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Constituições soviéticas: da dissolução do Estado ao Estado-Partido

Soviet Constitutions: From the dissolution of the State to the State-Party

Resumo

O Estado soviético conviveu com quatro sistemas constitucionais distintos ao longo de sua história, inaugurados em 1918, 1924, 1936 e 1977. O presente artigo opera uma análise comparada das quatro constituições, identificando suas aproximações e seus distanciamentos. A hipótese apresentada é a de que houve uma transição gradual cujo marco inicial era a ideia de dissolução do Estado, presente em 1918, e que culmina com a fusão Estado-Partido em 1977.

Palavras-chave:
Teoria do Estado; Constitucionalismo; URSS

Abstract

The soviet State had four distinct constitutional systems throughout its history, formulated in 1918, 1924, 1936 and 1977. This article presents a comparative analysis of the four constitutions, identifying their similarities and differences. The hypothesis presented is that there was a gradual transition from the initial idea of the dissolution of the State, present in the constitution of 1918, to the State-Party fusion present in the constitution of 1977.

Keywords:
Theory of the State; Constitutionalism; USSR

Introdução

São tempos de efemérides socialistas. Se o ano de 2017 celebrou o centenário da Revolução Russa, em 2018 serão lembrados os cem anos da primeira constituição soviética, aquela instituída em 1918. Nos 74 anos localizados entre a ascensão dos bolcheviques, em 1917, e o fim do regime, em 1991, a república soviética conviveu com quatro sistemas constitucionais distintos: 1918, 1924, 1936 e 19771 1 De fato, a Constituição de 1918 não foi da URSS, mas sim da República Socialista Federativa Soviética da Rússia. A URSS surgiu apenas em 1922. . Cada um deles informado teórico e politicamente por seu contexto histórico. Nesse período, a URSS se tornaria o eixo do chamado “socialismo real”, sistema que chegou a ameaçar a hegemonia do capitalismo no século XX, mas que sucumbiu às suas próprias contradições no final do século.

A partir do referencial teórico de Marx, Engels, Lenin e Evguiéni Pachukanis, o presente artigo opera uma análise comparada das quatro constituições, identificando suas aproximações e seus distanciamentos. A hipótese apresentada é a de que, da primeira à última, há uma linha de transição gradual, cujo marco inicial é a ideia de dissolução do Estado, presente em 1918, que passa por uma ampla concentração de poderes nas mãos do Estado em 1924 e 1936 e que culmina com a fusão Estado-partido em 1977. O resultado desse processo foi o engessamento da dinâmica inovadora da sociedade civil soviética.

O artigo está subdividido em cinco seções. Na primeira, discutimos a teoria do Estado que informa e orienta o constitucionalismo soviético. São trazidas à luz as abordagens de Marx, Engels, Lenin e Pachukanis. Em síntese, a ideia de que o direito é uma forma própria do modo de produção capitalista a ser superada pela transição socialista. Como veremos, Marx, Engels, Lenin e Pachukanis acreditavam que a superação do modo de produção capitalista passava pela dissolução do Estado. A tarefa dos comunistas não seria, portanto, a criação de um “socialismo jurídico”, ou, em outras palavras, de um “direito soviético”, mas sim as bases para o definhamento do Estado. As quatro seções seguintes apresentam, respectivamente, as principais características das constituições soviéticas de 1918, 1924, 1936 e 1977.

A teoria do Estado que informa o constitucionalismo soviético

Aspectos importantes das contradições que levaram à derrocada deste experimento marcante remontam à concepção marxista - ou marxista-leninista - sobre o Estado, e, relacionado a tal concepção, sobre o papel atribuído ao Direito na sociedade socialista. A ideia de superação da forma estatal permeou a sociedade soviética desde os seus primórdios, por mais que, no seu desenvolvimento, a sociedade soviética caminhasse no sentido contrário a este ideal, em um processo de fortalecimento e autonomização do Estado.

Cumpre explicitar, de modo muito sucinto, que para Marx e Engels o Estado burguês é essencialmente um instrumento de dominação de classe. Ele existe como um fundamento necessário para a manutenção da ordem de um sistema inexoravelmente contraditório, no qual o capital e o trabalho coexistem em constante e crescente conflito. Já na A Ideologia Alemã, os jovens Marx e Engels (2007_________; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.: 75) afirmam que o “Estado não é nada mais do que a forma de organização que os burgueses se dão necessariamente, tanto no exterior como no interior, para a garantia recíproca de sua propriedade e de seus interesses”. Argumento semelhante também está reproduzido no Manifesto Comunista quando sustentam que “o Poder Executivo do Estado moderno não passa de um comitê para gerenciar os assuntos comuns de toda a burguesia” (MARX E ENGELS, 1998_________; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 1998.: 13).

Essa realidade, no entanto, é instável. Na sua leitura, a dinâmica da relação capital-trabalho implica na intensificação das contradições do capitalismo conforme este se desenvolve. A tendência ao monopólio e a crescente concentração do capital e da riqueza levariam a crises que, em última instância, só poderiam ser superadas através de uma revolução que modificasse radicalmente o sistema, eliminando os antagonismos de classe. Neste novo formato, o Estado não seria mais necessário, a não ser, somente, como uma instância administrativa.

Diferentemente dos anarquistas e dos socialistas utópicos, Marx não preconizava a destruição do Estado de imediato, e não considerava que este objetivo poderia ser alcançado com uma simples mudança de consciência, posição que considerava idealista. Marx defendia a conquista revolucionária do Estado pelos trabalhadores. Para ele, entre uma sociedade capitalista organizada em diversos Estados e uma sociedade comunista sem nenhum, seria preciso atravessar uma fase intermediária em que o aparelho de Estado fosse controlado pela classe operária:

Pergunta-se, então, por que transformações passará o ordenamento estatal numa sociedade comunista? Em outras palavras, quais funções sociais, análogas às atuais funções estatais, nela permanecerão? Essa pergunta só pode ser respondida de modo científico, e não é associando de mil maneiras diferentes a palavra povo à palavra Estado, que se avançará um pulo de pulga na solução do problema. Entre a sociedade capitalista e a comunista, situa-se o período da transformação revolucionária de uma na outra. A ele corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado (MARX, 2012MARX, Karl. Crítica do Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012.: 43).

A passagem supracitada de Marx foi retirada da sua Crítica do Programa de Gotha, escrita em 1875. Trata-se certamente do texto de Marx em que melhor a questão do direito é tratada. No entanto, foi com a publicação em 1887 de O Socialismo jurídico que Engels, acompanhado por Kautsky, expôs de forma mais sistemática a problemática do direito no socialismo. Com o intuito de combater as nascentes teorias reformistas do socialismo, que conduziam os partidos socialistas a uma política de simples reordenamento jurídico, os autores identificam a forma do direito com a forma da mercadoria. Dessa conclusão deriva a assertiva de que “a classe trabalhadora não pode exprimir plenamente a própria condição de vida na ilusão jurídica da burguesia” (ENGELS e KAUTSKY, 2012ENGELS, Friedrich; KAUTSKY, Karl. O socialismo jurídico. São Paulo: Boitempo, 2012.: 21).

Os acontecimentos do começo do século XX pareciam corroborar grande parte das teorias de Marx e Engels. Os movimentos organizados dos trabalhadores se fortaleciam, e os partidos sociais democratas também, angariando cada vez mais força política. Ainda, as tensões internacionais e a disputa das nações imperialistas por mercado levariam à eclosão da 1ª Guerra Mundial em um mundo que, economicamente, atingira prosperidade material inédita através do modelo liberal vigente desde o começo do século XIX. Nesse contexto, muitos partidos de esquerda, que haviam deixado de lado o discurso revolucionário devido ao seu fortalecimento nas urnas, passaram a assumir a defesa de seus países na guerra, o que levou muitos a abandonarem seus partidos de origem e a formarem partidos próprios que assumiriam a denominação de Partidos Comunistas.

Essa realidade atingiu de forma particularmente intensa a Rússia, que possuía movimentos revolucionários anarquistas e socialistas fortes desde o século XIX. Insatisfações com a guerra, com a monarquia e com a escassez de alimentos e produtos levaram a uma revolução que derrubou o czar Nicolau II em fevereiro de 1917. Após a revolução, configurou-se uma situação insustentável de duplo poder, em que o poder ficou dividido entre o Governo provisório - governado por várias coalizões - e o Soviet - Conselho de deputados dos trabalhadores e soldados - de Petrogrado.

O domínio Bolchevique - facção mais radical do Partido Operário Social Democrata Russo - do Soviet de Petrogrado, a fraqueza do governo provisório e a permanência da Rússia na guerra acabaram por desembocar na Revolução de Outubro, na qual os bolcheviques tomaram o poder e instaurou-se, pela primeira vez, um regime de ditadura do proletariado através do monopólio político do Partido Comunista.

O movimento revolucionário foi capitaneado por Vladimir Ilich Lênin, líder dos Bolcheviques. Radicalmente marxista, Lênin encarava o Estado como um instrumento de dominação de classe. Na sua obra O Estado e a Revolução, publicado às vésperas da Revolução de Outubro, Lênin sugere que “o Estado é o produto e manifestação do caráter inconciliável das contradições de classe. O Estado surge precisamente onde, quando e na medida em que contradições de classe objetivamente não podem ser conciliadas” (LENIN, 1978b_____________. “O Estado e a Revolução”. In: V.I. Lênin. Obras Escolhidas. Volume 2. Lisboa: Editora Avante, 1978b.: 226). Polemizando com os socialdemocratas e com os que marxistas que considerava renegados - particularmente Karl Kautsky -, ele segue:

É precisamente neste ponto essencial e importantíssimo que começa a deturpação do marxismo, que segue duas linhas gerais. Por um lado, os ideólogos burgueses, e especialmente pequeno-burgueses (...) “corrigem” Marx de tal maneira que o Estado aparece como um órgão de conciliação de classes. Segundo Marx o Estado não poderia nem surgir nem manter-se se a conciliação de classes fosse possível. (...) Por outro lado, a deturpação kautskiana do marxismo é muito mais sutil. Teoricamente não se nega nem que o estado seja um órgão de dominação nem que as contradições de classe sejam inconciliáveis. Mas perde-se de vista ou esbate-se o seguinte: se o Estado é o produto do caráter inconciliável das contradições de classe, se ele é um poder que está acima da sociedade e que cada vez mais se aliena da sociedade, então é evidente que a emancipação da classe oprimida é impossível não só sem a revolução violenta mas também sem a a destruição do aparelho de poder de Estado que foi criado pela classe dominante e no qual está encarnado esta alienação (LENIN, 1978b: 226-227).

Em conformidade com a teoria marxista, e diferentemente da tradição anarquista, Lenin considerava que para o desaparecimento do Estado a ditadura do proletariado seria uma condição transitória necessária:

O proletariado precisa do Estado só por um certo tempo. Sobre a questão da supressão do Estado, como objetivo, não nos separamos absolutamente dos anarquistas. Nós sustentamos que, para atingir esse objetivo, é indispensável utilizar provisoriamente, contra os exploradores, os instrumentos, os meios e os processos de poder político, da mesma forma que, para suprimir as classes, é indispensável a ditadura provisória da classe oprimida (LENIN, 1978b: 263).

Apesar de Lenin não ter discorrido muito a respeito do Direito, é evidente que, não só pelas suas afirmações quanto pelas implicações lógicas de suas ideias, o objetivo final de superação do Estado através da ditadura proletário significa, em alguma medida, a superação, também, do Direito. Não só porque não faz sentido pensar em Direito sem um aparato estatal repressor que o sustente, mas também porque o Estado sob a ditadura do proletariado não é limitado pelas normas da mesma maneira que um Estado burguês o é. Nas palavras do revolucionário russo:

Em resumo, vemos que Kautsky, que se propunha falar de ditadura, disse muitas coisas notoriamente falsas mas não deu nenhuma definição! Em vez de confiar nas suas faculdades intelectuais, poderia ter recorrido à sua memória e retirado das «gavetinhas» todos os casos em que Marx fala de ditadura. Teria obtido de certeza ou a seguinte definição ou outra que, no fundo, coincidiria com ela: A ditadura é um poder que se apoia directamente na violência e não está amarrado por nenhumas leis; a ditadura revolucionária do proletariado é um poder conquistado e mantido pela violência do proletariado sobre a burguesia, um poder que não está amarrado por nenhumas leis. (LENIN, 1978c_____________. “A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky”. In: V.I. Lênin. Obras Escolhidas. Volume 3. Lisboa: Editora Avante, 1978c.: 10).

Em conformidade com este tipo de interpretação, floresceu na União Soviética, logo após a revolução, uma doutrina jurídica que buscava fazer uma leitura marxista do Direito. Seus principais expoentes foram Evguiéni Pachukanis e Pyotr Stuchka.

Pachukanis, jurista marxista que integrava o Partido Operário Social Democrata Russo desde 1909, interpretava o Direito como um fenômeno histórico que só faz sentido como uma superestrutura correspondente a determinada estrutura socioeconômica. Para ele, “só a sociedade burguesa capitalista cria todas as condições necessárias para que o momento jurídico alcance plena determinação nas relações sociais” (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evguiéni. Teoria Geral do Direito e Marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017.: 75). Pachukanis entende que o desenvolvimento do socialismo e a transição para o comunismo levaria à aniquilação não só do direito burguês, mas do direito em geral, visto que o momento jurídico corresponde ao momento de domínio burguês. A construção de uma sociedade comunista em que a relação entre os produtores não seja baseada na relação de troca de equivalentes acabaria por tornar o Direito supérfluo:

Marx, portanto, concebia a transição para o comunismo desenvolvido não como uma transição para novas formas de direito, mas como a extinção da forma jurídica em geral, como uma extinção dessa herança da época burguesa que se destina a sobreviver à própria burguesia (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evguiéni. Teoria Geral do Direito e Marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017.: 79).

A despeito das concepções supracitadas sobre o Estado e o Direito no contexto do socialismo e do comunismo, a história da União Soviética foi marcada, indiscutivelmente, por um fortalecimento do Estado, e não por uma tendência à sua dissolução. É preciso reconhecer que as dificuldades vivenciadas pelos soviéticos eram tremendas, e não faltavam ameaças reais à existência do país socialista. Não obstante, parece difícil negar que, independente das dificuldades relacionadas à sobrevivência de um país socialista em um mundo hegemonicamente capitalista, havia problemas e contradições de projeto que remontam ao marco teórico do marxismo-leninismo. Dentre os aspectos problemáticos, talvez um que se destaca tenha sido, justamente, a incapacidade de se estruturar um Estado de Direito no qual a atuação do Estado fosse efetivamente contida ou delimitada por um sistema normativo que conjugasse planificação econômica e social com o respeito aos direitos individuais.

Apesar da ideologia oficial que preconizava o fim do Estado e de todo o seu aparato repressor, a URSS, como qualquer Estado moderno, necessitou estruturar um sistema normativo e um desenho constitucional que o ancorasse. Tais desenhos teoricamente determinavam a estrutura e os limites do Estado. Inclusive, vários direitos individuais tipicamente associados a sociedades liberais foram garantidos constitucionalmente na URSS. Não obstante, a ausência de uma efetiva separação de poderes, a fusão entre Estado e Partido e a submissão da lógica jurídica à lógica política tornavam tais garantias praticamente inócuas. A seguir, segue uma exposição das Constituições Soviéticas, demonstrando o seu desenvolvimento e a discrepância entre muitos dispositivos constitucionais e a realidade da URSS, notadamente no que diz respeito à garantia dos direitos individuais.

A Constituição de 1918

O primeiro experimento socialista do mundo produziu 4 constituições ao longo da sua existência. A primeira, de 1918, foi a Constituição da República Socialista Federativa Soviética da Rússia, momento em que a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas ainda não havia se formado. As outras três constituições, já no período da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, datam de 1924, 1936 e 1977.

Como sabemos, logo após a revolução, a Rússia viveu momentos conturbados de transição política. Em 18 de janeiro de 2018 seria realizada uma Assembleia Constituinte que havia sido convocada pelo Governo provisório deposto pelos bolcheviques em outubro. Essa Assembleia Constituinte não era composta por uma maioria de bolcheviques, mas sim de social-revolucionários, pois, apesar dos Bolcheviques serem bem votados nos centros urbanos como Moscou e Petrogrado, entre os camponeses no interior do país os social-revolucionários eram maioria. Daí deriva a assertiva de Lenin (1979_____________. A questão da constituinte. Contagem: Editora História, 1979.: 153) de que “os bolcheviques eram o partido do proletariado e os iskristas, o dos camponeses”. Além dos iskristas, dos mencheviques e do Partido Socialista Revolucionário, de Kerenski, mais identificados com os interesses do campo, estava o Partido Constitucional Democrata. Esse partido, cujos filiados eram liberais defensores da monarquia constitucional, conhecidos como Kadetes, era o partido do Governo provisório que emergiu após a revolução de fevereiro (REED, 2002REED, John. 10 dias que abalaram o mundo. Porto Alegre: L&PM, 2002.: 26-30). Assim, foram eleitos para as 707 vagas de deputados da Assembleia, 370 socialistas-revolucionários, 175 bolcheviques, 40 socialistas-revolucionários da esquerda, 17 Kadetes, isto é, do Partido Constitucional Democrata, e 16 mencheviques (REGIS, 1980REGIS, Osni de Medeiros. “Observações sobre a nova constituição da União Soviética”. Revista Sequencia. Ano 1. 1º. Semestre, 1980.: 29). Para a sessão inaugural dessa Assembleia Constituinte foi encaminhada pelos bolcheviques a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, que havia sido redigida por Lenin e publicada no Pravda2 2 O Pravda foi o principal jornal da União Soviética e órgão oficial do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética. . Como era de se esperar, o documento foi rejeitado pela maioria ocasional daquela Assembleia3 3 De acordo com Lenin (1979: 152), a Assembleia Constituinte estava dividida em 3 grupos fundamentais: O Partido Bolchevique, representante do proletariado; os socialistas-revolucionários, mencheviques e iskristas, representantes da pequena-burguesia; por fim, os Kadetes, representante dos latifundiários e da burguesia. . Os bolcheviques e os socialistas revolucionários de esquerda abandonaram a Assembleia e convocaram o III Congresso dos Sovietes de toda a Russia onde decretaram a dissolução da Constituinte e aprovaram a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado. Finalmente, em 10 de julho de 2018, o V Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia aprovou a Constituição da República Socialista Federativa Soviética da Rússia. Na prática, a norma constitucional de 1918 consiste na união desses dois documentos. Decerto, Lênin já considerava problemática a questão da Assembleia Constituinte desde dezembro de 1917. Para ele, seria natural “que a Assembleia Constituinte, convocada segundo as listas dos partidos existentes antes da revolução proletária e camponesa, numa situação de domínio da burguesia, entre inevitavelmente em conflito com a vontade e os interesses das classes trabalhadoras e exploradas, que a 25 de Outubro iniciaram a revolução socialista contra a burguesia” (LENIN, 1979: 125). Foi o que aconteceu.

A Constituição de 1918, adotada 8 meses após a revolução, foi a Constituição mais radical. Criada em um ambiente em que o espírito revolucionário era intenso e em que a sensação de que possibilidades imensas se abriam diante da experiência inédita do socialismo, não havia qualquer concessão a noções - tidas como burguesas - como as de separações de poderes ou de liberdades fundamentais invioláveis. De acordo com seu artigo 3º, com o objetivo de eliminar a exploração do homem pelo homem e a divisão da sociedade em classes, prevê-se a socialização das terras, nacionalização das riquezas minerais, anulação dos empréstimos czaristas, estatização dos bancos e dos meios de produção. A influência de O Estado e a revolução, texto publicado por Lenin no ano anterior, é nítida. A Constituição chegou a estabelecer como tarefa dela própria a eliminação do Estado:

Art. 9. A tarefa fundamental da Constituição da República Socialista Federativa Soviética, levantada no presente período de transição, envolve o estabelecimento da Ditadura Urbana e Rural do Proletariado e do Campesinato Mais Miserável, na forma de uma poderosa autoridade soviética de toda a Rússia, com o propósito de repressão da burguesia, aniquilação da exploração do homem pelo homem e de introdução do socialismo, no qual não existirá nem divisão de classes nem poder do Estado.4 4 Constituição da República Socialista Federativa Soviética da Rússia de 1918. Disponível em: http://www.scientific-socialism.de/LeninDireitoeMoral100718.htm#_ftn1

Não há menção à garantia de liberdade de imprensa nos moldes liberais, mas à eliminação da dependência desta ao capital como forma de garantir aos trabalhadores “a verdadeira liberdade de expressão de suas opiniões”5 5 Ibid. . Já em seu artigo 13, para garantir a liberdade de consciência, “a Igreja deve ser separada do Estado e a escola, da Igreja”6 6 Ibid. . O trabalho não é somente um direito, é um dever. “Quem não trabalha não come”, determina seu art. 18. Deixando explícito que os interesses coletivos se sobrepõem aos direitos individuais o art. 23 determinava que, “guiada pelos interesses da classe trabalhadora como um todo, a República Socialista Federativa Soviética Russa despoja todas as pessoas individuais e todos os grupos individuais dos direitos que são por eles utilizados em prejuízo dos interesses da Revolução Socialista”7 7 Ibid. .

A estrutura do Estado soviético desenhada pela Constituição se baseia nos Soviets, indo dos Soviets locais até o Congresso de Soviets de Toda a Rússia, através de um sistema de eleição indireta, conforme seus artigos 24 e 25. Em consonância com a noção de que o Estado agora era um instrumento de dominação exercido pela classe operária, o artigo 64 indicava que o direito de voto e de ser eleito era permitido somente aos que obtinham seus meios de subsistência mediante trabalho produtivo e de interesse geral. Por outro lado, o artigo 65 informa que os que empregam com objetivo de lucro estavam excluídos. Ainda, estavam excluídos também os comerciantes, intermediários, sacerdotes, ex agentes da polícia czarista, entre outros. Sobre este tema, Lênin afirmou:

Que os desprezíveis canalhas renegados, aplaudidos pela burguesia e pelos sociais-chauvinistas, insultem a nossa Constituição Soviética porque ela retira aos exploradores o direito de voto. Ótimo, porque isto acelerará e aprofundará a cisão entre os operários revolucionários da Europa,(...) e os velhos chefes e velhos traidores do socialismo. (...) Se os Soviets, depois de um ano de «prática» dos Soviets, privaram os exploradores do direito de voto, isto quer dizer que estes Soviets são de facto organizações das massas oprimidas, e não dos sociais-imperialistas nem dos sociais-pacifistas vendidos à burguesia. (LENIN, 1978c: 40-41).

Esta Constituição, histórica, era tida como mais do que a norma fundamental do Soviet Russo. Foi formulada como a Constituição do povo trabalhador, independente da nação. Neste sentido, a primeira parte, como já foi dito, é constituída pela Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, um dos primeiros documentos elaborados pelos Bolcheviques, espécie de contraparte à Declaração dos Direitos dos Homens e do Cidadão criado durante a revolução francesa.

A Constituição de 1924

A primeira Constituição da URSS propriamente entrou em vigor em 6 de julho de 1923 e foi ratificada em 31 de janeiro de 1924 pelo II Congresso dos Sovietes da URSS, apenas 10 dias após a morte de Lenin8 8 Embora o processo de organização da nova Constituição tenha ocorrido enquanto Lenin ainda estava vivo, sua saúde já estava muito debilitada o que o impediu de acompanhar sua construção. Stalin já dava sinais de ser o homem forte a dar continuidade ao projeto de Lenin. . Situa-se em um período em que o Estado Soviético estava se estruturando como tal. A Guerra Civil tinha terminado fazia pouco tempo e praticamente todas as forças políticas e partidárias, entre elas os mencheviques e os socialistas-revolucionários, haviam sido derrotadas. A URSS tinha se formado em 1922, através do Tratado de Criação da URSS, tratado este que foi, em grande parte, reproduzido no texto da Constituição. O principal objetivo era definir a forma da União recém-criada. Adotou-se um modelo formalmente federal e multinacional. O direito à autodeterminação das nações, em conformidade com a teoria leninista, foi constitucionalmente garantido9 9 Sabe-se que esse era um tema fundamental para Lenin pelo menos desde 1914, quando publicou Sobre o direito das nações à autodeterminação na revista Prosvechtchénie n.º 4, 5 e 6 (LENIN, 1978a). . Neste sentido, o art. 3º da Constituição determinava:

A soberania das repúblicas da União só pode ser restrita nos limites especificados nesta Constituição e somente em matérias de competência da União. Com exceção destas restrições, cada república da União exercerá seu poder de estado independentemente. A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas deverá proteger os direitos soberanos das repúblicas da União. (Tradução nossa)10 10 Constituição da URSS de 1924 (MATTHEWS, 1974: 51-62).

Como manifestação máxima da doutrina da autodeterminação, foi constitucionalmente garantido o direito de secessão, conforme estipulado no art. 4º: “Toda república da União possui o direito à livre secessão da União”. Assim, a União não seria mantida pela força e sim pela adesão voluntária, pela solidariedade internacional da classe operária. Nas palavras de Lênin:

A plena igualdade de direitos das nações; o direito à autodeterminação das nações; a fusão dos operários de todas as nações — é este o programa nacional que o marxismo ensina aos operários, que ensina a experiência de todo o mundo e a experiência da Rússia. (LENIN, 1978aLÊNIN, Vladimir. “Sobre o Direito das Nações à Autodeterminação”. In: V.I. Lênin. Obras Escolhidas. Volume 1. Lisboa: Editora Avante, 1978a.: 555).

Quanto à estrutura de governo, a Constituição de 1924 manteve a forma piramidal dos soviets produzida na Constituição de 1918. A principal diferença foi que o Comitê Executivo Central da União Soviética se tornou um órgão bicameral, refletindo a nova estrutura federativa, sendo eleitos representantes de cada República para além dos representantes eleitos pelos delegados do Congresso dos Soviets de toda a União, conforme seus artigos 13, 14 e 15.

Diferentemente da Constituição anterior, esta definiu certas instituições jurídicas, ainda que de modo muito limitado. O período era o da Nova Política Econômica, a NEP, que buscava desenvolver as forças produtivas através da preservação de algumas formas de produção capitalistas. Essa realidade, que representava um certo abandono - pelo menos temporário - das expectativas revolucionárias mais radicais, demandava um retorno, em alguma medida, à legalidade burguesa. Fazia-se necessária a produção de normas e instituições que garantissem previsibilidade e a ordem para que as relações econômicas pudessem se desenvolver. Neste sentido, a Constituição estabeleceu a Suprema Corte da União e a Procuradoria. Começou a aparecer, aqui, a ideia de uma “legalidade socialista”, que iria gradativamente substituir a ideia de uma superação do Direito no socialismo. O artigo 43 continha o seguinte texto: “com o objetivo de fortalecer a legalidade socialista no território da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, uma Suprema Corte deverá ser estabelecida e vinculada ao Comitê Executivo Central da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (...)”11 11 Ibid. . O vínculo ao Comitê Executivo Central denotava, na prática, a ausência de autonomia do judiciário e a sua submissão à lógica política.

Visto que estava fora do seu escopo, a Constituição de 1924 não tratou dos direitos e deveres dos cidadãos soviéticos, sendo estes contemplados nas Constituições de cada República que, em geral, reproduziam as disposições contidas no texto de 1918.

A Constituição de 1936

A Constituição de 1936 foi formulada no período stalinista e chega mesmo a ser conhecida por “Constituição de Stalin” (REGIS, 1980REGIS, Osni de Medeiros. “Observações sobre a nova constituição da União Soviética”. Revista Sequencia. Ano 1. 1º. Semestre, 1980.: 30). Em 1935, Stalin propôs ao Congresso dos Soviets que a Constituição fosse revista. Uma comissão presidida por Stalin e formada por 30 membros, Nikolai Bukharin e Pachukanis entre eles, foi criada em fevereiro de 1935 e uma proposta inicial foi aprovada, repassada para ser discutida em reuniões e assembleias por todo país, até, finalmente, ser aprovada em dezembro de 1936 (COHEN, 1990COHEN, Stephen. Bukharin: uma biografia política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.: 401). O contexto era bastante diferente. A ideia de que o Estado ia ser superado parecia cada vez mais distante da realidade soviética. Ao contrário, o Estado se fortalecia cada vez mais, inclusive com o abandono da NEP e com uma guinada no sentido da planificação total. A tendência centralizadora era evidente. Os Soviets se tornavam cada vez mais secundários, palcos legitimadores de decisões originárias do Partido Comunista. Essa tendência era acompanhada por uma política crescentemente repressora e autoritária que marcou o período stalinista. Contribuía muito para esta realidade, além das tendências intrínsecas ao sistema soviético e da personalidade de Stalin, um cenário internacional cada vez mais instável e ameaçador, instando a URSS a se desenvolver com urgência. A necessidade de industrialização imediata, a presença constante de ameaças existenciais e a intensificação do autoritarismo implicaram em custos elevadíssimos, tais como fome generalizada em certas regiões agrícolas e as terríveis perseguições que marcaram a segunda metade da década de 30.

Este é o período dos grandes expurgos, permeado por intensa paranoia e por uma ideologia de sítio, fruto do autoritarismo de Josef Stalin e da existência de sérias ameaças ao Estado soviético devido ao fortalecimento do nazifascismo e à iminência de uma guerra mundial. Os expurgos atingiram vários setores da sociedade, mas os principais alvos foram aqueles que poderiam representar uma ameaça - ainda que muitas vezes imaginária - à autoridade de Stalin. Assim, perseguiu-se vários membros do Partido Comunista - inclusive do período revolucionário -, da cúpula do exército vermelho, e grande parte dos intelectuais. Para se ter uma noção da dimensão dos expurgos, é relevante notar que dos 6 membros ainda vivos do Politburo de 1917, 5 foram executados ou assassinados. O sobrevivente foi o próprio Stalin. Entre as vítimas constam referências internacionais do movimento comunista, como Bukharin, ex-aliado de Stalin e principal formulador da Constituição de 1936, e o antigo rival Leon Trotsky, assassinado no México. O próprio Pachukanis foi uma vítima deste período em que a Lei e a vontade do líder se confundiam. A concepção ideológica que sustentava tais perseguições era a do “agravamento da luta de classes no socialismo”. Segundo esta concepção, elementos residuais da burguesia, com o auxílio de forças externas, haviam se infiltrado com intenções contrarrevolucionárias no aparelho de Estado e no Partido Comunista, sendo preciso eliminá-los para preservar a segurança da União Soviética e o socialismo.

É curioso que, criada neste contexto, esta Constituição tenha, mais do que em qualquer momento anterior da URSS, afirmado a importância da legalidade e incorporado direitos típicos das constituições dos países capitalistas, incluindo uma aparente ampliação dos direitos de voto e dos direitos individuais frente ao Estado (UNGER, 1981UNGER, Aryeh. Constitutional Development in the USSR. Londres: Methuen & Co. Ltd, 1981.: 79). Segundo Cohen (1990COHEN, Stephen. Bukharin: uma biografia política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.: 402), “um grande número de cidadãos, membros ou não do partido, viu no documento a prova do início de uma época de paz civil e legalidade”. Stalin, no 8º Congresso Extraordinário dos Soviets, convocado para se discutir a nova Constituição, afirmou que “nós precisamos da estabilidade das leis agora mais do que nunca” e “(...) a Constituição Soviética é a única Constituição totalmente democrática do mundo (tradução nossa).”12 12 O discurso proferido por Stalin no 8º Congresso Extraordinário dos Soviets está disponível em: https://www.marxists.org/reference/archive/stalin/works/1936/11/25.htm

Passando para uma análise do seu conteúdo, cumpre notar, de início, que esta Constituição é mais extensa e cobre mais temas do que as anteriores. A estrutura da União manteve-se praticamente a mesma e o direito de secessão foi mantido no artigo 17, embora, tal qual no texto de 1924, não se tenha delineado o procedimento cabível caso uma República decidisse neste sentido.

A estrutura de governo sofreu mudanças. O Congresso dos Soviets foi abolido junto com seus comitês executivos e os principais órgãos de Estado passaram a ser o Soviet Supremo, o Presidium do Soviet Supremo e o Conselho de Ministros. O Soviet Supremo basicamente substituiu o Congresso dos Soviets de Toda a União como órgão máximo do Estado, conforme pode ser lido em seu artigo 30. Ele era detentor exclusivo do poder legislativo da União e continuou a ser um órgão bicameral nos moldes da Constituição anterior. Foi garantido sufrágio universal, direto e secreto nas eleições para os deputados das variadas instâncias dos Soviets, incluindo o Soviet Supremo, conforme determinado no artigo 136. Assim, diferentemente do previsto na Constituição de 1918, o direito de eleger e ser eleito passou a ser de todos os cidadãos, não somente da classe trabalhadora, até porque, teoricamente, a URSS já não era mais uma sociedade constituída de classes antagônicas.

Diversos direitos materiais foram constitucionalmente assegurados. No Capítulo X, que trata, ao mesmo tempo, dos “Direitos e Deveres dos Cidadãos”, afirma-se o direito ao trabalho - direito que também era um dever, como determinado no artigo 1213 13 O art. 12 reproduzia o adágio presente na Constituição de 1918: “Quem não trabalha não come”. -, ao descanso, à educação gratuita, assistência hospitalar, ao amparo na idade avançada, entre outros. A maior inovação da Constituição foi a garantia de certos direitos individuais. Formalmente, ela garantia diversos direitos aos cidadãos soviéticos, muitos dos quais tidos como burgueses no período revolucionário. Os seus artigos 127 e 128 garantiam aos cidadãos da URSS a inviolabilidade de domicílio, a inviolabilidade da correspondência e a inviolabilidade pessoal. Afirmava-se que “ninguém pode ser preso a não ser por ordem da Corte ou por sanção do Procurador do Estado”.14 14 Constituição da URSS de 1936. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/stalin/biografia/ludwig/constituicao.htm

Diferente do que ocorreu anteriormente, a Constituição elenca diversas cortes de justiça, não somente a Corte Suprema. Um aspecto relevante a ser notado é que todas as cortes eram eleitas indiretamente pelos Soviets correspondentes. No caso da Corte Suprema, pelo Soviet Supremo. Ainda, o mandato dos juízes era limitado a cinco anos. No caso das Cortes mais baixas, as Cortes Populares, o voto era direto. Há garantia do direito de defesa no artigo 111: “Em todas as Cortes da URSS todos os casos serão julgados em público, a menos que a lei o impeça, e o acusado terá sempre o direito de defender-se15 15 Ibid. . O artigo 112 garante a independência do juiz: “Os juízes são independentes e só estarão subordinados à lei”16 16 Ibid. .

É evidente que a distância entre as muitas das garantias constitucionais e a realidade soviética deste período era enorme. Os grandes expurgos realizados na mesma época da sua entrada em vigor, vitimando inclusive o seu principal formulador, não deixam dúvidas quanto à irrelevância prática de vários direitos elencados. Não obstante, esta foi a Constituição mais duradoura, existindo por 40 anos até ser substituída na década de 70.

A Constituição de 1977

A última Constituição Soviética, de 1977, formulada no governo de Leonid Brejnev, foi feita em um momento de relativa estabilidade. Apesar de produzida no contexto da Guerra Fria, o cenário internacional era menos volátil e ameaçador do que nos períodos anteriores. Ademais, neste período o campo socialista não se resumia à URSS. Vários países haviam se tornado socialistas, principalmente por conta do poder e prestígio que os comunistas em geral - e a URSS em particular - angariaram com a vitória sobre o nazifascismo, e por conta das vitórias dos movimentos de descolonização que, normalmente, tendiam para o campo socialista.

Ainda, a URSS já havia passado pelo processo de “desestalinização” no governo de Kruschev. As práticas de Stalin foram denunciadas. O culto à personalidade, as coletivizações forçadas, os expurgos, entre outras políticas, passaram a ser interpretados como um erro, um desvio no caminho do desenvolvimento do socialismo. Realmente, as perseguições e o autoritarismo nas dimensões do stalinismo não voltaram a se repetir. No entanto, é evidente, que elas não deixaram de existir por completo. Os vários casos conhecidos de repressão a dissidentes e de fugas para o exterior evidenciam esta realidade. Seja como for, o caráter participativo de sua construção foi propagandeado. Segundo Regis (1980REGIS, Osni de Medeiros. “Observações sobre a nova constituição da União Soviética”. Revista Sequencia. Ano 1. 1º. Semestre, 1980.: 29), “durante quatro meses, de meados de junho a fins de setembro de 1977 realizaram-se um milhão e quinhentas mil reuniões nos mais diferentes setores para debaterem o projeto, em que 4/5 da população ativa, conforme Brezhnev, tomou parte”.

O ímpeto propriamente revolucionário era muito menor neste momento. No período pós-Stalin passou a vigorar a ideia de que o socialismo iria superar o capitalismo por conta da eficiência da planificação econômica. A URSS manteve, por muito tempo, taxas de crescimento do PIB superiores às dos EUA e à da maioria dos países capitalistas desenvolvidos, e isso só iria mudar no final dos anos 70 devido à dificuldade da economia soviética planificada de incorporar os avanços da 3ª revolução industrial. Por outro lado, a ideia de que o Estado iria ser superado parecia completamente deslocada da realidade. Kruschev, no 22º Congresso do Partido Comunista, realizado em 1961, disse que o comunismo ia ser atingido em 20 anos. Em 1977, nada indicava que esta previsão - do tipo que os soviéticos já se acostumavam a não levar a sério - iria se realizar.

Não há grandes inovações nesta Constituição. Tratava-se mais de modernizar os dispositivos constitucionais e adequá-los a uma realidade diferente. Nos termos empregados na própria Constituição, tratava-se de criar a norma fundamental de uma “sociedade socialista desenvolvida”, “estágio natural no caminho para o comunismo”17 17 Constituição da URSS de 1977. Disponível em: http://www.departments.bucknell.edu/russian/const/1977toc.html . Como a Constituição anterior, este também é um documento extenso, sendo ainda maior que a do 1936. Manteve-se a estrutura federal e multinacional da União e o direito de secessão das Repúblicas, tendo como base o “princípio do federalismo socialista”18 18 Ibid. , presente no artigo 71.

Há referência Constitucional aos princípios norteadores da política externa soviética, tal qual feito em 1918 e 1924. O disposto aqui, entretanto, se diferencia por não afirmar uma postura revolucionária. Ao contrário, coloca-se como princípio norteador a busca da cooperação e coexistência pacífica entre as nações, e é colocado como objetivo da política externa soviética a construção do comunismo na URSS.

O Capítulo VII, que trata dos Direitos Básicos, Liberdades e Deveres dos Cidadãos da URSS, é consideravelmente mais extenso do que o Capítulo correspondente da Constituição anterior. Os direitos estabelecidos anteriormente reaparecem: foi garantido o direito ao trabalho no art. 40, direito este que aparece como dever no art. 6019 19 Diferentemente dos textos anteriores, não há mais referência ao adágio: “Quem não trabalha não come”. ; o direito ao descanso e lazer aparece no art. 41; o acesso amplo e gratuito ao sistema de saúde aparece no art. 42; o amparo aos idosos no art. 43; a educação universal e gratuita é prevista no art. 45. Novas são as garantias à moradia no art. 44, aos benefícios do desenvolvimento cultural no art. 46, e à liberdade criativa e científica no art. 47. A perseguição à crítica foi proibida e penalizada no art. 49. No art. 50 aparecem a liberdade de expressão, de imprensa, de assembleia e de manifestação. Tudo isso, entretanto, “de acordo com os interesses do povo e com o objetivo de fortalecer e desenvolver o sistema socialista”, em trecho do próprio artigo. O art. 52 afirma a liberdade de consciência, que novamente aparece como a liberdade de professar ou não professar qualquer religião. A inviolabilidade da pessoa, do domicílio e das comunicações privadas aparecem, respectivamente, nos arts. 54, 55 e 56.

A estrutura do governo soviético manteve-se praticamente a mesma. O Soviet Supremo bicameral continuou a ser, formalmente, o órgão máximo de Estado, nos ditames do art. 108. Manteve-se, também, o Presidium do Soviet Supremo e o Conselho de Ministros, com pequenas alterações na composição e competência destes órgãos. Em consonância com o disposto na Constituição anterior, o art. 95 garantiu o sufrágio universal, direto e secreto para a eleição dos representantes nos Soviets.

O sistema jurídico também se manteve praticamente igual. A mesma estrutura das Cortes foi conservada, com a Corte Suprema no topo, conforme determinado pelo art. 151. As cortes continuaram a ser compostas por cidadãos eleitos e com mandato limitado, nos termos do art. 152. A independência do juiz, a igualdade de todos perante a lei, a publicidade do processo e o direito à defesa aparecem, respectivamente, nos arts. 155, 156, 157 e 158. Pela primeira vez, a própria Constituição afirma o princípio da supremacia constitucional, nos termos do art. 173: A Constituição da URSS terá força legal suprema. Todas as leis e atos dos órgãos de Estado devem ser promulgadas com base e em conformidade com ela20 20 Constituição da URSS de 1977. Disponível em: http://www.departments.bucknell.edu/russian/const/1977toc.html . Isto não aparecia nos textos anteriores. Não obstante, manteve-se a ausência de qualquer referência ao controle de constitucionalidade por um órgão jurídico independente.

Talvez o aspecto mais relevante e sintomático do texto em comento seja o destaque dado ao Partido Comunista. Na prática, a organização mais importante e decisiva desde os primórdios da URSS, o Partido não aparecia nos documentos de 1918 e 1924, e havia somente uma breve menção a ele no texto de 1936. Aqui, talvez inspirado pela sua menção nas Constituições de outros países socialistas, o Partido Comunista é explicitamente alçado à condição de força-guia da sociedade soviética e de núcleo central do seu sistema político. De acordo com seu artigo sexto, “o Partido Comunista da União Soviética é a força que dirige e orienta a sociedade soviética; é o centro de seu sistema político, das organizações do Estado e das organizações sociais”. 21 21 Ibid, tradução nossa. A fusão entre Estado e Partido é finalmente sacramentada na Constituição.

Conclusão

Poucos imaginavam que, uma década após a promulgação desta Constituição, o campo do chamado socialismo real entraria em fase terminal. Em 1989 o muro de Berlim é derrubado, e a débâcle se alastra por diversos países do leste europeu. Em 1991 a URSS, grande potência durante meio século e a principal referência do movimento comunista internacional, se desintegra e passa a existir somente na História. Tal como a URSS, não há mais. O papel ocupado pela política socialista na geopolítica é exercido, desde então, de forma gradual, perene e crescente, pelo socialismo de mercado chinês, mas com nuances particulares, sem a constituição de um sistema político internacional próprio.

Pontos fulcrais na desintegração da União Soviética foram, justamente, o direito de secessão das Repúblicas, direito este que aparecia desde a primeira Constituição da URSS, e o papel constitucionalmente atribuído ao Partido Comunista. As constituições das repúblicas, reproduzindo a Constituição da União, alçavam o Partido Comunista à condição de núcleo central do sistema político. Os governos de várias delas passaram, então, a anular tais dispositivos. Posteriormente, passaram a decretar independência com base no direito de secessão. A tensão entre a questão nacional e uma suposta solidariedade internacional da classe trabalhadora, associada à fusão entre Estado e Partido e à inexistência de um Estado de Direito, provou-se o calcanhar de Aquiles da URSS, o ponto no qual os diversos problemas e contradições do sistema soviético e do socialismo desembocaram, levando à destruição do Estado.

De certo modo, Rosa Luxemburgo já previra esse caminho em seu ensaio sobre a Revolução Russa, publicado em 1918 pouco antes de ser assassinada. Crítica da impossibilidade de convocação de uma Assembleia Constituinte, Luxemburgo (2011LUXEMBURGO, Rosa. Textos escolhidos. Vol. 2. São Paulo: Editora Unesp, 2011.: 210) reivindicava que a “ditadura precisa ser obra da classe, não de uma pequena minoria que dirige em nome da classe”. De forma original, a revolucionária polonesa já havia percebido o risco de a revolução não caminhar em direção ao que definiu como uma “democracia socialista”, mas sim para uma concentração de poderes nas mãos de uma minoria do partido. Da já mencionada proibição ao direito de voto da burguesia, presente na Constituição de 1918, derivou sua famosa frase: “Liberdade somente para os partidários do governo, somente para os membros de um partido – por mais numerosos que sejam -, não é liberdade. Liberdade é sempre a liberdade de quem pensa diferente” (2011: 205).

O que assistimos é, nas palavras de DesolreDESOLRE, Guy. Les 4 Constitutions Soviétiques (1918-1977). Paris: Savelli, 1977., “uma inflação do Estado”. Regis deu-se ao trabalho de contar quantas vezes a palavra Estado ou o adjetivo estatal aparecem nessas quatro constituições. De acordo com o autor, “a Constituição de 1918 enuncia ao todo uma dúzia de vezes o Estado, ou o adjetivo estatal. A de 1923-1924 fala do Estado uma quinzena de vezes; a de 1936, uma meia centena. A inflação alcança com Brezhnev proporções jamais vistas, pois o Estado aparece mais de cento e cinqüenta vezes no projeto” (REGIS, 1980REGIS, Osni de Medeiros. “Observações sobre a nova constituição da União Soviética”. Revista Sequencia. Ano 1. 1º. Semestre, 1980.: 33). Seguindo Fernandes (2000FERNANDES, Luis. O enigma do socialismo real: um balanço crítico das principais teorias marxistas e ocidentais. Rio de Janeiro: Mauad, 2000.: 166), cabe-nos reconhecer que, ao contrário do que propugnava a teoria marxista, “no conjunto das experiências do Leste, o poder autônomo do Estado se consolidou e fortaleceu junto com o socialismo, ao invés de se definhar e/ou dissolver”.

Analisando o movimento real da sociedade soviética, tendo em perspectiva o seu desenvolvimento do início ao fim, fica evidente a distância entre muitos dispositivos constitucionais e a realidade. Isso atribuía uma certa ficção a tais textos, ficção esta que remonta à ideia de que o Estado e o Direito seriam superados no socialismo. Esta própria ideia ia se tornando fictícia à medida em que a URSS ia se desenvolvendo e o Estado, ao invés de ser superado, se fortalecia cada vez mais. É bem verdade, podemos afirmar que muitas das Constituições de países capitalistas são, também, textos fictícios em algum grau. Afinal, muitas garantem diversos direitos sociais e econômicos - como, inclusive, é o caso do Brasil - que estão longe de serem realizados. Muitos destes direitos, na União Soviética, eram garantidos de fato. A economia planificada possibilitava que o pleno emprego existisse, assim como o livre acesso aos sistemas de saúde e de educação, entre outros.22 22 O caos social e econômico que se instalou na Rússia após o fim da URSS evidenciam que o sistema socialista possuía aspectos positivos que não podem ser desconsiderados. Para ilustrar, o PIB russo encolheu 40% ao longo da década de 90, o número de cidadãos russos em situação de pobreza pulou de 2,2 milhões para 66 milhões em apenas cinco anos, e a expectativa de vida da população masculina caiu de 64 anos, em 1990, para 57 em 1994 (FERNANDES, 2017: 228).

Não obstante, a existência de uma doutrina oficial de Estado, qual seja, o marxismo-leninismo, dá particular realce à artificialidade das Constituições soviéticas, principalmente na medida em que o socialismo real ia se distanciando dos marcos teóricos desta doutrina. O agigantamento estatal e a ausência, na prática, de proteção às liberdades individuais e a certos direitos fundamentais garantidos nestas Constituições, explicitam a contradição entre a ditadura do proletariado, na forma que existiu de fato, e a ideia marxista de que, na nova sociedade, “o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos” (MARX e ENGELS, 1998: 59).

  • 1
    De fato, a Constituição de 1918 não foi da URSS, mas sim da República Socialista Federativa Soviética da Rússia. A URSS surgiu apenas em 1922.
  • 2
    O Pravda foi o principal jornal da União Soviética e órgão oficial do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética.
  • 3
    De acordo com Lenin (1979: 152), a Assembleia Constituinte estava dividida em 3 grupos fundamentais: O Partido Bolchevique, representante do proletariado; os socialistas-revolucionários, mencheviques e iskristas, representantes da pequena-burguesia; por fim, os Kadetes, representante dos latifundiários e da burguesia.
  • 4
    Constituição da República Socialista Federativa Soviética da Rússia de 1918. Disponível em: http://www.scientific-socialism.de/LeninDireitoeMoral100718.htm#_ftn1
  • 5
    Ibid.
  • 6
    Ibid.
  • 7
    Ibid.
  • 8
    Embora o processo de organização da nova Constituição tenha ocorrido enquanto Lenin ainda estava vivo, sua saúde já estava muito debilitada o que o impediu de acompanhar sua construção. Stalin já dava sinais de ser o homem forte a dar continuidade ao projeto de Lenin.
  • 9
    Sabe-se que esse era um tema fundamental para Lenin pelo menos desde 1914, quando publicou Sobre o direito das nações à autodeterminação na revista Prosvechtchénie n.º 4, 5 e 6 (LENIN, 1978aLÊNIN, Vladimir. “Sobre o Direito das Nações à Autodeterminação”. In: V.I. Lênin. Obras Escolhidas. Volume 1. Lisboa: Editora Avante, 1978a.).
  • 10
    Constituição da URSS de 1924 (MATTHEWS, 1974MATTHEWS, Mervyn. Soviet Government: A selection of Official Documents on Internal Policies. Londres: Jonathan Cape Ltd, 1974.: 51-62).
  • 11
    Ibid.
  • 12
    O discurso proferido por Stalin no 8º Congresso Extraordinário dos Soviets está disponível em: https://www.marxists.org/reference/archive/stalin/works/1936/11/25.htm
  • 13
    O art. 12 reproduzia o adágio presente na Constituição de 1918: “Quem não trabalha não come”.
  • 14
  • 15
    Ibid.
  • 16
    Ibid.
  • 17
    Constituição da URSS de 1977. Disponível em: http://www.departments.bucknell.edu/russian/const/1977toc.html
  • 18
    Ibid.
  • 19
    Diferentemente dos textos anteriores, não há mais referência ao adágio: “Quem não trabalha não come”.
  • 20
    Constituição da URSS de 1977. Disponível em: http://www.departments.bucknell.edu/russian/const/1977toc.html
  • 21
    Ibid, tradução nossa.
  • 22
    O caos social e econômico que se instalou na Rússia após o fim da URSS evidenciam que o sistema socialista possuía aspectos positivos que não podem ser desconsiderados. Para ilustrar, o PIB russo encolheu 40% ao longo da década de 90, o número de cidadãos russos em situação de pobreza pulou de 2,2 milhões para 66 milhões em apenas cinco anos, e a expectativa de vida da população masculina caiu de 64 anos, em 1990, para 57 em 1994 (FERNANDES, 2017_______________. A Revolução Bipolar: A gênese e derrocada do socialismo soviético. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2017.: 228).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2019

Histórico

  • Recebido
    10 Nov 2017
  • Aceito
    19 Abr 2018
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