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UMA INTRODUÇÃO A BAKHTIN, É POSSÍVEL?: A CONSTRUÇÃO DA PERSPECTIVA DIALÓGICA NAS TRAMAS ENTRE LINGUAGEM E EDUCAÇÃO1 1 Resenha da obra: HIRSCHKOP, K. The Cambridge introduction to Mikhail Bakhtin. Cambridge, New York: Cambridge University Press, 2021. 193p. (Series: Cambridge Introductions to Literature).

HIRSCHKOP, K.. . The Cambridge introduction to Mikhail BakhtinCambridge, New York: Cambridge University Press, 2021193p. Series: Cambridge Introductions to Literature

Introdução

Nas atividades de orientação e supervisão de dissertações, teses e relatórios de pesquisa com sustentação teórico-metodológica nos estudos de Bakhtin e o Círculo, uma pergunta parece ser recorrente: como começar? Já se sabe que o estabelecimento de uma ordem cronológica de leitura não é suficiente. Como, então, garantir que um leitor iniciante possa se relacionar com os textos de um grupo de intelectuais russos que, por muito tempo, esteve sob os efeitos de uma série de ausências e conflitos ocasionados por diversos aspectos histórico-políticos, em um país que passou por episódios de apagamento da produção científica, cultural e teórica no começo do século XX?

É aí que ganham relevo as obras produzidas sobre o pensamento bakhtiniano na espiral do gênero introdução. As lacunas para a compreensão, tanto da vida de um autor, quanto de sua produção textual, compõem um excelente conjunto de motivações para o surgimento de livros, ensaios e artigos que carregam a missão de iluminar o percurso de estudantes interessados em uma teoria apresentada ao mundo de forma não linear e esparramada entre diferentes anos, autores e contextos. É preciso lembrar, ainda, a complexa questão dos materiais com autoria disputada, o que certamente dificultou uma recepção tranquila e harmoniosa da obra de Bakhtin e o Círculo ao redor do mundo.

Por isso, a pergunta que intitula a resenha busca mobilizar a questão fazendo dois movimentos que se complementam, a saber: a) situar o livro The Cambridge Introduction to Mikhail Bakhtin, magistralmente escrito por Ken Hirschkop, destacando-o entre algumas outras obras publicadas no Ocidente com fins de introdução aos estudos bakhtinianos; b) discutir a importância da publicação de um livro introdutório sobre Bakhtin em pleno ano de 2021, pouco mais de um século depois da escrita de “Arte e Responsabilidade” (Bakhtin, 2003BAKHTIN, M. Arte e responsabilidade. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. XXXIII-XXXIV.), seu primeiro texto, de modo a refletir sobre o alcance teórico-metodológico da obra bakhtiniana nos tempos atuais.

The Cambridge Introduction to Mikhail Bakhtin faz parte da série “Cambridge Introduction to Literature”, da Cambridge University Press. A série visa fornecer informações básicas sobre determinado tópico de estudo, por meio da publicação de livros escritos por pesquisadores especialistas que mesclam, ao mesmo tempo, informações relevantes e novas interpretações sobre um determinado tema literário, de modo que os materiais editados possam se constituir como textos-referência para cursos e aulas, ou seja, trata-se de um projeto direcionado ao campo educacional, com foco em leitores estudantes.

Ken Hirschkop, autor de The Cambridge Introduction to Mikhail Bakhtin, é professor e pesquisador da área de Língua e Literatura Inglesa na Universidade de Waterloo (Ontario, Canadá). Entre suas obras sobre Bakhtin destaca-se o livro Mikhail Bakhtin: An Aesthetic for Democracy (sem tradução para o Português), publicado pela Oxford University Press em 1999 a partir de sua tese de doutorado.

No Brasil, o pesquisador publicou o capítulo “O sagrado e o secular: atitudes perante a linguagem em Bakhtin no livro Vinte ensaios sobre Mikhail Bakhtin (Faraco; Tezza; Castro, 2006); “Bakhtin, discurso e democracia”, no livro Linguagem, Cultura e Mídia (Ribeiro; Sacramento, 2010RIBEIRO, A. P. G.; SACRAMENTO, I. (org.). Linguagem, cultura e mídia. São Carlos: Pedro & João, 2010.); “Ética, narração e a virada linguística em Bakhtin e Wittgenstein” no livro Círculo de Bakhtin: concepções em construção (Paula; Stafuzza, 2019PAULA, L.; STAFUZZA, G. (org.). Círculo de Bakhtin: concepções em construção. Campinas: Mercado de Letras, 2019.) e na Bakhtiniana: Revista de estudos do discurso, sob editoria de Beth Brait, o artigo “Bakhtin contra darwinianos e cognitivistas” (Hirschkop, 2016HIRSCHKOP, K. Bakhtin contra darwinianos e cognitivistas. Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso, [S. l.], v. 11, n. 1, p. 173, 2016. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/24722. Acesso em: 9 nov. 2022.
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).

O conhecimento de Hirschkop sobre Bakhtin e o Círculo é, portanto, um fato que valida a obra em questão do ponto de vista de sua complexidade, especialmente no que se refere à dificuldade de organização de um combo introdutório sobre Bakhtin. Mas no que o volume se difere de outros livros introdutórios sobre o pensamento bakhtiniano? É necessário, antes, que se faça jus a outros trabalhos de introdução a Bakhtin já publicados. Elege-se, assim, para a composição desta resenha, algumas importantes obras publicadas em diferentes contextos e tempos, com grande circulação entre os estudiosos de Bakhtin, inclusive entre leitores estudantes e/ou iniciantes2 2 Esse recorte, obviamente, não esgota a discussão a respeito de obras fundamentais responsáveis pela introdução dos escritos de Bakhtin para além da Rússia. Privilegiou-se, para a composição desse texto, um conjunto de trabalhos que impactou, especialmente, os primeiros contatos do público brasileiro com os estudos bakhtinianos. .

Um dos primeiros livros que teve seu lugar como obra do gênero “introdução na história da recepção da obra bakhtiniana no Ocidente foi Mikhail Bakhtine, le príncipe dialogique: suivi de Écrits du Cercle de Bakhtine, de Tzvetan Todorov (1981)TODOROV, T. Mikhaïl Bakhtine: le principe dialogique. Suivi de Écrits du Cercle de Bakhtine. Paris: Seuil, 1981., que tanto marcou e mediou a leitura e construção de uma perspectiva dialógica e foi, de alguma forma, responsável pela propagação do termo translinguística, que mobilizou a construção do que alguns pesquisadores denominam, hoje, de metalinguística, como nos aponta Grillo (2006)GRILLO, S. V. C. A metalinguística: por uma ciência dialógica da linguagem. Horizontes, Bragança Paulista, v. 24, p. 121-128, 2006..

A década de 1980 é marcada, ainda, por algumas importantes produções bibliográficas de caráter introdutório sobre Bakhtin e o Círculo e que, certamente, mediaram a recepção dos escritos do grupo de intelectuais russos, a saber: a) Bakhtin Scholl Papers, de Ann Shukman, de 1983 (Shukman, 1983SHUKMAN, A. (org.). Bakhtin school papers: russian poetics in translation. Oxford: RPT Publications, 1983.), que integra a excelente coletânea Russian Poetics in Translation. No volume 10, dedicado aos textos do Círculo, encontra-se, além de uma introdução escrita pela organizadora, um glossário de termos-chave, que funciona como lente para uma leitura minimamente situada; b) Mikhail Bakhtin, de Katerina Clark e Michael Holquist (Clark; Holquist, 1984CLARK, K; HOLQUIST, M. Mikhail Bakhtin. Cambridge: Belknap-Harvad University Press, 1984.), pioneiro estudo que abriu caminhos de investigação ainda não trilhados, especialmente no que se referia aos dados biográficos conhecidos até então; e, por fim, o livro Rethinking Bakhtin: Extensions and Challenges, organizado por Gary Saul Morson e Caryl Emerson e publicado em 1989 (Morson; Emerson, 1989MORSON, G. S.; EMERSON, C. (org.). Rethinking Bakthin: extensions and callenges. Evanston, Illinois: Northwestern University Press, 1989.).

Bakhtinian Thought: An Introductory Reader, de Simon Dentith, publicado em 1994 pela Routledge, de forma simultânea em Londres e no Canadá (Dentith, 1994DENTITH, S. Bakhtinian thought: an introductory reader. Londres; Canadá: Routdlege, 1994.), oferece, conforme se anuncia no texto de contracapa, uma lúcida e acessível introdução não só ao trabalho desenvolvido por Bakhtin, mas também à sua trajetória, e dá lugar, ainda, à discussão da produção intelectual de Volóchinov e Medviédev. Já em Introducing Bakhtin, de Sue Vice (1997)VICE, S. Introducing Bakhtin. New York: Manchester University Press, 1997., publicado em 1997 pela Manchester University Press, cinco capítulos tentam abordar cinco grandes conceitos bakhtinianos: heteroglossia, dialogismo, polifonia, carnaval e cronotopo, dando ao leitor uma perspectiva mais abrangente de temas e ideias centrais do pensamento bakhtiniano. Nesta obra a autora propõe, a partir de análises de obras cinematográficas, um diálogo entre Bakhtin e temas contemporâneos como sexualidade e feminismo, que confirma a forte aproximação que os estudos bakhtinianos passam a construir, ao longo do tempo, com diferentes áreas do conhecimento.

No Brasil3 3 Para aprofundar os estudos a respeito da recepção do pensamento bakhtiniano em terras brasileiras, sugere-se a leitura de um dos artigos mais atualizados até o momento sobre o tema, escrito por Débora Luciene Porto Boenavides e publicado em 2022: Publicação e recepção das obras do Círculo de Bakhtin no Brasil: a consolidação da análise dialógica do discurso (Porto Boenavides, 2022). , vale lembrar que o professor Boris Schnaiderman foi um dos primeiros estudiosos a publicar trabalhos relacionados a Bakhtin, como assinala Souza (2016)SOUZA, G. Boris Schnaiderman e Mikhail M. Bakhtin. Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso, [S.l.], v. 11, n. 3, p. 233-247, set. 2016. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/28883. Acesso em: 19 ago. 2023.
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. Destaca-se, de um período em que a teoria bakhtiniana ainda era mais vinculada ao universo da literatura do que à análise de fenômenos de linguagem, o livro Turbilhão e semente: ensaios sobre Dostoiévski e Bakhtin (Schnaiderman, 1983SCHNAIDERMAN, B. Turbilhão e semente: ensaios sobre Dostoiévski e Bakhtin. São Paulo: Duas Cidades, 1983.).

Em 1988 publica-se a primeira obra de referência sobre Bakhtin, no âmbito do gênero introdução. Organizado por Carlos Alberto Faraco, Cristóvão Tezza, Elisabeth Brait, Luiz Dagobert de Aguirra Roncari e Rosse Marye Bernardi, o livro Uma introdução a Bakhtin se constituiu como importante bússola aos leitores de língua portuguesa brasileiros que, à época, possuíam, ainda, pouquíssimas rotas para navegar em mares bakhtinianos.

Depois da virada do século, é quase impossível que algum estudante de Bakhtin não tenha se deparado, em algum momento do seu percurso investigativo com o livro Introdução ao pensamento de Bakhtin, de José Luiz Fiorin, lançado pela Editora Ática em 2006 (Fiorin, 2006). Bastante conhecido por estudiosos de Bakhtin em terras brasileiras, o texto parece corresponder ao que se espera de um livro que apresenta uma teoria a um leitor iniciante, ao longo de seus seis capítulos nos quais o autor, mesmo não se atentando a questões cruciais como ideologia, arquitetônica, estética, ética e signo, cumpre o papel de despertar em um público leigo o desejo de buscar outras referências mais aprofundadas sobre o tema.

Em seu introdutório e imponente Linguagem e Diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin, publicado pela Parábola Editorial em 2009, Carlos Alberto Faraco nos oferta um panorama sucinto, mas valioso e indispensável para aquele leitor que pretende adentrar o mundo bakhtiniano, compreendendo-o por uma perspectiva não menos complexa mas, de alguma forma, inteligível e minimamente organizada. Ao incitar o entendimento das relações entre a natureza e as funções da linguagem, Faraco passeia pela questão da autoria dos textos disputados, apontando para dados de arquivo dos quais se tinha notícia até o momento da publicação do livro, o que auxilia o estudante a embarcar na teoria bakhtiniana com uma espécie de primeira bagagem a ser levada no seu trajeto de leitura.

Nesse sentido, a obra The Cambridge Introduction to Mikhail Bakhtin, de Ken Hirschkop surge como uma potência quando está em jogo a recriação do legado impulsionado pelo quadro teórico-metodológico por Bakhtin e o Círculo, bem como seu diálogo com uma época de temas latentes e urgentes, intrínsecos à nossa sociedade globalizada e virtualizada. O autor anuncia, já nos agradecimentos, que talvez este seja o último livro que escreve sobre Bakhtin. Um aspecto interessante, citado pelo autor, é a referência, mais do que bakhtiniana, aos encontros que o incentivaram a conhecer a perspectiva dialógica. O primeiro com um professor de russo, que despertou em Ken a curiosidade e o desejo de conhecer a literatura daquele país, e o segundo com um colega de classe que lhe apresentou um exemplar de Problemas da Poética de Dostoiévski, em uma ocasião em que Ken precisava de um auxílio teórico como chave de leitura para Crime e Castigo.

A abertura do livro contém, nas seções que antecedem a excelente introdução, uma cronologia atualizada e resumida que certamente subsidia a leitura e a compreensão por parte da recepção. Destaca-se a relação desta cronologia com o capítulo “2 Life”, dedicado a importantes seções que, não apenas descrevem aspectos relacionados à existência de Bakhtin, mas pontuam as relações entre sua vida e sua instigante produção literária. Sua juventude (1895-1917), seus amigos (1918-1929), seu exílio, fuga e passagem por períodos de guerra (1930-1946) e seu retorno a Saransk, agora menos conturbado e bastante vinculado à docência, aparecem como força motriz de um incrível e consistente trabalho teórico, e dão a leitor, pela ótica de Hirschkop, sustentação para argumentar em defesa de uma das maiores premissas bakhtinianas: a ínfima e íntima relação entre sujeito e discurso. Esse capítulo termina elencando processos de redescoberta e reabilitação que constituíram os últimos anos de Bakhtin sem, no entanto, tirar dele o posto de um homem misterioso, em cuja trajetória se entrelaçam elementos políticos, ideológicos, culturais e sociais de sua época4 4 Aos leitores interessados no aprofundamento de questões bakhtinianas de cunho biográfico, sugere-se a leitura do artigo “O autor e o ser humano de Problemas da Poética de Dostoiévski” (Campos; Guedes-Pinto; Grillo, 2020). .

Seguindo o fluxo de complementaridade entre as seções, o livro de Hirschkop apresenta dois capítulos – “3 Context e 4 Works” - nos quais o contexto da produção intelectual é desenhado e reconstruído no sentido mais arquitetônico possível, mesmo que, em nenhum momento, seja negada a característica fragmentada (e sem um público imediato) da escrita e publicação dos textos bakhtinianos.

O terceiro, “Context”, é subdividido em cinco partes: “Philosophy: Influences and Options for the Young Bakhtin”, que aborda o investimento de Bakhtin no campo filosófico, especialmente nos escritos que marcaram sua juventude; “Language: Soviet Struggles over Literary Criticism in the 1920s, and Bakhtin’s”, onde o autor nos leva a refletir sobre a relação de Bakhtin com a arte, a política e a religião; “Excursus: Voloshinov’s Linguistic Turn”, que foca na trajetória e produção de Volóchinov, destacando-o como autor do Círculo e como importante nome do campo da linguagem; “Literature: Socialist Realism and Arguments about the Novel in the 1930s”, em que o autor centra a discussão no entrelaçamento entre o pensamento bakhtiniano e a literatura; e, por último, “The 1950s and 1960s: Consolidation and a Quiet Life”, cuja luz recai sobre as duas décadas de um pós-guerra e seus impactos na vida e obra de Bakhtin.

Ken Hirschkop alerta, no início do capítulo 4 Works, em um item denominado Some Preliminary Observations, sobre a dificuldade de organização de uma obra introdutória sobre Bakhtin, aos moldes da série The Cambridge Introduction, justamente porque as relações entre a vida e os tempos nos quais os originais foram escritos tinham repercussões não só para o conteúdo, mas também para a própria forma em que se apresentavam os textos. Uma das consequências do contexto para a divulgação do trabalho do grupo intelectual bakhtiniano apontadas pelo autor, por exemplo, é que vários textos trabalhos como notas, rascunhos e esboços chegaram ao público leitor, com algumas exceções, a partir de escolhas, edições e correções de alguém aquém de Bakhtin, preocupado, em certa medida, com o regime de censura soviética ainda existente durante os processos de publicação.

Entre as dez seções que integram esse capítulo 4, cuja abordagem gira em torno de reflexões sobre os principais conceitos bakhtinianos, chamam a atenção dois subtítulos envolvendo a noção de dialogismo: “Dialogism as Polyphony e Dialogism as Heteroglossia”. Tais seções podem parecer complexas e contraditórias do ponto de vista do aprofundamento teórico já construído entre intelectuais bakhtinianos. Basta, porém, mergulhar no conteúdo dos textos para compreender o caminho escolhido pelo autor, muito mais interessado em pôr os conceitos em diálogo do que situá-los ou defini-los simplesmente. Cabe aos leitores, no entanto, comparar a empreitada de Hirschkop à vasta produção científica encontrada na literatura vigente sobre o tema, e como a obra ora resenhada pode subsidiar a investigação sobre os limites e fronteiras entre dialogismo, polifonia e heteroglossia.

A problemática da recepção das obras de Bakhtin é tratada no Capítulo “5 Reception”. Ken Hirschkop elege os textos traduzidos para a língua inglesa, relatando as já conhecidas dificuldades para que as ideias de Bakhtin pudessem chegar ao amplo campo das ciências humanas no Ocidente. O boom bakhtiniano localizado temporalmente entre os anos 1970 e 1980 parece ter dado conta, ao menos, de proliferar o pensamento de Bakhtin e o Círculo, visto que seu reconhecimento enquanto arsenal teórico-metodológico extrapolou o mundo das letras e da linguagem. Tal fato se deve à multivocalidade proposta pelos intelectuais russos, que potencializou modos de análise de processos interacionais e impulsionou o seu alcance entre diferentes áreas e esferas, contribuindo para uma visão do mundo literário que, segundo Hirschkop, em seu breve texto de conclusão, nunca havia sido vista antes.

Para responder à questão que intitula a presente resenha, importa, ainda, ressaltar que há inúmeros e distintos caminhos para a aproximação do leitor com a obra e o contexto bakhtinianos; desde aqueles que preferem começar diretamente pelas obras, indo ao idioma original ou traduções, até os que decidem iniciar seu percurso por textos de comentadores, não se pode afirmar que exista algum modo ou caminho mais correto ou eficaz de leitura. É importante que se destaque o sério trabalho, no caso das recentes traduções direto do russo para o Português, dos textos que compõem os volumes nos quais as obras são publicadas: prefácios, posfácios, glossários e notas, nos quais os tradutores oferecem informações essenciais aos leitores sobre os textos, contextos e autorias em jogo. Esses textos adicionais laboram ora como baliza ora como bússola de leitura para estudantes menos familiarizados com a produção bibliográfica bakhtiniana e atualizam, ao mesmo tempo, o que se sabe a partir de pesquisas atuais sobre o tema.

Funcionam, também, como introdução a Bakhtin, artigos publicados em periódicos e capítulos de livro que, mesmo quando fogem ou negam o gênero introdução, apresentam formas de enfrentamento do pensamento bakhtiniano na contemporaneidade5 5 Importa ressaltar que há excelentes pesquisadores da obra bakhtiniana e, do mesmo modo, trabalhos publicados em livro autoral, coletâneas, revistas e outras plataformas, que também correspondem aos objetivos do gênero introdução e se constituem enquanto importantes exercícios de leitura para estudantes e demais interessados na produção do Círculo. Seria impossível, no entanto, elencá-los no tamanho e formato de uma resenha. Os exemplos aqui utilizados são, assim, uma pequena parte de toda a produção existente, principalmente no Brasil, de literatura a respeito da vida e obra dos autores russos vinculados direta ou indiretamente a Bakhtin. . Toma-se como exemplos possíveis dois excelentes textos de pesquisadoras brasileiras: a) Capítulo de livro – “Construção coletiva da perspectiva dialógica: história e alcance teórico-metodológico” (Brait, 2012BRAIT, B. Construção coletiva da perspectiva dialógica: história e alcance téorico-metodológico. In: FIGARO, R. (org.). Comunicação e análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2012. p. 79-98.), no qual Beth Brait apresenta um resumo de aspectos relacionados à recepção da obra de Bakhtin e o Círculo no Brasil e demonstra, por meio da análise de um texto jornalístico, a potencialidade do quadro teórico-metodológico da ADD; e b) Artigo publicado em periódico – “Análise dialógica do discurso: uma revisão sistemática integrativa” (Destri, Marchezan, 2021), ensaio em que Alana Destri e Renata Marchezan buscam identificar, reunir, apreciar e sintetizar as contribuições de publicações acerca da ADD, de modo a compreender os direcionamentos do que se constituiu ao longo do tempo como uma análise discursiva de cunho bakhtiniano.

É inegável, portanto, que, entre várias produções de comentadores e especialistas cujo objetivo é guiar os primeiros passos de leitores interessados na vasta obra de Bakhtin e o Círculo, The Cambridge Introduction to Mikhail Bakhtin chega ao público com um grande potencial para se firmar como uma das mais importantes obras de introdução à teoria bakhtiniana. Sobressai-se um conjunto de escolhas acertadas por Ken Hirschkop, que propõe uma atualização rica em detalhes biográficos e conceituais direcionada aos leitores do século XXI, pouco mais de 100 anos depois da escrita do primeiro ensaio do jovem Bakhtin, citado no início desta resenha. Pela série de elementos atualizados e revisitados sobre a produção desse fenomenal grupo de intelectuais russos, o livro é leitura indispensável, também, àqueles pesquisadores experientes e conhecedores do universo bakhtiniano, uma vez que a decisão por estudar Bakhtin passa, também, pelo aventurar-se na montagem de um quebra-cabeças cujas peças faltantes correm o risco de nunca serem encontradas.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    Resenha da obra: HIRSCHKOP, K. The Cambridge introduction to Mikhail Bakhtin. Cambridge, New York: Cambridge University Press, 2021. 193p. (Series: Cambridge Introductions to Literature).
  • 2
    Esse recorte, obviamente, não esgota a discussão a respeito de obras fundamentais responsáveis pela introdução dos escritos de Bakhtin para além da Rússia. Privilegiou-se, para a composição desse texto, um conjunto de trabalhos que impactou, especialmente, os primeiros contatos do público brasileiro com os estudos bakhtinianos.
  • 3
    Para aprofundar os estudos a respeito da recepção do pensamento bakhtiniano em terras brasileiras, sugere-se a leitura de um dos artigos mais atualizados até o momento sobre o tema, escrito por Débora Luciene Porto Boenavides e publicado em 2022: Publicação e recepção das obras do Círculo de Bakhtin no Brasil: a consolidação da análise dialógica do discurso (Porto Boenavides, 2022PORTO BOENAVIDES, D. L. Publicação e recepção das obras do Círculo de Bakhtin no Brasil: a consolidação da análise dialógica do discurso. Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso, [S. l.], v. 17, n. 4, p. 104–131, 2022. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/56378. Acesso em: 13 nov. 2022.
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    ).
  • 4
    Aos leitores interessados no aprofundamento de questões bakhtinianas de cunho biográfico, sugere-se a leitura do artigo “O autor e o ser humano de Problemas da Poética de Dostoiévski” (Campos; Guedes-Pinto; Grillo, 2020).
  • 5
    Importa ressaltar que há excelentes pesquisadores da obra bakhtiniana e, do mesmo modo, trabalhos publicados em livro autoral, coletâneas, revistas e outras plataformas, que também correspondem aos objetivos do gênero introdução e se constituem enquanto importantes exercícios de leitura para estudantes e demais interessados na produção do Círculo. Seria impossível, no entanto, elencá-los no tamanho e formato de uma resenha. Os exemplos aqui utilizados são, assim, uma pequena parte de toda a produção existente, principalmente no Brasil, de literatura a respeito da vida e obra dos autores russos vinculados direta ou indiretamente a Bakhtin.
  • Bolsa de Produtividade em Pesquisa CNPq, Proc. 310808/2020-0 / PROEX – CAPES, PPGE - UFPR

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    14 Out 2022
  • Aceito
    04 Nov 2022
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