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Prisão em flagrante em domicílio: um olhar empírico

ARRESTS FOR FLAGRANT OFFENCES AT THE DEFENDANTS’ HOMES: AN EMPIRICAL ANALYSIS

Resumo

Este artigo tem o objetivo de analisar a relação entre as prisões em flagrante e a garantia da inviolabilidade do domicílio. Para tanto, discute a extensão da garantia nos tratados internacionais de que o Brasil é signatário e na Constituição de 1988. Em seguida, discute-se a regularidade dos ingressos em domicílio sem mandado judicial para prisão em flagrante delito, a partir do entendimento dos tribunais superiores. Por fim, são analisadas empiricamente todas as prisões em flagrante em domicílio realizadas em Salvador entre janeiro e abril de 2018, e submetidas ao Núcleo de Prisão em Flagrante do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, buscando-se informações sobre os bairros em que essas prisões ocorreram, sobre os tipos de delito que justificaram o ingresso em domicílio, sobre a existência ou não de autorização judicial ou do morador e sobre as justificativas apresentadas pela polícia para o ingresso em domicílio. Com isso, conclui-se que, nos casos de violência contra a mulher, o poder de ingressar em domicílio para prender em flagrante delito foi exercido adequadamente pela polícia, mas que, por outro lado, nos casos de tráfico de drogas, foram identificados indícios de abuso de poder pelos policiais.

Palavras-chave
Prisão em flagrante; domicílio; seletividade penal; tráfico de drogas; violência doméstica

Abstract

This article aims to verify the relation between arrest for flagrant offences and the protection against arbitrary interference on one’s home, based, at first, on the dispositions of the International Covenant on Civil and Political Rights adopted by the United Nations General Assembly, the American Convention on Human Rights and of the Brazilian Constitution. Subsequently, the constitutionality and legality of warrantless searches and arrests for flagrant offences at the defendant’s home is discussed, based on the landmark decision issued in 2015 by the Brazilian Federal Supreme Court and the following rulings by the Brazilian Superior Court of Justice. After that, all arrests for flagrant offences occurred in Salvador, Bahia, from January to April 2018 are analyzed, in search for information about the neighborhoods where they happened, the type of crime, the existence of a search warrant or of an authorization by the resident, and the allegations made by the police to justify entering the defendant’s home. In conclusion, in cases regarding domestic violence, the police used its power to enter the defendant’s home lawfully. On the other hand, the drug-related crimes showed potential cases of abuse of power by the police.

Keywords
Arrest for flagrant offences; home; criminal selectivity; drug trafficking; domestic violence

Introdução

Este artigo visa discutir como a garantia da inviolabilidade do domicílio é relativizada pelas forças policiais, nas situações de flagrante delito, a partir da análise da base de dados do monitoramento do Núcleo de Prisão em Flagrante de Salvador realizado pela Defensoria Pública do Estado da Bahia.

Para preparar a análise empírica que dá nome ao presente artigo, serão discutidas a garantia da inviolabilidade do domicílio nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, as limitações estabelecidas à garantia na Constituição de 1988, a situação peculiar do flagrante delito, sobretudo nos crimes permanentes, e a interpretação da garantia e de seus limites pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Passada a etapa teórica, serão analisadas 1.870 prisões em flagrante realizadas em Salvador no 1º quadrimestre de 2018, sua distribuição territorial, o local de residência dos presos em flagrante e a quantidade de vezes em que as pessoas foram presas dentro dos seus próprios domicílios.

1. Inviolabilidade do domicílio e flagrante delito

O artigo 17, parágrafos 1 e 2, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1966ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. 1966. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm. Acesso em: 13 dez. 2018.
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) e o artigo 11, parágrafos 2 e 3, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 1969ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana sobre Direitos Humanos. 1969. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm. Acesso em: 13. dez. 2018.
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) reproduzem rigorosamente o mesmo texto: “Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação” e “toda pessoa terá direito à proteção da lei contra essas ingerências ou ofensas”.

Embora os tratados internacionais sejam suficientemente abertos para admitir que cada Estado-Parte, conforme seu direito interno, especifique as ingerências admissíveis no domicílio dos seus cidadãos, a mensagem de proteção contra a arbitrariedade e a garantia de acesso à justiça em caso de violação são muito claras.

A Constituição de 1988, por sua vez, em seu art. 5º, XI, diz que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”, especificando, portanto, quais são as restrições da garantia admissíveis no Brasil.

Ingo Wolfgang Sarlet e Jayme Weingartner Neto (2013, p. 548)SARLET, Ingo Wolfgang; WEINGARTNER NETO, Jayme. A inviolabilidade do domicílio e seus limites: o caso do flagrante delito. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 14, n. 14, p. 544-562, jul./dez. 2013. Disponível em: revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/download/470/358. Acesso em: 13 dez. 2018.
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esclarecem que a casa “que constitui o objeto de proteção da garantia da inviolabilidade consagrada pelo art. 5º, XI, da CF, é todo aquele espaço (local) delimitado e separado que alguém ocupa com exclusividade, seja para fins de residência, seja para fins profissionais”.

O que, à primeira vista, é perfeitamente razoável gera muitas dúvidas concretas no caso do flagrante delito, sobretudo por conta da extensão que a legislação processual penal dá ao instituto. O art. 302 do Código de Processo Penal diz que está em flagrante quem está cometendo um delito, acaba de cometê-lo, é perseguido, está em situação que se faça presumir ser ele o autor da infração ou é encontrado com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam crer ser ele o autor do delito. O art. 303 do CPP complementa o quadro dizendo que, nos crimes permanentes, se considerará o agente em flagrante delito enquanto não cessada a permanência.

Esse desenho normativo oferece um risco de esvaziamento da garantia fundamental à inviolabilidade do domicílio, sobretudo no caso dos delitos permanentes cujos tipos penais incluem núcleos como “guardar”, “ter em depósito” ou “ocultar” determinado objeto, de circulação, comercialização ou origem ilícitas, em especial os crimes de tráfico de drogas e de posse ilegal de arma de fogo. Isso, porque uma interpretação literal do dispositivo poderia levar a crer que uma busca domiciliar realizada sem mandado judicial que resulte na localização de tais objetos seria convalidada pela natureza permanente do crime, nesses casos, deixando, na prática, a decisão de ingressar em domicílio exclusivamente a critério de autoridades e agentes policiais, sem controle judicial ou possibilidade de resistência do morador.

E é justamente por isso que um sujeito que guarda ou tem em depósito drogas em sua casa está permanentemente em situação de flagrância, levando doutrinadores, de todas as vertentes ideológicas, a entenderem que o ingresso em residência para efetivar prisão por tráfico de drogas não depende de mandado judicial (MARCÃO, 2011MARCÃO, Renato. Tóxicos: Lei n. 11.343 - lei de drogas. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2011., p. 362; JESUS, 2009JESUS, Damásio de. Lei Antidrogas anotada: comentários à Lei n. 11.343/2006. 9. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009., p. 249; BACILA e RANGEL, 2007BACILA, Carlos Roberto; RANGEL, Paulo. Comentários penais e processuais à Lei de Drogas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007., p. 190; MENDONÇA e CARVALHO, 2012MENDONÇA, Andrey Borges de; CARVALHO, Paulo Roberto Galvão de. Lei de Drogas: Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006 - comentada artigo por artigo. 3. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012., p. 101; TÁVORA e ALENCAR, 2012TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 7. ed. rev., atual. e ampl. Salvador: Juspodivm, 2012., p. 567; LOPES JR., 2014LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014., p. 831-832; CUNHA e PINTO, 2018CUNHA, Rogerio Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Código de Processo Penal e Lei de Execução Penal comentados: artigo por artigo. 2. ed. rev., atual. e ampl. Salvador. 2018., p. 825).

Tales Castelo Branco (2001, p. 148)CASTELO BRANCO, Tales. Da prisão em flagrante. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2001., um dos poucos autores do Processo Penal a contrariar o entendimento aqui exposto, sustenta que a violação do domicílio para prisão em flagrante só pode se dar quando houver “certeza visual do crime” e toda vez, “portanto, que a prisão em flagrância tenha sido decorrência de busca e apreensão efetivada irregularmente, sem as garantias legais, a sua manutenção constituirá um ato de violência contra a liberdade humana e a própria segurança do Estado” (CASTELO BRANCO, 2001CASTELO BRANCO, Tales. Da prisão em flagrante. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2001., p. 151).

No mesmo sentido, Sarlet e Weingartner Neto (2013, p. 552)SARLET, Ingo Wolfgang; WEINGARTNER NETO, Jayme. A inviolabilidade do domicílio e seus limites: o caso do flagrante delito. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 14, n. 14, p. 544-562, jul./dez. 2013. Disponível em: revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/download/470/358. Acesso em: 13 dez. 2018.
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sustentam que “prova obtida em situação que configure violação do domicílio tem sido considerada como irremediavelmente contaminada e ilícita” e que “sem desconsiderar a natureza permanente do delito de tráfico de drogas (para ilustrar), as circunstâncias da abordagem do caso concreto devem evidenciar ‘ex ante’ situação de flagrância a autorizar o ingresso na residência do réu” (SARLET e WEINGARTNER NETO, 2013SARLET, Ingo Wolfgang; WEINGARTNER NETO, Jayme. A inviolabilidade do domicílio e seus limites: o caso do flagrante delito. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 14, n. 14, p. 544-562, jul./dez. 2013. Disponível em: revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/download/470/358. Acesso em: 13 dez. 2018.
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, p. 554).

A discussão sobre a validade das provas obtidas após ingresso da polícia em domicílio sem mandado judicial foi travada pelo STF durante o julgamento do Recurso Extraordinário n. 603.616, em 05/11/2015, cujo objeto teve a repercussão geral reconhecida pela Corte, nos seguintes termos:

Recurso extraordinário representativo da controvérsia. Repercussão geral. 2. Inviolabilidade de domicílio - art. 5º, XI, da CF. Busca e apreensão domiciliar sem mandado judicial em caso de crime permanente. Possibilidade. A Constituição dispensa o mandado judicial para ingresso forçado em residência em caso de flagrante delito. No crime permanente, a situação de flagrância se protrai no tempo. 3. Período noturno. A cláusula que limita o ingresso ao período do dia é aplicável apenas aos casos em que a busca é determinada por ordem judicial. Nos demais casos - flagrante delito, desastre ou para prestar socorro - a Constituição não faz exigência quanto ao período do dia. 4. Controle judicial a posteriori. Necessidade de preservação da inviolabilidade domiciliar. Interpretação da Constituição. Proteção contra ingerências arbitrárias no domicílio. Muito embora o flagrante delito legitime o ingresso forçado em casa sem determinação judicial, a medida deve ser controlada judicialmente. A inexistência de controle judicial, ainda que posterior à execução da medida, esvaziaria o núcleo fundamental da garantia contra a inviolabilidade da casa (art. 5, XI, da CF) e deixaria de proteger contra ingerências arbitrárias no domicílio (Pacto de São José da Costa Rica, artigo 11, 2, e Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, artigo 17, 1). O controle judicial a posteriori decorre tanto da interpretação da Constituição, quanto da aplicação da proteção consagrada em tratados internacionais sobre direitos humanos incorporados ao ordenamento jurídico. Normas internacionais de caráter judicial que se incorporam à cláusula do devido processo legal. 5. Justa causa. A entrada forçada em domicílio, sem uma justificativa prévia conforme o direito, é arbitrária. Não será a constatação de situação de flagrância, posterior ao ingresso, que justificará a medida. Os agentes estatais devem demonstrar que havia elementos mínimos a caracterizar fundadas razões (justa causa) para a medida. 6. Fixada a interpretação de que a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados. (BRASIL, 2015BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Rel. Min. Gilmar Mendes. Recurso Extraordinário n. 603.616. Repercussão Geral - Mérito, julgado em 05/11/2015.)

A decisão do STF fornece subsídio a ambas as posições doutrinárias a respeito da inviolabilidade: por um lado, afirma que não é necessária autorização prévia para o ingresso em domicílio nos casos de flagrante de crime permanente, mas, por outro, reconhece que o ingresso deve ter justificativa prévia, ainda que o controle judicial só se faça a posteriori, e que a posterior localização de objeto ilícito no interior da residência não convalida um ingresso que, na origem, fora arbitrário.

Ocorre que, além de o Supremo não ter descrito de maneira objetiva quais razões podem ser tidas como fundadas para o ingresso em domicílio, deixando a questão para exame no caso concreto, a jurisprudência do STJ, posterior à orientação do STF, está longe de ser pacífica.

A quantidade elevada de precedentes (101 casos localizados com o auxílio da ferramenta de busca do STJ, com as palavras-chave “inviolabilidade”, “domicílio”, “flagrante” e “delito”, em consulta feita no dia 06/12/2018) exigiu que a presente investigação, que, neste ponto, não teve pretensão quantitativa, se restringisse aos casos julgados no ano de 2018.

Feito esse recorte, chegou-se a 45 (quarenta e cinco) casos, cujos entendimentos estão categorizados e resumidos a seguir, ficando excluídos da análise os precedentes em que não foi possível identificar com clareza, na ementa do julgado, os motivos alegados pelo condutor para o ingresso em domicílio sem mandado judicial.

Pode-se organizar as justificativas da polícia em três grandes grupos: 1) os casos em que uma atitude do flagrado motivou a intervenção policial no domicílio, em geral a fuga ao avistar a guarnição ou a posse, em via pública, de objeto ilícito; 2) os casos em que houve comunicação do fato à força policial por um cidadão, quer seja pela própria vítima, quer seja por uma delação, anônima ou identificada; e 3) os casos em que já havia investigação prévia da conduta do flagrado em cujo domicílio a polícia ingressou.

Nos casos em que uma atitude do flagrado motivou a intervenção policial no domicílio, o STJ entendeu:

  • 1.1) que havia fundadas razões para o ingresso em domicílio sem mandado judicial:

    • 1.1.1) quando o indivíduo que “estava em atitude suspeita”, ao avistar a guarnição, buscou se esconder na própria residência (BRASIL. HC 467.956 (5ª Turma). Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 09/10/2018BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5ª Turma). Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca. Habeas Corpus n. 467.956, julgado em 09/10/2018. ; BRASIL. HC 434.813 (5ª Turma). Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 10/04/2018BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5ª Turma). Rel. Min. Felix Fischer. Habeas Corpus n. 434.813, julgado em 10/04/2018.);

    • 1.1.2) quando houve notícia de violência doméstica praticada pelo agente, e após perseguição automobilística, durante a qual também se constatou forte cheiro de maconha vindo do interior do automóvel (BRASIL. HC 470.307 (6ª Turma). Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 09/10/2018BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6ª Turma). Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz. Habeas Corpus n. 470.307, julgado em 09/10/2018.);

    • 1.1.3) quando o agente estava sendo observado em conduta compatível com a comercialização de drogas e, ao ser avistado, se desvencilhou de uma bolsa em que foram encontradas drogas, fugindo para a própria residência (BRASIL. HC 441.175 (5ª Turma), Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 12/06/2018BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. (5ª Turma). Rel. Min. Felix Fischer. Habeas Corpus n. 441.175, julgado em 12/06/2018.);

    • 1.1.4) quando o próprio agente informou que havia mais drogas guardadas em sua casa (BRASIL. RHC 95.025 (6ª Turma). Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 21/06/2018BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6ª Turma). Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz. Recurso em Habeas Corpus n. 95.025, julgado em 21/06/2018.);

    • 1.1.5) quando o agente, após fugir da polícia, foi preso com arma de fogo e, em sua residência, foram encontradas drogas (DBRASIL. HC 405.377 (5ª Turma). Rel. Min. Ribeiro antas, julgado em 06/02/2018BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5ª Turma). Rel. Min. Ribeiro Dantas. Habeas Corpus n. 405.377, julgado em 06/02/2018.).

  • 1.2) em sentido contrário, que não havia fundadas razões para o ingresso em domicílio sem mandado judicial:

    • 1.2.1) quando a “atitude suspeita” do indivíduo que fugiu para a própria residência não foi explicitada em atos concretos, não podendo o ingresso se basear em mera intuição do policial (BRASIL. HC 415.332 (6ª Turma). Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 16/08/2018BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6ª Turma). Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz. Habeas Corpus n. 415.332, julgado em 16/08/2018. ; BRASIL. REsp 1.690.854 (6ª Turma). Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 27/02/2018BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6ª Turma). Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz. Recurso Especial n. 1.690.854, julgado em 27/02/2018.).

  • 2) Com relação à comunicação do fato à força policial por um cidadão, o STJ entendeu:
    • 2.1) que havia fundadas razões para o ingresso em domicílio sem mandado:
      • 2.1.1) quando uma diligência começou com denúncia anônima e terminou com apreensão de razoável quantidade de drogas (BRASIL. AgRg no AREsp 1.308.346 (5ª Turma). Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 04/09/2018BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5ª Turma). Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca. Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n. 1.308.346, julgado em 04/09/2018.; BRASIL. AgRg no AREsp 1.304.905 (5ª Turma). Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 16/08/2018BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5ª Turma). Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca. Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n. 1.304.905, julgado em 16/08/2018.);

      • 2.1.2) quando, após a denúncia anônima, constatou também “movimentação estranha” no local (BRASIL. HC 439.140 (6ª Turma). Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 04/09/2018BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5ª Turma). Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca. Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n. 1.308.346, julgado em 04/09/2018.);

      • 2.1.3) quando, após a denúncia anônima, os policiais constataram a existência de drogas no interior de dois veículos que estavam próximos ao imóvel (BRASIL. HC 441.270 (5ª Turma). Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 26/06/2018BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5ª Turma). Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca. Habeas Corpus n. 441.270, julgado em 26/06/2018.);

      • 2.1.4) quando havia diversas delações anônimas apontando inclusive a descrição física dos agentes, confirmadas pela apreensão da droga (BRASIL. HC 445.411 (6ª Turma). Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 21/06/2018BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6ª Turma). Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura. Habeas Corpus n. 445.411, julgado em 21/06/2018.);

      • 2.1.5) quando, após a delação anônima, os policiais observaram, pela janela, que o agente portava arma de fogo (BRASIL. REsp 1.714.910 (6ª Turma). Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 17/04/2018BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6ª Turma). Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura. Recurso Especial n. 1.714.910, julgado em 17/04/2018.; BRASIL. REsp 1.708.422 (6ª Turma). Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 27/02/2018BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6ª Turma). Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura. Recurso Especial n. 1.708.422, julgado em 27/02/2018.);

      • 2.1.6) quando um usuário de droga apontou a residência do agente como local de traficância, informação corroborada por notícias anteriores prestadas por vizinho do agente (BRASIL. HC 407.922 (6ª Turma). Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, julgado em 05/06/2018BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6ª Turma). Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro. Habeas Corpus n. 407.922, julgado em 05/06/2018.);

      • 2.1.7) quando os coflagrados foram abordados em via pública, encontrados com drogas, e apontaram o local onde os demais agentes estariam mantendo o restante delas (BRASIL. RHC 94.954 (5ª Turma). Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 24/05/2018BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5ª Turma). Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca. Habeas Corpus n. 444.884, julgado em 24/05/2018.).

    • 2.2) em sentido contrário, que não havia fundadas razões para o ingresso em domicílio sem mandado:
      • 2.2.1) quando não houve prévia investigação, monitoramento ou campana, já que a denúncia anônima autorizaria abordagem em via pública, mas não em domicílio (BRASIL: AgRg no REsp 1.753.662 (5ª Turma). Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 18/09/2018BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5ª Turma). Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca. Agravo Regimental no Recurso Especial n. 1.753.662, julgado em 18/09/2018.; BRASIL. HC 442.363 (5ª Turma). Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 02/08/2018BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5ª Turma). Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca. Habeas Corpus n. 442.363, julgado em 02/08/2018. ; BRASIL. REsp 1.498.689 (6ª Turma). Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 27/02/2018BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6ª Turma). Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura. Recurso Especial n. 1.708.422, julgado em 27/02/2018.);

      • 2.2.2) quando não houve nenhum outro elemento além da delação anônima e da fuga de adolescente do local (BRASIL. RHC 83.051 (6ª Turma). Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 06/03/2018BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6ª Turma). Rel. Min. Nefi Cordeiro. Recurso em Habeas Corpus n. 83.051, julgado em 06/03/2018.);

      • 2.2.3) quando o ingresso foi franqueado pela tia do agente, após denúncia anônima, sem que os policiais tenham realizado investigação preliminar para confirmar os elementos da suspeita (BRASIL. HC 423.653 (5ª Turma). Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 03/05/2018BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5ª Turma). Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca. Habeas Corpus n. 423.653, julgado em 03/05/2018.).

  • 3) Com relação à monitoração prévia do agente, o STJ entendeu:

    • 3.1) que havia fundadas razões para o ingresso em domicílio sem mandado judicial:
      • 3.1.1) quando o agente estava sendo investigado e monitorado (BRASIL. AgRg no AREsp 1.305.377 (5ª Turma). Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 16/08/2018BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5ª Turma). Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca. Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n. 1.304.905, julgado em 16/08/2018.);

      • 3.1.2) quando os policiais fizeram campana diante de imóvel conhecido por ser ponto de venda de drogas (BRASIL. HC 451.528 (5ª Turma). Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 07/08/2018BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5ª Turma). Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca. Habeas Corpus n. 451.528, julgado em 07/08/2018.);

      • 3.1.3) quando já havia sido feita busca anterior, sem localização da droga, mas, com uma denúncia subsequente, e nova campana, identificou-se a presença de usuários de drogas (BRASIL. HC 441.073 (5ª Turma). Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 03/05/2018BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5ª Turma). Rel. Min. Felix Fischer. Habeas Corpus n. 441.073, julgado em 03/05/2018.);

      • 3.1.4) quando os policiais chegaram até o imóvel do agente fazendo uso do serviço de rastreamento de telefone celular objeto de crime (BRASIL. HC 433.261 (5ª Turma). Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 10/04/2018BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5ª Turma). Rel. Min. Felix Fischer. Habeas Corpus n. 433.261, julgado em 10/04/2018.);

      • 3.1.5) quando o morador autorizou o ingresso e havia severas suspeitas da prática de delitos no local (BRASIL. HC 444.884 (5ª Turma). Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 24/05/2018BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5ª Turma). Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca. Habeas Corpus n. 444.884, julgado em 24/05/2018.).

A longa e algo contraditória relação de casos apreciados pelo STJ no ano de 2018 aponta, em primeiro lugar, para a dimensão do problema: os ingressos em domicílio sem mandado judicial são um instrumento cotidiano da atuação policial, em especial na repressão ao tráfico de drogas, e objeto de insurgência frequente das defesas; quando os casos são submetidos a controle judicial, não é possível obter resposta clara dos tribunais superiores, embora haja uma tendência de reconhecimento da legalidade da ação policial, em especial nas situações em que os condutores foram claros e precisos com relação aos motivos do ingresso.

Além disso, é notável, como se verá no item seguinte, que trata da pesquisa empírica propriamente dita, com rigor metodológico e pretensão quantitativa, que as justificativas apreciadas pelo STJ, em 2018, em habeas corpus e recursos oriundos de todos os estados do Brasil, são basicamente as mesmas utilizadas pelas Polícias Civil e Militar na comarca de Salvador, demonstrando que, embora o presente artigo aborde uma realidade local, as suas conclusões podem ser empregadas para a compreensão de um problema de caráter nacional.

2. Prisão em flagrante em domicílio: um olhar empírico

2.1. Considerações metodológicas

A presente investigação teve como base empírica os autos de prisão em flagrante encaminhados ao Núcleo de Prisão em Flagrante (NPF) de Salvador entre janeiro e abril de 2018, referentes a 1.870 (mil, oitocentos e setenta) pessoas presas.

Em verdade, as informações utilizadas pela investigação já estavam estruturadas em base de dados da Defensoria Pública, em planilha do software Microsoft Excel, de extensão *.xlsx, que registrou, em cada caso, o nome, o endereço, os dados pessoais e a vida pregressa do preso, bem como o número dos autos, a classificação jurídica do fato, tal como apontada pela autoridade que lavrou o auto, o local da prisão e os objetos supostamente apreendidos com o preso.

Nos casos em que se constatou que o agente foi preso no próprio bairro em que reside, foi preciso, para cumprir os objetivos da presente investigação, complementar os dados da base, buscando informação, nos autos eletrônicos de cada caso, disponíveis no sistema processual E-SAJ, acerca do local preciso da prisão - se em via pública, em domicílio ou em outro espaço.

Os bairros da cidade de Salvador, na presente investigação, foram registrados como constaram da base de dados da Defensoria Pública, sem qualquer intervenção corretiva, e foi possível constatar que ela está de acordo com a Lei Municipal n. 9.278, de 20 de setembro de 2017 (SALVADOR, 2017SALVADOR. Lei n. 9.728, de 20 de setembro de 2017. Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a/ba/s/salvador/lei-ordinaria/2017/927/9278/lei-ordinaria-n-9278-2017-dispoe-sobre-a-delimitacao-e-denominacao-dos-bairros-do-municipio-de-salvador-capital-do-estado-da-bahia-na-forma-que-indica-e-da-outras-providencias. Acesso em: 6 dez. 2018.
https://leismunicipais.com.br/a/ba/s/sal...
), que dispõe sobre a sua denominação e delimitação, exceto no caso das Cajazeiras, que foram reunidas como um só bairro, para facilitação da análise.

As informações sobre a prisão em domicílio, tanto quanto à motivação como quanto à autorização para o ingresso, foram extraídas do depoimento do condutor e, quando necessário, complementadas por outros depoimentos, sendo desconsiderada a versão do flagrado, visto que o principal objetivo da pesquisa é identificar os casos em que a própria polícia reconheceu o ingresso em domicílio sem mandado e como os agentes policiais justificaram a medida.

Foram contabilizados apenas os casos de prisão dos moradores; a prisão de pessoas no domicílio de terceiros não foi considerada, muito embora se saiba que os convidados dos moradores de um imóvel estão abrangidos pela mesma garantia constitucional.

A desconsideração dos convidados se deveu a uma questão metodológica: como o ponto de partida para a complementação da base de dados foi a coincidência, nas informações catalogadas pela Defensoria Pública, entre o bairro de residência e o bairro da prisão, não foi possível examinar os casos das pessoas presas em localidade diversa daquela em que residiam.

Considerando os objetivos e a complexidade da presente investigação, não foram avaliadas outras variáveis relacionadas ao ingresso no domicílio (violência policial, intervalo entre crime e prisão, objetos apreendidos, etc.), muito embora se saiba que tais fatores podem ter correlação direta com as justificativas dadas pela polícia para o ingresso.

Nos casos em que mais de uma motivação esteve presente (fuga e prisão em flagrante ainda na rua, delação anônima e fuga, delação anônima e prisão na rua), foi computado apenas o motivo imediatamente antecedente ao ingresso em domicílio, e desconsiderado o que desencadeou originalmente a ação policial.

A decisão de considerar apenas o próprio relato da polícia e de desconsiderar os convidados dos moradores pode ter o efeito de subrepresentação do total de casos de ingresso em domicílio sem mandado judicial, mas tem a vantagem de reduzir a complexidade, descartando os casos de divergência entre as versões da polícia e do preso, e de circunscrever a análise apenas aos casos em que, para além de qualquer dúvida, o ingresso ocorreu e os moradores foram afetados.

Como o objetivo da presente investigação é, sobretudo, compreender as justificativas da própria polícia e discutir a sua plausibilidade, o principal problema da sub-representação atinge a análise subsequente, sobre a correlação entre a renda do bairro e o percentual de ingresso da polícia, mas uma variável que ajuda a controlar esse viés é a da prisão de moradores do próprio bairro, independentemente de a captura ter ocorrido em domicílio ou em via pública, para testar a hipótese da atuação seletiva em prejuízo das classes populares.

2.2. As prisões em flagrante em domicílio nos bairros de Salvador

Na análise da distribuição territorial da prisão em flagrante, foram considerados apenas os bairros em que, no quadrimestre em questão, 30 ou mais pessoas foram presas, para reduzir a influência da aleatoriedade nas conclusões subsequentes.

Com base nesse critério, 18 bairros foram objeto de análise pormenorizada. No Gráfico 1, podem-se ver a distribuição territorial das prisões em flagrante e, além disso, a comparação com o bairro de residência do flagrado.

GRÁFICO 1
Prisões em flagrante em Salvador, por bairro e por origem do preso

Os dados coletados indicam que há uma considerável oscilação no perfil dos presos de acordo com os bairros: em alguns casos, a maior parte dos flagrados é de moradores da própria localidade; em outros, de moradores de bairros distintos do local da prisão.

Embora as prisões em domicílio não sejam maioria em nenhuma localidade, em alguns bairros a quantidade chama a atenção. Para confirmar essa percepção, o Gráfico 2 aponta, em cada um dos 18 bairros, o percentual de presos no próprio domicílio, de moradores do bairro e de residentes em outros bairros.

GRÁFICO 2
Prisões em flagrante em Salvador, por bairro e por origem do preso (%)

A apresentação dos percentuais confirma a percepção anterior: na Barra, 92% dos presos são oriundos de outros bairros; no Uruguai, apenas 27%; na Boca do Rio, 19% dos flagrados foram presos em seu próprio domicílio; no Rio Vermelho, 0%.

Essa constatação exige do investigador a busca por uma explicação plausível para a diferença e, tendo por orientação as teorias criminológicas que apontam o caráter seletivo do Direito Penal, com alvo preferencial nos pobres (BECKER, 1966BECKER, Howard. Outsiders: studies in the sociology of deviance. New York: The Free Press; London: Collier-Macmillan Limited, 1966., p. 16-18) (BARATTA, 2002BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002., p. 89-93), passou-se a comparar o percentual de prisões em flagrante em domicílio, e de prisões em flagrante de moradores do próprio bairro, com a renda média familiar mensal de cada um dos bairros, informada em relatório da Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (Conder) (BAHIA, 2016BAHIA. Secretaria de Desenvolvimento Urbano. Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia. Dados socioeconômicos do município de Salvador por bairros e prefeituras-bairro. Salvador, ago. 2016. Disponível em: http://www.informs.conder.ba.gov.br/wp-content/uploads/2016/10/1_INFORMS_Painel_de_Informacoes_2016.pdf. Acesso em: 13 dez. 2018.
http://www.informs.conder.ba.gov.br/wp-c...
), publicado em 2016, com dados do censo mais recente, de 2010.

GRÁFICO 3
Correlação entre prisões em domicílio e renda familiar, por bairro

Para auxiliar a compreensão do diagrama de dispersão anteriormente apresentado, acrescentou-se o coeficiente de correlação de Pearson, a fim de mensurar a relação entre o percentual de prisões em domicílio e a renda do bairro em que as prisões ocorreram. Segundo Dalson Britto Figueiredo Filho e José Alexandre da Silva Júnior (2009, p. 118)FIGUEIREDO FILHO, Dalson Britto; SILVA JÚNIOR, José Alexandre. Desvendando os mistérios do coeficiente de correlação de Pearson (r). Revista Política Hoje, Recife, v. 18, n. 1, 2009. Disponível em: http://www.revista.ufpe.br/politicahoje/index.php/politica/article/viewFile/6/6. Acesso em: 16 out. 2016.
http://www.revista.ufpe.br/politicahoje/...
, o coeficiente de correlação de Pearson “é uma medida de associação linear entre duas variáveis”.

Para utilização do coeficiente, é preciso que as variáveis sejam quantitativas e não categóricas (FIGUEIREDO FILHO e SILVA JÚNIOR, 2009FIGUEIREDO FILHO, Dalson Britto; SILVA JÚNIOR, José Alexandre. Desvendando os mistérios do coeficiente de correlação de Pearson (r). Revista Política Hoje, Recife, v. 18, n. 1, 2009. Disponível em: http://www.revista.ufpe.br/politicahoje/index.php/politica/article/viewFile/6/6. Acesso em: 16 out. 2016.
http://www.revista.ufpe.br/politicahoje/...
, p. 122-123), não sendo possível a medição de variáveis como gênero e vida pregressa, por exemplo.

O coeficiente varia de -1 a 1; o sinal indica a direção positiva ou negativa do relacionamento, e o valor indica a força da relação entre as variáveis: uma correlação perfeita é indicada pelo coeficiente 1 (correlação positiva perfeita) ou pelo coeficiente -1 (correlação negativa perfeita). Uma correlação de valor 0 aponta que não há nenhuma relação linear entre as variáveis (FIGUEIREDO FILHO e SILVA JÚNIOR, 2009FIGUEIREDO FILHO, Dalson Britto; SILVA JÚNIOR, José Alexandre. Desvendando os mistérios do coeficiente de correlação de Pearson (r). Revista Política Hoje, Recife, v. 18, n. 1, 2009. Disponível em: http://www.revista.ufpe.br/politicahoje/index.php/politica/article/viewFile/6/6. Acesso em: 16 out. 2016.
http://www.revista.ufpe.br/politicahoje/...
, p. 119).

Além disso, embora não sejam unívocas, podem ser encontradas na literatura discussões sobre o grau de associação entre as variáveis; um coeficiente de até 0,30 (ou -0,30) indica uma correlação fraca, e um coeficiente superior a 0,70 (ou inferior a -0,70) indica uma correlação forte entre as variáveis. Por fim, o coeficiente de Pearson não aponta qual a variável dependente e, portanto, não revela necessariamente uma relação de causa e efeito (FIGUEIREDO FILHO e SILVA JÚNIOR, 2009FIGUEIREDO FILHO, Dalson Britto; SILVA JÚNIOR, José Alexandre. Desvendando os mistérios do coeficiente de correlação de Pearson (r). Revista Política Hoje, Recife, v. 18, n. 1, 2009. Disponível em: http://www.revista.ufpe.br/politicahoje/index.php/politica/article/viewFile/6/6. Acesso em: 16 out. 2016.
http://www.revista.ufpe.br/politicahoje/...
, p. 119-121), já que, na verdade, a correlação positiva entre duas variáveis pode significar que ambas são dependentes de uma terceira variável não verificada no estudo. Apesar de todas essas ressalvas, o coeficiente de correlação de Pearson é um excelente recurso estatístico para a pesquisa social empírica e não pode ser desprezado.

No caso da presente investigação, o coeficiente de -0,51 indica que há uma correlação moderada entre a diminuição do número de prisões em domicílio e o aumento da renda média familiar mensal do bairro em que as prisões ocorreram.

Isso significa que, por um lado, está claro que os bairros de maior renda média familiar mensal (Ondina, Pituba, Barra e Rio Vermelho) registram pouquíssimas prisões em domicílio, não mais de 5%, enquanto a maior parte dos bairros de menor renda média familiar mensal (São Cristóvão, São Caetano, Paripe, Cajazeiras, Penambuéis, Uruguai) registram percentuais significativamente maiores de prisões em domicílio, superiores a 10%.

Por outro lado, nem toda variação das prisões em domicílio está correlacionada à renda do bairro em que as prisões ocorreram, e para verificar se a hipótese da seletividade penal se enfraquece ou se fortalece, diante dessa constatação, é preciso observar os bairros cujos resultados foram mais dissonantes daquilo que seria esperado em função da sua renda média familiar mensal, que podem ser detectados pela distância entre a posição do bairro no diagrama e a linha de tendência.

Nesse particular, os bairros Calçada e Comércio chamam a atenção por terem renda média familiar mensal muito baixa (próxima dos R$ 1.000,00 em 2010) e percentuais de prisão em domicílio comparáveis aos dos bairros mais ricos da cidade.

A explicação mais clara é que ambos os bairros são predominantemente comerciais, ou seja, a maior parte das pessoas em circulação nesses locais é de residentes em outros bairros, o que explica um percentual de prisão em domicílio mais baixo.

Para continuar testando a hipótese, é preciso verificar em seguida a correlação entre o percentual de prisão de moradores do próprio bairro (seja em seu próprio domicílio, seja em via pública, seja no domicílio de terceiros) e a renda média familiar mensal do bairro em que as prisões ocorreram (Gráfico 4).

GRÁFICO 4
Correlação entre a prisão de moradores e a renda familiar, por bairro

Quando se observa a relação entre a prisão de moradores do próprio bairro com a renda do bairro em que as prisões ocorreram, a correlação negativa, que aponta para a seletividade, é ainda mais forte do que a das prisões em domicílio.

Todos os bairros com renda média familiar mensal superior a R$ 6.000,00 registraram menos de 15% de prisões de moradores, enquanto quase todos os bairros com renda média familiar mensal inferior a R$ 3.500,00 registraram percentual de prisão de moradores superior a 40% do total. As exceções a essa regra se repetem: Comércio, Calçada e Centro, bairros predominantemente comerciais, e o bairro Cabula, em que a presença do principal campus da Universidade do Estado da Bahia explica a circulação de muitas pessoas oriundas de outros bairros.

Embora não se possa atribuir exclusivamente à variação da renda média familiar mensal do bairro em que as prisões ocorreram, a relação entre o poder aquisitivo dos moradores e a probabilidade de prisão pela polícia fica evidenciada nos dados apontados, reforçando a hipótese da seletividade do sistema penal, que - nunca é demais ressaltar - não significa que este ou aquele policial determinado atinja deliberadamente os mais pobres com maior frequência ou rigor, e sim que o conjunto de condições sociais estruturais aumenta a vulnerabilidade e a exposição dos mais pobres ao sistema penal.

Nesses termos, Alessandro Baratta (2002, p. 173-175)BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. indica que o sistema penal cumpre a função de reprodução das classes sociais, cria contraestímulos à integração dos setores mais baixos ou coloca diretamente em ação processos marginalizadores, seja por meio da criminalização primária, seja por meio da secundária. No que diz respeito à atuação dos órgãos de investigação, o autor afirma que os preconceitos e estereótipos os conduzem a “procurar a verdadeira criminalidade principalmente naqueles estratos sociais dos quais é normal esperá-la” (BARATTA, 2002BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002., p. 176-177).

De modo emblemático, a maior frequência do ingresso em domicílio nos bairros populares atinge em especial os valores sociais que um sistema penal classista e seletivo supostamente protege, que são o patrimônio particular e a família.

Eduardo Paes Machado e Ceci Vilar Noronha (2002, p. 190-191)MACHADO, Eduardo Paes; NORONHA, Ceci Vilar. A polícia dos pobres: violência policial em classes populares urbanas. Sociologias. Porto Alegre, ano 4, n. 7, p. 188-221, jan./jun. 2002. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/soc/n7/a09n7.pdf. Acesso em: 06 set. 2019.
http://www.scielo.br/pdf/soc/n7/a09n7.pd...
, em sua análise sobre a atuação policial violenta em desfavor das classes populares urbanas, registram que, mesmo quando parcelas significativas daqueles segmentos sociais aprovam condutas como o ingresso em domicílio sem mandado, chocam-se com a brutalidade quando o comando policial “estende a punição a familiares da vítima, violando o domicílio daquela, pondo em perigo a vida de crianças e destruindo símbolos da vida familiar e social, como animais de estimação e utensílios domésticos” (MACHADO e NORONHA, 2002MACHADO, Eduardo Paes; NORONHA, Ceci Vilar. A polícia dos pobres: violência policial em classes populares urbanas. Sociologias. Porto Alegre, ano 4, n. 7, p. 188-221, jan./jun. 2002. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/soc/n7/a09n7.pdf. Acesso em: 06 set. 2019.
http://www.scielo.br/pdf/soc/n7/a09n7.pd...
, p. 214-215).

Como o principal objetivo da presente investigação é verificar as justificativas para as prisões em flagrante em domicílio, se deixará de lado, neste momento, a preocupação com a renda média familiar mensal dos bairros em que as prisões ocorreram, para analisar quais são os tipos de delito pelos quais a prisão em domicílio é mais frequente.

2.3. As prisões em flagrante em domicílio por tipo de crime e por origem do preso

No Gráfico 5, serão analisados os tipos penais de maior incidência no NPF de Salvador e se os presos por esses fatos estavam em seus próprios domicílios, se eram moradores do bairro em que a prisão ocorreu ou eram residentes em outros bairros.

GRÁFICO 5
Prisão em flagrante em domicílio por tipo de crime e por origem do preso

Nas situações de concurso de crimes, o mesmo caso foi computado nas duas ou mais colunas relativas a cada crime. Por outro lado, para aumentar a precisão e simplificar a análise, todos os delitos praticados em contexto de violência doméstica ou familiar contra a mulher, independentemente do tipo penal apontado, foram classificados como “Violência contra a mulher”.

Como se pode observar, os dois delitos de maior incidência forense (tráfico de drogas e roubo) têm perfis de origem do preso muito distintos: no roubo, quase todos os presos residiam em bairro diverso daquele em que a prisão ocorreu, enquanto, no tráfico, há uma quantidade significativa de prisões em domicílio e de moradores do próprio bairro.

Tráfico de drogas (114 casos) e violência contra a mulher (46 casos) são os delitos em razão dos quais se registrou o maior número de prisões em flagrante em domicílio, e, por isso, apenas para eles se fará uma análise mais pormenorizada das justificativas dadas pela polícia ao ingresso em domicílio sem mandado, pois são os únicos que compõem uma base empírica suficiente para o alcance de conclusões mais confiáveis. Outro motivo é que o terceiro delito em que há a maior quantidade de prisões em domicílio (porte de arma, com 26 casos) aparece, com certa frequência, no mesmo caso, em concurso com o crime de tráfico de drogas.

2.4. A existência de autorização judicial ou do morador para o ingresso em domicílio

Embora a principal preocupação da presente investigação tenha sido a análise das justificativas da polícia para o ingresso em domicílio sem mandado judicial, todas as prisões em flagrante delito em domicílio foram catalogadas.

Como se pode ver no Gráfico 6, apenas 3 das 188 prisões, ou seja, pouco menos de 2% dos casos, foram realizadas após um ingresso em domicílio com ordem judicial, e, ainda assim, nenhum desses três mandados era de busca e apreensão, e sim mandados de prisão por outros delitos, em que, no ingresso e na posterior busca domiciliar, também se constatou a situação flagrancial.

GRÁFICO 6
Existência de mandado para o ingresso em domicílio, por tipo de crime

A quantidade de casos de prisão em flagrante antecedidos de autorização judicial para o ingresso no domicílio é tão pequena que a única conclusão que se pode extrair desse dado é a de que a polícia se considera plenamente autorizada a superar a garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio no exercício das suas atividades.

Para confirmar essa hipótese, é preciso testá-la com a análise dos casos em que não houve ordem judicial, mas houve autorização do próprio morador, o que, aparentemente, cumpriria o requisito constitucional e preservaria a garantia, muito embora seja preciso discutir se o consentimento foi de fato livre e se o próprio pedido de ingresso não foi arbitrário.

GRÁFICO 7
Autorização do morador para o ingresso em domicílio, por tipo de crime (%)

Ao contrário das ordens judiciais, que têm percentual irrisório, a autorização do morador para o ingresso em domicílio, relatada pelos próprios policiais nos autos de prisão em flagrante, ocorreu com bastante frequência, representando 48% dos casos, muito embora haja uma variação considerável de acordo com o tipo de delito: enquanto as prisões por violência contra a mulher tiveram ingresso autorizado em 76% dos casos, as prisões por tráfico foram antecedidas por autorização para o ingresso em 39% dos casos.

Essa primeira distinção significativa no comportamento da polícia em face dos crimes de violência contra a mulher e de tráfico aparentemente indica uma cautela maior das forças públicas no caso da violência doméstica, mas essa aparência precisa ser confirmada com a análise de outras variáveis.

A visível diferença na conduta policial, de acordo com o tipo de delito, corresponde à ambiguidade com que as classes populares enxergam sua atuação; por um lado, desejam uma presença mais efetiva da polícia (policiamento ostensivo, rondas noturnas), mas, por outro, rejeitam na prática sua forma de agir porque são testemunhas e alvos mais frequentes da brutalidade (COSTA, 2005COSTA, Ivone Freire. Polícia e sociedade: gestão de segurança pública, violência e controle social. Salvador: EDUFBA, 2005. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ufba/472/1/Policia%20e%20Sociedade.pdf. Acesso em: 06 set. 2019.
https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream...
, p. 113-115). Assim, a instituição pública vista como hostil e desrespeitosa é a mesma à qual se pode pedir socorro mais prontamente em caso de perigo.

2.5. As justificativas da polícia para o ingresso em domicílio

Discutidas as principais variáveis antecedentes, é preciso então analisar as justificativas apresentadas pela polícia para o ingresso em domicílio nas situações de flagrante delito.

GRÁFICO 8
Justificativa para o ingresso em domicílio pela polícia, por tipo de crime

Como explicado antes, se fará uma análise das justificativas em todos os delitos e, além disso, dos casos de tráfico de drogas e de violência contra a mulher, cuja quantidade é suficientemente elevada para permitir conclusões confiáveis.

A questão mais notável, à primeira vista, é como as justificativas adotadas pelas Polícias Civil e Militar em Salvador são basicamente as mesmas dadas em todo o território nacional e que chegaram à apreciação do STJ, nos precedentes discutidos no item 2 deste artigo.

A grande diferença diz respeito aos casos de pedido da própria vítima, que representam 23% do total dos ingressos em domicílio, e 74% dos casos de violência contra a mulher, que não constaram da casuística do STJ.

As demais justificativas, como dito, são idênticas: os casos de fuga da polícia como motivadora do ingresso em domicílio representam 23% do total das prisões e 37% das prisões por tráfico. A esse respeito, como dito, o STJ tem entendimentos divergentes e só costuma aceitar a fuga da polícia como justificativa se, além disso, outros elementos incriminadores estiverem presentes.

Isso se deve ao fato de que, se a perseguição ao preso decorrer de mera suspeita ou intuição, o limite legal da atuação da polícia é o acompanhamento em via pública, já que, tendo ingressado em domicílio, não haverá justificativa objetiva para a relativização da garantia constitucional.

Outro percentual significativo de casos é o das delações anônimas, que representam 20% do total das prisões, 22% dos flagrantes por violência contra a mulher e 19% das prisões por tráfico. Também nesse caso, há uma divergência no STJ, que só admite as delações anônimas como motivação quando, além delas, outros elementos estiverem presentes. Considerando que, pela metodologia da presente investigação, só foi tratada como delação anônima a motivação imediatamente anterior ao ingresso, ou seja, não houve investigação posterior à delação e prévia ao ingresso, muito provavelmente esses casos seriam considerados ilegítimos pelo tribunal.

A questão das delações anônimas como motivação para a instauração de investigações criminais é controvertida, na doutrina e na jurisprudência, não sendo o objetivo da presente investigação analisá-la, mas é preciso afirmar que, se a delação anônima for adotada como condição suficiente para o ingresso em domicílio, sem qualquer tipo de controle ou motivação adicional, isso significará um completo esvaziamento da garantia da inviolabilidade do domicílio, pois representará a atribuição de um poder absoluto não só aos policiais, mas a qualquer cidadão, que tem a faculdade legal de efetuar prisões em flagrante, já que bastará, para a violação da garantia, a alegação, sem prova, de que o ingresso foi motivado por uma delação anônima.

Outra justificativa frequente, e das mais complexas, é a de que o flagrado foi preso em via pública e informou o local do seu domicílio, dando causa ao prosseguimento da diligência no interior do imóvel, o que representa 17% do total das prisões e 27% dos flagrantes por tráfico. Os dois precedentes do STJ sobre esse tipo de motivação para o ingresso foram considerados legítimos pelo Tribunal, mas nem por isso se pode deixar de formular as seguintes indagações, que este artigo não tem a pretensão de responder: 1) a informação prestada pelo preso a respeito da existência de objetos ilícitos em seu domicílio foi obtida pela polícia sem qualquer tipo de constrangimento ilegal? 2) após a informação, os casos de consentimento do preso ao ingresso da polícia em seu domicílio podem ser considerados livres de qualquer constrangimento?

2.6. Comparação entre justificativa e autorização para ingresso, no tráfico de drogas

Feita a análise das justificativas mais frequentes da polícia para o ingresso em domicílio, nos casos de tráfico de drogas e de violência contra a mulher, é preciso, por fim, comparar essas justificativas com a existência ou não de autorização dos moradores para o ingresso no domicílio.

Faz-se o aprofundamento apenas no caso do tráfico de drogas, porque a dinâmica nos casos de violência contra a mulher ficou muito evidente: a polícia age motivada basicamente por pedidos de socorro da própria vítima. Já no tráfico de drogas, quando é feito o controle do tipo de justificativa em comparação com a existência ou não de autorização para o ingresso, dois cenários predominam com muita clareza: nos ingressos em domicílio sem autorização do morador, 54% dos casos tiveram como justificativa a fuga da polícia; já nos casos de ingresso autorizado pelo morador, 56% ocorreram após a prisão do flagrado em via pública, que informou o local do seu domicílio.

A segunda justificativa mais frequente, nas duas hipóteses, tendo ou não havido autorização prévia, foi a delação anônima: 16% dos ingressos não autorizados e 24% dos ingressos autorizados pelos moradores.

Cabe lembrar mais uma vez que, nos casos em que mais de uma justificativa foi utilizada, foi considerada apenas a imediatamente antecedente ao ingresso no domicílio, e desconsiderada a que deu origem à ação policial, o que significa que as delações anônimas não foram sucedidas por nenhuma diligência.

GRÁFICO 9
Autorização para o ingresso em domicílio, por motivação, no tráfico de drogas

Os dois principais cenários observados podem abranger tanto condutas perfeitamente legítimas da polícia como situações de potencial abuso de poder, e essa questão só pode ser verificada de maneira efetiva com outra metodologia, que compare a versão policial, base da presente investigação, com a versão dos presos, não só no auto de prisão em flagrante, mas, sobretudo, durante a instrução criminal, em que os acusados têm a possibilidade de apresentar testemunhas e outras provas defensivas, e a conclusão do Poder Judiciário, nos casos em que tiver havido divergência entre as versões acusatória e defensiva.

CONCLUSÃO

Os estudos realizados permitem a formulação das seguintes conclusões:

Embora o flagrante delito seja uma das exceções constitucionais à garantia da inviolabilidade do domicílio, uma interpretação desse dispositivo sem qualquer tipo de controle representaria um esvaziamento do conteúdo material da garantia.

A maior parte da doutrina entende que é legítimo o ingresso de forças policiais, sem mandado judicial, no domicílio de investigados por tráfico de drogas, em razão da natureza de crime permanente da conduta investigada.

O STF, ao julgar o Recurso Extraordinário n. 603.616, atribuindo-lhe repercussão geral, fixou a tese de que o ingresso em domicílio sem mandado só se legitima se houver fundadas razões previamente verificadas, e que a posterior constatação de uma situação flagrancial não legitima um ingresso que tenha sido, na origem, arbitrário.

Não tendo o STF fixado, desde já, quais situações são consideradas justificadas, a principal orientação jurisprudencial sobre o tema advém do STJ, que registrava 101 (cento e um) precedentes em sua base de dados disponível para consulta pública na internet no dia 6 de dezembro de 2018.

Restrigindo a busca ao ano de 2018, chega-se a 45 (quarenta e cinco) casos, e as justificativas enfrentadas pelo STJ são notavelmente similares às apresentadas pelas Polícias Civil e Militar na comarca de Salvador, sobretudo com relação ao crime de tráfico de drogas, o que demonstra que a presente investigação, embora de âmbito local, conta com dados de relevância nacional.

Passando à parte empírica do trabalho, pode-se afirmar que, mesmo considerando apenas a versão da própria polícia, já há um percentual relevante de ingressos em domicílio por ocasião do flagrante delito.

Há uma correlação significativa entre a renda familiar mensal média do bairro e o ingresso em domicílio por ocasião do flagrante delito, reforçando a tese do caráter seletivo do sistema penal.

Os casos de violência contra a mulher indicam um uso adequado do poder de ingressar em domicílio para atender a uma situação de flagrante delito.

Os casos de tráfico de drogas apontam situações de potencial abuso do poder de ingressar em domicílio sem autorização do morador, tanto nos casos de fuga da polícia (54% dos ingressos não autorizados) como nas delações anônimas (16% dos ingressos não autorizados).

Os casos de tráfico de drogas indicam situações de potencial vício do consentimento do morador ao ingresso em domicílio, em especial os casos de prisão em flagrante na rua com posterior indicação do domicílio (56% dos ingressos autorizados).

Comparando esses achados com a jurisprudência do STJ, pode-se notar que tanto os casos de fuga da polícia com os de delação anônima só são considerados legítimos quando outros elementos, além desses, são constatados pela polícia antes do ingresso em domicílio, mesmo se precedidos de autorização de ingresso pelo morador.

Todos os casos de prisão em flagrante na via pública com posterior indicação do domicílio pelo preso apreciados pelo STJ em 2018 foram validados pelo tribunal, mas nem por isso se pode ignorar que essa justificativa talvez abranja uma situação de potencial abuso de poder, já que tanto a informação sobre a localização do domicílio como a posterior autorização de ingresso pelo morador podem ter sido obtidas sob coação.

Essa questão, no entanto, só pode ser analisada com aprofundamento com outra metodologia, em especial com a comparação da versão policial, base da presente investigação, com a versão dos presos, não só no auto de prisão em flagrante, mas, sobretudo, durante a instrução criminal, na qual os acusados têm a possibilidade de apresentar testemunhas e outras provas defensivas.

AGRADECIMENTOS

O autor agradece à Coordenação Criminal e de Execução Penal da Defensoria Pública do Estado da Bahia pelo acesso à base de dados de monitoramento da Vara de Audiência de Custódia de Salvador.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    20 Maio 2019
  • Aceito
    18 Mar 2020
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