Resumo
O artigo examina as tendências recentes da forma de inserção dos médicos no mercado de trabalho à luz da regulação das relações trabalhistas na percepção de informantes-chave que atuam nos setores público e privado do sistema de saúde no estado de São Paulo. O estudo mostrou que, na percepção dos entrevistados, há uma tendência crescente de inserção de médicos como pessoa jurídica condicionada pela regulação das relações de trabalho e pela política de contratação dos estabelecimentos provedores de serviços de assistência à saúde. Em geral, a ‘pejotização’ de médicos foi associada à perda de autonomia desses profissionais em relação aos termos de contratação e às condições de realização do trabalho. O artigo conclui que a inserção ‘pejotizada’ de médicos se apresenta como parte do movimento mais geral de barateamento da força de trabalho associado à terceirização, e indica que há espaço para a exploração de políticas voltadas à gestão de trabalhadores que busquem atrair e fixar médicos no Sistema Único de Saúde.
Palavras-chave:
mercado de trabalho médico; recursos humanos em saúde; força de trabalho em saúde; regulação do trabalho; reforma trabalhista
Abstract
The article examines recent trends in the way doctors enter the labor market in the light of the regulation of labor relations in the perception of key informants who work in the public and private sectors of the health system in the state of São Paulo, Brazil. The study showed that, in the perception of the interviewees, there is a growing trend of insertion of doctors as a legal entity conditioned by the regulation of labor relations and the contracting policy of establishments providing health care services. In general, the ‘pejotização’ (hiring free of labor rights/illegal hiring) of doctors was associated with the loss of autonomy of these professionals in relation to the terms of employment and the conditions for performing the work. The article concludes that the illegal hiring and insertion of doctors is presented as part of the more general movement of cheapening the workforce associated with outsourcing, and indicates that there is room for the exploitation of policies aimed at the management of workers who seek to attract and fix doctors in the Unified Health System.
Keywords:
medical labor market; human resources in health; health workforce; labor regulation; labor reform
Resumen
El artículo examina las tendencias recientes acerca de como se dá la inserción de los médicos en el mercado de trabajo, a la luz de la regulación de las relaciones laborales, en la percepción de informantes clave que actúan en los sectores público y privado del sistema de salud del estado de São Paulo, Brasil. El estudio mostró que, en la percepción de los entrevistados, existe una tendencia creciente hacia la inclusión de los médicos como persona jurídica condicionada por la regulación de las relaciones laborales y por la política de contratación de los establecimientos que prestan servicios de asistencia a la salud. En general, la ‘pejotización’ de los médicos estuvo asociada a la pérdida de autonomía de estos profesionales en relación a los términos de contratación y a las condiciones de ejercicio del trabajo. El artículo concluye que la inserción ‘pejotizada’ de los médicos se presenta como parte del movimiento más general de abaratamiento de la mano de obra asociado a la tercerización, e indica que hay espacio para la exploración de políticas dirigidas a la gestión de trabajadores que busquen atraer y retener a los médicos en el Sistema Único de Salud.
Palabra clave:
mercado de trabajo médico; recursos humanos en salud; fuerza de trabajo en salud; regulación laboral; reforma laboral
Introdução
O perfil das relações de trabalho na área médica é condicionado diretamente pela natureza dos arranjos institucionais presentes nos sistemas nacionais de saúde e pela regulação do mercado de trabalho. O padrão de inserção dos médicos tem implicações potenciais sobre diversos âmbitos, incluindo o processo de cuidado, o modelo de atenção à saúde, a autonomia do exercício profissional e os direitos trabalhistas.
No Brasil, o trabalho médico é demandado principalmente pelo Sistema Único de Saúde (SUS), de acesso universal, cujos serviços são disponibilizados por meio de provedores de origem estatal e privada, e pelas empresas que prestam serviços de saúde de acesso mercantilizado, em grande medida sob a intermediação de planos e seguros de saúde. Atuando de maneira concorrente na disputa pela força de trabalho, esses segmentos do sistema de saúde se organizam de acordo com bases de financiamento específicas e operam sob diferentes modelos de atenção, condicionando o volume de emprego nas diferentes especialidades médicas, bem como as modalidades de contratação e a remuneração praticadas.
No que diz respeito à regulação, o Brasil foi palco de uma profunda transformação no arcabouço jurídico que rege as relações de trabalho sob a chamada Reforma Trabalhista, efetivada em 2017. Por intermédio da flexibilização de mais de 200 pontos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a Reforma fortaleceu a autorregulação do mercado na determinação dos termos de contratação, remuneração e condições de exercício do trabalho e anulou importantes dispositivos que expressavam o reconhecimento histórico da assimetria entre capital e trabalho nas relações produtivas (Krein, 2018KREIN, José D. O desmonte dos direitos, as novas configurações do trabalho e o esvaziamento da ação coletiva: consequências da reforma trabalhista. Tempo Social, São Paulo, v. 30, n. 1, p. 77-104, 2018. https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2018.138082. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ts/a/WBdDjRLGTC5XffZDqPThnbs/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 16 ago. 2022.
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).
Um dos principais pontos do novo marco legal foi a liberalização irrestrita da terceirização, ou seja, da possibilidade de transferência, por parte de empresas produtoras de bens e serviços, da execução de quaisquer de suas atividades para uma empresa terceira. Até então admitida apenas para as chamadas atividades-meio, a terceirização ampla tornou possível às empresas a incorporação de qualquer tipo de trabalho ao processo produtivo por firmas prestadoras de serviços.
Particularmente com relação aos médicos, a Reforma legitimou a inserção no mercado através de pessoas jurídicas (PJ), com impactos potenciais relevantes sobre diversas dimensões da atuação desses profissionais.
Este artigo discute as tendências do mercado de trabalho médico nos últimos anos com base em percepções de indivíduos que atuam nos setores público e privado do sistema de saúde, captadas em entrevistas realizadas numa pesquisa de campo no estado de São Paulo entre 2019 e 2020. A questão que orienta a pesquisa é compreender o fenômeno da inserção de médicos no mercado por meio de empresas (PJ) à luz de diferentes concepções acerca do sentido e dos efeitos da flexibilização da regulação das relações trabalhistas no Brasil, especialmente a liberalização da terceirização.
Mercado de trabalho médico, formas de inserção e regulação
O mercado de trabalho médico no Brasil vem mostrando crescimento contínuo nas últimas décadas, ampliando-se mesmo em momentos de contração do emprego em geral, sob o estímulo da expansão do sistema público de saúde e da atividade de provisão privada de serviços de assistência à saúde de acesso mercantil (Dedecca, Proni e Moreto, 2001DEDECCA, Claudio S.; PRONI, Marcelo W.; MORETO, Amilton. O trabalho no setor de atendimento à saúde. In: NEGRI, Barjas.; DI GIOVANNI, Geraldo (orgs.). Brasil: radiografia da saúde. Campinas: Instituto de Economia, Unicamp, 2001. p. 175-216.; Machado e Neto, 2018MACHADO, Maria H.; XIMENES NETO, Francisco R. G. Gestão da Educação e do Trabalho em Saúde no SUS: trinta anos de avanços e desafios. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, p. 1.971-1.980, 2018. https://doi.org/ 10.1590/1413-81232018236.06682018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/yxKZJcmCrSHnHRMYLNtFYmP/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 16 ago. 2022.
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).
Esse setor vem se tornando cada vez mais complexo em função da multiplicidade de vínculos assumidos pelos médicos e da variedade de arranjos sob os quais atuam. Estudos recentes apontam que mais da metade dos médicos no Brasil exercem a chamada ‘dupla prática’, atuando em ambas as esferas (Miotto et al., 2018MIOTTO, Bruno A. et al. Physician’s sociodemographic profile and distribution across public and private health care: an insight into physicians’ dual practice in Brazil. BMC Health Services Research, v. 18, n. 1, p. 299, dez. 2018. https://doi.org/10.1186/s12913-018-3076-z.
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). Dados da Demografia Médica no Brasil de 2020 indicam uma tendência de fragmentação importante, com 44% do total de profissionais declarando possuir quatro ou mais vínculos de trabalho em 2019, contra 24% no levantamento ocorrido em 2014 (Scheffer et al., 2020SCHEFFER, Mário et al. Demografia médica no Brasil 2020. São Paulo: FMUSP; CFM, 2020. ). Essa dinâmica produz uma diversidade no mercado de trabalho médico de difícil apreensão pelas estatísticas disponíveis, o que torna desafiadora sua caracterização.
A contratação de médicos por parte de entidades provedoras de serviços de saúde por meio de terceiros é uma modalidade empregada no Brasil pelo menos desde a década de 1980 (Medici, 1993MEDICI, André C. Mercado de trabalho em saúde no Brasil: desafios para os anos noventa. Cadernos RH Saúde, Brasília, v. 1, n. 1, p. 41-46, 1993.). Já nessa época, a prática envolvia tanto a terceirização em seu formato clássico - médicos contratados por uma empresa terceirizada para trabalhar em um hospital ou clínica -, como a organização dos próprios médicos como pessoas jurídicas para vender serviços aos estabelecimentos de saúde, a chamada ‘pejotização’.
Nos anos 1990 e 2000, o fenômeno se expandiu nas duas variantes. A terceirização clássica avançou no setor privado e no SUS, nesse caso pela contratação de empresas de prestação de serviços médicos por Organizações Sociais de Saúde (OSS) e cooperativas, em grande medida sob o estímulo das restrições impostas à contratação de pessoal via Lei Camata (posteriormente incorporadas pela Lei de Responsabilidade Fiscal) (Silva e Costa, 2002SILVA, Pedro L. B.; COSTA, Nilson R. Características do mercado de trabalho no setor saúde na década de 1990: reflexões. In: NEGRI, Barjas; FARIA, Regina; VIANA, Ana L. D. (orgs.) Recursos humanos em saúde: política, desenvolvimento e mercado de trabalho . Campinas: Unicamp , 2002. p. 275-286.; Nogueira, 2002NOGUEIRA, Roberto P. O trabalho em saúde hoje: novas formas de organização. In: NEGRI, Barjas; FARIA, Regina; VIANA, Ana L. D. (orgs.). Recursos humanos em saúde: política, desenvolvimento e mercado de trabalho . Campinas: Unicamp , 2002. p. 257-274. Disponível em: https://www.eco.unicamp.br/images/publicacoes/Livros/geral/Recurso-humanos-em-saude-Politica-desenvolvimento-e-mercado-de-trabalho.pdf. Acesso em: 16 ago. 2022.
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).
Já a ‘pejotização’ se expandiu especialmente na esfera privada, sob o estímulo do tratamento fiscal mais favorável a esse formato introduzido em meados da década de 1990, quando os rendimentos obtidos por meio de empresas via distribuição de lucros passaram a ser isentos de tributação. No segmento hospitalar, por exemplo, estudos conduzidos por Girardi e Carvalho (2002GIRARDI, Sábato N.; CARVALHO, Cristiana L. Mercado de trabalho e regulação das profissões de saúde. In: NEGRI, Barjas; FARIA, Regina; VIANA, Ana L. D. (orgs.). Recursos humanos em saúde: política, desenvolvimento e mercado de trabalho. Campinas: Unicamp, 2002. p. 221-256.) e Girardi, Cherchilglia e Araújo (2003)GIRARDI, Sábato N.; CHERCHILGLIA, Mariângela L; ARAÚJO, Jackson F. Formas institucionais de terceirização de serviços de saúde na rede hospitalar filantrópica. In: BARROS, André F. R. Observatório de recursos humanos ou saúde no Brasil: estudos e análises. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003. p.191-225. mostraram significativa perda de importância dos contratos assalariados nos segmentos privados filantrópico e lucrativo em favor de práticas diversas de terceirização.
No período mais recente, diferentes estudos têm reportado a adoção de modalidades de contratação terceirizada de médicos no SUS no âmbito hospitalar e ambulatorial, envolvendo desde a ‘pejotização’ até práticas de emprego sem contrato, e caracterizando uma tendência de precarização de direitos e de piora de condições de trabalho (Souza e Mendes, 2016SOUZA, Helton S.; MENDES, Áquilas N. A terceirização e o “desmonte” do emprego estável em hospitais. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 50, n. 2, p. 284-291, 2016. http://dx.doi.org/10.1590/ S0080-623420160000200015. Disponível em: https://www.scielo.br/j/reeusp/a/hvHTK6pfKCPVQ5cvnPJvjFQ/?lang=pt. Acesso em: 16 ago. 2022.
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; Silva, Carvalho e Santini, 2020SILVA, João F. M.; CARVALHO, Brígida G.; SANTINI, Stela M. L. A pejotização em saúde na macrorregião norte do Paraná e suas implicações com a COVID-19. Revista Eletrônica Gestão & Saúde, Brasília, v. 11, n. 3, set./dez. 2020. https://doi.org/10.26512/gs.v11i3.32400. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/rgs/article/view/32400/28342. Acesso em: 16 ago. 2022.
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; Souza et al., 2021SOUZA, Bruno L. et al. Precarização do vínculo de trabalho do médico na Paraíba: reflexos éticos. Revista Bioética, Brasília, v. 29, n. 2, abr./jun. 2021. https://doi.org/10.1590/1983-80422021292476. Disponível em: https://www.scielo.br/j/bioet/a/HMR8pmZhrBWdTNvjWJPyMCm/abstract/?lang=pt. Acesso em: 16 ago. 2022.
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).
Do ponto de vista legal, esse crescimento da terceirização do segmento médico desde os anos 1990 foi respaldado pela súmula n. 331/1993 do Tribunal Superior do Trabalho - norma sem força vinculante, porém norteadora de decisões judiciais -, que admitiu a legalidade da terceirização das atividades-meio, desde que não estivessem presentes a subordinação administrativa do trabalho (sujeição a decisões de mando direto da parte contratante) e a chamada pessoalidade na contratação, ou seja, o caráter insubstituível do contratado na relação trabalhista (Biavaschi e Droppa, 2014BIAVASCHI, Magda B.; DROPPA, Alisson. A dinâmica da regulamentação da terceirização no Brasil: as súmulas do Tribunal Superior do Trabalho, os projetos de lei e as decisões do Supremo Tribunal Federal. Revista de Ciências Sociais: Política & Trabalho, João Pessoa, n. 41, p. 121-145, out. 2014. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/politicaetrabalho/article/view/21273/12650. Acesso em: 16 ago. 2022.
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).
Em meados da década seguinte, a chamada Lei do Bem (lei n. 11.196/2005) representou um enorme estímulo à ‘pejotização’ no segmento dos profissionais liberais em geral, como médicos, advogados, arquitetos, e dos que atuam nos ramos jornalístico e artístico, ao admitir a prestação de serviços através de pessoas jurídicas para fins tributários (Santos, 2010SANTOS, Ronaldo L. Fraudes nas relações de trabalho: morfologia e transcendência. Revista IOB Trabalhista e Previdenciária, São Paulo, v. 249, 2010.).
Permanecia, porém, uma ambiguidade regulatória, já que a ilegalidade da terceirização das atividades-fim embutida na súmula 331 se manteve como referência para o julgamento de ações na Justiça do Trabalho e para a atuação do Ministério Público do Trabalho.
A Reforma Trabalhista de 2017 praticamente eliminou essa contradição, ao liberar a terceirização de forma irrestrita. No ano seguinte, o Supremo Tribunal Federal (STF) não só afirmou a inconstitucionalidade da súmula 331 do TST por afronta à livre iniciativa, mas também declarou a constitucionalidade da terceirização irrestrita (Supremo Tribunal Federal, 2018SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Tema 725. Terceirização de serviços para a consecução da atividade-fim da empresa. Recurso Extraordinário 958252. Relator: Min. Luiz Fux., julgamento em 30/08/2018. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4952236&numeroProcesso=958252&classeProcesso=RE&numeroTema=725. Acesso em: 16 ago. 2022.
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), consolidando, assim, a perspectiva liberalizante da regulação das relações trabalhistas.
A Tabela 1 mostra o contingente de profissionais liberais que ganharam rendimentos provenientes da participação em empresas nos anos de 2007 e 2018. Observa-se que o avanço do grupo de profissionais liberais empresários foi generalizado, mas o número de médicos nessa condição, já elevado em 2007, descolou-se dos demais grupos, alcançando mais da metade do total de contribuintes dessa categoria em 2018. Seguramente, o dado ainda não capta grande parte dos efeitos da Reforma, sendo muito provável que a proporção de ‘pejotizados’ cresça para todas as categorias profissionais nos próximos anos.
A flexibilização consolidada pela Reforma Trabalhista envolve uma disputa entre concepções opostas a respeito do sentido da regulação do mercado de trabalho, especialmente no que diz respeito à terceirização. Segundo Marcelino e Cavalcante (2012MARCELINO, Paula; CAVALCANTE, Sávio. Por uma definição da terceirização. Caderno CRH, Salvador, v. 25, n. 65, p. 331-346, maio/ago. 2012. https://doi.org/10.1590/S0103-49792012000200010. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ccrh/a/fhfJskqTQhv5T5Zd8PRwT3D/?lang=pt. Acesso em: 16 ago. 2022.
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), a vertente que enxerga a terceirização como um processo potencialmente positivo a entende essencialmente como redistribuição de atividades de produção de bens e serviços entre empresas, própria da dinâmica da divisão social do trabalho. Sob essa perspectiva, a terceirização seria fruto da inovação tecnológica e organizacional e da especialização da produção de bens e serviços, tendendo a resultar em aumento da produtividade do trabalho e da competitividade da economia.
No polo oposto, a terceirização é vista como a subcontratação de atividade laboral com o objetivo específico de redução dos custos econômicos e políticos da gestão da força de trabalho. Nesse sentido, a piora das condições de trabalho, a redução dos salários, a precarização de direitos trabalhistas e previdenciários e o enfraquecimento da capacidade de organização e reivindicação dos trabalhadores são parte indissociável desse mesmo objetivo, porquanto viabilizam a redução daqueles custos.
Nessa perspectiva, Filgueiras e Cavalcante (2015FILGUEIRAS, Vitor A.; CAVALCANTE, Sávio M. Terceirização: debate conceitual e conjuntura política. Revista da ABET, Paraíba, v. 14, n. 1, p. 15-25, jan./jun. 2015.) argumentam que a terceirização é uma transformação da aparência do comando do processo produtivo, que se opera pela modificação da forma de inserção do trabalho sem que haja transferência (ou exteriorização) da produção para outros capitais. Para os autores, na terceirização não há criação de novos espaços de acumulação. Trata-se, ao contrário, do mesmo capital contratando parte (no limite a totalidade) dos trabalhadores de maneira diferenciada, objetivando o manejo da força de trabalho a custos reduzidos. Assim, os trabalhadores terceirizados se vinculam, do ponto de vista formal, a outras empresas - no caso da ‘pejotização’, organizações constituídas por eles próprios -, mas contribuem diretamente para a valorização do capital que contrata o trabalho terceirizado sob a forma de serviço. Sob essa perspectiva, trata-se de expediente de precarização e barateamento da força de trabalho que se apresenta como transformação das relações de produção, sendo essa, de fato, a essência da terceirização e não seu eventual subproduto distorcido, dado o papel central que o processo desempenha na atual fase de desenvolvimento do capitalismo, marcada por formas mais intensas da exploração do trabalho.
Trazida para o âmbito do trabalho médico, essa discussão apresenta nuances importantes. Conforme Cordeiro (1984CORDEIRO, Hesio. As empresas médicas. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984. 175 p.), já desde os anos 1970, a prática médica no Brasil está submetida a uma lógica de organização em moldes essencialmente capitalistas, e se dá de forma dependente da dinâmica do complexo médico-assistencial. No entanto, mesmo hoje, a atuação dos médicos ainda é marcada por elementos relacionados ao caráter liberal da profissão, como a natureza científica da formação e a relativa independência na definição de sua conduta. Além disso, a rotatividade e a multiplicidade de vínculos, ao mesmo tempo que decorrem de um mercado de trabalho cada vez mais fragmentado e precarizado, também remetem à maneira como se dá a busca pela formação e por experiências voltadas à consolidação da carreira nesse campo (Machado, 1997MACHADO, Maria H. Os médicos no Brasil: um retrato da realidade. Rio de Janeiro: Fiocruz , 1997. ; Pierantoni et al., 2015PIERANTONI, Célia R. et al. Rotatividade da força de trabalho médica no Brasil. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 39, n. 6, p. 637-647, 2015. https://doi.org/10.1590/0103-110420151060003006. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/gFc7r8NKLhyQcZVWPmTqnFH/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 16 ago. 2022.
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).
Seguindo o argumento de Marcelino e Cavalcante (2012MARCELINO, Paula; CAVALCANTE, Sávio. Por uma definição da terceirização. Caderno CRH, Salvador, v. 25, n. 65, p. 331-346, maio/ago. 2012. https://doi.org/10.1590/S0103-49792012000200010. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ccrh/a/fhfJskqTQhv5T5Zd8PRwT3D/?lang=pt. Acesso em: 16 ago. 2022.
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), somente mediante a análise das relações concretas estabelecidas entre empresas e trabalhadores é possível entender o sentido da terceirização e a forma como se manifesta nos vários segmentos do mercado de trabalho. Desse modo, para compreender o significado da inserção laboral dos médicos por meio de empresas, é preciso investigar questões como o seu grau de autonomia em relação à definição das condições de sua contratação e ao desempenho do seu trabalho, bem como a natureza da sua contribuição no âmbito do processo de produção de serviços. O presente estudo procurou identificar essas questões na percepção de informantes que atuam no sistema de saúde paulista, buscando elementos para compreender até que ponto a terceirização do trabalho médico, particularmente na modalidade ‘pejotizada’, é um processo que contribui para intensificar a exploração via precarização ou, alternativamente, permite que esses profissionais usufruam com maior independência dos ganhos decorrentes do seu trabalho.
Metodologia
Foi realizada uma investigação de natureza qualitativa baseada em entrevistas semiestruturadas para captar percepções e experiências dos participantes e compreender como são formados, em seu contexto, os significados ligados ao tema do estudo (Corbin e Strauss, 2008CORBIN, Juliete; STRAUSS, Anselm C. Strategies for qualitative data analysis. In: CORBIN, Juliete; STRAUSS, Anselm C. Basics of qualitative research: techniques and procedures for developing grounded theory. London: SAGE Publications, 2008. p. 65-86.).
A investigação é um desdobramento da pesquisa “Como a atual crise reconfigura o sistema de saúde no Brasil? Um estudo sobre serviços e força de trabalho em saúde nos estados de São Paulo e Maranhão”, realizada no período 2019-2021, cujo objetivo central foi avaliar o impacto da crise econômica no sistema de saúde brasileiro nos sistemas público e privado de saúde desses dois estados.
A pesquisa original comparou os sistemas de saúde de São Paulo e do Maranhão, e o presente artigo aprofundou questões específicas relacionadas ao trabalho dos médicos exclusivamente em São Paulo, diferenciando capital e interior.
Este estudo teve como parte do seu campo um conjunto de entrevistas feitas no estado de São Paulo em uma amostra composta por 24 indivíduos, construída de maneira a identificar informantes-chave entre profissionais médicos que atuam no SUS (inclusive via OSS) e/ou no setor privado, outros profissionais de saúde, gestores públicos de saúde e finanças, e gestores privados, incluindo empresários, executivos e assessores de alto escalão de empresas hospitalares, laboratórios, redes de clínicas de consultas médicas, e gestores de OSS (também classificados como gestores privados).
A regulação das relações de trabalho e seus impactos no âmbito do trabalho médico foram elementos que se destacaram na fala de alguns entrevistados e motivaram uma investigação adicional para o aprofundamento dessas questões e seus impactos.
O segundo bloco de entrevistas foi realizado apenas em São Paulo com outros 16 informantes-chave, incluindo médicos, executivos e profissionais com formação em direito e contabilidade com atuação no mercado de trabalho médico, e buscou especialmente percepções sobre o grau de autonomia dos profissionais, a constituição de vínculos, a definição de remuneração e as condições de trabalho associadas às diferentes formas de contratação.
Em ambas as amostras, os integrantes foram selecionados procurando assegurar múltiplas inserções no sistema de saúde e experiência nos temas relacionados aos objetivos do estudo. A Tabela 2 mostra a diversidade das áreas de atuação dos informantes, abrangendo o SUS (administração direta pública ou OSS) e o setor privado (hospitais, laboratórios, clínicas populares, gerenciadoras de planos de saúde e outras empresas), na capital e interior do Estado.
As entrevistas foram gravadas e transcritas, e procedeu-se à análise por meio da técnica de análise de conteúdo com o suporte do software NVivo (Bardin, 1994BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições Setenta, 1994.; Trivinos, 1987TRIVINOS, Augusto N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987. ).
Resultados e discussão
Inserção de médicos no mercado de trabalho e seus desdobramentos: análise segundo as percepções dos atores
O primeiro ponto que merece destaque é o fato de que praticamente todos os entrevistados apontaram a ‘contratação como PJ’ como tendência predominante de trabalho médico. A terceirização na modalidade clássica - médicos com vínculo de emprego em uma empresa que presta serviços a um estabelecimento de saúde - mal chegou a ser mencionada. Em contrapartida, quase todos os entrevistados médicos mencionaram dificuldades crescentes (próprias ou de colegas) de encontrar emprego com vínculo CLT e necessidade de constituição ou participação em uma pessoa jurídica para poderem trabalhar.
Particularmente no âmbito das OSS, as entrevistas indicaram que coexistem diferentes modelos de contratação. Em que pese a modalidade PJ ter sido mencionada como predominante nos relatos, algumas entidades gestoras de OSS adotam modelos híbridos, combinando-a com a contratação assalariada, adotada a depender do tipo de função desempenhada pelo profissional. Uma das gestoras de OSS relatou adotar como política a contratação de médicos exclusivamente via CLT.
Já nos estabelecimentos regidos pelo Estado, vários entrevistados mencionaram o crescimento da terceirização de médicos em serviços de saúde operados diretamente pelo setor público, tanto em prefeituras como no governo estadual e, mais importante, não em caráter excepcional, mas como prática de gestão, mesmo que eventualmente restrita a segmentos assistenciais específicos.
Embora todos os entrevistados tenham relacionado o crescimento da ‘pejotização’ de médicos ao menor peso dos encargos tributários, outros elementos foram mencionados como importantes para explicar a disseminação da modalidade, os quais têm relação com diferentes visões acerca do papel do médico na produção de serviços de saúde. As percepções a respeito das causas e desdobramentos dessa tendência são apresentadas a seguir em quatro eixos de análise, compreendendo a visão dos entrevistados sobre os impactos da Reforma Trabalhista, os formatos assumidos pela inserção ‘pejotizada’ dos médicos, os desdobramentos da ‘pejotização’ sobre o trabalho médico e as visões sobre o trabalho médico no processo de produção de serviços de saúde e o sentido da ‘pejotização’. Esses eixos foram concebidos buscando agrupar os conteúdos das entrevistas em temas que pudessem dialogar com a discussão mais geral acerca da flexibilização das relações de trabalho, evidenciando sua expressão no âmbito específico do trabalho médico.
Impacto da Reforma Trabalhista sobre o mercado de trabalho médico
Com relação às percepções sobre a Reforma Trabalhista, destacou-se o fato de que, salvo duas exceções, os entrevistados médicos não identificaram a mudança do marco regulatório como algo que tenha trazido consequências relevantes para sua área de atuação. Ao contrário, grande parte sequer reconheceu que as alterações da regulação ocorridas em 2017 pertencessem ao âmbito das relações de trabalho em que estavam inseridos.
Essa visão se contrapôs ao entendimento expresso pelos gestores públicos e privados, que ressaltaram a possibilidade de terceirização da atividade-fim trazida pela Reforma como elemento central no ajuste do risco jurídico da contratação de médicos via empresas.
Você tinha dois grandes desafios. O primeiro era a súmula 331, [ou seja,] se eu estava diante de uma terceirização da atividade-fim. E aí, na área de saúde, eu estava, né? [...] terceirizando uma atividade médica. [...] Então, como não ter a terceirização da atividade-fim? O objeto social do hospital, do laboratório, deveria ser só o fornecimento de infraestrutura, eu não poderia oferecer serviço médico. Bom, agora a Reforma Trabalhista resolveu esse problema, porque agora você pode terceirizar a atividade-fim. (Gestor Privado)
Até a Lei da Terceirização você tinha um certo olhar de ilegalidade para isso [contratação via PJ], de irregularidade. A partir daí [da aprovação da terceirização irrestrita], esse fantasma deixou de existir, tende a se tornar uma coisa normal. (Gestor Privado/OSS)
Entre 2013 e 2016, foram feitos 48 concursos para médico na [Administração] Direta. Vinte e seis concursos deram deserto [menção ao fato de não ter havido inscritos] Quando isso começou a acontecer, começou-se a terceirizar, antes da lei da terceirização. Terceirizar pronto-socorro, terceirizar terapia intensiva. Antes da lei. Bom, mas aí o Ministério Público caiu em cima. Agora, depois da lei, você pode terceirizar atividade-fim [...] Hoje, 20% dos médicos são terceirizados. Na Direta. Você contrata uma equipe. (Gestor Público de saúde)
Também ficou evidente que, antes da Reforma Trabalhista, o risco jurídico associado à contratação terceirizada não vinha dos médicos, já que estes não tenderiam a fazer reclamações trabalhistas.
Ninguém reclama [direitos trabalhistas] porque senão você não consegue trabalhar em nenhum lugar. (Médico, Setor Privado)
[...] o médico em si, ele não é um demandante [de reconhecimento de vínculo de emprego]. As grandes preocupações são Ministério Público, Receita Federal [...] (Gestor Privado)
Um entrevistado pontuou ainda que, apesar de ter flexibilizado as relações de trabalho, a Reforma não pôs fim à CLT.
Não temos base jurídica para fugir da CLT, contratar tudo como MEI [Microempreendedor Individual], não existe legislação para isso. É vínculo. O poder público vai fiscalizar [...] a empresa fica supervulnerável [...] A Receita não tem tempo e nem braço suficiente, mas quando a inteligência artificial detectar tudo isso, eles vão mandar a conta. (Profissional de Contabilidade)
A afirmação expressa o entendimento de que a eventual caracterização da relação de emprego de um médico prestando serviços em um estabelecimento de saúde, possível na presença especialmente de subordinação à gestão e pessoalidade no desempenho das atividades, continuaria configurando como irregular a sua contratação via empresa. Ou seja, na sua visão, a Reforma permitiu a terceirização, mas na presença de subordinação ela ainda seria ilegal.
Chama a atenção que esse tipo de visão apareceu exclusivamente nas falas de alguns entrevistados do campo do direito e da contabilidade, não tendo sido expressa por nenhum dos outros grupos de informantes. Isso sugere que predomina entre empregadores e profissionais de alto nível hierárquico um discurso que retrata a caracterização do vínculo empregatício, pilar central da CLT, como um debate superado, algo que, com a nova legislação, tornou-se irrelevante.
Em relação aos médicos, a ausência de menção a essa discussão é consistente com o já mencionado fato de que o grupo nem mesmo identificou a mudança do marco legal trabalhista como relevante para seu contexto de trabalho. O entendimento, entretanto, contrasta com a visão desses entrevistados (médicos) sobre a precarização associada à inserção laboral via ‘pejotização’, como explorado mais à frente.
Modalidades de ‘pejotização’ do trabalho médico
As falas dos entrevistados apontaram que o movimento crescente de atuação dos médicos sob condição terceirizada assume basicamente dois formatos. O primeiro é aquele em que os profissionais, por iniciativa própria, estabelecem uma pessoa jurídica, frequentemente em conjunto com cônjuges ou colegas, e todos figuram na condição de sócios proprietários, geralmente com participações semelhantes. Nesse arranjo ‘PJ própria’, normalmente, os serviços prestados pelos sócios em diferentes estabelecimentos são faturados pela pessoa jurídica, sendo o ganho transferido aos médicos em proporção ao trabalho de cada um, mediante uma combinação entre distribuição de lucros e pró-labore, após descontados tributos e custos administrativos de contabilidade.
É interessante notar, porém, que a maioria dos médicos que declarou trabalhar sob essa modalidade não soube precisar a categoria de seus rendimentos via PJ (distribuição de lucros, pró-labore), o que indica que essa decisão acaba competindo ao serviço de contabilidade contratado externamente. Isso sugere que os médicos que atuam como PJ tendem a não se apropriar de questões associadas a essa modalidade de inserção que têm implicações fiscais e previdenciárias relevantes. Conforme esclareceu o entrevistado do campo da contabilidade, ainda que uma empresa possa optar por distribuir lucros antes do final do exercício, ou seja, periodicamente, à medida que o recurso correspondente aos honorários entra como receita, um fluxo desse tipo, sempre com o mesmo valor, poderia configurar uso do formato legal da PJ para disfarçar relação de emprego. Adicionalmente, pelo menos parte do rendimento deveria ser distribuído como pró-labore aos sócios, para configurar que são remunerados como médicos, do contrário a empresa não teria como justificar a própria entrada do dinheiro como receita, já que não haveria profissionais prestando o serviço.
No segundo formato, os médicos ingressam em arranjos já existentes, ou seja, em empresas previamente constituídas, das quais passam a participar como cotistas minoritários.
Você teve primeiro um movimento muito grande de celetista para PJ individual. Agora [o] movimento é de PJ individual para uma PJ coletiva. [...] Que é o seguinte [...] o médico é convidado a fazer parte de uma sociedade, como sócio de uma empresa. Aí ele assume uma cota. (Médico, Setor Público)
Eu participo da licitação, pego todo mundo que vai trabalhar para mim para dar aquele plantão e coloco como sócio na nossa empresa com 1% de cotas. Isso tudo para fugir do vínculo de emprego .... é [um] médico empresário, você começa a ter uma classe de médicos que são empresários que tentam organizar a prestação de serviço. (Médico, Setor Privado)
Assim, o médico se associa para poder trabalhar em um estabelecimento específico, em geral por indicação do próprio provedor de saúde e a adesão a arranjos desse tipo não é opcional, mas uma pré-condição para o trabalho.
Nós exigimos, obrigamos que na composição da equipe, todos sejam sócios da empresa. A gente fala, ‘todo mundo é sócio?’ (Gestor Privado/OSS)
Não foi uma escolha, [disseram] ‘olha, o modelo de trabalho aqui é PJ’ [...] Se eu pudesse escolher, sem dúvida nenhuma eu escolheria CLT. (Médico, Setor Privado)
Um dos informantes entrevistados atua como médico e dirigente de organização sindical da categoria médica no estado de São Paulo. Em seu relato, o sindicato é procurado para dar assessoria jurídica aos médicos em um processo de demissão em larga escala de uma empresa hospitalar que decidiu substituir as relações formais de emprego por um arranjo em que os médicos precisam se associar a uma PJ específica.
Os médicos do pronto-socorro do [grande hospital privado da capital paulista] são celetistas, [...] do pronto-socorro infantil e das UTIs [...] Aí, um belo dia os médicos nos procuram dizendo: ‘O [cita o nome do hospital] está fazendo uma demissão em massa de anestesista [...] ele vai substituir por uma empresa de anestesiologia grande aqui de São Paulo que fornece mão de obra’. [....] Quem entrou? [...] uma empresa grande e que não tem funcionário [...] Aí você vai entender como eles funcionam. O médico entra com uma cota mínima de sociedade, ele passa a ser sócio [...] Esse médico que entra, ele não tem muita opção. [...] Não é apenas um processo de ‘pejotização’ que é aquela coisa de que o contratante da mão de obra médica lida com médicos individualmente. (Médico, Setor Público)
Essa modalidade em que o médico se integra a uma empresa que centraliza a relação com o estabelecimento de saúde foi frequentemente identificada como um formato inseguro para os trabalhadores por parte dos entrevistados médicos e outros profissionais. A percepção é de que esses arranjos envolvem riscos pela necessidade de associação com indivíduos que não pertencem ao seu círculo de relações e sob acertos desconhecidos, sendo relativamente comuns casos de atraso de pagamento ou mesmo não recebimento de honorários.
[A empresa] coloca todos os médicos para trabalhar... [como] sócio minoritário daquela empresa. Aí, o que acontece? A empresa dá calote. Como é que os caras vão questionar o calote, sendo que eles são os sócios? Aí eles ficam com umas ideias: ‘Ah, vamos atrás dos nossos direitos, processar, processo coletivo e não sei o quê [...]’ Vai processar eles próprios (risos)? (Médico, Setor Público)
Eu acho que a maior precariedade na contratação são os intermediários do setor público [...] as prefeituras que contratam através de um terceiro para prestar serviços naquela prefeitura e que deixa de pagar, que atrasa esse pagamento. (Médico, Setor Privado)
Isso mostra a percepção dos médicos de que sua atuação por meio de arranjos empresariais previamente existentes nos moldes acima tem maior potencial de precarização das condições de trabalho e perda de controle de elementos básicos da relação laboral.
No entanto, a inserção via ‘PJ própria’ tampouco parece ser uma modalidade capaz de assegurar autonomia ou independência efetivas, como evidenciado nas falas.
Em geral, os médicos, mesmo organizados como pessoas jurídicas, têm pouca capacidade de negociar esses contratos. Claro que ele vai definir se aceita ou não o valor proposto, e vai ter algum poder de negociação com relação ao valor global do contrato. Mas, com relação aos detalhamentos das cláusulas, tende a ser mais contrato de adesão. [O hospital] fala assim ‘você quer trabalhar aqui, o contrato é esse’. (Profissional do Direito)
Na verdade, não tem autonomia. A partir do momento que eles te contratam como PJ, você tem hora para cumprir, não pode faltar, vai tirar férias, tem de avisar. Você tem todas as obrigações de CLT, mas não tem o vínculo trabalhista. Uma das coisas com a reforma [Trabalhista], se você sai, se é demitido e quiser processar o empregador, tomador de serviços, vai perder porque isso foi legalizado. [...] Você cumpre regras, é tudo igual! A diferença é que você não tem os benefícios. (Médico, Setor Privado)
É um CLT disfarçado. É isso que eu te digo. Porque eu tenho hora para entrar, hora para sair. Tipo, juridicamente, caracteriza vínculo total [...] Eu tenho chefes, eu tenho que prestar contas. É um CLT. Isso aí é puramente por causa de impostos. (Médico, Setor Privado)
Esses relatos mostram uma percepção de que a autonomia dos trabalhadores na relação com os empregadores é muito limitada mesmo com PJ própria, seja pelo reduzido poder de negociação nas relações contratuais, seja pela existência de obrigações características de uma relação de emprego sem os direitos correspondentes. Como explorado a seguir, isso tem implicações importantes sobre as condições de exercício do trabalho médico.
Desdobramentos da ‘pejotização’ sobre as condições de trabalho
Entre os desdobramentos associados à disseminação da ‘pejotização’, alguns entrevistados mencionaram a relação entre o caráter mais flexível desse formato e o crescimento das jornadas de trabalho sem controle e do número de vínculos assumidos pelos trabalhadores.
[...] eu acho que a multiplicidade de vínculos dos médicos é porque ganha pouco [...] Na área privada, o salário é maior, só que você trabalha mais. (Médico, Setor Privado)
A CLT estabelece limites de jornada de trabalho, de intervalo entre jornadas de trabalho, descanso remunerado, férias depois de 12 meses [...] como prestação de serviços, PJ ou liberal, esses intervalos obrigatórios não existem, né? Então, alguns médicos assumiam plantões em hospital e ficavam ali três, quatro dias seguidos. Não existe mais a limitação legal. O próprio médico que vai decidir a jornada dele. [...] Os riscos são muito grandes. Tem o risco de ter uma intercorrência com algum paciente e ele ter que responder, não só eticamente perante o Conselho, mas também civilmente, responsabilidade civil. (Profissional do Direito)
A percepção quanto à condição de trabalho arriscada também apareceu na fala de médicos.
[...] Como PJ você acaba assumindo muitos riscos. Nenhum [auxílio-doença, adicional de insalubridade ou correlato em relação à Covid-19]. Ficou doente, mesmo pegando aqui dentro do hospital, ficou sem receber. Ficava afastado e não recebia. [...] Dos 60, 12 pegaram, mas trabalhavam em outros hospitais também. Não dava nem para saber onde pegaram. Não trabalhou, não recebeu. (Médico, Setor Privado)
As falas indicam que, ao invés de a flexibilidade ser uma condição exigida pelos médicos, figurando como a origem da proliferação da modalidade de contratação via PJ, a causalidade opera em outro sentido. O mercado impõe a relação de trabalho através de pessoa jurídica e a maior flexibilidade decorrente desse formato pode facilitar a burla à regulação sobre a jornada de trabalho, eventualmente com precarização adicional dos profissionais.
O contraponto a essa imagem veio de alguns entrevistados do grupo de gestores, que mobilizaram elementos relacionados ao caráter liberal da profissão para explicar a contratação na modalidade PJ, em particular a questão da flexibilidade de atuação e gestão da agenda.
O que a gente percebe é que o médico gosta da PJ. Isso dá ao médico maior liberdade na contratualização, maior liberdade na forma de se relacionar com múltiplas empresas [...] Também existe uma tributação mais justa na PJ, então o que eu vejo é um setor, tal qual o meio artístico, o jornalístico, tal qual vários setores da economia, que se pauta por relações entre empresas, com comportamento de empresa, não com comportamento de pessoa física. (Gestor Privado).
Outro efeito destacado por alguns entrevistados relaciona-se à possível influência do formato PJ sobre a relação que o profissional constrói com o estabelecimento de saúde e com o paciente.
Você deixa de vestir a camisa, você deixa de ter uma continuidade no atendimento, você deixa de ter o fluxo de atendimento adequado dentro das unidades porque cada dia é uma equipe de plantão diferente, que não se conhece. Então, você deixa de fazer aquela linha de cuidado adequada com pessoas que você sabe que são capacitadas ou que você vai conhecendo a forma de trabalhar [...] Isso é muito ruim para a assistência, porque você quebra o atendimento. (Médico, Setor Privado).
[...] A pessoa acaba não tendo um vínculo, acaba fazendo de qualquer jeito, você não vai voltar, é só aquele plantão. Na AMA [contrata PJ] é relativo, porque você vai só resolver a queixa do momento, então, [...] mas no PSF, você vai estar com aquele paciente para o resto da vida. Enquanto você estiver trabalhando, vai estar cuidando daquele paciente. Se você vem para um plantão, no outro dia é outro médico que vem para outro plantão, não cria vínculo na comunidade, ninguém nem vai saber o teu nome. Isso interfere no trabalho. Eles falam: ‘a minha médica é a doutora [e fala seu próprio nome]’. Então, eles me têm como a médica deles, e isso dá até uma segurança para o paciente. (Médico, Setor Público)
Não trabalho com PJ. Essa relação não traz a mesma resposta que a gente tem contratando direto. O vínculo não se forma. A [cita o nome da entidade que gerencia unidades de saúde no modelo OSS] preserva certos valores desse tipo de compromisso. Eu sei que [...] eu estou num lugar um pouco diferente, diferente, mas possível. (Gestor Privado/OSS).
As falas mostram a percepção de que a modalidade PJ tem potencial para interferir negativamente no processo de cuidado e na própria capacidade de gestão da equipe, pois geralmente vem acompanhada de uma desvalorização do vínculo tanto por parte do estabelecimento de saúde como do próprio médico. A menção do gestor de OSS sobre a inadequação do formato PJ foi exceção, já que na visão da maior parte dos gestores o formato de contratação foi retratado como neutro do ponto de vista da relação entre o médico e o paciente e entre o médico e o estabelecimento de saúde.
Em suma, o contraste evidenciado pelas entrevistas entre o sentido atribuído pelos médicos ao processo de ‘pejotização’ do trabalho e a percepção dos entrevistados mais identificados com os empregadores se baseia em imagens distintas acerca da correlação de forças no mercado de trabalho e seus efeitos. Enquanto os médicos parecem se ver essencialmente como trabalhadores com pouco poder de negociação, os gestores os retratam como profissionais que usam de livre iniciativa para se organizar, buscando modalidades de inserção flexíveis. Sob sua perspectiva, para além da questão tributária, a inserção ‘pejotizada’ é o formato buscado pelo profissional médico por ser mais adequado à exploração de oportunidades de trabalho.
Visões sobre o trabalho médico na produção de serviços de saúde e o sentido da ‘pejotização’
A noção de que o médico desempenha um tipo de atividade com características específicas contribui para compor a imagem de um profissional que se insere de maneira autônoma no processo de produção do serviço de assistência à saúde.
A manifestação de um dos entrevistados do grupo dos gestores é particularmente interessante na fundamentação da ideia de que o trabalho médico pode se inserir como relação comercial de prestação de serviços no processo de desenvolvimento da assistência pelo estabelecimento de saúde.
Eu digo que o médico é uma profissão autônoma na essência. Desde a formação, ele é criado para agir sozinho. Quando você pega a própria definição de ato médico, né, você vê que o ato médico é exclusivo do próprio profissional médico. Então, qualquer relacionamento jurídico que você estabeleça, seja com uma prestadora de serviços, com um hospital, com uma operadora, você sempre tem que respeitar o ato médico como algo exclusivo do próprio médico. (Gestor Privado)
Esta fala destaca a ideia de que o médico precisa atuar sob um certo insulamento que proteja sua prática profissional de interferências. A perspectiva aqui é que a independência de atuação que permite ao médico exercer o conjunto de atividades exclusivo de sua categoria profissional - caracterizada na fala pelo ato médico - requer autonomia do ponto de vista contratual. Fica sugerido que a condição de empregado tornaria o profissional vulnerável do ponto de vista do exercício dessa independência na tomada de decisões no processo de trabalho. A contratação como PJ é vista como expediente capaz de resguardar a autonomia profissional.
Nessa perspectiva, ainda, a caracterização detalhada da natureza da atividade no contrato cumpre o papel fundamental de especificar e delimitar a atuação do médico, reforçando assim a autonomia decisória.
No contrato social (da PJ), a gente olha para o objeto para verificar se aquela especialidade está prevista no objeto social dele. Se estiver muito genérica, por exemplo, serviços médicos, a gente pede que seja incluída a especialidade. (Gestor Privado)
A ideia de inserção independente da dinâmica de operação do empreendimento no qual ocorre o trabalho como prestação de serviço é fundada na formalização de não interferência na organização no desenvolvimento da atividade.
Ele [o médico como pessoa jurídica] não recebe ordens, né? Ele tem uma obrigação contratual de prestar um serviço. Então, o hospital, laboratório, fala ‘olha, eu tenho um protocolo de qualidade [...] você tem que observar isso aqui [...] agora como você vai fazer, quem vai supervisionar, isso é um problema seu [do médico prestador de serviços]’. (Gestor Privado)
O sentido é o de reforçar a ideia de responsabilidade específica, isolada, protegida sob a forma de contratação de serviço. No entanto, ao usar a imagem do profissional que atua de maneira insulada, o argumento abstrai a série de elementos da rotina de funcionamento de um estabelecimento de saúde que o médico precisa considerar para tomar suas decisões. Também se ignora que, como ator central do processo, o médico é fonte de comando, direta ou indireta, de parte importante do trabalho de outros profissionais e setores que, combinados, produzem o serviço de assistência à saúde. Embora mais visível em um hospital, que produz serviços mais complexos, esse tipo de interação também acontece em ambientes ambulatoriais ou laboratórios.
O contraponto a essa visão do médico apartado do restante dos profissionais, dos processos e da própria estrutura - os quais, combinados, operam a produção de serviços de saúde - se manifestou na fala de um entrevistado que atua do campo do direito.
Uma coisa é o profissional liberal. Esse profissional tem autonomia, ele é responsável pelo ato médico [...] Mas normalmente, quando você vai num hospital, quem determina o médico que vai te atender? É o hospital. A responsabilidade civil [por algum dano] de quem é? É uma coautoria, um contratou, o outro fez [...] O hospital corre os riscos da atividade econômica, ele mantém as condições de trabalho, os equipamentos, ele mantém a estrutura para a realização do trabalho. (Profissional de Direito)
O mesmo entrevistado ressaltou ainda um elemento central, a diferença entre autonomia funcional e subordinação.
A gente não pode confundir autonomia funcional com ausência de subordinação. O médico tem autonomia para seguir o protocolo [que ele acha correto]. Está dentro do ato médico, ele tem que ter liberdade. Isso não significa ausência de subordinação. A independência do exercício da profissão é garantida a vários profissionais. Mas [esse profissional] está subordinado a uma estrutura. Na sala de aula [por exemplo], você dá aula também, a gente tem a liberdade de cátedra, mas está subordinado a uma estrutura. (Profissional de Direito)
O conceito de subordinação estrutural busca abarcar um conjunto de condições de trabalho que embutem subordinação, mas dispensam a necessidade do poder diretivo direto do empregador. Segundo Fraga (2011FRAGA, Cristiano. Subordinação estrutural: um novo paradigma para as relações de emprego. Revista Eletrônica do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª. Região, Rio Grande do Sul, ano VII, n. 126, set. 2011. Disponível em: https://bityli.com/nxOJLtdF. Acesso em: 16 ago. 2022.
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), isso envolve determinadas modalidades de trabalho intelectual e situações associadas a inovações tecnológicas que têm transformado o processo produtivo e as relações de produção. Trata-se de condições não alcançadas pela definição tradicional de subordinação, em que o trabalhador acolhe ordens do empregador acerca do modo de realização de suas atividades.
O autor ressalta que a subordinação estrutural se manifesta não pela submissão ao poder diretivo, mas pela inserção do trabalhador na dinâmica operativa da empresa, ou seja, pela sua integração à engrenagem do empreendimento e ao núcleo das atividades associadas à elaboração daquilo que é produzido. Uma terceira modalidade, a subordinação objetiva, denota a integração do trabalhador aos fins e objetivos do empreendimento, manifestando-se por uma relação de coordenação ou colaboração, em que o trabalho se processa segundo movimentos ou influxos da empresa, novamente sem o recebimento de ordens ou a existência de superioridade hierárquica.
A esse respeito, Kfouri Neto, Bizigato e Souza (2019KFOURI NETO, Miguel; BIZIGATO JUNIOR, Fioravante; SOUZA, Tiago R. A natureza jurídica da relação entre médicos e hospitais: uma análise da pejotização. Revista Relações Internacionais do Mundo Atual, Curitiba, v. 2, n. 23, 2019. http://dx.doi.org/10.21902/Revrima.v2i26.3898. Disponível em: http://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/RIMA/article/view/3898/371372230. Acesso em: 16 ago. 2022.
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) esclarecem que, embora a subordinação técnica do médico seja insignificante pelo fato de sua atividade ser altamente qualificada, o serviço que presta é ‘por conta alheia’, uma vez que desprovido da propriedade dos meios de produção. Nessa perspectiva, o que o médico coloca à disposição da empresa é apenas a sua força de trabalho.
Para os autores, a contrapartida da condição de subordinação do trabalho é a dependência da empresa para com a atividade laboral, no sentido de que a própria operação do empreendimento voltada à produção na qual se insere o trabalhador não ocorre sem aquela força de trabalho. É pela exploração direta do trabalho subordinado na elaboração daquilo que é produto da atividade econômica que o capital nela investido se realiza sob a forma de lucro.
Considerações finais
Ribeiro e Schraiber (1994RIBEIRO, José M.; SCHRAIBER, Lilia B. A autonomia e o trabalho em medicina. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 10, n. 2, p. 190-199, abr./jun. 1994.) definiram a autonomia do médico como ligada a duas dimensões: a tomada de decisão no processo de trabalho, derivada das incertezas inerentes à relação médico-paciente, e a capacidade de autorregularão da profissão. Tal autonomia - jamais absoluta, dada a natureza social do processo de trabalho - encontra-se em permanente tensão pela transformação tecnológica e pela dinâmica dos arranjos de mercado e dos sistemas públicos de saúde.
Esse estudo sugere que a crescente flexibilização da regulação trabalhista no Brasil, especialmente a liberação irrestrita da terceirização, vem modificando de maneira importante a inserção dos médicos no mercado de trabalho. Pela fala dos entrevistados, a terceirização via ‘pejotização’ avançou consideravelmente no período recente no estado de São Paulo e se apresenta como tendência generalizada, com especial intensidade no segmento de saúde de acesso privado. No setor público, no âmbito das OSS, embora a ‘pejotização’ tenha sido referida como a forma dominante, aparentemente prevalece uma certa diversidade de modelos de contratação, fruto de políticas específicas das entidades gestoras com relação à questão. Na Administração Direta, porém, o uso dessa forma de contratação foi relatado como tendência recorrente, o que é significativo, dado que historicamente a maior parte dos postos de trabalho de médicos sob assalariamento tem origem no sistema público de saúde.
Quanto ao sentido da ‘pejotização’ no processo produtivo, a visão expressa principalmente pelos médicos apontou que esse formato promove uma autonomia empresarial que se limita à aparência da relação de trabalho. Na medida em que os médicos atuam em uma estrutura privada voltada à produção de serviços de saúde que não tem origem em seus recursos - consultório e equipamentos próprios ou alugados -, sua força de trabalho necessariamente concorre de maneira direta para a geração de lucros desses empreendimentos. A atuação em estabelecimentos de saúde estatais ou privados, entidades sem fins lucrativos, não gera lucro, mas, da mesma forma, o trabalho médico contribui para a produção de valor na figura do serviço de saúde.
Em qualquer situação, se a inserção do médico como peça nuclear da produção do serviço se dá na modalidade ‘pejotizada’, de partida há uma redução direta de custos de contratação associados à carga tributária mais baixa. Uma parte dessa redução tende a ser compartilhada com os próprios médicos, sob a forma de honorários mais elevados, o que chegou a ser mencionado como prática por alguns dos informantes da pesquisa. Há, entretanto, uma redução adicional de custos sob a forma de perda de direitos trabalhistas, previdenciários e de proteção contra diversos riscos. Ainda que sua valoração seja complexa, os entrevistados médicos em geral demonstraram ter conhecimento sobre essas perdas e manifestaram a avaliação de que o saldo final é desvantajoso para o trabalhador.
Também é importante pontuar que os efeitos da terceirização e da ‘pejotização’ do trabalho não se encerram nas consequências sobre o trabalhador individual que se insere sob essa modalidade. O que deixa de ser recolhido ao Estado como tributo acaba drenando recursos de políticas que viabilizam direitos coletivos associados ao trabalho formal. Em particular, a legalização de portas de saída de esquemas coletivos de direitos, dos quais a Previdência Social é o exemplo mais emblemático, justamente pela parcela daqueles que se encontram nas melhores posições do mercado de trabalho, contribui para ruir sua base de financiamento e sua sustentação na sociedade.
Os achados da pesquisa também reforçam a noção de que há um espaço a ser explorado no âmbito da política que promove e regula a inserção de médicos no SUS, nos termos já colocados por outros estudos voltados a compreender a dinâmica de fixação de médicos no sistema público de saúde. A esse respeito, em meados dos anos 2000, Maciel Filho e Pierantoni (2004MACIEL FILHO, Rômulo; PIERATONI, Célia R. O médico e o mercado de trabalho em saúde no Brasil: revendo conceitos e mudanças. In: BARROS, André F. R.; SANTANA, José P.; SANTOS NETO, Pedro M. Observatório de Recursos Humanos em Saúde no Brasil: estudos e análise. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. p. 139-162.) chamavam a atenção para um ‘desencanto’ do médico com sua prática profissional, particularmente no setor público. Nos dados da Demografia Médica de 2018 (Scheffer et al., 2018SCHEFFER, Mário et al. Demografia médica no Brasil 2018. São Paulo: FMUSP; CFM; Cremesp, 2018.), 47% dos médicos responderam que optariam por trabalhar no setor público em caso de equivalência de remuneração, condições de trabalho e número de horas, enquanto apenas 12% escolheriam o setor privado, sendo os restantes 41% indiferentes. Combinada à insatisfação com a condição ‘pejotizada’ manifestada pela maioria dos médicos entrevistados, essa informação reforça a necessidade e a oportunidade do desenvolvimento de políticas ativas de formação e fixação de médicos no SUS em suas várias modalidades.
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Financiamento
O estudo recebeu apoio da chamada Confap-MRC-Health Systems Research Networks, sendo financiado pelas seguintes instituições: Newton Fund/Medical Research Council (UK), Grant Reference MR/R022747/1, Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (FAPEMA-Brasil), COOPI-00709/18 e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP-Brasil), 2017/50356-7 . -
Apresentação prévia
Este artigo é resultante da pesquisa “Como a atual crise reconfigura o sistema de saúde no Brasil? Um estudo sobre serviços e força de trabalho em saúde nos estados de São Paulo e Maranhão”, realizada por pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, da Queen Mary University of London, da Universidade Federal do Maranhão e da Universidade Federal do ABC no período 2019-2021.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
25 Nov 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
14 Jun 2022 -
Aceito
15 Set 2022