Resumo
O artigo se baseia em pesquisa normativa e jurisprudencial sobre o exercício, pelo Tribunal de Contas da União, de suas competências constitucionais e legais para a análise da regularidade de contratações estatais. Ele identifica qual é o valor interno das decisões do TCU, apontando o critério que distingue análises provisórias, modificáveis pelo próprio tribunal (em decisões preliminares), de análises definitivas de mérito, que fazem coisa julgada administrativa (as das decisões condenatórias). Identifica também o valor externo dessas decisões, mostrando que o Judiciário pode julgar autonomamente a regularidade de contratações estatais e também invalidar, por ilegalidade, as decisões condenatórias do TCU.
Tribunal de Contas da União; coisa julgada administrativa; controle judicial; Constituição Federal; Lei Orgânica do TCU
Abstract
This article is based on vast research (jurisprudence and legislation) on the power conferred to the Federal Audit Court – TCU (by the Constitution and by general legislation) to analyze the regularity of public contracts. It identifies the internal value of TCU’s decisions, pointing the criterion that distinguishes provisional analysis, modifiable by the court itself (in preliminary decisions) from the definitive analysis of merit, which make administrative res judicata (as of convictions). It also identifies the external value of these decisions, showing that the Judiciary can independently judge the regularity of public contracts and render TCU´s final decisions void due to illegalities.
Federal Audit Court; administrative res judicata; judicial control; Federal Constitution; Federal Audit Court Law
Introdução
Iniciativas de mudança jurídica das contratações estatais têm se mantido no centro da agenda de reformas brasileiras desde a promulgação do Decreto-lei n. 200, de 1967, um texto normativo ambicioso que tentou criar uma disciplina geral para as licitações e contratos, para o controle da ação administrativa e também para a organização da administração. Desde então, o movimento legislativo foi sempre intenso, inclusive como reflexo da forte presença direta do Estado na economia. Era natural também que, aos poucos, diversas instituições estatais de controle fossem criadas ou fortalecessem sua atuação no campo contratual. Os tribunais de contas, o Judiciário, os ministérios públicos, as polícias, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, as controladorias internas, todos eles são chamados a analisar a regularidade de licitações e contratos, como parte da luta contra a corrupção e os cartéis, ou dos esforços de melhoria da gestão pública ou de implantação de políticas públicas específicas. A adequada convivência desse complexo de órgãos de controle exige clareza quanto ao âmbito de competência de cada um e quanto aos modos como essas competências devem se relacionar. Uma vez que um mesmo contrato pode ser analisado e questionado em todos esses âmbitos, o desafio é saber qual é o valor jurídico dos processos e das decisões de cada um.
Na condição de instituição independente do Estado, com função de auditoria externa da administração pública brasileira, o Tribunal de Contas da União (TCU) fiscaliza, por meio de processos de natureza não judicial, a regularidade jurídica dos contratos da administração pública.
Na instrução dos processos, os órgãos técnicos do TCU manifestam opiniões sobre a regularidade dos contratos, que servem como elementos de informação para a deliberação.1 1 Por força da Constituição (CF, art. 37, II) e da lei orgânica do TCU (art. 77), o corpo técnico do TCU é selecionado por concurso público, nomeado pelo presidente da República e adquire estabilidade (art. 79). Normalmente, ele é bastante plural, refletindo a amplitude do escopo de atuação do TCU e a multiplicidade de temas com os quais ele tem de lidar. Engenheiros, bacharéis em Direito, economistas, contadores etc. confluem para o desempenho das mais variadas tarefas de auditoria externa e para a instrução de processos de fiscalização. Compete aos auditores dirigir a instrução dos processos que lhes forem designados, tendo de relatá-los com proposta de decisão a ser votada pelos integrantes do plenário ou de uma das câmaras do TCU (ministros). Os auditores do TCU são distribuídos por sua Secretaria, à qual incumbe a prestação de apoio técnico e a execução dos serviços administrativos em geral (art. 85 da Lei Orgânica do TCU). De acordo com a Resolução TCU 253, de 2012, a Secretaria do Tribunal de Contas atualmente possui a seguinte estrutura: unidades básicas (Secretaria Geral da Presidência, Secretaria Geral do Controle Externo e Secretaria Geral de Administração); Secretaria de Controle Interno; Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão; unidades de assessoramento (Gabinete do Presidente; Gabinete do Corregedor; Gabinetes de ministro, de ministro-substituto e de membro do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas); e órgãos colegiados da Secretaria do TCU (art. 3º). Esta, quando tomada em colegiado pelos ministros2 2 O corpo decisório do TCU é composto por nove ministros (CF, art. 73). Eles devem ser nomeados dentre os brasileiros que tenham “mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade” (art. 73, § 1º, I); “idoneidade moral e reputação ilibada” (art. 73, § 1º, II); “notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos, financeiros ou de administração pública” (art. 73, § 1º, III); “mais de dez anos de exercício de função ou de efetiva atividade profissional que exija os conhecimentos mencionados no inciso anterior” (art. 73, § 1º, IV). A escolha dos ministros deve se dar “um terço pelo Presidente da República, com aprovação do Senado Federal, sendo dois alternadamente dentre auditores e membros do Ministério Público junto ao Tribunal [...]” (art. 73, § 2º, I) e “dois terços pelo Congresso Nacional” (art. 73, § 2º, II). Uma vez no cargo, os ministros gozam de garantias, prerrogativas, impedimentos, vencimentos e vantagens idênticas à dos ministros do Superior Tribunal de Justiça, podendo se aposentar com as vantagens do cargo depois de ocupá-lo por ao menos cinco anos (CF, art. 74, § 3º; e art. 73, caput, da Lei Orgânica do TCU). (nas câmaras ou no plenário), adota a forma de acórdão, o qual transcreve as opiniões dos órgãos técnicos, sem que isso signifique que tenham sido acolhidas, total ou parcialmente. Assim, as opiniões dos órgãos técnicos não têm efeito jurídico direto próprio, isto é, não são vinculantes, nem interna nem externamente.
Mas qual é o valor jurídico dos acórdãos dos ministros do TCU? Como diversos deles podem ser editados no curso da fiscalização de um contrato, é comum que, em acórdão preliminar, os ministros deliberem entendendo um contrato como irregular e, depois de esclarecimentos e nova instrução, em novo acórdão considerem o mesmo contrato regular. Assim, até que seja editado o acórdão com a deliberação dos ministros no último dos recursos cabíveis, nenhuma declaração de irregularidade, contida em acórdão editado nas fases preliminares, será vinculante e final para o próprio TCU.
Daí uma primeira dificuldade, a ser explorada no presente artigo, que é a de identificar quando um acórdão do TCU em processo de fiscalização é ou não um acórdão final. A segunda dificuldade é determinar qual é o valor, para o Judiciário, dessas decisões finais do TCU. Os juízes dependem delas para julgar conflitos que envolvam a questão da regularidade de contratos estatais? De outro lado, decisões finais do TCU podem ser revistas pelo Judiciário, por provocação de pessoa legitimada?
São essas as questões que norteiam este artigo. Além desta introdução, o texto está dividido em mais três itens e uma conclusão. No item inicial (1), apresenta-se o TCU e procura-se entender, em linhas gerais, o regime jurídico em que exerce suas competências. Em seguida (item 2), aborda-se o valor interno das decisões do TCU que venham a considerar irregular uma contratação estatal. Procura-se identificar o critério para distinguir as decisões provisórias, modificáveis posteriormente pelo próprio tribunal, das decisões definitivas, que fazem coisa julgada administrativa no âmbito interno do TCU. O último item (3) refere-se ao valor externo das decisões definitivas do TCU, tema que propõe a consideração de dois problemas: de um lado, o da possibilidade de o Judiciário julgar autonomamente a regularidade de contratações analisadas pelo TCU; de outro, a existência de limites à possibilidade de o Judiciário anular decisões condenatórias do TCU em matéria de contratações estatais.
1 O Tribunal de Contas da União e suas competências
O Tribunal de Contas da União (TCU) é órgão de auditoria externa ao qual se atribuiu a tarefa de auxiliar o Congresso Nacional a fiscalizar a utilização, a arrecadação, a guarda, o gerenciamento e a administração de recursos públicos federais (CF, art. 70, parágrafo único, c/c art. 71, caput).3 3 Recursos públicos de estados e municípios são auditados por tribunais de contas estaduais, que são independentes (entre si e em relação ao TCU). Insere-se, assim, no conjunto das chamadas instituições superiores de auditoria externa (Supreme Audit Institutions).4 4 O TCU, na condição de uma Supreme Audit Institution, integra a International Organization of Supreme Audit Institutions (INTOSAI). Trata-se de organização internacional com status consultivo no Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, responsável por reunir instituições superiores de auditoria externa de todo o mundo. No total, a INTOSAI tem 192 membros, dentre os quais destaco, para fins ilustrativos, o Government Accountability Office (Estados Unidos da América); o National Audit Office (Reino Unido); a Cour de Comptes (França); e o Tribunal de Contas (Portugal).
A Constituição Federal, em seu art. 70, parágrafo único, fixa a abrangência do controle externo. Devem prestar contas: (a) todo aquele (pessoa física ou jurídica, pública ou privada, integrante ou não do aparelho estatal) que de alguma maneira gerencie (em sentido amplo) dinheiros, bens ou valores pertencentes à União; (b) todo aquele que gerencie (novamente em sentido amplo) recursos, mesmo que privados, pelos quais a União responda; e (c) todos aqueles que assumam obrigações de natureza pecuniária em nome da União. O Congresso Nacional e seu auxiliar, o TCU, podem aferir a lisura das receitas e despesas desses sujeitos.
É amplo o grau de abrangência do controle sob a responsabilidade do TCU. Ele basicamente poderá fiscalizar e auditar: (a) todos os órgãos e entes da administração pública federal (direta e indireta, incluindo fundações e empresas estatais); (b) órgãos e entes das administrações públicas estaduais e municipais (caso recebam transferências de recursos públicos federais); e (c) pessoas físicas e jurídicas privadas, em geral, que de algum modo recebam, administrem ou gerenciem recursos públicos federais. A regra, portanto, é que o TCU em tese estará legitimado a atuar sempre que o caso envolver utilização, arrecadação, guarda, gerenciamento ou administração de bens e valores públicos da União.
A afirmação de que o TCU é essencialmente um órgão de auditoria externa advém da observação do conjunto de competências que lhe foram previstas pela Constituição Federal (art. 71) e pela Lei n. 8.443, de 16 de julho de 1992 (Lei Orgânica do TCU). A legislação lhe deu uma série de atribuições distintas, mas cuja maioria tem um denominador comum: de um lado, autorizam o TCU a fiscalizar, isto é, a desenvolver pesquisas e investigações com a finalidade de reunir dados sobre temas afetos ao seu campo de atuação; de outro lado, permitem ao TCU sistematizar, dar organicidade e imprimir um sentido técnico aos dados que tiver coletado ou que lhe tiverem sido encaminhados por órgãos, entes ou pessoas (físicas ou jurídicas).5 5 Sobre o tema, ver Rosilho (2016, p. 275 ss.).
Enquadram-se nas atividades de auditoria externa do TCU, definidas na Constituição, por exemplo, a competência para realizar, por iniciativa própria ou de terceiros,6 6 Pesquisas e investigações podem ter início por iniciativa do próprio TCU, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou de comissão técnica ou de inquérito (CF, art. 71, IV), ou, ainda, por conta de denúncias de irregularidades encaminhadas ao órgão de controle por “Qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato” (CF, art. 74, § 2º). inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial em todas as unidades de quaisquer dos três Poderes e nos mais variados entes que receberem ou gerirem recursos públicos federais (CF, art. 71, IV); a incumbência de fiscalizar as contas nacionais de empresas supranacionais de cujo capital social a União participe (CF, art. 71, V) e de vigiar a aplicação de recursos repassados pela União a outras esferas federativas (CF, art. 71, VI); e, ainda, a atribuição para analisar e emitir parecer sobre as contas gerais da presidência da República (CF, art. 71, I), documento este que é útil à instrução do julgamento a ser realizado diretamente pelo Congresso Nacional (CF, art. 49, IX).
São três as formas pelas quais a Constituição determina que o TCU auxilie o Poder Legislativo. A primeira, por meio da análise das contas anuais da presidência da República e da emissão de simples parecer opinativo prévio sobre sua regularidade (CF, art. 71, I). O parecer deve ser encaminhado pelo TCU ao Congresso Nacional, a quem efetivamente compete julgar “as contas prestadas pelo Presidente da República e apreciar os relatórios sobre a execução dos planos de governo” (CF, art. 49, IX). O parecer prévio não aprova ou rejeita, ele próprio, as contas do chefe do Poder Executivo,7 7 Apenas administradores públicos comuns (rol no qual não se inclui o presidente da República) podem ter suas contas julgadas diretamente pelo TCU (CF, art. 71, II). tampouco vincula o Congresso Nacional ao seu teor. Sua função é fornecer subsídios técnicos para que o Poder Legislativo tome decisão definitiva acerca das contas da presidência da República.
O TCU também auxilia o Legislativo com “inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, nas unidades administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário [...]”, sempre que a Câmara dos Deputados, o Senado Federal, ou comissões técnica ou de inquérito o solicitarem (CF, art. 71, IV). Nessa hipótese, o TCU serve como “braço” de fiscalização do Legislativo, possuindo o dever de enviar relatórios ao Congresso em periodicidade específica (CF, art. 71, § 4º).
Por fim, o TCU opina na decisão do Congresso Nacional acerca da sustação de contratos administrativos (CF, art. 71, IX, XI e § 1º). De acordo com a sistemática constitucional e legal, o TCU decide, por meio de acórdão opinativo provisório, sobre “indícios de irregularidade”. Esses acórdãos não produzem coisa julgada administrativa sobre a regularidade da contratação (pois seu tema é só a existência de “indícios”, isto é, de fumus boni iuris e de periculum in mora). O TCU apoia o exercício da competência cautelar de sustar contratos, que é exclusiva do Congresso Nacional (CF, art. 71, § 1º),8 8 Mas o TCU tem outras competências cautelares próprias: para afastar temporariamente o responsável por supostas irregularidades e para decretar a indisponibilidade de seus bens (art. 44, §§ 1º e 2º de sua Lei Orgânica). para evitar que a continuidade de sua execução possa causar prejuízos.9 9 O STF tem reconhecido, por meio de sua jurisprudência, que compete ao Congresso, e não ao TCU, sustar contratos na hipótese de ilegalidades. Ex.: Mandado de Segurança n. 23.550, Relator: Ministro Sepúlveda Pertence, plenário, julgado em 31.10.01; Mandado de Segurança n. 26.000, Primeira Turma, Relator: Ministro Dias Toffoli, julgado em 04.12.2012. No mesmo sentido, a doutrina: Di Pietro (2013, p. 22); Sundfeld e Câmara (2013, p. 204); Barroso (2006, p. 238); Grau (1997, p. 354-355); Jurksaitis (2011, p. 1294-1295).
O apoio consiste em fiscalizar e opinar quanto à existência de “contratos com indícios de irregularidades graves” (art. 112, § 1º, IV, V e VI da Lei n. 13.080, de 2015 – Lei de Diretrizes Orçamentárias). O TCU diz se, na sua avaliação, há tais indícios. E o Congresso soberanamente decide se acolhe ou não essa opinião para fins de sustação dos contratos fiscalizados. Nada disso vincula o TCU para fins de eventual condenação administrativa futura. Nesses acórdãos opinativos para o Congresso Nacional, o TCU não emite condenação, não susta por força própria contratos ou pagamentos, nem decide em definitivo sobre irregularidades; o juízo de mérito definitivo sobre irregularidades é só aquele que vier a constar de acórdão posterior condenatório.10 10 A própria Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2015 reconhece que esses acórdãos opinativos são apenas provisórios (ver art. 115, §§ 4º e 5º, que tratam da reforma de acórdão opinativo, bem como de acórdão que, depois, reconhece não haver a irregularidade).
Em todos os casos, o TCU é levado a produzir informações técnicas sobre a gestão de recursos públicos, contribuindo, no limite, para a construção de diagnósticos mais precisos sobre a dinâmica e sobre o funcionamento da máquina pública em geral. Essas informações, uma vez consolidadas, poderão ser utilizadas pelo próprio TCU ou por outras instituições para múltiplas finalidades. Por exemplo, nas hipóteses de constatação de omissão no dever de prestar contas, de não comprovação da aplicação dos recursos repassados pela União a outros entes federativos, da ocorrência de desfalque ou de desvio de dinheiro, bens ou valores públicos, ou da prática de outras irregularidades, poderá o TCU, esgotadas todas as medidas ao alcance da autoridade administrativa e dos órgãos de controle interno, instaurar Tomada de Conta Especial (art. 47 da Lei Orgânica do TCU c/c art. 197, caput e art. 2º, da Resolução TCU n. 246, de 30 de novembro de 2011, que é a norma que aprovou o regimento interno do TCU).
Nota-se que apesar de as informações fruto de auditorias externas poderem servir de base para que órgãos de controle em geral tomem medidas concretas, elas, em si consideradas, em regra não têm efeitos constitutivos ou desconstitutivos de direitos ou de deveres.
O TCU tem peculiaridades que o distinguem de boa parte das instituições superiores de auditoria externa dos demais países. Além de investigar e coletar dados e, com base neles, produzir informações ligadas à gestão de recursos públicos federais (chegando a conclusões sobre sua legalidade, economicidade, eficácia e eficiência), tem também (em menor medida) competência para tomar decisões específicas que produzem efeitos concretos, independentemente de deliberação ou de aprovação do Congresso Nacional ou de outro órgão. Institucionalmente, portanto, “para determinadas situações, o Tribunal de Contas exerce de modo autônomo o papel de controlador externo do Executivo e das entidades que compõem a administração indireta” (SUNDFELD; CÂMARA, 2013SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho Arruda. Competências de controle dos tribunais de contas – possibilidades e limites. In: SUNDFELD, Carlos Ari (Org.). Contratações públicas e seu controle. São Paulo: Malheiros, 2013., p. 179). Portanto, o TCU também desempenha, de modo autônomo, competências próprias. Ao papel de auxílio ao Legislativo, somam-se funções pelas quais ele intervém por força própria na atuação das entidades administrativas e de particulares. A despeito de ser próximo ao Congresso Nacional, o TCU a ele não está subordinado, pois tem alto grau de independência e é dotado de autonomia administrativa, possui corpo de funcionários próprio e tem estrutura decisória específica e independente.
E quais são as medidas que o ordenamento jurídico autoriza o TCU a tomar e que produzem consequências jurídicas concretas em relação a sujeitos determinados (constituição ou desconstituição de direitos e deveres)?
Basicamente, cabe ao Tribunal de Contas: (a) aprovar ou rejeitar contas de responsáveis pela gestão (em sentido amplo) de recursos públicos (CF, art. 71, II); (b) aplicar multas a agentes públicos em caso de ilegalidade de despesas (CF, art. 71, VIII); (c) em sendo identificado algum débito, imputá-lo a quem o tiver causado, constituindo, de imediato, título executivo (CF, art. 71, § 3º); (d) determinar que sujeitos que tiverem fraudado licitações fiquem impossibilitados de contratar com o poder público por tempo determinado (art. 46 da Lei Orgânica do TCU); (e) determinar mudanças em editais de licitação já publicados, caso se constate alguma ilegalidade (art. 113, § 2º, da Lei n. 8.666, de 1993); e (f) suspender o curso de procedimentos licitatórios caso ilegalidades previamente apontadas pelo TCU não sejam sanadas pela administração pública (CF, art. 71, X, c/c art. 113, § 2º, da Lei n. 8.666, de 1993).
A legislação não admite que o TCU emita todo e qualquer tipo de ordem, constituindo ou desconstituindo deveres em geral, mas apenas as expressamente previstas por normas constitucionais e legais (aplicar multas, imputar débito, suspender licitações etc.). Além do mais, esses comandos só podem ser emitidos caso se constate alguma ilegalidade em matéria financeira (outros motivos não podem licitamente ensejá-los) (SUNDFELD; CÂMARA, 2013SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho Arruda. Competências de controle dos tribunais de contas – possibilidades e limites. In: SUNDFELD, Carlos Ari (Org.). Contratações públicas e seu controle. São Paulo: Malheiros, 2013., p. 182).
O TCU não é órgão de controle similar aos tribunais do Poder Judiciário. Suas decisões não têm as mesmas características e o mesmo peso e força jurídica de decisões judiciais. É órgão de auditoria externa peculiar, não é órgão judicial, tampouco produz decisões judiciais. Entre TCU e tribunais judiciários também há diferenças fundamentais relacionadas aos membros que os integram, ao modo como produzem decisões e à forma como são internamente organizados.
As manifestações do plenário e das câmaras do TCU assumem formas específicas. De acordo com o art. 67 de seu Regimento Interno, elas podem ser instruções normativas (quando se tratar de disciplinamento normativo de matéria que envolva o público externo em geral – pessoas físicas, órgãos ou entidades sujeitos à jurisdição do TCU); resoluções (quando se tratar do disciplinamento normativo de temas internos ao TCU, tais como a aprovação do Regimento Interno); decisões normativas (quando se tratar de fixação de critério ou orientação, e não se justificar a expedição de instrução normativa ou resolução); pareceres (quando se tratar de manifestação do TCU envolvendo a apreciação de contas do presidente da República); ou acórdãos (quando se tratar de deliberação em matéria de competência do TCU não enquadrada nos demais instrumentos decisórios).
As três primeiras formas de manifestação do TCU (instrução normativa, resolução e decisão normativa) têm viés normativo, regulamentador. Na prática, essas manifestações assumem o formato de verdadeiros diplomas normativos, possuindo caráter geral e abstrato e organizando-se em artigos, incisos e alíneas. A despeito de normalmente terem raiz em casos concretos, visam resolver casos, problemas e desafios futuros.
Os pareceres, por sua vez, têm hipótese de cabimento bastante restrita, sendo veículos de manifestação menos utilizados pelo TCU. Já os acórdãos, por serem genéricos e abrangentes, constituem a principal forma de manifestação do Tribunal de Contas e a mais recorrente na prática. Temas, problemas e desafios concretos normalmente são tratados pelo TCU por meio dos acórdãos.
A palavra “acórdão”, na tradição jurídica brasileira, remete a decisões judiciais proferidas por tribunais do Judiciário (órgãos judicantes que normalmente tomam decisões por meio de colegiados, isto é, por um conjunto de juízes). Os acórdãos produzidos no âmbito do Judiciário, no entanto, têm funções radicalmente distintas das exercidas pelos acórdãos do TCU (a despeito de ambos terem em comum o fato de serem fruto de decisões colegiadas).
Os acórdãos produzidos por tribunais judiciais dizem o Direito. São, assim, veículos processuais em que juízes de direito afirmam as condutas e os comportamentos que são obrigatórios, proibidos ou autorizados pelo ordenamento jurídico. Além de serem vinculantes, acórdãos no âmbito do Judiciário normalmente exprimem a decisão final do colegiado.
Acórdãos no âmbito do TCU não necessariamente envolvem decisões vinculantes (ordens, comandos) ou colocam ponto final a processos (de auditoria, punitivos ou de outra natureza qualquer) que estiverem em trâmite perante o TCU. Acórdãos do TCU nada mais são que manifestações do próprio Tribunal, as quais poderão ter conteúdo vinculante (contendo determinações), ou não (contendo apenas recomendações), podendo, ainda, envolver decisões finais (por exemplo, imputação de débito e aplicação de multas), ou parciais (como, solicitação de envio de documentos para aprofundamento de investigações; conversão de processo de Tomada de Contas para Tomada de Contas Especial em caso de constatação de desvios de recursos públicos).
O único elemento que une todos os acórdãos do TCU é que neles ministros votantes concordam com algo, ao menos por maioria. Esse algo pode variar substancialmente (e não necessariamente envolverá decisão final e vinculante). Acórdãos podem ser partes de um processo mais amplo e longo e veicular meras recomendações (que não precisam ser obrigatoriamente seguidas por sujeitos alvo de fiscalizações). É comum que sejam elaborados vários acórdãos parciais em um mesmo processo de auditoria.11 11 É o que ocorre, p. ex., nas fiscalizações pelo TCU de processos de desestatização (venda de ativos estatais ou concessões de serviços públicos à iniciativa privada). O próprio TCU, por meio da Instrução Normativa n. 27, de 1998, segmentou esse processo em diferentes estágios (iniciando-se com os estudos de viabilidade técnica e econômica do empreendimento e finalizando com o relatório contendo preço final de venda de ativos ou com a assinatura do contrato de concessão). A cada um desses estágios a administração pública deverá encaminhar ao TCU um conjunto de documentos, sobre os quais este poderá se manifestar (aprovando ou rejeitando o estágio avaliado). A manifestação do TCU (ao menos nos estágios iniciais) não é terminativa. O processo de fiscalização, de acordo com a própria instrução normativa, só tem fim após a conclusão do último estágio. A despeito disso, ao término de cada uma das etapas desse tipo de processo de fiscalização o TCU pode se manifestar, aprovando-a ou rejeitando-a, por meio de acórdãos. Um exemplo é o Acórdão 2.466, plenário, Relatora: Ministra Ana Arraes, julgado em 11.09.13, relativo ao “Acompanhamento do 1º estágio das concessões para ampliação, manutenção e exploração do aeroporto internacional do Rio de Janeiro – Antonio Carlos Jobim/Galeão (SBGL) e do aeroporto internacional Tancredo Neves/Confins (SBCF)”.
As diferenças entre corpo técnico e corpo decisório do TCU têm reflexos na estrutura das deliberações em geral do Tribunal de Contas (acórdãos inclusos). Segundo o art. 69 do Regimento Interno do órgão, todas as suas deliberações (materializadas em qualquer uma das formas há pouco descritas) devem conter: (a) relatório do relator (no qual constarão, entre outras coisas, as conclusões da equipe de fiscalização, ou do servidor responsável pela análise do processo, bem como as conclusões dos pareceres das chefias da unidade técnica e do Ministério Público junto ao Tribunal); (b) a fundamentação utilizada pelo relator para analisar as questões de fato e de direito; (c) o dispositivo com que o relator decidir sobre o mérito do processo; e (d) as ressalvas, quando feitas pelos votantes.
Quando se lê as manifestações do TCU em geral (dentre elas, os acórdãos), nota-se que os relatórios que as compõem costumam ser substancialmente mais extensos do que os votos elaborados pelos ministros relatores e do que o próprio conteúdo da decisão do colegiado. A razão é que os relatórios podem reunir todo o material elaborado pelo corpo técnico para a instrução processual, devendo necessariamente conter as conclusões da equipe de fiscalização, as conclusões dos pareceres das chefias da unidade técnica e do Ministério Público junto ao Tribunal. Além disso, frequentemente as decisões do TCU não abordam todos os temas levantados nos relatórios produzidos pelo corpo técnico e, não raro, elas divergem das conclusões dos auditores responsáveis pela instrução processual.
Disso decorre que o dispositivo das manifestações do TCU (vinculantes ou não, terminativas ou não) se circunscreve ao conteúdo da manifestação dos ministros (ou seja, da decisão tomada em conjunto pelos ministros, se trata-se de decisão colegiada, e não da proposta de deliberação feita pelo ministro relator em seu voto). É correto, portanto, que os sujeitos fiscalizados pelo TCU (ou de algum modo interessados nas suas decisões) levem em consideração (para dar cumprimento às suas decisões ou para fins processuais em geral) apenas o dispositivo com que o relator vier a decidir sobre o mérito do processo e a fundamentação com base na qual ele tiver analisado as questões de fato e de direito atinentes ao caso concreto (e que tiverem sido acolhidas pelo colegiado, câmara ou plenário, conforme o caso).
Relatórios produzidos pelo corpo técnico do TCU são úteis à tomada de decisão pelos ministros. Permitem, assim, que se disponha de elementos fáticos para auxiliar a decisão dos casos concretos. Os relatórios também são importantes para dar transparência às manifestações do TCU, permitindo que se afira o percurso do raciocínio dos ministros e a consistência de suas decisões. No entanto, eles (relatórios) não expressam a opinião do TCU; tampouco deles se podem extrair comandos, orientações ou diretrizes.
Não é incomum que a imprensa, noticiando manifestações do TCU, sugira a existência de força vinculante e definitividade em simples pareceres de órgãos técnicos, ou em acórdãos que apenas aprovam estudos, ou em acórdãos com meros atos preliminares do TCU. Mas a verdade é que pareceres, estudos e atos preliminares não têm conteúdo condenatório, não são decisão de mérito e não são definitivos. Auditores, diretores e secretários são agentes técnicos que atuam na instrução dos processos de fiscalização do TCU. Mas eles não têm competência para editar decisão (nem preliminar, nem final) sobre a regularidade de contratações estatais. Esses agentes técnicos emitem simples opiniões, e o fazem com total liberdade. As opiniões técnicas não são vinculantes para a deliberação dos ministros – aliás, são por vezes contrariadas por eles. Essas opiniões também não resolvem o mérito dos processos, nem têm efeito condenatório (isto é, não possuem qualquer força jurídica vinculante, interna ou externa). Por isso mesmo, não integram as deliberações em si, nem traduzem questões decididas. Logo, não têm a mesma força das decisões definitivas de mérito do TCU.
Nos documentos do TCU chamados “Acórdão”, o que efetivamente constitui prova quanto ao teor da decisão do Tribunal é apenas o trecho em que se transcreve aquilo que os ministros “acordam”, isto é, resolvem, decidem. Eventualmente, a fundamentação do voto vencedor de ministro (voto esse em que estará a fundamentação da decisão do TCU, e que pode ser do relator ou não) pode concordar, total ou parcialmente, com algum parecer técnico, ou mesmo incorporá-lo como razão de decidir. Mas a simples reprodução do parecer técnico no relatório não significa que a decisão do TCU coincida com a opinião do órgão técnico. Tampouco o “Acórdão” precisa concordar totalmente com o voto vencedor.
2 Valor interno das decisões do TCU por irregularidades em contratos: o problema do trânsito em julgado administrativo
Acórdãos contêm atos dos ministros do TCU sobre os mais diversos assuntos, em processos de fiscalização de contratos específicos ou em outros procedimentos. Nos processos de fiscalização, boa parte desses atos (e também das razões adotadas como fundamentação pelos ministros) é emitida a título preliminar, para fins apenas processuais, isto é, para aprovar estudos, determinar diligências ou análises, ou permitir a manifestação ou defesa dos interessados.12 12 Um exemplo é o conhecido Acórdão n. 3.089/2015, do plenário do TCU (Processo TC 005.081/2015-7), em que o tribunal adotou critérios para apurar danos que teriam sido causados à Petrobras por irregularidades investigadas na Operação Lava Jato. Esses atos, embora contidos em acórdãos, não são condenatórios, nem constituem decisões de mérito.13 13 A Lei n. 8.443, de 1992, art. 10, § 1º, afirma expressamente ser “preliminar” esse tipo de decisão, e reconhece que ela não se confunde com a decisão de “mérito”. Diz a lei: “Art. 10 [...], § 1º Preliminar é a decisão pela qual o Relator ou o Tribunal, antes de pronunciar-se quanto ao mérito das contas, resolve sobrestar o julgamento, ordenar a citação ou a audiência dos responsáveis ou, ainda, determinar outras diligências necessárias ao saneamento do processo”.
Apenas os acórdãos condenatórios do TCU constituem decisões de mérito no sentido da irregularidade das contas, e, portanto, do ato, do contrato ou do preço contratado (Lei n. 8.443, de 1992, art. 10, § 2º). Somente estes, após a fase dos recursos administrativos perante o próprio TCU, fazem “coisa julgada administrativa” quanto à afirmação de irregularidade, isto é, tornam-se imodificáveis no âmbito do próprio TCU e, assim, contêm a visão definitiva sobre as questões examinadas. Acórdãos não condenatórios, de conteúdo instrutório, possuem decisão apenas preliminar sobre temas a serem ainda mais bem examinados e aprofundados quando da decisão definitiva (“de mérito”), e sobre os quais é possível que o TCU venha a adotar futuramente decisão diversa ou mesmo oposta.
Tanto a afirmação como a quantificação de irregularidade ou dano, em atos de caráter apenas processual de autoridades do TCU, não têm efeitos jurídicos vinculantes, internos ou externos, nem constituem decisão definitiva de mérito. Uma decisão do TCU sobre a existência ou extensão de irregularidade ou dano em contrato estatal só é definitiva de mérito quando editada em acórdão condenatório, que é o único acórdão apto a gerar a expedição de título executivo para cobrança judicial de condenação (art. 23, III, b, da Lei n. 8.443, de 1992; e Resolução TCU n. 178, de 2005).
O ato do TCU que instaura processo de Tomada de Contas Especial tem caráter apenas preliminar, de início processual. Esse ato não é uma decisão condenatória de mérito. Ele não contém condenação, tampouco resolve em definitivo sobre a regularidade da contratação, sobre a efetiva existência e o valor do dano, e sobre os responsáveis. Somente após a instrução completa do processo (de fiscalização ou de Tomada de Contas Especial) e após a oitiva dos envolvidos (Instrução Normativa n. 71, de 2012) é que o TCU emite decisão condenatória de mérito pela irregularidade de uma contratação ou pela existência de dano. Essas condenações de mérito são identificáveis facilmente pela imposição de sanção determinada (p. ex.: a multa no valor tal) ou pela imputação, a sujeito especificado no acórdão, de responsabilidade pelo ressarcimento de valor fixado em definitivo no acórdão.
Por razões até mesmo óbvias, um acórdão que apenas dá início a um processo de Tomada de Contas Especial não pode conter condenação. Mas, um leigo poderia supor que sim, imaginando que o objeto do processo de Tomada de Contas Especial seria muito limitado e que a decisão final jamais poderia ser absolutória, afastando a existência da irregularidade ou dano (por sobrepreço ou superfaturamento). Essa ideia, contudo, não tem base jurídica, e também não é aceita pelo TCU, havendo inúmeras decisões finais em processos de Tomada de Contas Especial em que se concluiu pela ausência de sobrepreço ou superfaturamento e, portanto, pela ausência de dano.14 14 Exemplo é o da Tomada de Contas Especial instaurada em 2001 (pela Decisão n. 879/2001 – plenário), em relação a contrato da Infraero para obras no Aeroporto Internacional de Salvador. O processo foi julgado cinco anos depois, pelo Acórdão n. 2.006/2006, que inicialmente reconheceu o sobrepreço e proferiu condenação. Mas essa decisão veio a ser reformada quatro anos depois, em virtude de recurso de reconsideração, pelo Acórdão n. 484/2010, complementado pelo Acórdão n. 1.702/2010 (proferido em recurso de embargos de declaração). O processo terminou arquivado, sem condenação do TCU. Outros exemplos de processos de Tomada de Contas Especial que terminaram com a não confirmação, pelo TCU, da suspeita inicial de sobrepreço ou superfaturamento podem ser consultados nos Acórdãos n. 1.171/2003, 597/2004 e 2.482/2008, em que terminou não havendo condenação com esse fundamento.
Condenações de mérito baseadas na irregularidade de contratos e em dano ao erário só serão definitivas e vinculantes no âmbito do TCU quando, após o prazo dos recursos (recursos de reexame, reconsideração ou embargos de declaração) ou depois do julgamento desses recursos, se tornar exigível a obrigação jurídica de pagar quantia certa a título de multa ou danos, de modo que, não havendo o pagamento, será expedido título executivo para sua cobrança judicial (art. 23, III, da Lei n. 8.443, de 1992). Antes disso, não se podem atribuir a simples atos preliminares efeitos semelhantes aos das decisões definitivas, imodificáveis e vinculantes.15 15 Aliás, é ilustrativo o citado caso Infraero – Aeroporto Internacional de Salvador, em que uma suspeita inicial levou à instauração, em 2001, de processo de Tomada de Contas Especial, e à condenação em 2006, mas essa condenação não foi definitiva, não fez coisa julgada na esfera administrativa do TCU, pois este reviu seu entendimento em 2010, ao acolher os recursos interpostos.
3 Valor externo das decisões do TCU sobre a regularidade de contratos estatais e o papel do Judiciário
À margem da discussão sobre quais decisões do TCU possuem definitividade, isto é, transitam em julgado administrativamente, um tema interessante se coloca: é o do valor probante das conclusões sustentadas nas opiniões ou decisões em processos do TCU. Que valor um juiz deve atribuir às afirmações do TCU, ainda que não definitivas, sobre a regularidade ou não de contratos? Elas merecem presunção de veracidade, ao menos para fins de uma avaliação inicial do magistrado, quando da análise de pedidos liminares ou cautelares?
As normas que conferem competências ao TCU (responsáveis por prever suas possibilidades e limites de controle e, por consequência, as hipóteses em que está, ou não, legitimado a concretamente agir) exigem que sua atuação seja legal, neutra e ponderada. Mas é exagerado supor que isso sempre ocorra na prática. Observadores vêm notando que o TCU por vezes extrapola suas competências, com opiniões, recomendações, exigências ou proibições que, mesmo sem dizê-lo, baseiam-se não em razões jurídicas, mas em razões políticas, isto é, em convicções de seus agentes quanto às decisões administrativas que seriam mais convenientes ou oportunas. Essa atuação tem dado ensejo a diagnósticos segundo os quais o órgão de controle estaria tentando capturar as políticas públicas e assumir indevidamente a discricionariedade dos gestores (SUNDFELD; CÂMARA, 2013SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho Arruda. Competências de controle dos tribunais de contas – possibilidades e limites. In: SUNDFELD, Carlos Ari (Org.). Contratações públicas e seu controle. São Paulo: Malheiros, 2013., p. 178; MARQUES NETO, 2009MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Os grandes desafios do controle da Administração Pública. In: MODESTO, Paulo (Coord.). Nova organização administrativa brasileira. Belo Horizonte: Fórum, 2009., p. 221; JORDÃO, 2014JORDÃO, Eduardo. A intervenção do TCU sobre editais de licitação não publicados – controlador ou administrador?. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, ano 12, n. 47, out./dez. 2014., p. 228; ROSILHO, 2016ROSILHO, André Janjácomo. Controle da administração pública pelo Tribunal de Contas da União . São Paulo, 2016. Tese (Doutorado) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2016., p. 341).
Isso coloca em dúvida a possibilidade de atribuir às opiniões ou decisões do TCU sobre a regularidade de contratos ou de preços contratados, especialmente quando sejam apenas preliminares, um peso de verdade técnica, que deva ser coberta com uma presunção, ainda que juris tantum. Não é raro uma decisão do TCU ultrapassar seus limites legais, ou ser superficial ou pouco neutra, o que às vezes acaba gerando sua revisão posterior pelo próprio Tribunal.
Não se trata de diagnóstico desmotivado. De fato, o TCU tem procurado, por diversos meios e instrumentos, “reinterpretar” suas competências com a finalidade de expandi-las para além dos limites estabelecidos pelo ordenamento jurídico. Um desses veículos tem sido a instrução normativa (manifestação que se dirige às pessoas passíveis de serem fiscalizadas pelo TCU com a finalidade de regulamentar temas afetos à competência do Tribunal de Contas).16 16 Um caso é o da Instrução Normativa n. 27/1998, pela qual o TCU exigiu que a administração lhe enviasse, para aprovação, antes da publicação do edital de licitação, os estudos de viabilidade técnica e econômica dos contratos de concessão (arts. 9º e 17). A norma violou o § 2º do art. 113 da Lei n. 8.666, de 1993, que havia previsto a interferência do TCU apenas em relação a “edital de licitação já publicado”. Mas a exigência vem sendo atendida e, com isso, o TCU passou a participar ativamente da modelagem das concessões, como mostram os Acórdãos n. 3.661/2013, plenário, Relatora: Ministra Ana Arraes, julgado em 10.12.13 (relativo à concessão de portos) e 2.466/2013, plenário, Relatora: Ministra Ana Arraes, julgado em 11.09.13 (aeroportos). Outro caso é o da Instrução Normativa n. 74, de 2015, sobre a participação do TCU na celebração de acordos de leniência (criado pela Lei n. 12.846, de 2013). A instrução previu etapas para a fiscalização da celebração dos acordos e exigiu a remessa da documentação de cada uma (incisos do art. 2º), para que o TCU viesse a emitir parecer conclusivo (art. 1º, § 1º), que seria condição de eficácia dos atos subsequentes (art. 3º). Previu também a aplicação de multa às autoridades que não observassem os prazos do art. 2º. Essas normas são ilegais pois, embora o TCU tenha competência para fiscalizar atos e contratos (CF, art. 71, IX e X, §§ 1º e 2º), não a tem para fiscalizar previamente – e menos ainda para aprovar ou rejeitar – minutas de acordos que sequer foram publicadas.
Outro mecanismo tem a ver com as “recomendações” (ordens, comandos) e as “determinações” (manifestações não vinculantes). Na prática, o TCU muitas vezes tenta atribuir efeitos vinculantes às recomendações que emite. Uma das estratégias é a combinação de simples recomendações com ordens para a elaboração de “planos de ação” para “sanear o problema verificado” (art. 2º, I, da Resolução n. 265, editada pelo TCU em 2014), descaracterizando-se indiretamente o viés apenas orientativo da recomendação.
Por fim, frequentemente os cargos de ministros do TCU são preenchidos com pessoas que tiveram alguma passagem pelo mundo da política. Na atual composição, por exemplo, dos nove ministros, cinco haviam sido eleitos anteriormente para cargos no Executivo, no Legislativo, ou em ambos.17 17 Estes são os atuais ministros do TCU que tiveram alguma passagem pelo mundo da política: (1) Aroldo Cedraz (foi deputado federal); (2) Augusto Nardes (foi vereador, deputado estadual e deputado federal); (3) José Múcio Monteiro (foi prefeito e deputado federal); (4) Ana Arraes (foi deputada federal); e (5) Vital do Rêgo Filho (foi vereador, deputado estadual, deputado federal e senador). Por mais que o TCU conte também com quadros técnicos, inclusive com alta qualificação, as decisões não são tomadas por eles, mas por ministros com origem partidária e, em alguns casos, sem formação jurídica.
Cabe agora discutir uma questão estritamente jurídica: se o Judiciário pode considerar irregular um contrato que o TCU tenha aprovado, ou se há a respeito alguma reserva de competência para o TCU.
A resposta é simples, e sobre ela não existem polêmicas doutrinárias ou jurisprudenciais. Nem a verificação de conformidade de contratos administrativos com a lei, nem a dos prejuízos causados à administração pública em virtude de contratações, são atribuição reservada e exclusiva do TCU.
O TCU detém competência para decidir sobre tais matérias na esfera administrativa. Mas também se confere ao Judiciário, por intermédio de várias espécies de ações judiciais, a possibilidade de decidir autonomamente sobre elas. É possível, por exemplo, que o Judiciário considere inválido ou lesivo contrato aprovado pelo TCU. A circunstância de este ter aprovado administrativamente o valor de um contrato não impede ou inibe a manifestação judicial sobre ele.18 18 O Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconhece a competência judicial para apurar a ocorrência de improbidade administrativa em condutas de administradores que já haviam sido aprovadas pelo TCU, pois “o Tribunal de Contas é Órgão Administrativo e não judicante [...]” (Recurso Especial n. 472.399-AL, 1ª Turma, julgado em 26.11.02). O Judiciário, desde que devidamente provocado – e poderá ser, nessas matérias, por qualquer cidadão, por associações civis, pelo Ministério Público ou pela própria entidade estatal – tem ampla legitimidade para decidir se o contrato é lícito ou ilícito, se houve ou não prejuízo à administração pública.
Nessas situações, quando o Judiciário é provocado a decidir sobre a licitude de um contrato ou a ocorrência de um dano causado à administração, a existência de decisão definitiva do TCU ou de processo de fiscalização em curso não interfere diretamente na prestação jurisdicional. A atuação do TCU pode ser elemento eventualmente avaliado pelo juiz, de acordo com seu livre convencimento, tal como uma opinião ou perícia técnica, mas não goza de efeito jurídico vinculante pelo simples fato de ter sido elaborada por autoridade administrativa.
Ao realizar auditorias e ao desempenhar suas funções autônomas de controle (por meio das quais intervém por força própria na atuação de entidades administrativas e de particulares), o TCU interpreta o Direito. Explicita, assim, sua leitura sobre o conteúdo e os contornos das normas constitucionais, legais e regulamentares. No entanto, diferentemente do Judiciário, não diz o Direito; não exerce função jurisdicional, reservada pela Constituição ao Judiciário.19 19 Por ser descrito pela Constituição como auxiliar do Congresso Nacional, há certa divergência entre os doutrinadores brasileiros para saber se o TCU integraria, ou não, o Poder Legislativo. Não se cogita, contudo, considerá-lo órgão do Poder Judiciário. Ainda que se considere o TCU órgão de controle externo independente, como parece ser o correto, seria impensável reconhecer-lhe função jurisdicional. Desse modo, não é competente para revelar o real e o definitivo sentido das normas, sendo incapaz de produzir decisões com efeitos erga omnes.
Apesar de não haver polêmica quanto à autonomia do Judiciário para julgar a regularidade de contratos em ação específica para isso (ação civil pública, ação de improbidade, ação popular etc.), alguns comentaristas sugerem que, em ação anulatória, a situação seria diversa. Para eles, a anulação judicial de decisões do TCU que sejam condenatórias só poderia ocorrer em situações muito restritas (como a má-fé das autoridades do órgão ou a violação ao devido processo legal), pois tais decisões seriam técnicas – e quanto a isso imunes ao reexame judicial.20 20 Para uma visão muito restritiva do controle judicial das decisões dos tribunais de contas, ver Jacoby (2013, p. 150), para quem “mesmo que o julgamento das Cortes de Contas não fosse um ato jurisdicional típico, mas apenas um ato administrativo, seu mérito jamais poderia ser revisto pelo Poder Judiciário”. No mesmo sentido, Guerra (2002). Nessa linha, a decisão condenatória proferida pelo TCU teria como característica ser definitiva e obrigatória também para o Judiciário, assemelhando-se a um título executivo judicial, isto é, à sentença editada por juiz de direito.
Mas tais afirmações não parecem descrever corretamente o ordenamento jurídico. No Brasil, é ampla a possibilidade de revisão judicial de decisões da administração pública e, portanto, também do TCU.21 21 Nesse sentido, Gracie (2008). Quanto à revisão de atos administrativos no direito comparado, v. Jordão (2016). Isso não significa que a revisão judicial recaia sobre aspectos subjetivos, relacionados à análise de conveniência ou oportunidade. Mas a constatação de que o Judiciário não aprecia aspectos de conveniência e oportunidade das deliberações administrativas (afirmação até certo ponto óbvia) não afasta o irrestrito controle judicial sobre a legalidade das decisões do TCU.
Qualquer lesão ou ameaça a direito pode ser levada à apreciação do Poder Judiciário. Tal garantia se exerce, inclusive, em face de atos estatais proferidos por colegiados administrativos. Alguns desses colegiados levam em seu nome a palavra “Tribunal”, mas integram a administração pública, vinculada ao Executivo.22 22 Exemplo: o Tribunal Administrativo de Defesa Econômica que, segundo a Lei n. 12.529, de 2011, art. 5º, I, é órgão do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, uma entidade da administração pública federal. Esses colegiados exercem suas funções por meio de atos administrativos (isto é, seus atos não têm natureza jurisdicional, ao contrário dos atos dos juízes do Judiciário). O TCU também é um colegiado administrativo, porém, com autonomia funcional, não tendo vinculação com o Executivo.
As decisões do TCU, como administrativas que são, sujeitam-se à ampla revisão pelo Judiciário. O controle judicial recai sobre aspectos da legalidade ou constitucionalidade das decisões administrativas, inclusive as do TCU. Tradicionalmente, no Brasil, é reconhecido que o Judiciário não pode rever atos administrativos por questões de “merecimento” (mérito administrativo), não analisando a “conveniência” e a “oportunidade” dessas decisões.23 23 A lei que instituiu a justiça federal na República brasileira (Lei n. 221, de 20 de novembro de 1894) já trazia essas diretrizes a respeito dos limites do controle judicial sobre os atos da administração pública. De acordo com referido diploma legal, a autoridade judicial deveria fundar-se “em razões jurídicas, abstendo-se de apreciar o merecimento dos atos administrativos, sob o ponto de vista de sua conveniência ou oportunidade” (art. 13, § 9º, a). O mérito administrativo é uma reserva de atribuição, denominada “discricionariedade”, na qual o Judiciário não pode entrar. Corresponde, em outras palavras, à margem de atuação administrativa em função da qual, pelo ângulo estritamente técnico-jurídico, mais de uma decisão seria válida (BANDEIRA DE MELLO, 1992BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e controle jurisdicional. São Paulo: Malheiros, 1992., p. 38). A expressão “mérito”, aqui citada, diz respeito ao ato administrativo, isto é, ao campo de deliberação do administrador público marcado por certa liberdade de escolha (mérito administrativo). Não se confunde com o mérito do processo de fiscalização de contas, também referido noutras passagens deste artigo. O mérito do processo, como é possível identificar no contexto no qual a expressão é empregada, diz respeito ao tema central do processo de fiscalização em curso perante o Tribunal de Contas (Lei n. 8.443, de 1992, art. 1º, § 3º, III).
Para alguns acadêmicos, esse tipo de reserva do mérito administrativo em favor da administração também ocorre quando a autoridade administrativa delibera sobre matérias técnico-científicas, específicas de sua área de atuação. Trata-se da denominada discricionariedade técnica (DI PIETRO, 1991DI PIETRO, Maria Sylvia. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 1991., p. 77, 93).
Segundo a doutrina da discricionariedade técnica, a atuação de órgãos técnico-científicos administrativos na aplicação de conceitos científicos relacionados a seu setor de atuação estaria sujeita à revisão limitada pelo Judiciário, pois este não poderia refazer ou substituir as opções estritamente técnico-científicas feitas administrativamente. Embora haja alguma polêmica no plano acadêmico, na prática o Judiciário brasileiro tem controlado esse tipo de avaliação administrativa, adentrando no exame dos requisitos técnicos de deliberação, inclusive por meio de perícias (SUNDFELD; CÂMARA, 2002SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho Arruda. Controle judicial dos atos administrativos: as questões técnicas e os limites da tutela de urgência. Interesse Público, Porto Alegre, n. 16, p. 34, out./dez. 2002., p. 34).
As manifestações do TCU que digam respeito ao controle de contratos administrativos, especialmente quando aplicam sanções e determinam o ressarcimento de prejuízos à administração pública, não podem ser classificadas como manifestações de discricionariedade técnica, tampouco como decisões discricionárias de mérito administrativo. Nesse tipo de atuação, o que o TCU faz é uma análise de legalidade estrita. Verifica se as contratações estão ou não conforme à lei e às demais normas jurídicas aplicáveis. Todos os aspectos envolvidos em sua deliberação dizem respeito à avaliação quanto à juridicidade da formação e da execução dos contratos. O TCU não atua de maneira discricionária quando aprova ou rejeita uma contratação. Não lhe foi dada competência para rejeitar ou aprovar um contrato por motivos de conveniência ou oportunidade. A decisão do TCU é estritamente técnico-jurídica; não decorre de análise de mérito administrativo (de conveniência ou oportunidade), tampouco de juízo técnico-científico (discricionariedade técnica).24 24 A Constituição de 1988, tratando dos parâmetros a serem utilizados pelo TCU no exercício de sua fiscalização, trouxe, ao lado da legalidade, a “legitimidade” e a “economicidade” (art. 70, caput). Isso suscitou o debate se o TCU poderia ou não usar tais referências (não normativas) para julgar um contrato como irregular e, em consequência, para expedir condenações (isto é, impor sanções ou ressarcimentos). Os autores deste artigo entendem que a resposta deva ser negativa, pois não há norma jurídica definindo como ilícita e punível uma contratação que, conquanto perfeitamente legal, seja vista apenas como antieconômica pelo órgão de controle. Puras análises de legitimidade e economicidade são cabíveis só em auditorias operacionais, não em processos condenatórios, que têm de ser baseados em ilicitudes definidas diretamente pelas normas jurídicas (SUNDFELD; CÂMARA, 2002, p. 184). Mas essa divergência é alheia ao problema da revisão judicial. Quem, ao contrário dos autores, defender que o TCU pode expedir condenações por conta de um contrato que, embora legal, seja considerado antieconômico, logicamente aceitará que o juízo de economicidade foi juridicizado: do contrário, o antieconômico não seria ilícito, nem sancionável. Nessa perspectiva, o juízo do TCU sobre a economicidade seria uma interpretação sobre o lícito. E seria plenamente revisível pelo Judiciário, pois licitude ou ilicitude é questão técnico-jurídica, não questão de conveniência ou questão técnico-científica.
As decisões condenatórias do TCU estão amplamente sujeitas à revisão judicial, pois o campo próprio do Judiciário é justamente o técnico-jurídico. Eventual anulação judicial dessas decisões administrativas só pode ser motivada por aspectos jurídicos, ou seja, por um juízo de legalidade (técnico-jurídico). A análise de legalidade pode abranger o processo e o conteúdo das decisões do TCU em sua integralidade. Não há margem para atuação discricionária deste Tribunal ao avaliar a regularidade de um contrato ou a existência de dano suportado pela administração pública.
Ao identificar a existência de sobrepreço em um contrato, por exemplo, ou quando julga insuficientes as informações prestadas pelo gestor, ou quando reputa incorreto o procedimento de licitação adotado, o que o TCU está fazendo é um juízo estrito de legalidade. Não há análise de mérito administrativo nesse tipo de deliberação. Não há apreciação de matéria que envolva conhecimento científico estranho ao Judiciário. Ao punir, o TCU não refuta um juízo de conveniência ou de oportunidade realizado pelo gestor, pois sanções não podem ser baseadas em mera divergência sobre avaliação de conveniência e oportunidade (subjetiva, discricionária). A ação fiscalizadora e punitiva do TCU se dá em virtude da constatação de ilicitudes, isto é, de juízo de legalidade sobre a atuação do agente fiscalizado.
Por isso, é possível que, na via judicial, venham a ser anuladas decisões do TCU que tenham considerado haver sobrepreço ou superfaturamento em um contrato, ou tenham julgado irregular certa licitação. Isso só ocorre, obviamente, quando o Judiciário considerar equivocado o juízo de legalidade realizado pelo TCU.25 25 Ver, a título de exemplo, Apelação Cível (AC) n. 98397120104058100, TRF da 5ª Região, julgado em 21.08.14; AC n. 447188-RN, TRF da 5ª Região, julgado em 22.04.10; AC n. 17289-GO, TRF da 1ª Região, julgado em 30.08.10; AC n. 432470-PE, TRF 5ª Região, julgado em 15.04.10; AC n. 401034-PB, TRF 5ª Região, julgado em 27.05.10; AC n. 453914-PE, TRF 5ª Região, julgado em 24.11.09; AC n. 8008651620134058000, TRF 5ª Região, julgado em 10.04.14; AC n. 3495220074013602, TRF 1ª Região, julgado em 15.10.14; AC n. 15613-BA, TRF 1ª Região, julgado em 30.07.10. Nesses julgados, o Judiciário reafirma sua competência para revisar decisões ilegais do TCU. Como, na avaliação judicial, as ações não demonstraram vícios de legalidade das decisões impugnadas, as decisões do TCU foram mantidas. Mas o Judiciário, se provocado, pode fazer esse exame, para descobrir a existência ou não de ilegalidade na decisão.
É viável, em processo judicial, a anulação de decisão do TCU que tenha considerado ilícito o valor de um contrato. Isso tanto pode ocorrer se for demonstrada a existência de falhas procedimentais na decisão do TCU (por exemplo, a violação do direito de defesa), como também por aspectos materiais, ou seja, se o Judiciário considerar que não houve sobrepreço ou superfaturamento. Tais questões envolvem matéria técnico-jurídica; não correspondem a nenhuma forma de deliberação sobre o mérito administrativo.26 26 Para um exemplo quanto aos problemas da mais pura interpretação jurídica que podem estar envolvidos no debate sobre a existência de sobrepreço, ver o Acórdão n. 1.392/2016, em que o plenário do TCU responsabilizou certa empresa, contratada sem licitação, “por não seguir os preços do mercado”, dever esse que, para o tribunal, seria decorrência direta de um enigmático “regime jurídico-administrativo relativo às contratações públicas”. Ainda que o Judiciário optasse por uma postura de deferência em relação à opinião do TCU sobre a questão fática (isto é, se presumisse como correta a pesquisa dos preços de mercado feita pelo TCU para o momento e para o caso), nem assim estaria afastada do domínio do juiz a questão normativa abstrata, que é a de saber se as normas impõem ou não aos particulares um dever de, sob pena de responsabilidade, “seguir os preços de mercado” (sustentando não existir esse dever, ver Sundfeld e Campos, 2013, p. 221-231).
As decisões do TCU a respeito de sobrepreço, orçamentação, procedimento das contratações públicas não contam com imunidade à revisão judicial. Tais deliberações não são decisões de mérito administrativo; não são discricionárias (nem mesmo representam a chamada discricionariedade técnica). Ao fiscalizar as contratações públicas, o TCU profere manifestações estritamente técnico-jurídicas que, como tais, podem ser amplamente revistas judicialmente. Trata-se de mera qualificação jurídica dos fatos e, portanto, configura estrita interpretação jurídica, passível de ampla revisão pelo Judiciário.27 27 Como exemplo, tome-se o julgamento da Apelação Cível n. 0050179-35.202.4.01.3400/DF do TRF da 1ª Região, 4ª Turma, julgada em 12.04.16. Nesse caso, o Judiciário anulou decisão do TCU que imputava multa a uma autoridade administrativa. O Judiciário discordou do cerne da decisão do TCU, que havia considerado a conduta da autoridade administrativa “consubstanciadora de má-fé”, condenando-a à restituição do valor da compra considerada irregular e ao pagamento de multa. Como o Judiciário, em outro processo, decidiu “pela improcedência da ação de improbidade, movida pela União”, o acórdão do TCU foi anulado judicialmente. O julgado revela que um fato jurídico analisado pelo TCU mereceu qualificação diferente do Judiciário, o que levou à anulação da decisão do TCU. A razão de decidir não foi qualquer desvio político na manifestação dos ministros do TCU ou uma falha processual na tomada de decisão pela Corte de Contas. O Judiciário, simplesmente, reexaminou os mesmos fatos (reviu a qualificação jurídica dos fatos) e concluiu de maneira diferente do TCU. Outro caso ilustrativo da possibilidade de revisão judicial de decisão técnica do TCU se verifica na Apelação Cível n. 2005.61.15.001300-0/SP, do TRF da 3ª Região, 2ª Turma, julgada em 02.02.10. Nesse outro julgado o TRF anula decisão do TCU que aplicara multa ao administrador público por ato praticado em licitação. O TCU havia considerado que a desclassificação de um licitante, realizada pelo administrador, teria contrariado a economicidade da administração pública. Todavia, este mesmo ato do administrador veio a ser considerado válido por uma decisão judicial (proferida em mandado de segurança). Como, desse modo, o Judiciário declarou a legalidade da conduta do servidor punido pelo TCU, considerou que havia desaparecido o pressuposto de sua punição. Por tal motivo, a decisão do TCU foi anulada. A ementa do referido acórdão assim resumiu o entendimento sobre a matéria: “Não viola a independência entre os Poderes a sentença que, reconhecendo afastada a ilegalidade da conduta do servidor público e, consequentemente, o pressuposto de sua punição, torna sem efeito a multa aplicada, sem adentrar pelo exame da prova ou da justiça da punição aplicada pelo Tribunal de Contas da União”.
Nesse ponto reside uma diferença significativa entre as decisões do TCU e os títulos executivos judiciais (decorrentes de sentenças judiciais). As decisões do Tribunal, embora passíveis de execução, podem ser revistas judicialmente, isto é, não têm força de coisa julgada judicial. Nesse sentido, ao contrário das sentenças judiciais transitadas em julgado (os títulos judiciais), as decisões do TCU não são definitivas fora do seu âmbito interno (e isso ainda que, já tendo sido esgotados todos os recursos administrativos no âmbito do TCU, essa decisão tenha formado coisa julgada administrativa).28 28 As decisões do TCU não são os únicos atos administrativos providos de força de título extrajudicial. É comum que a administração produza atos que gozam dessa prerrogativa e que, após inscrição da dívida ativa, constituam base autônoma para execução judicial. É o que ocorre com a atividade tributária. São atos administrativos que constituem os créditos tributários. Após inscrição na dívida ativa, esses créditos podem ser executados judicialmente (Lei n. 6.830, de 1980, art. 1º). Tal condição não impede a discussão judicial, no curso da execução, sobre a legalidade das decisões administrativas que lhe deram origem (Lei n. 6.830, de 1980, art. 3º, parágrafo único e art. 16, § 2º). Aliás, as decisões administrativas em matéria tributária, apesar de serem capazes de se constituir em título executivo extrajudicial, sujeitam-se a ampla revisão judicial, inclusive por meio de ação específica, na qual são discutidos os fundamentos técnico-jurídicos dessas decisões (ocorrência do fato gerador, interpretação da norma tributária, competência etc.). O Código Tributário Nacional (Lei n. 5.172, de 25 de outubro de 1966) admite expressamente a revisão judicial das decisões técnicas das autoridades administrativas fiscais. Tanto é assim que o CTN prevê a concessão de medidas judiciais cautelares em mandado de segurança e em outros tipos de ações judiciais como causa de suspensão da exigibilidade do crédito tributário (art. 151, IV e V). Seguindo essa linha, o Código aponta como causa de extinção desse crédito a decisão judicial transitada em julgado (art. 156, X). As sanções aplicadas no exercício do poder de polícia administrativo (fiscalização do trânsito e do meio ambiente, por exemplo) também são dotadas de exigibilidade e podem, uma vez inscritas na dívida ativa, ser objeto de execução judicial. Constituem títulos executivos extrajudiciais. Tal condição, entretanto, não é tomada como mitigadora da possibilidade da revisão judicial desses atos administrativos, que é prevista expressamente pela lei (Lei n. 6.830, de 1980, art. 3º, parágrafo único e art. 16, § 2º).
Há variado repertório de medidas judiciais que podem gerar a anulação de decisões condenatórias do TCU. Elas podem ser impugnadas, por exemplo, no curso da execução judicial, por meio de embargos opostos pelo executado (que, como já referido, estão previstos pelo art. 16 da Lei das Execuções Fiscais, Lei n. 6.830, de 1980; em linha, aliás, com os que o Código de Processo Civil – CPC prevê para as execuções comuns, como se vê em seu arts. 914 ss.), no qual se poderá alegar qualquer matéria que se poderia deduzir em defesa em processo de conhecimento (art. 917, VI, do CPC).
Além dessa postura reativa diante de uma execução judicial, é possível que o interessado assuma posição ativa e proponha, antes de sofrer a execução judicial, ação ordinária para anular a deliberação do TCU (CF, art. 5º, XXXV). Nesse caso, o juízo competente para conduzir a ação é o de primeira instância da Justiça Federal (CF, art. 109, I). Em uma ação ordinária, há oportunidade de ampla discussão sobre a legalidade da decisão impugnada, inclusive sobre aspectos técnico-jurídicos, como a existência de sobrepreço, a regularidade da execução contratual, e assim por diante.29 29 Quando, nessas ações de anulação, o juiz de primeira instância se recusa a conhecer da ação, e a extingue sem julgamento de mérito, alegando que a matéria já teria sido apreciada em definitivo pelo TCU, os tribunais brasileiros reformam a sentença de extinção da ação e determinam ao juiz a análise do pedido de mérito. Como exemplo, vejam-se acórdãos do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que afirmam: “As decisões definitivas do Tribunal de Contas da União – TCU, de natureza técnica, somente fazem coisa julgada na esfera administrativa, em cujo âmbito não podem ser revistas. Na esfera do Poder Judiciário, todavia, podem ser revistas.” (TRF 1ª Região, 3ª Turma, Apelação Cível n. 2000.38.00.011110-1/MG, julgada em 22.08.06; TRF 1ª Região, 3ª Turma, Apelação Cível n. 2000.38.00.011112-7/MG, julgada em 09.11.04; TRF 1ª Região, 3ª Turma, Apelação Cível n. 2001.40.00.005753-8/PI, julgada em 29.09.04). É admitida a realização de diligência probatória, inclusive com a constituição de prova pericial, para propiciar ao juiz elementos técnicos para avaliar a correção do julgamento do TCU.
Por fim, admite-se a anulação das decisões do TCU por mandado de segurança, uma ação com rito especial, mais célere, para discussões de matérias exclusivamente de direito (ou seja, que digam respeito a fatos incontroversos, que dispensam diligência probatória). Para essa ação específica, o foro competente é o Supremo Tribunal Federal (CF, art. 102, d).30 30 Possivelmente o caso mais importante em que o STF não aceitou decisões do TCU sobre a validade de contratações é o que envolve a aplicabilidade do art. 67 da Lei n. 9.478/98, que autorizou a Petrobras a realizar suas contratações por meio de procedimento licitatório simplificado. A primeira decisão do STF foi no MS n. 25.888, Relator: Ministro Gilmar Mendes, sucedida por muitas outras. Sobre o tema, ver Rosilho e Gebrim (2015, p. 63-88).
Conclusões
Manifestações do TCU são frequentemente invocadas em debates judiciais, policiais, parlamentares ou de imprensa, como provas de irregularidades em contratos estatais. Mas é preciso que, nesses diversos âmbitos, haja clareza quanto ao valor do que se está citando. Evidentemente, o valor apenas interno ou preliminar de alguma manifestação do TCU não retira sua importância, porém é preciso, em cada caso, saber exatamente qual é ela, pois, do contrário, há riscos de confusão jurídica ou mesmo de manipulação.
A constatação deste artigo é que, nos processos de fiscalização do TCU, boa parte dos acórdãos (e também das razões adotadas como fundamentação pelos ministros) é emitida a título preliminar, para fins apenas processuais, isto é, para aprovar estudos, para determinar diligências ou análises, ou para permitir a manifestação ou defesa dos interessados. Esses atos não são decisões definitivas de mérito: não são condenatórios, nem têm efeitos jurídicos vinculantes, internos ou externos.
Uma decisão do TCU sobre a existência de irregularidade ou dano em contrato estatal só é definitiva de mérito quando tomada em acórdão condenatório, que é o único apto a gerar a expedição de título executivo para cobrança judicial de condenação (art. 23, III, b, da Lei n. 8.443, de 1992). Essas condenações de mérito são identificáveis pela imposição de sanção determinada (p. ex.: a multa) ou pela imputação, a sujeito especificado no acórdão, de responsabilidade pelo ressarcimento de valor também indicado no acórdão. Assim, o ato do TCU que simplesmente instaura processo de Tomada de Contas Especial não é uma decisão condenatória de mérito, pois não resolve em definitivo a regularidade da contratação, nem a efetiva existência e valor do dano, nem os seus responsáveis.
Condenações de mérito baseadas na irregularidade de contratos fazem coisa julgada apenas administrativamente (que é extrajudicial, restrita ao âmbito do TCU). Isso ocorre quando, após o prazo dos recursos administrativos (reexame, reconsideração, embargos de declaração) ou depois do julgamento desses recursos, se tornar exigível a obrigação jurídica de pagar quantia certa a título de multa ou danos, de modo que, não havendo o pagamento, será expedido o título executivo para sua cobrança judicial.
Não existe, no direito brasileiro, reserva de competência para o TCU decidir, com exclusividade ou com efeito de coisa julgada judicial, sobre a existência de irregularidade ou dano em contrato estatal. O Judiciário possui jurisdição autônoma e plena a respeito dessas questões. Nas ações judiciais condenatórias em que se pretende o reconhecimento judicial de irregularidade ou dano em um contrato estatal, os eventuais estudos, pareceres, atos preliminares e decisões definitivas do TCU são considerados pelo juiz simples elementos de informação, sem presunção absoluta de veracidade ou caráter jurídico vinculante.
As condenações administrativas do TCU geram títulos executivos extrajudiciais cujo valor jurídico não equivale ao de uma sentença do Judiciário transitada em julgado, mas ao de outros atos administrativos que operem a constituição administrativa de crédito público (tributário ou pelo exercício do poder de polícia) e levem à emissão de certidão de dívida ativa.
Podem ser amplamente revistas pelo Judiciário as condenações administrativas definitivas do TCU baseadas na existência de irregularidade ou dano em contrato estatal, pois essas condenações administrativas são técnico-jurídicas, baseadas na violação às normas jurídicas, e não em juízos discricionários de mérito administrativo (juízos de conveniência, oportunidade ou política) ou em juízos de discricionariedade técnico-científica (juízos baseados exclusivamente em conhecimentos tecnológicos ou científicos especializados).
nota de agradecimento
Os autores registram e agradecem a participação do advogado João Domingos Liandro na pesquisa normativa e de decisões do TCU e do Judiciário que deu origem ao presente estudo.
Referências
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Por força da Constituição (CF, art. 37, II) e da lei orgânica do TCU (art. 77), o corpo técnico do TCU é selecionado por concurso público, nomeado pelo presidente da República e adquire estabilidade (art. 79). Normalmente, ele é bastante plural, refletindo a amplitude do escopo de atuação do TCU e a multiplicidade de temas com os quais ele tem de lidar. Engenheiros, bacharéis em Direito, economistas, contadores etc. confluem para o desempenho das mais variadas tarefas de auditoria externa e para a instrução de processos de fiscalização. Compete aos auditores dirigir a instrução dos processos que lhes forem designados, tendo de relatá-los com proposta de decisão a ser votada pelos integrantes do plenário ou de uma das câmaras do TCU (ministros). Os auditores do TCU são distribuídos por sua Secretaria, à qual incumbe a prestação de apoio técnico e a execução dos serviços administrativos em geral (art. 85 da Lei Orgânica do TCU). De acordo com a Resolução TCU 253, de 2012, a Secretaria do Tribunal de Contas atualmente possui a seguinte estrutura: unidades básicas (Secretaria Geral da Presidência, Secretaria Geral do Controle Externo e Secretaria Geral de Administração); Secretaria de Controle Interno; Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão; unidades de assessoramento (Gabinete do Presidente; Gabinete do Corregedor; Gabinetes de ministro, de ministro-substituto e de membro do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas); e órgãos colegiados da Secretaria do TCU (art. 3º).
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O corpo decisório do TCU é composto por nove ministros (CF, art. 73). Eles devem ser nomeados dentre os brasileiros que tenham “mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade” (art. 73, § 1º, I); “idoneidade moral e reputação ilibada” (art. 73, § 1º, II); “notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos, financeiros ou de administração pública” (art. 73, § 1º, III); “mais de dez anos de exercício de função ou de efetiva atividade profissional que exija os conhecimentos mencionados no inciso anterior” (art. 73, § 1º, IV). A escolha dos ministros deve se dar “um terço pelo Presidente da República, com aprovação do Senado Federal, sendo dois alternadamente dentre auditores e membros do Ministério Público junto ao Tribunal [...]” (art. 73, § 2º, I) e “dois terços pelo Congresso Nacional” (art. 73, § 2º, II). Uma vez no cargo, os ministros gozam de garantias, prerrogativas, impedimentos, vencimentos e vantagens idênticas à dos ministros do Superior Tribunal de Justiça, podendo se aposentar com as vantagens do cargo depois de ocupá-lo por ao menos cinco anos (CF, art. 74, § 3º; e art. 73, caput, da Lei Orgânica do TCU).
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Recursos públicos de estados e municípios são auditados por tribunais de contas estaduais, que são independentes (entre si e em relação ao TCU).
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O TCU, na condição de uma Supreme Audit Institution, integra a International Organization of Supreme Audit Institutions (INTOSAI). Trata-se de organização internacional com status consultivo no Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, responsável por reunir instituições superiores de auditoria externa de todo o mundo. No total, a INTOSAI tem 192 membros, dentre os quais destaco, para fins ilustrativos, o Government Accountability Office (Estados Unidos da América); o National Audit Office (Reino Unido); a Cour de Comptes (França); e o Tribunal de Contas (Portugal).
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Sobre o tema, ver Rosilho (2016ROSILHO, André Janjácomo. Controle da administração pública pelo Tribunal de Contas da União . São Paulo, 2016. Tese (Doutorado) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2016., p. 275 ss.).
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Pesquisas e investigações podem ter início por iniciativa do próprio TCU, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou de comissão técnica ou de inquérito (CF, art. 71, IV), ou, ainda, por conta de denúncias de irregularidades encaminhadas ao órgão de controle por “Qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato” (CF, art. 74, § 2º).
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Apenas administradores públicos comuns (rol no qual não se inclui o presidente da República) podem ter suas contas julgadas diretamente pelo TCU (CF, art. 71, II).
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Mas o TCU tem outras competências cautelares próprias: para afastar temporariamente o responsável por supostas irregularidades e para decretar a indisponibilidade de seus bens (art. 44, §§ 1º e 2º de sua Lei Orgânica).
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O STF tem reconhecido, por meio de sua jurisprudência, que compete ao Congresso, e não ao TCU, sustar contratos na hipótese de ilegalidades. Ex.: Mandado de Segurança n. 23.550, Relator: Ministro Sepúlveda Pertence, plenário, julgado em 31.10.01; Mandado de Segurança n. 26.000, Primeira Turma, Relator: Ministro Dias Toffoli, julgado em 04.12.2012. No mesmo sentido, a doutrina: Di Pietro (2013DI PIETRO, Maria Sylvia. O papel dos Tribunais de Contas no controle dos contratos administrativos. Interesse Público, Belo Horizonte, ano 15, n. 82, nov./dez. 2013., p. 22); Sundfeld e Câmara (2013SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho Arruda. Competências de controle dos tribunais de contas – possibilidades e limites. In: SUNDFELD, Carlos Ari (Org.). Contratações públicas e seu controle. São Paulo: Malheiros, 2013., p. 204); Barroso (2006BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. t. I., p. 238); Grau (1997GRAU, Eros Roberto. Tribunal de Contas – Decisão – Eficácia. Revista de Direito Administrativo, v. 210, out./dez. 1997., p. 354-355); Jurksaitis (2011JURKSAITIS, Guilherme Jardim. Leis de diretrizes orçamentárias e o controle sobre as contratações públicas. In: CONTI, José Maurício; SCAFF, Fernando Facury (Coords.). Orçamentos públicos e direito financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011., p. 1294-1295).
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A própria Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2015 reconhece que esses acórdãos opinativos são apenas provisórios (ver art. 115, §§ 4º e 5º, que tratam da reforma de acórdão opinativo, bem como de acórdão que, depois, reconhece não haver a irregularidade).
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É o que ocorre, p. ex., nas fiscalizações pelo TCU de processos de desestatização (venda de ativos estatais ou concessões de serviços públicos à iniciativa privada). O próprio TCU, por meio da Instrução Normativa n. 27, de 1998, segmentou esse processo em diferentes estágios (iniciando-se com os estudos de viabilidade técnica e econômica do empreendimento e finalizando com o relatório contendo preço final de venda de ativos ou com a assinatura do contrato de concessão). A cada um desses estágios a administração pública deverá encaminhar ao TCU um conjunto de documentos, sobre os quais este poderá se manifestar (aprovando ou rejeitando o estágio avaliado). A manifestação do TCU (ao menos nos estágios iniciais) não é terminativa. O processo de fiscalização, de acordo com a própria instrução normativa, só tem fim após a conclusão do último estágio. A despeito disso, ao término de cada uma das etapas desse tipo de processo de fiscalização o TCU pode se manifestar, aprovando-a ou rejeitando-a, por meio de acórdãos. Um exemplo é o Acórdão 2.466, plenário, Relatora: Ministra Ana Arraes, julgado em 11.09.13, relativo ao “Acompanhamento do 1º estágio das concessões para ampliação, manutenção e exploração do aeroporto internacional do Rio de Janeiro – Antonio Carlos Jobim/Galeão (SBGL) e do aeroporto internacional Tancredo Neves/Confins (SBCF)”.
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Um exemplo é o conhecido Acórdão n. 3.089/2015, do plenário do TCU (Processo TC 005.081/2015-7), em que o tribunal adotou critérios para apurar danos que teriam sido causados à Petrobras por irregularidades investigadas na Operação Lava Jato.
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A Lei n. 8.443, de 1992, art. 10, § 1º, afirma expressamente ser “preliminar” esse tipo de decisão, e reconhece que ela não se confunde com a decisão de “mérito”. Diz a lei: “Art. 10 [...], § 1º Preliminar é a decisão pela qual o Relator ou o Tribunal, antes de pronunciar-se quanto ao mérito das contas, resolve sobrestar o julgamento, ordenar a citação ou a audiência dos responsáveis ou, ainda, determinar outras diligências necessárias ao saneamento do processo”.
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Exemplo é o da Tomada de Contas Especial instaurada em 2001 (pela Decisão n. 879/2001 – plenário), em relação a contrato da Infraero para obras no Aeroporto Internacional de Salvador. O processo foi julgado cinco anos depois, pelo Acórdão n. 2.006/2006, que inicialmente reconheceu o sobrepreço e proferiu condenação. Mas essa decisão veio a ser reformada quatro anos depois, em virtude de recurso de reconsideração, pelo Acórdão n. 484/2010, complementado pelo Acórdão n. 1.702/2010 (proferido em recurso de embargos de declaração). O processo terminou arquivado, sem condenação do TCU. Outros exemplos de processos de Tomada de Contas Especial que terminaram com a não confirmação, pelo TCU, da suspeita inicial de sobrepreço ou superfaturamento podem ser consultados nos Acórdãos n. 1.171/2003, 597/2004 e 2.482/2008, em que terminou não havendo condenação com esse fundamento.
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Aliás, é ilustrativo o citado caso Infraero – Aeroporto Internacional de Salvador, em que uma suspeita inicial levou à instauração, em 2001, de processo de Tomada de Contas Especial, e à condenação em 2006, mas essa condenação não foi definitiva, não fez coisa julgada na esfera administrativa do TCU, pois este reviu seu entendimento em 2010, ao acolher os recursos interpostos.
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Um caso é o da Instrução Normativa n. 27/1998, pela qual o TCU exigiu que a administração lhe enviasse, para aprovação, antes da publicação do edital de licitação, os estudos de viabilidade técnica e econômica dos contratos de concessão (arts. 9º e 17). A norma violou o § 2º do art. 113 da Lei n. 8.666, de 1993, que havia previsto a interferência do TCU apenas em relação a “edital de licitação já publicado”. Mas a exigência vem sendo atendida e, com isso, o TCU passou a participar ativamente da modelagem das concessões, como mostram os Acórdãos n. 3.661/2013, plenário, Relatora: Ministra Ana Arraes, julgado em 10.12.13 (relativo à concessão de portos) e 2.466/2013, plenário, Relatora: Ministra Ana Arraes, julgado em 11.09.13 (aeroportos). Outro caso é o da Instrução Normativa n. 74, de 2015, sobre a participação do TCU na celebração de acordos de leniência (criado pela Lei n. 12.846, de 2013). A instrução previu etapas para a fiscalização da celebração dos acordos e exigiu a remessa da documentação de cada uma (incisos do art. 2º), para que o TCU viesse a emitir parecer conclusivo (art. 1º, § 1º), que seria condição de eficácia dos atos subsequentes (art. 3º). Previu também a aplicação de multa às autoridades que não observassem os prazos do art. 2º. Essas normas são ilegais pois, embora o TCU tenha competência para fiscalizar atos e contratos (CF, art. 71, IX e X, §§ 1º e 2º), não a tem para fiscalizar previamente – e menos ainda para aprovar ou rejeitar – minutas de acordos que sequer foram publicadas.
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Estes são os atuais ministros do TCU que tiveram alguma passagem pelo mundo da política: (1) Aroldo Cedraz (foi deputado federal); (2) Augusto Nardes (foi vereador, deputado estadual e deputado federal); (3) José Múcio Monteiro (foi prefeito e deputado federal); (4) Ana Arraes (foi deputada federal); e (5) Vital do Rêgo Filho (foi vereador, deputado estadual, deputado federal e senador).
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O Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconhece a competência judicial para apurar a ocorrência de improbidade administrativa em condutas de administradores que já haviam sido aprovadas pelo TCU, pois “o Tribunal de Contas é Órgão Administrativo e não judicante [...]” (Recurso Especial n. 472.399-AL, 1ª Turma, julgado em 26.11.02).
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Por ser descrito pela Constituição como auxiliar do Congresso Nacional, há certa divergência entre os doutrinadores brasileiros para saber se o TCU integraria, ou não, o Poder Legislativo. Não se cogita, contudo, considerá-lo órgão do Poder Judiciário. Ainda que se considere o TCU órgão de controle externo independente, como parece ser o correto, seria impensável reconhecer-lhe função jurisdicional.
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Para uma visão muito restritiva do controle judicial das decisões dos tribunais de contas, ver Jacoby (2013JACOBY, Jorge Ulisses. Tribunais de Contas do Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2013. v. 3., p. 150), para quem “mesmo que o julgamento das Cortes de Contas não fosse um ato jurisdicional típico, mas apenas um ato administrativo, seu mérito jamais poderia ser revisto pelo Poder Judiciário”. No mesmo sentido, Guerra (2002)GUERRA, Evandro Martins. O sistema tribunal de contas: principais apontamentos. Fórum de Contratação e Gestão Pública FCGP, Belo Horizonte, ano 1, n. 6, jun. 2002..
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Nesse sentido, Gracie (2008)GRACIE, Ellen. Notas sobre a revisão judicial das decisões do Tribunal de Contas da União pelo Supremo Tribunal Federal. Fórum de Contratação e Gestão Pública FCGP, Belo Horizonte, ano 7, n. 82, out. 2008.. Quanto à revisão de atos administrativos no direito comparado, v. Jordão (2016)JORDÃO, Eduardo. Controle judicial de uma administração pública complexa – a experiência estrangeira na adaptação da intensidade do controle. São Paulo: Malheiros; SBDP, 2016..
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Exemplo: o Tribunal Administrativo de Defesa Econômica que, segundo a Lei n. 12.529, de 2011, art. 5º, I, é órgão do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, uma entidade da administração pública federal.
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A lei que instituiu a justiça federal na República brasileira (Lei n. 221, de 20 de novembro de 1894) já trazia essas diretrizes a respeito dos limites do controle judicial sobre os atos da administração pública. De acordo com referido diploma legal, a autoridade judicial deveria fundar-se “em razões jurídicas, abstendo-se de apreciar o merecimento dos atos administrativos, sob o ponto de vista de sua conveniência ou oportunidade” (art. 13, § 9º, a).
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A Constituição de 1988, tratando dos parâmetros a serem utilizados pelo TCU no exercício de sua fiscalização, trouxe, ao lado da legalidade, a “legitimidade” e a “economicidade” (art. 70, caput). Isso suscitou o debate se o TCU poderia ou não usar tais referências (não normativas) para julgar um contrato como irregular e, em consequência, para expedir condenações (isto é, impor sanções ou ressarcimentos). Os autores deste artigo entendem que a resposta deva ser negativa, pois não há norma jurídica definindo como ilícita e punível uma contratação que, conquanto perfeitamente legal, seja vista apenas como antieconômica pelo órgão de controle. Puras análises de legitimidade e economicidade são cabíveis só em auditorias operacionais, não em processos condenatórios, que têm de ser baseados em ilicitudes definidas diretamente pelas normas jurídicas (SUNDFELD; CÂMARA, 2002SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho Arruda. Controle judicial dos atos administrativos: as questões técnicas e os limites da tutela de urgência. Interesse Público, Porto Alegre, n. 16, p. 34, out./dez. 2002., p. 184). Mas essa divergência é alheia ao problema da revisão judicial. Quem, ao contrário dos autores, defender que o TCU pode expedir condenações por conta de um contrato que, embora legal, seja considerado antieconômico, logicamente aceitará que o juízo de economicidade foi juridicizado: do contrário, o antieconômico não seria ilícito, nem sancionável. Nessa perspectiva, o juízo do TCU sobre a economicidade seria uma interpretação sobre o lícito. E seria plenamente revisível pelo Judiciário, pois licitude ou ilicitude é questão técnico-jurídica, não questão de conveniência ou questão técnico-científica.
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Ver, a título de exemplo, Apelação Cível (AC) n. 98397120104058100, TRF da 5ª Região, julgado em 21.08.14; AC n. 447188-RN, TRF da 5ª Região, julgado em 22.04.10; AC n. 17289-GO, TRF da 1ª Região, julgado em 30.08.10; AC n. 432470-PE, TRF 5ª Região, julgado em 15.04.10; AC n. 401034-PB, TRF 5ª Região, julgado em 27.05.10; AC n. 453914-PE, TRF 5ª Região, julgado em 24.11.09; AC n. 8008651620134058000, TRF 5ª Região, julgado em 10.04.14; AC n. 3495220074013602, TRF 1ª Região, julgado em 15.10.14; AC n. 15613-BA, TRF 1ª Região, julgado em 30.07.10. Nesses julgados, o Judiciário reafirma sua competência para revisar decisões ilegais do TCU. Como, na avaliação judicial, as ações não demonstraram vícios de legalidade das decisões impugnadas, as decisões do TCU foram mantidas.
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Para um exemplo quanto aos problemas da mais pura interpretação jurídica que podem estar envolvidos no debate sobre a existência de sobrepreço, ver o Acórdão n. 1.392/2016, em que o plenário do TCU responsabilizou certa empresa, contratada sem licitação, “por não seguir os preços do mercado”, dever esse que, para o tribunal, seria decorrência direta de um enigmático “regime jurídico-administrativo relativo às contratações públicas”. Ainda que o Judiciário optasse por uma postura de deferência em relação à opinião do TCU sobre a questão fática (isto é, se presumisse como correta a pesquisa dos preços de mercado feita pelo TCU para o momento e para o caso), nem assim estaria afastada do domínio do juiz a questão normativa abstrata, que é a de saber se as normas impõem ou não aos particulares um dever de, sob pena de responsabilidade, “seguir os preços de mercado” (sustentando não existir esse dever, ver Sundfeld e Campos, 2013SUNDFELD, Carlos Ari; CAMPOS, Rodrigo Pinto de. O Tribunal de Contas e os preços dos contratos administrativos. In: SUNDFELD, Carlos Ari (Org.). Contratações públicas e seu controle. São Paulo: Malheiros, 2013., p. 221-231).
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Como exemplo, tome-se o julgamento da Apelação Cível n. 0050179-35.202.4.01.3400/DF do TRF da 1ª Região, 4ª Turma, julgada em 12.04.16. Nesse caso, o Judiciário anulou decisão do TCU que imputava multa a uma autoridade administrativa. O Judiciário discordou do cerne da decisão do TCU, que havia considerado a conduta da autoridade administrativa “consubstanciadora de má-fé”, condenando-a à restituição do valor da compra considerada irregular e ao pagamento de multa. Como o Judiciário, em outro processo, decidiu “pela improcedência da ação de improbidade, movida pela União”, o acórdão do TCU foi anulado judicialmente. O julgado revela que um fato jurídico analisado pelo TCU mereceu qualificação diferente do Judiciário, o que levou à anulação da decisão do TCU. A razão de decidir não foi qualquer desvio político na manifestação dos ministros do TCU ou uma falha processual na tomada de decisão pela Corte de Contas. O Judiciário, simplesmente, reexaminou os mesmos fatos (reviu a qualificação jurídica dos fatos) e concluiu de maneira diferente do TCU. Outro caso ilustrativo da possibilidade de revisão judicial de decisão técnica do TCU se verifica na Apelação Cível n. 2005.61.15.001300-0/SP, do TRF da 3ª Região, 2ª Turma, julgada em 02.02.10. Nesse outro julgado o TRF anula decisão do TCU que aplicara multa ao administrador público por ato praticado em licitação. O TCU havia considerado que a desclassificação de um licitante, realizada pelo administrador, teria contrariado a economicidade da administração pública. Todavia, este mesmo ato do administrador veio a ser considerado válido por uma decisão judicial (proferida em mandado de segurança). Como, desse modo, o Judiciário declarou a legalidade da conduta do servidor punido pelo TCU, considerou que havia desaparecido o pressuposto de sua punição. Por tal motivo, a decisão do TCU foi anulada. A ementa do referido acórdão assim resumiu o entendimento sobre a matéria: “Não viola a independência entre os Poderes a sentença que, reconhecendo afastada a ilegalidade da conduta do servidor público e, consequentemente, o pressuposto de sua punição, torna sem efeito a multa aplicada, sem adentrar pelo exame da prova ou da justiça da punição aplicada pelo Tribunal de Contas da União”.
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As decisões do TCU não são os únicos atos administrativos providos de força de título extrajudicial. É comum que a administração produza atos que gozam dessa prerrogativa e que, após inscrição da dívida ativa, constituam base autônoma para execução judicial. É o que ocorre com a atividade tributária. São atos administrativos que constituem os créditos tributários. Após inscrição na dívida ativa, esses créditos podem ser executados judicialmente (Lei n. 6.830, de 1980, art. 1º). Tal condição não impede a discussão judicial, no curso da execução, sobre a legalidade das decisões administrativas que lhe deram origem (Lei n. 6.830, de 1980, art. 3º, parágrafo único e art. 16, § 2º). Aliás, as decisões administrativas em matéria tributária, apesar de serem capazes de se constituir em título executivo extrajudicial, sujeitam-se a ampla revisão judicial, inclusive por meio de ação específica, na qual são discutidos os fundamentos técnico-jurídicos dessas decisões (ocorrência do fato gerador, interpretação da norma tributária, competência etc.). O Código Tributário Nacional (Lei n. 5.172, de 25 de outubro de 1966) admite expressamente a revisão judicial das decisões técnicas das autoridades administrativas fiscais. Tanto é assim que o CTN prevê a concessão de medidas judiciais cautelares em mandado de segurança e em outros tipos de ações judiciais como causa de suspensão da exigibilidade do crédito tributário (art. 151, IV e V). Seguindo essa linha, o Código aponta como causa de extinção desse crédito a decisão judicial transitada em julgado (art. 156, X). As sanções aplicadas no exercício do poder de polícia administrativo (fiscalização do trânsito e do meio ambiente, por exemplo) também são dotadas de exigibilidade e podem, uma vez inscritas na dívida ativa, ser objeto de execução judicial. Constituem títulos executivos extrajudiciais. Tal condição, entretanto, não é tomada como mitigadora da possibilidade da revisão judicial desses atos administrativos, que é prevista expressamente pela lei (Lei n. 6.830, de 1980, art. 3º, parágrafo único e art. 16, § 2º).
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Quando, nessas ações de anulação, o juiz de primeira instância se recusa a conhecer da ação, e a extingue sem julgamento de mérito, alegando que a matéria já teria sido apreciada em definitivo pelo TCU, os tribunais brasileiros reformam a sentença de extinção da ação e determinam ao juiz a análise do pedido de mérito. Como exemplo, vejam-se acórdãos do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que afirmam: “As decisões definitivas do Tribunal de Contas da União – TCU, de natureza técnica, somente fazem coisa julgada na esfera administrativa, em cujo âmbito não podem ser revistas. Na esfera do Poder Judiciário, todavia, podem ser revistas.” (TRF 1ª Região, 3ª Turma, Apelação Cível n. 2000.38.00.011110-1/MG, julgada em 22.08.06; TRF 1ª Região, 3ª Turma, Apelação Cível n. 2000.38.00.011112-7/MG, julgada em 09.11.04; TRF 1ª Região, 3ª Turma, Apelação Cível n. 2001.40.00.005753-8/PI, julgada em 29.09.04).
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Possivelmente o caso mais importante em que o STF não aceitou decisões do TCU sobre a validade de contratações é o que envolve a aplicabilidade do art. 67 da Lei n. 9.478/98, que autorizou a Petrobras a realizar suas contratações por meio de procedimento licitatório simplificado. A primeira decisão do STF foi no MS n. 25.888, Relator: Ministro Gilmar Mendes, sucedida por muitas outras. Sobre o tema, ver Rosilho e Gebrim (2015ROSILHO, André Janjácomo; GEBRIM, Larissa Santiago. Política de contratações públicas da Petrobras: o que pensam o STF e o TCU?. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 13, n. 50, abr./jun. 2015., p. 63-88).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Sep-Dec 2017
Histórico
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Recebido
12 Jul 2016 -
Aceito
28 Ago 2017