Resumos
O presente artigo busca realizar aproximação entre os temas que guardam relação com a fome, a pobreza, os direitos humanos, a alimentação e a falta de empoderamento dos cidadãos vulnerados. Essas perspectivas assumidas no campo da bioética tentam refletir sobre a fragilidade humana diante da pobreza e da fome. Aborda os legados de Josué de Castro, Paulo Freire, John Rawls e Amartya Sen ao momento em que se discute o direito a alimentação, tendo em vista as dimensões assustadoras da fome no mundo. Busca-se refletir sobre a iniquidade e a insatisfatória distribuição do alimento como fonte de vida e sobrevivência. Ao definir o empoderamento como liberdade e desenvolvimento do indivíduo, do seu coletivo e das suas relações, o estudo sinaliza que a fome é sofrimento que remete à reflexão multidimensional. A erradicação da fome é, portanto, tarefa que se impõe a todos os que buscam o pleno exercício da cidadania.
Bioética; Direitos humanos; Equidade; Fome; Justiça social; Pobreza
The article interrelates topics related to hunger, poverty, human rights, nutrition and lack of empowerment of vulnerable citizens. These perspectives within the field of bioethics seek to provoke reflection on human frailty in the face of poverty and hunger. The text discusses the legacies of Josué de Castro, Paulo Freire, John Rawls and Amartya Sen, at a time when the right to food is being dicussed, in view of the ominous dimensions of world hunger. We reflect on the inequitable and unsatisfactory distribution of food, which is a source of life and survival. In defining empowerment as freedom and development of the individual, his collectivity and his relationships, the study indicates that hunger is suffering, and this calls for multidimensional reflection. The eradication of hunger is therefore a task required of all who seek the observance of full citizenship rigths.
Bioethics; Equity; Human rights; Hunger; Social justice; Poverty
El presente artículo busca realizar una aproximación entre los temas del hambre, la pobreza, los derechos humanos, la alimentación y la falta de empoderamiento de los ciudadanos vulnerables. Estos enfoques adoptados en el ámbito de la bioética intentan reflexionar sobre la fragilidad humana frente a la pobreza y el hambre. Se analiza el legado de Josué de Castro, Paulo Freire, John Rawls y Amartya Sen justo en el momento en que debatimos sobre el derecho a la alimentación, teniendo en cuenta las alarmantes dimensions del hambre en el mundo. El artículo busca reflexionar sobre la iniquidad y la mala distribución equitativa de los alimentos como fuente de vida y supervivencia. Al asumir el empoderamiento como libertad y desarrollo de la persona, de su colectivo y de sus relaciones, el estudio indica que el hambre es un sufrimiento que remite a una reflexión multidimensional. La erradicación del hambre es una tarea que se impone a todos los que buscan el pleno ejercicio de la ciudadanía.
Bioética; Derechos humanos; Equidad; Hambre; Justicia social; Pobreza
A pobreza é um fenômeno complexo e multidimensional que priva grande parte da população mundial do acesso a alimentação, gerando enorme contingente humano que se vê fadado ao insuficiente desenvolvimento físico, psicológico e social. As desigualdades de oportunidades, no que concerne a educação, participação política e cuidados de saúde, são o fator que mantém essas pessoas reféns da condição de miséria extrema.
No Brasil, a erradicação da pobreza extrema é mais efetiva do que o combate à fome, dado
comprovado pela redução do número de pessoas abaixo da linha da pobreza em relação à
diminuição dos indicadores da desnutrição nos últimos trinta anos no país 11 . Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Erradicar a
pobreza e a fome. Objetivos do Milênio. [Internet]. 2000 [acesso 15 ago 2014].
Disponível: http://www.pnud.org.br/ODM1.aspx
http://www.pnud.org.br/ODM1.aspx...
. A desnutrição é fenômeno decorrente da
falta de inserção social, acesso a cuidados de saúde, habitação e renda adequadas, o
que, no entendimento de Valente 22 . Valente FLS. Fome, desnutrição e cidadania: inclusão social e
direitos humanos. Saúde e Sociedade. 2003;12(1):51-60.,
explica a perpetuação do estado de exclusão social imperante em nosso meio.
Outrossim, a manutenção das condições de desigualdade que conduzem à pobreza e geram a fome crônica tem sérias repercussões sobre o desempenho no plano educacional dos habitantes da América Latina. Os baixos índices de acesso à educação regular de amplos estratos da população do continente evidenciam um perverso mecanismo de transmissão intrageracional da pobreza 33 . Naciones Unidas. Objetivos de desarrollo del milenio: una mirada desde América Latina y el Caribe. Santiago de Chile: Naciones Unidas; 2005..
Pauta incluída nos objetivos de desenvolvimento do milênio, a erradicação da extrema
pobreza e da fome é meta prioritária a ser alcançada para banir da sociedade o mais
iníquo dos males da contemporaneidade. Com o objetivo de reduzir o número de pessoas que
padecem de fome, 186 nações firmaram o compromisso de erradicar a fome no planeta até o
ano de 2015. Cabe ressaltar que a extrema pobreza continua sendo a realidade cotidiana
para mais de 1 bilhão de pessoas no mundo. Entretanto, estima-se que pelo menos 53
milhões não conseguirão sair da pobreza no prazo acordado pelas nações 11 . Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Erradicar a
pobreza e a fome. Objetivos do Milênio. [Internet]. 2000 [acesso 15 ago 2014].
Disponível: http://www.pnud.org.br/ODM1.aspx
http://www.pnud.org.br/ODM1.aspx...
.
No Brasil, o contingente incluído na condição de extrema pobreza totaliza 16,27 milhões de pessoas, o que representa 8,5% da população do país. A maior concentração delas (59,1%) encontra-se na região Nordeste, totalizando 9,61 milhões de pessoas. Dos 8,67 milhões extremamente pobres que vivem em áreas urbanas, pouco mais da metade reside no Nordeste (52,6%) e cerca de um em cada quatro, na região Sudeste (24,7%) 44 . Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (Brasil). O perfil da extrema pobreza no Brasil com base nos dados preliminares do universo do Censo 2010. Brasília; 2 maio 2011. (Nota)..
Na análise de Narayan 55 . Narayan D, Chambers R, Shan MK, Petesch P (World Bank). Voices of the poor: Crying out for change. Nova York: Oxford University Press; 2000., os pobres almejam alcançar a condição de agentes de seus próprios destinos. Pesquisas realizadas em vários países com pessoas afetadas pela pobreza evidenciam quão desalentadoras e inalcançáveis são as possibilidades de concretizar esse desiderato. Parece óbvio que a falta de empoderamento desse contingente de excluídos sociais representa o impedimento fundamental ao pleno exercício de sua cidadania, privando-os da condição de pessoas autônomas detentoras de direitos. A impossibilidade de acesso a alimentação saudável, aliada à pobreza absoluta, é a condição que os mantém na zona de exclusão social e que os avilta como pessoas dotadas de dignidade humana 66 . Food and Agriculture Organization of the United Nations. The state of food and agriculture 2006. Food aid for food security? Roma: FAO; 2006..
As reflexões deste artigo buscam uma aproximação entre a fome, a pobreza, os direitos humanos, a alimentação e a falta de empoderamento dos cidadãos vulnerados 77 . Schramm FR. Bioética da proteção: ferramenta válida para enfrentar problemas morais na era da globalização. Rev. bioét. (Impr.). 2008;16(1):17.. Procura também estimular uma introspecção do leitor sobre essa temática tão difícil de ser rompida e solucionada, diante de uma sociedade que presencia, sem reagir, um capitalismo predatório, ao mesmo tempo que permite a crescente acumulação das riquezas mundiais em mãos de poucos e condena à morte social milhões de pessoas ao redor do planeta.
O objetivo deste artigo é propor uma reflexão sobre a fragilidade humana diante da pobreza e da fome. Do mesmo modo, busca identificar por meio da literatura alternativas que possam pavimentar o caminho que leva ao tão desejado nível de empoderamento pessoal, condição essencial para a autêntica expressão da cidadania ativa.
As dimensões da pobreza humana
Compreender todas as desumanas dimensões da situação de pobreza extrema não é tarefa simples, tantas são as variáveis que fazem parte desse padecimento. Entretanto, para aqueles que experimentam essa realidade, tudo pode ser resumido à singela condição de poderem contar com três refeições diárias para livrá-los da “dor da fome” 55 . Narayan D, Chambers R, Shan MK, Petesch P (World Bank). Voices of the poor: Crying out for change. Nova York: Oxford University Press; 2000.,88 . Sen A. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras; 2000.. Crespo e Gurovitz 99 . Crespo APA, Gurovitz E. A pobreza como um fenômeno multidimensional. ERA-eletrônica. 2002;1(2):1-12., ao analisarem os diferentes componentes que integram o conceito de pobreza, formulados no século XX, identificaram as seguintes dimensões, consideradas essenciais: sobrevivência física, necessidades básicas de acesso a alimentação, saúde, habitação e saneamento básico.
Para Salama e Destremau 1010 . Salama P, Destremau B. O tamanho da pobreza: economia política e distribuição da renda. Rio de Janeiro: Garamond; 1999., a pobreza tem muitas facetas e dimensões, e pode, ao mesmo tempo, ser sentida e vivenciada de formas diferentes por diferentes grupos. Tal subjetividade ligada ao sentimento de privação abre novas possibilidades de análise de suas dimensões. Os critérios que dispõem sobre as iniquidades sociais, vinculados a fatores de desigualdade de renda e a causas da pobreza, trazem à baila a temática da pobreza relativa, em contraposição à pobreza absoluta, condição essa que privaria a pessoa de acesso às necessidades mais elementares de sobrevivência física 1111 . Garcia AV. A pobreza humana: concepções, causas e soluções. Florianópolis: Editoria em Debate; 2012..
De acordo com Amartya Sen 1212 . Sen A. Pobreza e fomes: um ensaio sobre direitos e privações. Lisboa: Terramar; 1999., limitar o conceito de pobreza à simples condição de insuficiência de renda pessoal seria um inaceitável reducionismo. A pobreza deve ser entendida como condição de privação muito mais ampla, que incide sobre a existência humana e a dignidade pessoal, pois não há como considerá-la senão como fim em si e jamais como meio, conforme o imperativo kantiano. Deve-se assegurar a todo indivíduo a possibilidade de livre manifestação de suas potencialidades pessoais e, em decorrência disso, o desenvolvimento da capacidade de inserir-se autonomamente no mercado de trabalho, o que lhe permitirá auferir rendimentos pessoais suficientes para incluí-lo na condição de cidadão de direitos.
Partindo de pressuposto puramente biológico, seria possível definir fome e
pobreza absoluta como a condição de não atendimento aos
requisitos nutricionais mínimos contidos na dieta alimentar convencional, que
permita ao indivíduo desenvolver atividades físicas, laborais e intelectuais
próprias de um ser humano comum 99 . Crespo APA, Gurovitz E. A pobreza como um fenômeno
multidimensional. ERA-eletrônica. 2002;1(2):1-12..
Importante ter presente, entretanto, que restringir o conceito de pobreza unicamente
à carência alimentar seria grave equívoco, pois subestimar outras variáveis, como
convivência familiar, acolhimento social harmônico e sentimento de pertença,
equivaleria a reduzir a pessoa à condição de animal não humano 1313 . Santos GC, Arcoverde ACB. Pobreza: conceitos, mensuração e
enfrentamento no Brasil. Anais da 5ª Jornada Internacional de Políticas
Públicas: 2011 ago 23-26; São Luís do Maranhão, Brasil. [Internet]. São Luís:
UFMA; 2011 [acesso 6 jul 2014]. Disponível:
http://www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinpp2011/CdVjornada/JORNADA_EIXO_2011/DESIGUALDADES_SOCIAIS_E_POBREZA/POBREZA_CONCEITOS_MENSURACAO_E_ENFRENTAMENTO_NO_BRASIL.pdf
http://www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinp...
.
Parece óbvio, portanto, que privar o cidadão comum do suficiente rendimento pessoal para poder prover sua família de alimentação adequada é o mesmo que condená-lo, e a todos os que dele dependem, a insegurança alimentar e suas indesejáveis consequências adversas 66 . Food and Agriculture Organization of the United Nations. The state of food and agriculture 2006. Food aid for food security? Roma: FAO; 2006.. Entre as diversas definições formuladas na década de 1980, parece razoável acolher aquela que considera a pobreza como privação relativa de alimentação adequada, conforto físico e inclusão social 99 . Crespo APA, Gurovitz E. A pobreza como um fenômeno multidimensional. ERA-eletrônica. 2002;1(2):1-12..
Sen 1212 . Sen A. Pobreza e fomes: um ensaio sobre direitos e privações. Lisboa: Terramar; 1999. considera que o conceito de privação relativa deve ser alargado para poder incluir outros tipos de carência. Assim, o autor passou a defini-la como privação das capacidades humanas básicas, desconsiderando tudo o que pretende reduzi-la apenas a insuficiência de renda pessoal ou familiar. Entretanto, parece indiscutível reconhecer que a vida humana se torna extremamente vulnerável diante da situação de renda familiar insuficiente, o que significa dizer que a falta de rendimentos mínimos inevitavelmente conduz as pessoas a fome, desamparo social e baixa autoestima. Esse curso de ações somente será modificado, segundo Antunes 1414 . Antunes M. O caminho do empoderamento: articulando as noções de desenvolvimento, pobreza e empoderamento. In: Romano JO, Antunes M, organizadores. Empoderamento e direitos no combate à pobreza. Rio de Janeiro: ActionAid Brasil; 2002., quando os vulneráveis adquirirem poderes efetivos para tomar decisões autônomas sobre sua própria vida, o que se convencionou denominar empoderamento, tradução literal do termo inglês empowerment, o qual, pensamos, seria mais bem compreendido se fosse traduzido por emancipação ou libertação, como propôs Paulo Freire. No dizer de Narayan 55 . Narayan D, Chambers R, Shan MK, Petesch P (World Bank). Voices of the poor: Crying out for change. Nova York: Oxford University Press; 2000., o empoderamento expressaria a condição em que os pobres se tornam agentes de seus próprios destinos e, portanto, cidadãos de direitos.
Justiça como equidade
Segundo Rawls 1515 . Rawls J. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes; 1997. p. 3., justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento. O autor desenvolveu uma teoria da justiça partindo do pressuposto da equidade social; argumenta, em sua obra, que o contrato social somente será justo se todos os membros de uma mesma comunidade forem considerados cidadãos aptos a participar dos processos decisórios com igualdade de direitos, desde que protegidos por um “véu de ignorância”.
Rawls acredita que as pessoas escolheriam dois princípios de justiça a partir deste pressuposto: o primeiro que ofereceria as mesmas liberdades básicas para todos os cidadãos, como as de expressão e religião, e o segundo princípio nortearia para o sentido da equidade social e econômica, concedendo benefícios aos membros menos favorecidos da sociedade 1616 . Rawls J. Op. cit. p. 16..
A justiça como equidade estabeleceria, portanto, o acordo original seria garantido através dos princípios da justiça que determinam a estrutura básica para a sociedade 1717 . Rawls J. Op. cit. p. 160.. A proposta de Rawls aposta em uma sociedade como um amplo sistema de cooperação que buscaria o benefício mútuo por meio da boa vontade de todos. Assim, seria necessário que os termos de cooperação fossem justos e que os princípios de justiça como equidade pudessem determinar as regras em que essa condição fosse realizada 1818 . Rawls J. Justiça como equidade. São Paulo: Martins Fontes; 2003.. Nesse raciocínio, o objeto primordial da justiça seria construir uma sociedade verdadeiramente equânime, o que permitiria obter o justo contorno para a forma em que as diferentes instituições sociais reconhecessem direitos e realizassem a distribuição equitativa de vantagens provenientes de uma cooperação mútua.
Considerando a alimentação saudável um direito fundamental, a Declaração
Universal dos Direitos Humanos estabelece, em seu artigo 25, inciso I,
que toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a
sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação,
cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito a segurança em
caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda
dos meios de subsistência fora de seu controle 1919 . Organização das Nações Unidas. Declaração universal dos direitos
humanos. ONU; 1948. Disponível:
http://www.dhnet.org.br/direitos/deconu/textos/integra.htm [acesso 2 dez
2014].
http://www.dhnet.org.br/direitos/deconu/...
. Em concordância com a teoria de Rawls e a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, o artigo 10º da
Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, da
Unesco, estabelece que a igualdade fundamental de todos os seres humanos em
dignidade e em direitos deve ser respeitada para que eles sejam tratados de
forma justa e equitativa 2020 . Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Comissão
Nacional da Unesco-Portugal, tradutor. [Internet]. Paris: Unesco; 2005 [acesso 2
dez 2014]. Disponível:
http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001461/146180por.pdf
http://unesdoc.unesco.org/images/0014/00...
.
Quando se analisam os dados que dimensionam a falta de acesso a alimentação de forma segura e adequada, pode-se perceber a injustiça na realização desse direito fundamental e a imoral persistência da fome em tempos de produção agropecuária suficiente para levar alimentos à mesa de todos os brasileiros. O Brasil, apesar de ser um grande produtor mundial de alimentos, até hoje não conseguiu estabelecer uma política pública que permita atender plenamente a este direito.
Outro problema, que ultrapassa o escopo deste ensaio e que deve merecer atenção de
nossas autoridades públicas, é o desperdício de alimentos. De acordo com dados do
Banco Mundial 2121 . World Bank. Food Price Watch, february 2014: Prices decline at a
slower pace; focus on food loss and waste. [Internet]. fev 2014 [acesso 20 jul
2014]. Disponível:
http://www.worldbank.org/en/topic/poverty/publication/food-price-watch-february-2014
http://www.worldbank.org/en/topic/povert...
, entre um terço e
um quarto dos alimentos produzidos anualmente para consumo humano em todo o mundo é
desperdiçado, o que equivale a dizer que todo ano são desprezados cerca de 1,3
bilhão de toneladas de alimentos, incluindo 30% de cereais, 40% a 50% de raízes,
frutas, legumes e oleaginosas, 20% de carne e produtos lácteos e 35% de peixes.
Além de seu enorme impacto sobre a insegurança alimentar, a perda de alimentos
compromete o desempenho da economia global, ao considerar o desperdício de energia
humana e de recursos naturais envolvidos em sua produção – circunstâncias essas que
contribuem para a manutenção da pobreza absoluta. Segundo a Organização das Nações
Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) 2222 . Organización de las Naciones Unidas para la Alimentación y la
Agricultura. Pérdidas y desperdicios de alimentos en América Latina y el Caribe.
[Internet]. 2014 [acesso 5 jul 2014]. Disponível:
http://www.fao.org/3/a-i3942s.pdf
http://www.fao.org/3/a-i3942s.pdf...
, essas perdas acontecem ao longo de toda a cadeia de
produção alimentar, sendo que 28% delas ocorrem por desperdício do próprio
consumidor; outros 28%, no sistema de produção; 17%, na comercialização e
distribuição; 22%, durante o manuseio e armazenamento; e 5% decorrentes do
processamento insatisfatório dos alimentos.
Há também que se levar em conta que os alimentos considerados impróprios para a comercialização contêm importantes valores nutricionais e podem ser utilizados para o consumo humano. Por outro lado, a teoria de Rawls impõe-nos a incômoda reflexão ao questionar até que ponto se deve responsabilizar exclusivamente o poder público pela má gestão da riqueza pública e qual a real dimensão da falta de empenho do cidadão comum em contribuir para a solução de problemas que afetam toda a comunidade da qual ele próprio faz parte, como é o caso da privação de alimentos para um enorme contingente de pessoas que vive nas cercanias daqueles que descartam alimentos no lixo. Em suma, qual a parcela de responsabilidade que cabe a cada um de nós pela manutenção dessa vergonhosa realidade de convivermos com pessoas que padecem de fome crônica e as quais insistimos em não enxergar, embora estejam ao nosso redor, espalhadas pelas ruas de nosso bairro?
A dor da fome
Sem dúvida, o direito a alimentação é, dentre todos os direitos contidos no
Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
(Pidesc), da ONU 2323 . Organização das Nações Unidas. Pacto Internacional sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais. [Internet]. 1966 [acesso 2 dez 2014].
Disponível:
http://www.unfpa.org.br/Arquivos/pacto_internacional.pdf
http://www.unfpa.org.br/Arquivos/pacto_i...
, o
mais descumprido em todo o mundo. A FAO estima que, dos 6,7 bilhões de habitantes do
planeta, quase 1 bilhão sofre de fome crônica 2424 . Ziegler J. Destruição em massa: geopolítica da fome. São Paulo:
Cortez; 2013.. O prejuízo representado pela fome não é apenas
físico, mas também pode redundar em danos neurológicos irreversíveis, que são
acompanhados de distúrbios nas áreas cognitivas e emocionais. Debilitado física e
mentalmente, o ser humano sub-alimentado se torna vulnerável e tem prejudicadas suas
funções orgânicas e aptidões para executar um trabalho regular 2424 . Ziegler J. Destruição em massa: geopolítica da fome. São Paulo:
Cortez; 2013.. Nessa complexidade funcional e fisiológica,
imagina-se que a “dor de fome” seja incompreensível aos que dela não padecem, sendo
presenciada, mas não sentida.
De acordo com Valente, ver os filhos passar fome é [igualmente] passar fome. Comer lixo é passar fome. Comer o resto do prato dos outros é passar fome. Comer [apenas] uma vez por dia é passar fome. Ter que humilhar-se para receber uma cesta básica é passar fome. Trocar dignidade por comida é passar fome. Ter medo de passar fome é estar prisioneiro da fome 2525 . Valente FLS. Op. cit. p. 57.. A respeitada pesquisadora brasileira Eliane Azevêdo 2626 . Azêvedo EES. O direito de vir a ser após o nascimento. Porto Alegre: EdiPUCRS; 2002. demonstrou que fome associada a pobreza absoluta, estando presente desde os primeiros dias de vida de uma criança, praticamente condena esse ser humano à condição de subnutrido crônico, deficiente físico e mental, pessoa definitivamente privada do exercício futuro da cidadania.
Os dados apresentados por Azevêdo 2626 . Azêvedo EES. O direito de vir a ser após o nascimento. Porto Alegre: EdiPUCRS; 2002. estão de acordo com outras publicações que comprovam que a subalimentação presente nos primeiros cinco anos de vida é responsável por prejuízos irreversíveis ao desenvolvimento do sistema nervoso central 2424 . Ziegler J. Destruição em massa: geopolítica da fome. São Paulo: Cortez; 2013.. Mais grave, entretanto, é saber que muitas dessas crianças já sofrem as consequências dessa calamidade ainda no ventre de suas mães, elas próprias vítimas de subalimentação crônica.
Para compreender melhor os danos decorrentes da má distribuição de alimentos no mundo, é preciso distinguir a fome estrutural da fome conjuntural. A primeira é permanente, aquela que destrói o corpo, a mente e a dignidade da pessoa, a principal responsável por impor um sofrimento que somente será extinto com a morte física daquele ser humano. A segunda manifesta-se episodicamente, na dependência de situações decorrentes de catástrofes naturais, como terremotos e enchentes, ou em circunstâncias de guerra que afetam o desenvolvimento econômico dos países envolvidos 2424 . Ziegler J. Destruição em massa: geopolítica da fome. São Paulo: Cortez; 2013..
Ziegler 2424 . Ziegler J. Destruição em massa: geopolítica da fome. São Paulo: Cortez; 2013. considera que existem três grupos populacionais mais vulneráveis à fome conjuntural: os pobres das zonas rurais, os pobres urbanos e os pobres vítimas de catástrofes ambientais, como o terremoto que atingiu o Haiti em 2010. Cerca de 900 milhões de pessoas que vivem no campo encontram-se em situação de pobreza absoluta, e o índice de pobres urbanos atinge a cifra de 300 milhões. As populações pobres das zonas urbanas – que vivem com insuficiente orçamento familiar, residem ordinariamente na periferia das grandes cidades, aglomerados em enormes favelas e privados dos mais elementares serviços de saneamento urbano – constituem, em sua maioria, os excluídos sociais, aqueles desprovidos das mínimas condições que lhes permitiriam desfrutar de vida humana digna.
Dados da Organização Pan-Americana da Saúde 2727 . Organización Panamericana de la Salud. Una mirada integral a las
políticas públicas de agricultura familiar, seguridad alimentaria, nutrición y
salud pública en las Américas: acercando agendas de trabajo en las Naciones
Unidas. [Internet]. 2014 maio [acesso 6 jul 2014]. Disponível:
http://www.fao.org/fileadmin/user_upload/rlc/eventos/231982/doc_20140509_es.pdf
http://www.fao.org/fileadmin/user_upload...
, na América Latina e no Caribe mostram enorme
contingente de 47 milhões de pessoas subalimentadas, do qual a parcela de 7,1
milhões é representada por crianças com idade inferior a 5 anos, que padecem de
desnutrição crônica. Segundo dados da Fundo das Nações Unidas para a Infância
(Unicef) 2828 . Fundo das Nações Unidas para a Infância. Situação mundial da
infância 2006: excluídas e invisíveis. Nova York: Unicef; 2006 [acesso 14 ago
2014]. Disponível:
https://www.unicef.pt/18/relatorio_sowc06.pdf
https://www.unicef.pt/18/relatorio_sowc0...
, um terço da população
mundial é incapaz de desenvolver seu potencial físico e intelectual, em decorrência
de carência alimentar, vítimas potenciais de inúmeras enfermidades ligadas a baixa
imunidade. Seres humanos que não dispõem de alimentação para atender a suas
necessidades orgânicas básicas invariavelmente sentem que estão perdendo a dignidade
pessoal e apresentam baixa autoestima. Desse modo, a pobreza absoluta afeta o
indivíduo, a família e toda a comunidade, tendo em vista seu grande potencial para
produzir efeitos indesejáveis nas diferentes dimensões da vida humana. Buss 2929 . Buss PM. Globalização, pobreza e saúde. Cienc Saúde Coletiva.
2007;12(6):1.575-89. considera que [os que]
têm os piores [níveis de] renda são exatamente aqueles que,
além de mais necessitados, têm também o pior acesso às políticas públicas de
habitação, água potável, saneamento, alimentos, educação, transporte, lazer,
emprego fixo e serviços de saúde, o que [caracteriza] as
chamadas iniquidades sociais e de saúde 3030 . Buss PM. Op. cit. p. 1.578.. O sofrimento e as incapacidades
geradas pela fome crônica tornam a vida um martírio, condições que afrontam os
princípios mais elementares da dignidade humana.
O legado de Josué de Castro
Em 1935, Josué de Castro já manifestava preocupação com o binômio dignidade humana e
acesso a alimentação, ao reconhecer que a doença que afetava os pacientes que
trabalhavam era decorrente de fome associada a pobreza. Ao realizar a primeira
pesquisa alimentar do Brasil, trouxe à luz contribuições essenciais para a
necessidade de promoção de políticas públicas que garantissem salário mínimo
adequado e permitissem o acesso dos trabalhadores a alimentação saudável, o que os
pouparia do sofrimento imposto pela insegurança alimentar. À época, propôs uma cesta
básica de alimentos que, embora comprometesse metade do salário percebido pelos
trabalhadores comuns, seria suficiente para atender a 100% das exigências
alimentares em calorias, proteínas, sais minerais e vitaminas essenciais 3131 . Batista Filho M. Da fome à segurança alimentar: retrospecto e
visão prospectiva. Cad Saúde Pública. [Internet]. 2003;19(4):872-3. [acesso 1
mar 2015]. Disponível:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2003000400001&lng=pt
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
.
Castro, um dos mais respeitados estudiosos do tema da fome, intelectual dotado de visão profética e militante ativo da causa dos direitos humanos, deixou-nos um grande legado sobre a matéria ao demonstrar que a fome decorrente da adoção de políticas públicas equivocadas poderia ser superada por meio da promoção de projetos sociais exequíveis, voltados para o atendimento aos mais necessitados. Em uma curiosa avaliação pessoal, deduziu que o fato que poderia explicar as enormes proles dos extremamente pobres seria a infundada esperança por eles nutrida de que o grande número de filhos lhes garantiria segurança e proteção na velhice.
A partir do conceito de insegurança alimentar, cunhou a metáfora de que viveríamos em uma sociedade de pessoas insones, aquelas que não dormiriam por padecerem das dores decorrentes da fome crônica e, por outro lado, aquelas que sofreriam de insônia por estarem dominadas pelo constante receio de serem passíveis de atos agressivos promovidos pelos cronicamente famintos. Parece óbvio que erigir uma sociedade harmônica e pacífica nessas circunstâncias torna-se tarefa irrealizável, sobretudo se considerarmos as equivocadas atitudes repressivas adotadas por diversas autoridades públicas ao impedir que os pobres que padecem da “dor da fome” possam expor publicamente suas justificadas angústias 2424 . Ziegler J. Destruição em massa: geopolítica da fome. São Paulo: Cortez; 2013..
No entendimento de Castro 66 . Food and Agriculture Organization of the United Nations. The state of food and agriculture 2006. Food aid for food security? Roma: FAO; 2006., a solução para o problema da fome e da pobreza absoluta somente seria alcançada por meio de políticas públicas de inclusão social e de acesso a alimentação segura para todos os habitantes da polis moderna, o que obrigaria a realização de reforma agrária e justa distribuição de rendas 3232 . Santos KH. Josué de Castro: fome e repercussões sociais. Serviço Social & Saúde. 2011;10(11):59-89.. Importante salientar que a insegurança alimentar e a fome crônica dela decorrente geram um círculo vicioso que somente poderá ser interrompido se a oferta para consumo de alimentos for suficiente e acessível a todos os trabalhadores e seus dependentes.
Direito humano a alimentação adequada
Os direitos humanos foram estabelecidos em declarações e tratados internacionais com
a participação de representantes de todas as nações do mundo, que as firmaram em
nome de toda a humanidade. Esses tratados definem, entre outros deveres, a obrigação
dos Estados nacionais de respeitar, proteger, promover e prover os direitos humanos
para todos. A alimentação segura figura entre esses direitos como necessidade vital
para todos os cidadãos. O direito humano a alimentação adequada (DHAA) somente se
concretizará quando todas as pessoas, independentemente de classe social,
nacionalidade ou etnia, tiverem acesso permanente a alimentação saudável e aos meios
adequados para sua aquisição. Segundo o relatório anual da Comissão Especial de
Monitoramento da Violação do DHAA 3333 . Comissão Especial de Monitoramento de Violação do Direito Humano à
Alimentação Adequada (Secretaria dos Direitos Humanos). Relatório anual.
[Internet]. Brasília; nov 2011 [acesso 15 jul 2014]. Disponível:
http://www.sdh.gov.br/sobre/participacao-social/cddph/relatorios/relatorio-c.e-alimentacao-adequada
http://www.sdh.gov.br/sobre/participacao...
, o termo alimentação adequada, além de
especificar a relação dos itens indispensáveis para considerar a alimentação como
saudável, identifica também os elementos culturais próprios de cada comunidade
humana, como acessibilidade física e financeira, valor nutricional dos alimentos,
variedade de produtos disponíveis, sustentabilidade social e ambiental e respeito às
questões religiosas e étnicas.
Apesar de todo o empenho dos países que se dedicam à busca de soluções para
possibilitar a segurança alimentar para todos, segundo relatório da ONU 2222 . Organización de las Naciones Unidas para la Alimentación y la
Agricultura. Pérdidas y desperdicios de alimentos en América Latina y el Caribe.
[Internet]. 2014 [acesso 5 jul 2014]. Disponível:
http://www.fao.org/3/a-i3942s.pdf
http://www.fao.org/3/a-i3942s.pdf...
, a fome ainda afeta
aproximadamente 842 milhões de pessoas em todo o planeta. Nessa condição, a
permanência da fome e da pobreza absoluta, ao não garantir o DHAA, gera iniquidade,
desigualdade e compromete a paz social. Diante do exposto, fica claro que, para a
plena realização do DHAA, é necessário que os Estados nacionais invistam mais em
medidas de políticas públicas de inclusão social com vistas ao enfrentamento do
problema da fome. A efetiva realização do DHAA pressupõe, ainda, incentivos à
agricultura familiar, adoção de políticas de saneamento básico, alimentação escolar,
assistência pré-natal, programa de aleitamento materno e a promoção de medidas
legais que coíbam quaisquer tipos de discriminação social 3434 . Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos. O direito humano
à alimentação adequada e o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional. [Internet]. Brasília: MDS; 2013 [acesso 18 jul 2014]. Disponível:
http://www.mds.gov.br/segurancaalimentar/publicacoes%20sisan/o-direito-humano-a-alimentacao-adequada-e-o-sistema-nacional-de-seguranca-alimentar-e-nutricional
http://www.mds.gov.br/segurancaalimentar...
.
É consensual reconhecer que o desenvolvimento civilizatório e a evolução da espécie
humana somente se tornaram possíveis com a garantia de segurança alimentar para a
maioria das pessoas 3535 . Panigassi G, Segall-Corrêa AM, Marin-León L, Pérez-Escamilla R,
Sampaio MFA, Maranha LK. Insegurança alimentar como indicador de iniquidade:
análise de inquérito populacional. Cad Saúde Pública. [Internet].
2008;24:(10):2.376-84. [acesso 1º mar 2015]. Disponível:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2008001000018
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, de modo
que qualquer meta inferior a 100% de segurança alimentar é simplesmente inaceitável
3636 . Alencar AG. Do conceito estratégico de segurança alimentar ao
plano de ação da FAO para combater a fome. Rev Bras Polít Int. [Internet].
2001;44(1):137-44. [acesso 1º mar 2015]. Disponível:
http://dx.doi.org/10.1590/S0034-73292001000100009
http://dx.doi.org/10.1590/S0034-73292001...
. Segundo Batista 3131 . Batista Filho M. Da fome à segurança alimentar: retrospecto e
visão prospectiva. Cad Saúde Pública. [Internet]. 2003;19(4):872-3. [acesso 1
mar 2015]. Disponível:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2003000400001&lng=pt
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, há necessidade de um modelo de
desenvolvimento econômico, social, político e cultural que permita ao Brasil
oferecer a sua população, de forma contínua, segurança alimentar e nutricional, meta
necessária para tornar possível a redução da enorme exclusão social imperante no
país.
Na avaliação de Sen 3737 . Sen A. Food and freedom. World Dev.
1989;17(6):769-81., a segurança
alimentar e a promoção da liberdade pessoal constituem condições essenciais para
garantir que qualquer comunidade humana possa assumir a condição de verdadeiro
Estado democrático de direito. A soberania de um país na produção de alimentos, por
si só, não é condição suficiente para evitar que sua população sofra de fome nem
garantir o cumprimento do DHAA. Usando como exemplo o Brasil, observam-se sérias
irregularidades na cadeia de produção alimentar, desde o armazenamento até a
comercialização e o consumo, fatores que, desatendidos, comprometem a realização do
DHAA 3131 . Batista Filho M. Da fome à segurança alimentar: retrospecto e
visão prospectiva. Cad Saúde Pública. [Internet]. 2003;19(4):872-3. [acesso 1
mar 2015]. Disponível:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2003000400001&lng=pt
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
.
O empoderamento como elemento de combate à pobreza
Segundo Gohn 3838 . Gohn MG. Empoderamento e participação da comunidade em políticas
sociais. Saúde Soc. [Internet]. 2004;13(2):20-31. [acesso 1º mar 2015].
Disponível:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-12902004000200003&script=sci_arttext
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010...
, o empoderamento
das pessoas indiscutivelmente tem impacto positivo na expressão da cidadania, bem
como na autoestima da população. Preleciona o autor que o modelo pedagógico proposto
por Paulo Freire, ao privilegiar as potencialidades próprias de cada pessoa,
constitui o incentivo essencial para melhorar suas condições de vida. O educador
pernambucano preferia a palavra emancipação a
empoderamento para expressar o processo ativo de inclusão
social dos afetados pela fome e pela extrema pobreza 3939 . Romano JO. Empoderamento: recuperando a questão do poder no
combate à pobreza. In: Romano JO, Antunes M, organizadores. Empoderamento e
direitos no combate à pobreza. Rio de Janeiro: ActionAid Brasil;
2002..
É importante levar em conta que nenhum governante ou agente social externo promoverá o empoderamento das pessoas, mas elas próprias, na busca contínua para impor-se como cidadãos de direitos 1212 . Sen A. Pobreza e fomes: um ensaio sobre direitos e privações. Lisboa: Terramar; 1999.. No combate à pobreza, empoderar os excluídos implica permitir o aflorar de suas capacidades pessoais, assim como de suas organizações comunitárias, com a finalidade de facultar-lhes alcançar a condição de legítimos interlocutores, aptos a participar da comunidade real de comunicação. Dessa forma, empoderamento, ou emancipação, significa a criação de condições de superação dos entraves que limitam a livre expressão das pessoas na busca de realizar suas próprias escolhas; melhor dizendo, seria o meio de erigir novos padrões no equilíbrio das relações de poder entre os membros de uma sociedade democrática.
Segundo Romano 3939 . Romano JO. Empoderamento: recuperando a questão do poder no combate à pobreza. In: Romano JO, Antunes M, organizadores. Empoderamento e direitos no combate à pobreza. Rio de Janeiro: ActionAid Brasil; 2002., empoderamento é um meio de construção de um futuro possível, palpável, capaz de recuperar as esperanças da população e de mobilizar suas energias para a luta por direitos no plano local, nacional e internacional. Mas o empoderamento também é um fim, porque o poder está na essência da definição e da superação da pobreza. O empoderamento necessita constantemente ser renovado para garantir que a correlação de forças não volte a reproduzir as relações de dominação que caracterizam a pobreza 4040 . Romano JO. Op. cit. p. 19..
Para Freire e Shor 4141 . Freire P, Shor I. Medo e ousadia. O cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1986., a emancipação não deve ser considerada expressão individual ou de pequenas comunidades, mas sim uma conquista para o exercício da cidadania ativa de toda sociedade. Esse patamar de cidadania somente poderá prosperar em ambiente que cultive a democracia participativa e o respeito aos direitos humanos, em que todos os indivíduos em suas ações cotidianas – sejam de ordem econômica, política ou cultural – possam expressar-se como pessoas emancipadas segundo seus próprios recursos argumentativos e como sujeitos de direitos que interagem em uma comunidade real de comunicação 4242 . Baquero RVA. Empoderamento: instrumento de emancipação social? Uma discussão conceitual. Revista Debates. 2012;6(1):173-87.: o empoderamento como processo e resultado pode ser concebido como emergindo de um processo de ação social, no qual os indivíduos tomam posse de suas próprias vidas pela interação com outros indivíduos, gerando pensamento crítico em relação à realidade, favorecendo a construção da capacidade pessoal e social e possibilitando a transformação de relações sociais de poder 4343 . Baquero RVA. Op. cit. p. 181.. Nesse sentido, um instrumento que comprovou ser eficaz para promover a emancipação das pessoas é o proporcionado pela educação libertadora, modelo pedagógico proposto por Paulo Freire 4444 . Freire P. Educação e mudança. São Paulo: Paz e Terra; 1979..
Em suma, o elemento fundamental na luta contra a pobreza absoluta será o investimento em metodologias ativas de aprendizagem aliado a educação participativa, capaz de dotar os indivíduos de condições para libertar-se das amarras das dependências externas, tornando-os pessoas autônomas, aptas a participar como sujeitos morais de direitos em suas comunidades de origem 4545 . Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra; 1996. (Coleção Leitura)..
Considerações finais
Ao defender o empoderamento como elemento essencial para a promoção da liberdade e do desenvolvimento da cidadania, reconhecemos que o presente ensaio é apenas uma modesta reflexão sobre tema de tamanha relevância social e que deve merecer atenção de outros pesquisadores no sentido de promover novos aportes a fim de aprimorar o conhecimento sobre fome, pobreza absoluta, insegurança alimentar, bem como suas graves repercussões na qualidade de vida dos seres humanos.
Sabemos que a atual produção mundial de alimentos já é suficiente para atender às necessidades de todos os habitantes do planeta; portanto, a erradicação da fome não só é possível como deve ser acolhida como compromisso indeclinável de todos os governos nacionais.
A humanidade clama pela educação libertadora de Paulo Freire e pela superação das persistentes iniquidades sociais 4646 . Freire P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2005.. Amartya Sen, em sua obra “A ideia de justiça”, dedicada a John Rawls, faz constar no prefácio uma reflexão que merece ser destacada: O que nos move, com muita sensatez, não é a compreensão de que o mundo é privado de uma justiça completa – coisa que poucos de nós esperamos – mas a de que [à] nossa volta existem injustiças claramente remediáveis que queremos eliminar 4747 . Sen A. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras; 2011. p. 9.. A derradeira pergunta que consideramos necessário agregar ao lúcido pensamento de Sen refere-se ao comportamento de todos como pessoas responsáveis pela paz social e participantes de uma sociedade que persegue o ideal de solidariedade humana: será que estamos, efetivamente, nos empenhando para eliminar de nosso entorno as graves injustiças sociais que acometem quase 17 milhões de brasileiros que figuram na condição de pobreza absoluta e sofrem diariamente de insegurança alimentar?
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40Romano JO. Op. cit. p. 19.
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43Baquero RVA. Op. cit. p. 181.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Jan-Apr 2015
Histórico
-
Recebido
8 Out 2014 -
Revisado
5 Fev 2015 -
Aceito
13 Fev 2015