 11 e 25 dos custos individuais dos serviços, representando 27,74% do superfaturamento determinado na auditoria do Tribunal de Contas da União. No presente estudo, as não-conformidades com a Lei de Benford foram encontradas em 29,35% e 63,39% do total da despesa empenhada nos municípios “A” e “B”, respectivamente, para o primeiro dígito e 38,16% e 91,31% para o segundo dígito.

Além disso, com base na teoria econômica, alguns contratos da administração pública com agentes políticos apresentam imperfeições, porque eles não prevêem cláusulas de incentivos em relação ao risco assumido, e com isso, estaria aumentando a assimetria informacional (HOLMSTRON, 1979HOLMSTROM, B. Moral hazard and observability. The Bell Journal of Economics. 1979. v. 10, n. 1, p. 74.), e também influenciando o comportamento do agente (BAKER et al., 1988BAKER, G. P.; JENSEN, M. C.; MURPHY, K. J. Compensation and incentives: practice vs. theory. The Journal of Finance. 1988. v. 43, n. 3, p. 593.), que de posse de informações privilegiadas (LAMBERT, 2007LAMBERT, R. A. Agency theory and management accounting. Handbooks of management accounting research, 2006, V. 1, p. 247-268.) gerenciaria o nível de transparência para ocultar a ação que atende seu interesse pessoal de natureza oportunista em detrimento do interesse público. Se, em um outro momento, uma análise documental comprovasse a fraude vinculada às divergências reportadas com base na Lei de Benford, o comportamento do agente precisaria ser explicado através do triângulo da fraude proposto por Cressey (1953)CRESSEY, D. R. Other People’s Money: A study in the social psychology of embezzlement. Glencoe, IL: The free press, 1953., que relaciona a oportunidade, a pressão e a racionalização.

5. CONCLUSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dado o acima exposto, o município “A”, o de maior transparência (+T), possui maior conformidade com a Lei de Benford quando comparado com o município “B”, com menor transparência (-t). Do mesmo modo, o município “B” (-t) mostrou uma maior discrepância entre as frequências observadas e as frequências esperadas. Consequentemente, o volume de recursos a serem objeto de uma auditoria é maior no município “B” (-t) do que no município “A” (+T).

Portanto, para este caso, o município “B” (-t) tem maior probabilidade de ocorrência de despesas com irregularidades, com base na Lei de Benford, ou seja, seu risco é mais elevado.

De qualquer forma, identificou-se discrepâncias no primeiro e segundo dígitos através da aplicação da Lei de Benford para ambos os municípios, diferindo apenas pela magnitude das inconformidades.

Uma justificativa seria a possibilidade de ocorrência de irregularidades na gestão do ano de 2016, devido à continuidade de procedimentos adotados no ano de 2015. No caso do município “B” (-t), o parecer anterior do Tribunal de Contas sobre contas do governo de 2015 foi pela sua rejeição, impondo uma multa para o agente político. Para o município “A” (+t), o julgamento feito pelo Tribunal de Contas foi pela aprovação das contas com ressalva e multa.

O julgamento das contas reflete, de certa forma, a posição no ranking de transparência e pode ser um possível indicativo para a conformidade ou não em relação à Lei de Benford. Para o ano de 2016, as contas de governo ainda não haviam sido analisadas. Outra explicação seria o comportamento oportunista exacerbado do agente público devido a deficiência dos contratos da administração pública, que não equilibram o risco/responsabilidade com benefícios remuneratórios.

Desse modo, a Lei de Benford também pode ser usada para uma análise prévia das despesas públicas municipais, direcionar futuras auditorias, e servir como uma das variáveis de mensuração do grau de transparência de um município.

Estudos futuros devem se concentrar na construção de índices de transparência com a inclusão da “conformidade com a Lei de Benford” como uma variável do modelo, bem como ampliar o número de municípios estudados.

A pesquisa procurou analisar a transparência municipal usando os sites municipais como referência e encontrou uma limitação na disponibilidade de dados, devido à grande variedade de ferramentas que não permitem a exportação de dados no mesmo formato. A existência de uma padronização nacional ou de um único site de transparência das despesas municipais a nível nacional facilitaria o acesso à informação e ampliaria o controle social.

6. AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem a contribuição do editor da Brazilian Business Review, Bruno Funchal, por suas sugestões úteis e construtivas visando o aprimoramento deste artigo e também a de dois revisores anônimos por seus comentários.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    23 Nov 2016
  • Revisado
    03 Fev 2017
  • Aceito
    11 Dez 2017
  • Publicado
    25 Jun 2018
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