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“Narciso acha feio o que não é espelho”: reflexões sobre a exceção brasileira em Narciso em férias

“Narcissus shies away from look-unlikes”: Thoughts on the Brazilian Exception in Narcissus Off Duty

Resumo

O artigo analisa os espelhamentos narrativos do documentário Narciso em férias, no qual Caetano Veloso relata sua prisão pela ditadura civil-militar brasileira. À luz de uma investigação sobre as relações entre Direito e Cinema, consideramos que as narrativas dispostas pelo filme evidenciam a memória da exceção que caracteriza a nossa experiência jurídico-política recente, permitindo-nos verificar a sua face violenta no espelho da representação.

Palavras-chave:
Narciso; Cinema; Exceção

Abstract

The article analyses the narrative mirroring of the documentary Narcissus Off Duty, in which Caetano Veloso relates his imprisonment by the Brazilian Civil-Military Dictatorship (1964-1985). Through the prism of an investigation on the relations between Law and Cinema, we conclude that the narratives mobilized in the movie bring to light the memory of the exception that characterizes our recent politico-juridical experience and allow us to identify its violent face in the mirror of representation.

Keywords:
Narcissus; Cinema; Exception

“si se non noverit”

(Ovídio, Met., 3, 348)

Introdução – O direito no espelho1 1 Registramos aqui nosso agradecimento ao queridíssimo amigo Aukai Quint Leisner pela versão, atenta e sensível ao texto poético, do título do artigo em língua inglesa.

Em 13 de dezembro de 1968, decretava-se no Brasil o Ato Institucional nº 5 (AI-5). A ruptura institucional com o Estado de Direito e a democracia estava consumada para além de quaisquer dúvidas, deixando para trás anseios de imediato retorno à “normalidade”. A Ditadura civil-militar, instalada no poder com o Golpe de 1964, torna-se então irreversível mediante a consolidação da corrente subterrânea de uma longa história brasileira de violências e exceções que transformam o autoritarismo no sentido mesmo do poder, pervertendo-o numa confusão de profundas e absurdas consequências para o presente e futuro a habitar o imaginário jurídico-político brasileiro.

Na madrugada de 27 de fevereiro, apenas duas semanas após a promulgação do AI-5, em meio ao “transe” entre a vigília e o sono, Caetano Emanuel Viana Teles Veloso2 2 Caetano Veloso é músico, produtor, arranjador, escritor, mas antes de mais nada é alguém que acredita neste “nome sem país” chamado Brasil (Veloso, 2017, p. 48): seja em sua vida como músico, quando nos diz: “Vejo uma trilha clara pro meu Brasil, apesar da dor / Vertigem visionária que não carece de seguidor / Nu com a minha música, afora isso somente amor / Vislumbro certas coisas de onde estou” (Nu com minha música); seja na carreira de escritor, quando nos conta: “É que penso e ajo como se soubesse na carne quais as potencialidades verdadeiras do Brasil, por ter entrado num diálogo com suas motivações profundas —e simplesmente não concluo que somos um mero fracasso fatal” (Veloso, 2017, p. 457), Caetano parece nunca abandonar a certeza de que vale a pena lutar pelo Brasil. E foi justamente essa luta que marcou toda sua vida pública. Ainda na juventude deixou a Bahia, onde nasceu, para viver no “sul maravilha”, criando ao lado de outros tantos como Gilberto Gil, Tom Zé e Hélio Oiticica, aquele que ficou conhecido como movimento da Tropicália que culminou na disco Tropicália ou Panis et Circensis, ao lado de vários músicos, em 1967. Já no ano seguinte, respondeu ao endurecimento do regime militar no Brasil com "É Proibido Proibir", sendo desclassificado do III Festival Internacional da Canção. Em 1969, foi preso político pelo regime militar e partiu para exílio político em Londres, onde continuou a compor. Dos anos 70 para cá, lançou mais de cinquenta discos e contribuiu em trilhas sonoras de diversos filmes e peças de teatro, alcançando reconhecimento internacional e sendo homenageado por diversos países, que lhe concederam prêmios e Comendas. Em todo esse tempo, jamais deixou de manifestar seu descontentamento com figuras públicas autoritárias e de utilizar de seu capital simbólico para alavancar debates variados sobre temas que lhe chamassem a atenção. Durante a atual pandemia do coronavírus foi incessante em denunciar violações de direitos humanos aproveitando-se das duas únicas aparições ao vivo feitas por redes sociais para criticar a postura de descaso do governo em meio a uma crise de saúde global e alertar para o grande número de mortos pelo coronavírus em aldeias indígenas. Além disso, lançou nas plataformas digitais o show do projeto “342 Amazônia”, na semana nacional do meio ambiente, marcando seu novo (e já forte) ativismo ambiental. Caetano é memória viva do Brasil e impulso plural de raças, cores e sons para um futuro onde o melhor (do) Brasil é possível. viria a ser surpreendido pelo som da campainha de seu apartamento em São Paulo na Avenida São Luís, bastante próximo do nacionalmente conhecido cruzamento da Avenida Ipiranga com a São João: eram agentes da Polícia Federal que, batendo à sua porta e entrando em sua casa, viriam a levá-lo, assim como seu amigo, também músico e compositor, Gilberto Passos Gil Moreira, à experiência bastante corpórea, real da exceção brasileira então consolidada. Inicia-se aqui o período de suas prisões arbitrárias pela ditadura.

Décadas depois, Caetano Veloso relatou a impactante experiência então sofrida em sua autobiografia, Verdade tropical, publicada em 1997, adotando para o longo capítulo em que a narra o título bastante sugestivo de “Narciso em Férias. Ele também veio a narrá-la, lançando agora seu corpo no relato falado de sua própria experiência, no documentário homônimo, lançado em 2020, dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil, com produção de Paula Lavigne. Aqui tomado como objeto de um exercício de compreensão, a partir do documentário nos moveremos nos meandros de um confronto trazido pelo cinema para o direito, tal como um espelho que o confronta, irremediavelmente, com a imagem de sua exceção. A investigação da natureza desse espelhamento é aberta pelas diversas narrações que alcançam a experiência desse Narciso: posta em jogo nos registros documentais oficiais da ditadura e também nos ecos da canção, delineia-se o contorno de uma singularização da experiência na qual a norma e a exceção, a realidade e a representação são constantemente questionadas e lançadas uma na outra, uma contra a outra.

Narciso em férias, na sua realização cinematográfica, coloca desde o princípio diante de nós, espectadores, a imagem do corpo e o som da voz de um estranho Narciso, chamado a relatar diante da câmera os cinquenta e quatro dias de sua prisão durante a ditadura numa espécie de entrevista que rearticula e remaneja a forma do interrogatório, ao mesmo tempo fonte de medo e obsessão de Caetano Veloso no seu período no cárcere. Do outro lado da lente, a presença de seu corpo e a ressonância de sua voz desafiam a estabilidade das convicções estruturantes do imaginário jurídico-político vigente, que pretende se projetar para muito além daquilo que aparece no mundo como uma criação humana que permite estabilizar as fundações de nossas comunidades (Arendt, 2011ARENDT, Hannah. “A grande tradição”. Trad. de Paulo E. Bodziak Jr. e A. Correia. In: O que nos faz pensar [s.l.], v. 20, n. 29, p. 273-298, mai. 2011. Disponível em: <http://www.oquenosfazpensar.fil.puc-rio.br/index.php/oqnfp/article/view/338>. Acesso em: 10 mar. 2021.
http://www.oquenosfazpensar.fil.puc-rio....
: 276).

Ao defrontar-se com o rosto de Caetano Veloso no documentário, o espectador é levado a um enfrentamento, antes de tudo, com o que costumeiramente lhe escapa. Nesse sentido, podemos dizer que somos expostos às privações de memória, que decorrem de um processo de apagamento das violências que são constitutivas das relações de força que perpassam o poder e o direito, notadamente aquelas que atravessam espaço de puro arbítrio dos crimes políticos. No seguinte verso, tomado como fragmento, encontramos uma tradução desse processo: “Quando eu te encarei frente a frente” – a repressão, a violência, a estupidez dos algozes, a exceção escancarada pela ditadura – “eu não vi o meu rosto”. Em outros termos, a tela coloca diante do público, seu intérprete tanto quanto seu “espectador”, nos limites de uma produtiva tensão despertada pelo cinema, o que consideramos ser a ficção fundante de nossa representação da realidade jurídica: a de que o plano normativo existente, que estrutura toda uma compreensão do direito, não é perpassado por experiências da exceção (para já não dizermos que aquele seja estruturado por esta), isto é, que conseguiria transformá-la em algo externo à sua lógica e à sua história, para empregarmos os termos “topográficos” da oposição “dentro”/“fora” corrente no discurso jurídico (Agamben, 2008: 38-39).

A partir daqui, buscamos questionar a estrutura de sua representação tendo em vista a experiência de uma exceção, componente de nossa experiência jurídica, considerada segundo os ângulos da sua composição narrativa no documentário Narciso em férias. Nesse sentido, tomamos o ângulo específico do “direito no cinema”, de um lado, para considerar a exceção (jurídica) no cinema e, de outro, para ressaltar a dimensão instituinte das distintas práticas que também operam por meio de narrações.3 3 Enquanto a literatura tem conduzido diversas formas de aproximação com o direito dentro da área de estudos que se convencionou chamar de Direito e Literatura, a exemplo do “direito na literatura”, do “direito da literatura” e até mesmo do “direito como literatura” (OST, 2007: 48-52), tendo em vista a pertença comum ao campo de experiências fundantes da palavra, a retomada do cinema, por sua vez, nos estudos sobre Direito e Cinema, tem dado origem ao enfoque que podemos denominar “direito no cinema”, posição da qual partimos neste artigo. Porém, tendo em vista a natureza das distintas operações em jogo, não deixaremos de indicar as ocasiões em que o confronto teórico a partir das práticas e categorias do cinema se mostra uma possibilidade metafórica que se trata de questionar de modo a lançar luzes sobre o fenômeno jurídico, evitando-se a todo custo aqueles emolduramentos de suas práticas ratificados por meio de uma nociva “estetização” do direito – tal como a “estetização da política” que, alertava Walter Benjamin (2017: 47), ao culminar na glorificação da guerra (e da violência), consome junto com ela a arte e a própria humanidade. Assim, o real, a própria realidade em jogo no documentário é perpassada por distintas narrações, capazes de revelar ou ocultar aspectos e sentidos que uma ou outra esconde ou desvela. Com a contribuição específica da forma cinematográfica, buscamos compreender a relação, na tela, entre narrativas distintas não apenas sobre o real ou uma determinada realidade, mas antes de tudo sobre os sentidos que são capazes de projetar. Afinal, enquanto narrações do mundo, o cinema e o direito já operam constituições e reconstituições da realidade.

Na primeira parte do texto, discutimos o cinema quanto ao seu modo de se relacionar com seu material – sons e imagens marcados por uma relação indexadora4 4 A relação indexadora define a natureza do vínculo existente entre sons e imagens do filme e o que é gravado e filmado: na leitura de Xavier (2005: 18), que retoma a definição de “índice” de Peirce, estamos diante de “‘um signo que se refere ao objeto que ele denota em virtude de ter sido realmente afetado por este objeto’”, uma vez que, de fato, “o processo fotográfico implica numa ‘impressão’ luminosa da imagem na película”. “verdadeira tanto na ficção quanto na não ficção” (Nichols, 2010NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Trad. Monica Saddy Martins. 5. ed. Campinas: Papirus, 2010.: 65) – como representação. Estaremos diante, portanto, do questionamento de uma narração do real que estabelece uma relação com o mundo que não se restringe, por princípio, a ser tão somente uma “janela” para a realidade. O caráter particular do cinema que nos permite percorrer esse caminho e investigar o que aqui chamamos de “espelhamentos” decorre de uma característica da própria arte cinematográfica: o fato de que se efetive a partir do entrelaçamento também com outras artes. Esse trânsito, inclusive, é aquele que mais nos permite aproximar o direito do cinema, tendo-se em vista o fato de que este também se forma como um cruzamento de distintas narrativas.

Na segunda parte do texto, consideramos que o documentário, portanto, permite não apenas considerar uma representação de “questões, aspectos, características e problemas encontrados no mundo histórico” (Nichols, 2010NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Trad. Monica Saddy Martins. 5. ed. Campinas: Papirus, 2010.: 72), mas também o confronto com um ponto de vista que, ao estreitar aquela vinculação indexadora entre o plano da tela e o plano do mundo, coloca em jogo a própria relação com o mundo, podendo nos apontar possibilidades (do real) que partem do que vemos ou sabemos, do que não vemos e não sabemos, do que queremos ver e saber e também do que não queremos ver nem saber. Assim, em Narciso em férias, encontraremos tanto uma conexão com o “que foi dito e feito” na apresentação de um “teatro da memória” (Nichols, 2010NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Trad. Monica Saddy Martins. 5. ed. Campinas: Papirus, 2010.: 90) quanto uma via de acesso para tratar das relações, reciprocamente iluminadoras, entre o passado (da experiência representada) e o presente (da representação cinematográfica e da sua recepção). É nesse momento que aprofundamos o sentido da “exceção brasileira” refletida na representação de Narciso em férias.

Na terceira parte, aventamos uma leitura da canção que desfecha a narrativa do filme, Terra, lançada apenas em 1978. Ao ser cantada e tocada por Caetano no documentário – que termina ao som da versão de estúdio de Terra –, a música apresenta o ápice em que Narciso e Orfeu podem então apontar para uma reconciliação que rompe com a imagem repressiva de experiências autoritárias. Com isso, veremos afinal que o filme surge como um “lugar de memória” (Nora, 1993NORA, Pierre. “Entre memória e história: a problemática dos lugares”. In: Projeto História. São Paulo: PUC, n. 10, dezembro de 1993, p. 7-28.) que, do ponto de vista de sua atualização (um olho atual que vê), aparecerá como um lugar de “rememoração” de violentas experiências realizadas com os limites da política e do direito.

1. Narrar a experiência: Narciso e os jogos de espelhos

“We meet at last, this film between us,

Between the perception and the noun,

The desire, and the assurance, I and AM”

(W. H. Auden, Narcissus)

Ao rememorar o sequestro inesperado que o lançou no cárcere, Caetano Veloso narra que, sem saber o que lhe aconteceria, a realidade do tempo e do espaço do mundo vivido fora da cela começou a desvanecer. Iniciaria uma tentativa de buscar a si mesmo, provocada pela perda dos outros, é certo, de seus amigos e de seu convívio regular, mas também de sua experiência consigo mesmo. O sentido visual mais elementar da imagem de um Narciso em férias – um empréstimo literário, aliás, que realizou de Scott Fitzgerald – captura precisamente a experiência, “que se perpetuou por todo o período da prisão”, de “não ter acesso a espelhos. Com efeito, por dois meses não vi meu próprio rosto” (Veloso, 2017: 360). Sob tal imagem a prisão política é narrada, em Verdade tropical, como uma espécie de suspensão, entre o sono e a vigília, do mundo e da imagem de si mesmo cuja busca já se punha em questão no mito de Narciso.

Segundo Ovídio5 5 O poeta romano Ovídio (43 a.C. - 17 d.C.) escreve suas Metamorfoses com o objetivo de narrar a origem do mundo e dos deuses (poema cosmogônico) e a razão de diversos acontecimentos (poema etiológico), sob o fio unificador da metamorfose – palavra que não ocorre em momento algum do texto. Acredita-se que a obra esteja incompleta por conta do exílio a que Ovídio foi condenado no Ponto Euxino, atual Mar Negro. Mais informações sobre o autor e sua obra podem ser encontradas na Apresentação, de João Angelo Oliva Neto, e na Nota introdutória, de Domingos Lucas Dias, em Ovídio, 2017, p.7-39. (2017: 187) narra em suas Metamorfoses, quando Liríope (cujo nome também faz referência a uma flor), mãe de Narciso, pergunta a Tirésias se seu filho “veria os longos dias de uma velhice avançada”, o célebre adivinho cego lhe responde: “se ele não se conhecer [si se non verit]”.6 6 Como esclarece Kiening (2016: 262-263), a sentença de Tirésias, “Típica de declarações proféticas, explicita e, ao mesmo tempo, encobre as circunstâncias. O ponto é que todas as nuances de significado convergem na história: ‘se ele não se perceber’, ‘se ele não se encontrar fisicamente’, ‘se ele não se reconhecer’ – tudo que deveria ter sido evitado para que a criança tivesse uma longa vida acontece e constitui a fatalidade da história: Narciso se vê, deseja o seu próprio corpo como se fosse um outro, reconhece a situação, sem conseguir enfrentá-la”. O Narciso do mito era um jovem de dezesseis anos que rejeitara o desejo de todas e todos os amantes. A ninfa Eco, que por ele se apaixonara, teve a mesma sorte dos demais na rejeição – antes castigada pela sua loquacidade por Juno, Eco “repete o final da frase e devolve as palavras ouvidas” (Ovídio, 2017OVÍDIO. As metamorfoses. Trad. Domingos Lucas Dias. São Paulo: Editora 34, 2017.: 189), agora, acometida pela dor, a ninfa sente o corpo definhar, contando-se de seus ossos que “assumiram a forma de pedras” e de sua voz, ainda ouvida, que “é o som que nela vive” (Ovídio, 2017OVÍDIO. As metamorfoses. Trad. Domingos Lucas Dias. São Paulo: Editora 34, 2017.: 189).

A narrativa ovidiana tem sua inflexão quando “alguém despeitado” ergue as mãos aos céus e clama para que Narciso não toque a quem ama. As “justas súplicas” (Ovídio, 2017OVÍDIO. As metamorfoses. Trad. Domingos Lucas Dias. São Paulo: Editora 34, 2017.: 191) são ouvidas por Nêmesis e Narciso apaixona-se então por uma pessoa da qual se encontra afastado “por um pouco de água” (Ovídio, 2017OVÍDIO. As metamorfoses. Trad. Domingos Lucas Dias. São Paulo: Editora 34, 2017.: 193), demorando-se a entender que aquela era a sua própria imagem refletida no espelho d’água. Vitimado pela loucura, Narciso morre e, mesmo nas águas do Estige, segue contemplando sua imagem. Choraram-no Náiades e Dríades, e Eco, incapaz de emitir qualquer som, ecoa o som do choro. O corpo de Narciso jamais foi encontrado: em seu lugar, apareceu “uma flor amarela com pétalas brancas em volta do centro” (Ovídio, 2017OVÍDIO. As metamorfoses. Trad. Domingos Lucas Dias. São Paulo: Editora 34, 2017.: 197).

A metáfora do “espelho”, trazida à luz nas derivações do mito de Narciso, contém um problema concernente à própria natureza da representação, com destaque à cinematográfica. Ao atentarmos para a metáfora, porém, não focaremos na questão da “imitação criativa” (mimese) que atravessa as diversas artes e também o problema da narrativa. De um lado, porque o cinema não se limita a simplesmente reproduzir a imagem da realidade, mas se configura a partir da apresentação da realidade de imagens e sons, ao menos no mais elementar, imediato e, portanto, incontornável plano sensorial da recepção. De outro, porque cabe destacar o caráter imagético da metáfora do “espelhamento” de modo a ressaltar a sua presença no próprio conceito de representação, que transmite algo que não mais “ele mesmo” na distância do tempo e do espaço mediante um diferimento da presença. A relação das imagens em movimento (bem como da palavra) com o mundo então capturado coloca em relação não apenas um “objeto” qualquer, “fora” e diante do espelho, “real”, e o seu “reflexo”, “dentro” do espelho, como simples “representação: “não se trata apenas [d]a conversão do ausente em presente, mas de uma tensão aberta, em termos do imaginário, entre um substituinte e um substituído, entre um resultado e o trabalho do qual ele é originário” (Gutfreind, 2008: 5), pois, “assim, a imagem fílmica é tida como fazendo parte de um conjunto em que aquilo que se percebe na tela é o seu duplo” (Gutfreind, 2008: 5, grifos nossos).

O cinema permite estabelecer a ponte condizente ao caráter de realidade da própria imagem ao revelar o aspecto fundante das narrações que se relacionam com o mundo e com a experiência. Como a cabeça de Górgona7 7 O termo grego γοργών (gorgón), conquanto possa fazer referência a uma série de criaturas mitológicas gregas de aparência terrível (γοργός, gorgós), costuma ser usado para descrever irmãs que, punidas pelos deuses, tiveram seus cabelos transformados em serpentes venenosas cuja visão petrificava quem quer que a elas lançasse o olhar. A mais conhecida das três é Medusa, conhecida principalmente pela lenda de Teseu. Também o escritor Primo Levi, ao narrar os horrores dos campos de concentração em Afogados e sobreviventes (1990), usa o termo para se referir à máquina de destruição nazista. Em sua obra O que resta de Auschwitz (1999), essa figura será fundamental para Giorgio Agamben quando ele considera a figura do “muçulmano” no universo concentracionário e sua relação com o testemunho (Cf. Agamben, 2008, p. 60-62). Guardadas as devidas proporções entre fenômenos tão distintos, é a relação extrema entre a palavra e a imagem com a sua (im)possibilidade que está em questão nessa retomada da figura. , cujo olhar petrificante impede o “face a face”, a experiência da exceção que subsiste em nossas experiências jurídicas constitui uma ameaça pertinente à imagem, bem como ao papel instituinte da criação de imagens, da relação de presença e ausência no jogo da representação. A mediação do “espelho”, portanto, é fundamental para configurar uma relação com o mundo da experiência dilacerada – não para derrotar um monstro, mas, antes, para fazer frente a uma face de nós mesmos que (re)configura nossa própria experiência e que insistimos em tornar inacessível ao olhar e refratária ao nome.

A partir da metáfora do espelho, podemos desdobrar um complexo processo de espelhamentos que decorre de aproximações e distanciamentos que colocam em “diálogo” diversas práticas na própria criação de obras (Xavier, 2003XAVIER, Ismail. “Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema”. In: PELLEGRINI, Tânia (et al.). Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac São Paulo; Instituto Itaú Cultural, 2003, p. 61-89.: 61), bem como fazem aflorar, no plano da interpretação, a consciência de que não cabe mais “montar um sistema das artes distintas, específicas, como se fez durante algum tempo e como tentaram fazê-lo os primeiros defensores do cinema como arte autônoma” (Xavier, 2005XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005.: 9). O que se dá a mostrar por Narciso permanece componível segundo meios que são distintos, mais ou menos claramente, dependendo do quanto cada qual mantenha suas características principais ou se deixe contaminar por outros: agora, a fonte já se tornou espelho, a quietude da natureza – um regato manso, uma fonte, uma poça d’água – deu lugar à obra da mão humana e ao seu artifício. A imagem imediata, refletida na fonte, faz parte do mito, que constitui a mediação entre nós e o que se pretende a “fonte” originária da narração. Toda representação do mito constituirá uma mediação entre nós, o próprio mito e a imagem do mito, comportando-se como uma distinta maneira de nos relacionar com uma experiência para sempre perdida, mas que ainda habita as narrativas. O mito de Narciso, portanto, configura uma relação com a imagem que tem peso e história na cultura ocidental, arregimentando os mais distintos aparatos e reproduzindo, neles, a cada um segundo o seu, uma destinação à perda da imagem.8 8 Nesse sentido, vale ressaltar que “Estamos tão acostumados com a interpretação que a psicologia moderna deu a respeito do mito de Narciso, quando se define como narcisismo o fechar-se e o retrair-se da libido no eu, que acabamos esquecendo que, afinal de contas, no mito o jovem não está enamorado diretamente de si, mas da própria imagem refletida na água, e que ele toma por uma criatura real” (Agamben, 2008: 147). Assim, por exemplo, para o pensamento e poética medievais importava não tanto o amor por si, criticado já por Ovídio, mas antes o apaixonar-se por uma imagem (cf. Agamben, 2008: 146 e ss).

O Narciso de Caravaggio9 9 Pintada a óleo entre 1598 e 1600, a tela encontra-se na Galeria Nacional de Arte Antiga (Palazzo Corsini), em Roma. mostra num detalhe, sendo praticamente uma membrana entre Narciso e seu reflexo, esse problema da relação entre camadas técnicas e narrativas nas obras de arte. Enquanto se debruça sobre uma poça, mantendo-se firme sobre os joelhos, o jovem Narciso, vivificado no corpo de um “melancólico vagabundo” (Longhi, 2012LONGHI, Roberto. Caravaggio. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Cosac Naify, 2012.: 72), mantém o braço direito apoiado na margem, sustentando-o teso numa tensão perpendicular da luz da margem às sombras da água. A mão direita, embora sustente toda essa configuração, mantém-se no limite do contato com a terra e com a água, que oscila, talvez pelo movimento ou pelo leve contato de algum dos dedos. A face de Narciso pende próxima do braço esquerdo e permanece deste lado da imagem. Enquanto isso, o braço esquerdo é detido em meio ao movimento que afunda a sua mão na água. É difícil distinguir, agora, o que aqui é mão, o que é reflexo. Onde as permeia a água? Uma imagem funde-se na outra, realizando na pintura aquele momento que, no mito, permanece impossível: o do toque (Kiening, 2015KIENING, Christian. “Narciso e Eco. Medialidade do amor e da morte”. Terceira Margem, v. 19, n. 32, 2015, p. 252-285. Disponível em: <https://revistas.ufrj.br/index.php/tm/article/view/10270/7752>. Acesso em: 09 abr. 2021.
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: 271). Quantas imagens podemos aí visualizar? Vemos duas imagens, a de Narciso e de seu reflexo, ou uma só, enquanto conjunto que funde as imagens do mito naquele estranho toque? Ou antes três (a imagem de Narciso, o reflexo de sua imagem e ainda o entrelaçamento entre ambos), se mantivermos a própria relação com o mito como “grau zero” dessa pintura?

Se com relação à pintura – e depois, com a fotografia – o problema da representação pode ser colocado e pensado no limite das narrativas (de cujas amarras, talvez, apenas a pintura não figurativa venha a se soltar), o cinema prolifera o diálogo que permite acessar “uma esfera comum de operações que pode ser descrita com as mesmas noções” (Xavier, 2003XAVIER, Ismail. “Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema”. In: PELLEGRINI, Tânia (et al.). Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac São Paulo; Instituto Itaú Cultural, 2003, p. 61-89.: 64).10 10 Acerca das relações entre um livro e um filme, pondera Xavier (2003: 62) que “O lema deve ser ‘ao cineasta o que é do cineasta, ao escritor o que é do escritor’, valendo as comparações entre livro e filme mais como um esforço para tornar mais claras as escolhas de quem leu o texto e o assume como ponto de partida, não de chegada”. Assim, temos de considerar a autonomia entre Narciso em férias como obra literária (seja como capítulo de Verdade Tropical, seja como livro publicado per se em 2020) e como documentário. Seguindo a ressalva metodológica de Xavier, invocaremos o livro para tornar “mais claras” as opções “retóricas” (Nichols, 2010) do documentário, buscando trazer tanto a experiência configurada no filme quanto os problemas teóricos que nos levam a pensar aquela experiência nos limites de nossa representação, seja aquela pressuposta pelo direito, seja aquela do cinema. Sendo assim, segundo Xavier (2003XAVIER, Ismail. “Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema”. In: PELLEGRINI, Tânia (et al.). Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac São Paulo; Instituto Itaú Cultural, 2003, p. 61-89.: 64), é possível considerar que o “filme narrativo-dramático, a peça de teatro, o conto e o romance têm em comum uma questão de forma que diz respeito ao modo de disposição dos acontecimentos e ações das personagens”, o qual decorre justamente da postura do próprio narrador, que dispõe a experiência narrada no tempo e no espaço, dando-lhe uma “ordem”.

O fato de aproximarmos, nesta reflexão, o documentário do filme “narrativo-dramático” não se dá com intuito de borrar as fronteiras entre ambos, mas, pelo contrário, ocorre para ressaltar que, assim como acontece na comparação entre o filme e o romance, existem expedientes narrativos que operam dentro dos limites de cada forma fílmica, pois cada qual “conta uma história [story], mas essas histórias, ou narrativas, são de espécies diferentes” (Nichols, 2010NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Trad. Monica Saddy Martins. 5. ed. Campinas: Papirus, 2010.: 26). A experiência precisa ser colocada numa história para ser transmitida e elaborada, dando-se a narração dos eventos no modo de um encadeamento de palavras, no caso da literatura, ou segundo a disposição de imagens em movimento, no caso do cinema.

Assim, as aproximações entre distintas atividades como a literatura e o cinema são concebíveis pela existência de procedimentos comuns, antes de tudo narrativos, embora, importante ressaltar, eles sejam mobilizados para propósitos determinados pela zona de aplicação. Nesse caso, lembramos que também o direito é perpassado por narrações, sendo não apenas disposto por aquelas “o situam e lhe proporcionam significado” (Cover, 2016COVER, Robert. “Nomos e narração”. ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura, Porto Alegre, v. 2, n. 2, jul./dez. 2016, p. 187-268. Disponível em: <http://rdl.org.br/seer/index.php/anamps/article/view/299>. Acesso em: 18 mar. 2020. doi: <http://dx.doi.org/10.21119/anamps.22.187-268>
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: 188), mas também sendo capaz ele mesmo de situá-las, apresentando-se como “um recurso de significação que nos possibilita submeter, regozijar, lutar, perverter, zombar, desgraçar, humilhar ou dignificar” (Cover, 2016COVER, Robert. “Nomos e narração”. ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura, Porto Alegre, v. 2, n. 2, jul./dez. 2016, p. 187-268. Disponível em: <http://rdl.org.br/seer/index.php/anamps/article/view/299>. Acesso em: 18 mar. 2020. doi: <http://dx.doi.org/10.21119/anamps.22.187-268>
http://rdl.org.br/seer/index.php/anamps/...
: 192) que revela sua própria dimensão instituinte (Cf. Ost, 2007OST, François. Contar a lei: as fontes do imaginário jurídico. Trad. Paulo Neves. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2007.: 41-48). As narrativas, portanto, são distintas e estão imantadas pelos elementos característicos das mais diversas atividades humanas: por exemplo, por mais criativa e “forte” que seja a palavra literária, ela não tem o poder de nos obrigar ou desobrigar de alguma coisa como a palavra jurídica, que também é criadora (por mais que possa ser menos criativa) (cf. Cordeiro e Stamile, 2018CORDEIRO, Roan Costa. STAMILE, Natalina. “A construção da narrativa jurídica periférica e a preponderância da força: uma leitura de Osman Lins”. Tigor. Rivista di scienze della comunicazione e di argomentazione giuridica, v. X (2018), n. 2, Trieste, 2018, p. 3-15. Disponível em: <http://hdl.handle.net/10077/22630>. Acesso em: 20 dez. 2020.
http://hdl.handle.net/10077/22630...
: 14). Nesse sentido, também o seu aspecto normativo, portanto, é configurado narrativamente, assim como o é sua relação com a moral, com a política, com a força, com a violência, etc.

Destarte, a narração, os procedimentos narrativos e mesmo o ato de narrar ultrapassam o específico de cada área, ou melhor, não estão definidos previamente por um ou outro modo específico de narrar – seja ele o jurídico, o literário, o cinematográfico, etc. Cada área, singularizando o comum, narrará do seu modo. Todavia, vale dizer, continuará narrando. Para aprofundar essa leitura, dois conceitos empregados por Ismail Xavier são pertinentes para compreender procedimentos narrativos comuns:

Diante de qualquer discurso narrativo, posso falar em fábula, querendo me referir a uma certa história contada, a certas personagens, a uma sequência de acontecimentos que se sucederam num determinado lugar (ou lugares) num intervalo de tempo que pode ser maior ou menor; e posso falar em trama para me referir ao modo como tal história e tais personagens aparecem para mim (leitor/espectador) por meio do texto, do filme, da peça. Uma única história pode ser contada de vários modos; ou seja, uma única fábula pode ser construída por meio de inúmeras tramas, com formas distintas de dispor os dados, de organizar o tempo (Xavier, 2003XAVIER, Ismail. “Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema”. In: PELLEGRINI, Tânia (et al.). Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac São Paulo; Instituto Itaú Cultural, 2003, p. 61-89.: 65).

No caso do cinema, encontramos claramente no filme um “nível da fábula”, a partir do qual identificamos a “história em si”, e um “nível da trama”, no qual importa “o modo como o filme tece a narrativa e nos traz dados que nos permitem tomar consciência do que se trata” (Xavier, 2003XAVIER, Ismail. “Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema”. In: PELLEGRINI, Tânia (et al.). Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac São Paulo; Instituto Itaú Cultural, 2003, p. 61-89.: p. 66). Ambas, fábula e trama, mesmo distintas, estão também relacionadas, pois a trama é o que permite estabelecer uma relação com a “história em si”, com a fábula, enquanto a dispõem numa determinada narrativa e a conta de um determinado modo. Ao já disporem de uma “fábula”, vale dizer, de um elemento da experiência,

o que um filme, um romance ou uma peça me oferecem é a trama, pois não posso me relacionar senão com a disposição do relato tal como ele me é dado. E é a partir daquilo que me oferece — a trama — que deduzo a fábula, que refaço a vida das personagens em minha cabeça. E não o contrário. Narrar é tramar, tecer. E há muitos modos de fazê-lo, em conexão com a mesma fábula. Isso implica propor muitos sentidos diferentes, muitas interpretações diferentes a partir do mesmo material bruto extraído de uma sucessão de fatos, de um percurso de vida (Xavier, 2003XAVIER, Ismail. “Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema”. In: PELLEGRINI, Tânia (et al.). Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac São Paulo; Instituto Itaú Cultural, 2003, p. 61-89.: p. 66, grifos nossos).

Nesse caso, precisamos considerar que os distintos modos de narrar estabelecem a nossa própria relação, na área determinada, com a “fábula”, com uma história que apreende a experiência. Todas essas linguagens, para empregarmos a terminologia de Pier Paolo Pasolini (1993), exprimem, enquanto tais, o fato de que todo meio de expressão se relaciona com uma realidade (a “linguagem” primeira do real, segundo o raciocínio pasoliniano), isto é, são distintos os meios (técnicos) para exprimir uma relação com o mundo –é deles, então, que extraímos a “fábula” segundo um ponto de vista. Diante das diversas práticas aqui consideradas, o cinema e o direito, mas também a música e a literatura, podemos vislumbrar diversas tramas – o documentário, o inquérito, a canção, a autobiografia – a tratarem de uma mesma fábula: a experiência de um cantor/compositor capturado nas garras do regime ditatorial enquanto representante – corpóreo e vocal – de um movimento estético.

Ao estabelecerem a relação, numa determinada área, com a “fábula”, com uma história que apreende a experiência, os distintos modos de narrar implicam uma “produção de sentido implicada em certa construção do olhar” (Xavier, 2003XAVIER, Ismail. “Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema”. In: PELLEGRINI, Tânia (et al.). Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac São Paulo; Instituto Itaú Cultural, 2003, p. 61-89.: 67, grifos nossos). A “produção de sentido” tecida por uma “certa construção do olhar” não se restringe ao cinema ou à literatura. Pelo contrário, em última análise, todos os relatos considerados configuram e nos apresentam, mediante interpretações, os sentidos que podemos revelar e atribuir à realidade, alargando-a ou restringindo-a conforme os exploramos. Desse modo, a produção de sentido é posta em jogo por qualquer meio de expressão da realidade, bem como por qualquer prática humana capaz de elaborar a experiência. Assim, também o direito dispõe nas suas tramas uma determinada fábula, constituindo-se como “certa construção do olhar” que, ao fazê-lo, constitui a si mesmo por meio de uma operação que seleciona e monta os fragmentos do real, ordenando-os numa narrativa que lhes atribui sentidos.

Diante disso, “a câmera narra (tell) e não apenas mostra” (Xavier, 2003XAVIER, Ismail. “Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema”. In: PELLEGRINI, Tânia (et al.). Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac São Paulo; Instituto Itaú Cultural, 2003, p. 61-89.: 75). A câmera assume o papel de um ponto de confluência dos diversos ângulos que compõem o ponto de vista do filme. Vale insistir, portanto, quanto à realização fílmica, na existência de dois pontos de vista distintos que amarram a narrativa, no caso do cinema, e eles serão chamados de ficção e de documentário tendo em vista o modo como operam a narração, ou melhor, como colocam em cena a câmera e os meios técnicos. Nesse caso, a composição de uma narrativa pode adotar como objetivo de sua criação e como objeto das operações da câmera determinados aspectos do mundo, disputados ou disputáveis enquanto sentidos da realidade que “abordam o mundo em que vivemos e não um mundo imaginado pelo cineasta” (Nichols, 2010NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Trad. Monica Saddy Martins. 5. ed. Campinas: Papirus, 2010.: 17), ou pode se valer da câmera como o suporte de uma criação que não tem o mundo existente como limite narrativo ao exercício da imaginação em sua integralidade.11 11 Podemos notar que essa distinção contém muitas zonas de contato que “não garantem uma separação absoluta entre ficção e documentário” (Nichols. 2010: 17), o que nos leva a considerar que a inclusão de um ou outro filme num ou noutro lado da fronteira também é fruto de um ato de autonomeação que depende das pretensões do cineasta. Enquanto o filme narrativo ficcional aponta para outros mundos possíveis, portanto, assumindo sua dimensão criadora e instituinte de mundos, o filme narrativo documental aponta para aspectos deste mundo, narrando o existente de modo a revelar o seu próprio semblante.

A relação entre ser e aparecer, fundamental para a compreensão das artes, principalmente em seu impulso representativo, encontra aqui um momento de torção, pois o que vemos na tela do documentário é tanto manifestação de um aspecto do mundo quanto realização (portanto, criação, mediante processos resultantes do aparato e do enfoque cinematográficos) de determinada aparência. Opera aqui o pressuposto de que algo sempre aparece enquanto imagem, “entra em cena”, ou melhor, é capturado pela objetiva. Mas a objetiva não é posta em movimento (ou deixada inerte) por si mesma – ela é sempre posta, o que vale dizer que é disposta por alguém, que a posiciona tendo em vista o que está do outro lado da objetiva. O problema da representação do mundo no cinema – a “janela” ou “espelho” para a realidade (Xavier, 2005XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005.: 22) – dá lugar a uma consideração da natureza da realidade da imagem, uma vez que o cinema origina, principalmente na forma do documentário, “uma imagem cuja forma restaura nossa relação com o mundo, explorando suas contradições. Nesse sentido, podemos dizer que o real resiste dentro de um ciclo imaginário de destruição e (re)construção” (Gutfreind, 2008: 9). Assim, numa “moldura narrativa” (Xavier, 2005XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005.: 33), está em questão o limite da relação que se pode estabelecer, por meio do cinema, com o mundo comum, histórico, que partilhamos. É esse mundo que o documentário organiza (narra) no seu “espelho” ao mostrar para nós imagens em movimento. Daqui, portanto, a potência de Narciso, mesmo com o calar de seu reflexo.

2. A “exceção brasileira” nos reflexos de Narciso em férias

“É no espelho

Que eu vejo a minha mágoa

A minha dor

E os meus olhos rasos d’água”

(Nelson Cavaquinho, A flor e o espinho)

No documentário Narciso em férias, onde diversas tramas narrativas confluem, o sentido é produzido numa articulação coerente entre o plano imagético e o plano da voz. No plano da imagem, somos desde o início confrontados com Caetano Veloso sentado numa cadeira, bastante simples, de assento e encosto de tecido preto com pés de madeira, situada defronte à câmera, mas não demasiadamente próxima dela, sobre um amplo e distante fundo cinza, espécie de paredão que bem lembra a área interna (aberta) de um presídio, talvez aqueles pátios nos quais poderiam ter ocorrido os raríssimos passeios internos durante a sua própria prisão. É o cinza das placas de concreto, aqui, a nos remeter a essa associação, mas também a frieza das demais cores e o minimalismo da composição. Diante desse cenário, podemos dizer que estamos diante da encenação, montada pelo olhar dos diretores, do interrogatório a que foi submetido Caetano. No plano da voz, por sua vez, temos o destaque conferido ao relato do artista, que se apresenta como aquele que experimentou não apenas as práticas de perseguição política do regime ditatorial de 1964, mas se defrontou com a exceção que as atravessava de um lado a outro.

Em sentido mais amplo, a partir da confluência dessas dimensões, podemos compreender a própria amarra ou “voz narrativa” (Xavier, 2003XAVIER, Ismail. “Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema”. In: PELLEGRINI, Tânia (et al.). Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac São Paulo; Instituto Itaú Cultural, 2003, p. 61-89.: 67) que nos permite perceber como as imagens em movimento e a voz do ator social são dispostas na trama pelos cineastas, que apresentam ao público uma determinada produção de sentidos e “orientação específica” (Nichols, 2010NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Trad. Monica Saddy Martins. 5. ed. Campinas: Papirus, 2010.: 92) sobre o mundo histórico, amarra a qual se pode denominar, nos termos de Nichols, como “voz do documentário”.

Cabe considerar, portanto, a partir do documentário, como se coloca a experiência da exceção como marca assinalada pela ditadura na experiência jurídica brasileira, pois, embora ela não seja a criadora de todas as suas nódoas, é certamente um período recente bastante sombrio de nossa história. Nesse sentido, a própria experiência de Caetano pode aparecer como exemplar de uma captura da vida no avesso do direito, assim como seriam tantas outras, representadas por diversos meios de expressão, como a literatura, a exemplo de Retrato Calado, obra na qual o filósofo brasileiro Luiz Roberto Salinas Fortes (2012)FORTES, Luiz Roberto Salinas. Retrato calado. São Paulo: Cosac Naify, 2012. relata o questionamento de si posto em prática nos meandros obscuros do aparato repressivo durante a ditadura civil e militar. Valendo-se de lances narrativos e descritivos cuja trama de fato compõe retratos no limite do silêncio, com destaque às retratações da tortura que invalidam a palavra, a própria possibilidade de expressão das experiências é colocada em questão, traduzindo-se na obrigação de rigor: falar, agora, narrar, é uma forma de se colocar à altura do acontecido, “ferida aberta latejando na memória” (Fortes, 2012FORTES, Luiz Roberto Salinas. Retrato calado. São Paulo: Cosac Naify, 2012.: 42).

Caetano Veloso, por sua vez, não foi submetido à tortura física, e poucos são os momentos em que faz menção a violências físicas, fossem sofridas, a exemplo de quando, tendo sido transferido junto com Gil entre as unidades do Exército, “algemados com as mãos para trás, levamos alguns empurrões e trancos enquanto nos apressavam o passo” (Veloso, 2017: 370), ou pressentidas, como a escolta, já no último cárcere, que o conduz, num ritual kafkiano, para cortar os cabelos. Isso não significa, no entanto, que a violência física extrema não fosse uma ameaça potencial e não o circundasse.12 12 De fato, ele ressalta no livro e no documentário que “Todos nós, presos políticos, sabíamo-nos sob a proteção de uma ordem de não-agressão física a que, por vezes, alguns oficiais se referiam com desdém e impaciência. A irritação com essa ordem não raro se manifestava em sessões de humor negro, com algum oficial, apontando o cano do revólver para dentro do xadrez, num protesto contra a benevolência de seus superiores, a dizer: ‘Se fosse por mim, eu metia logo bala em vocês’ (...). Os presos comuns não se beneficiavam dessa benevolência (...). Às vezes eu era acordado no meio da noite por gritos horrendos vindos do corredor. Eram surras intermináveis e, mais de uma vez, ouvi as vozes dos verdugos pedirem com urgência a ‘padiola’. Essas vozes por vezes pareciam surpresas com o resultado dos maus-tratos (...). De fato, desde essa experiência na PE da Vila Militar, passei a ter uma ideia diferente da sociedade brasileira, a ter uma medida da exclusão dos pobres e dos descendentes de escravos que a mera estatística nunca me daria” (Veloso, 2017: 376). Pelo contrário, ela está longe de ser apenas um “vício” da execução e da aplicação do direito: antes, tornou-se parte substancial de seu sentido histórico – e, portanto, “regular” e atual – no Brasil. A exceção revela aqui um complexo jogo de inversões, que subsiste no imaginário, ao colocar em suspensão o próprio sentido do que seja “regular”: a aplicação segundo “regras” revela-se uma exceção na prática.

Assim, no que diz respeito às distintas formas pelas quais a violência pode se materializar, o documentário deixará mais explícito o fato de que estamos diante de uma violência pervasiva, que se manifesta por exemplo na “tortura psicológica”, como expressamente as nomeia Caetano Veloso (Narciso, 2020bNARCISO em férias. Locutor: Caetano Veloso. [s.l.]: Spotify, 10 set. 2020b. Podcast. Disponível em: <https://open.spotify.com/playlist/2Wll1Wdgh0iK000dag6Kcb>. Acesso em: 19 dez. 2020b.
https://open.spotify.com/playlist/2Wll1W...
). Embora se possa dizer que elas permeiem a narrativa textual da autobiografia, é no relato diante da câmera, com seu jogo específico de cena, que aquela forma de violência é levada ao ápice de uma tensão muito sutil. Nesse caso, o cinema, desde seu início, mobiliza a participação do público enquanto espectador que se busca, como ressalta Nichols (2010NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Trad. Monica Saddy Martins. 5. ed. Campinas: Papirus, 2010.: 68), instigar de modo a “crer no vínculo indexador entre o que vemos e o que ocorreu diante da câmera”, seja como algo dito, seja como algo mostrado, bem como de “avaliar a transformação poética ou retórica desse vínculo em um comentário ou ponto de vista acerca do mundo em que vivemos”. Nesse sentido, o cinema dispõe de um discurso peculiar sobre o real que aparece na realização do meio técnico – ele torna um aspecto do real acessível para nós de determinada maneira. É essa dimensão da realidade humana que pode ser acessada pelo discurso cinematográfico a partir da “refração”, na objetiva, de uma experiência particular, individual ou coletiva, sofrida realmente pelo “ator social”, experimentada imaginariamente pelo espectador, mediante a projeção da narrativa.

Ao contrário do que se poderia esperar, tendo em vista abordagens mais tradicionais do documentário, não são mostradas imagens que ratificam o que está sendo dito nem há, aqui, emprego de voz over ou da voz da autoridade. Quando aparece, entregue em mãos pelos diretores, a revista a que Caetano teve acesso, quando preso, nas quais se nota a reportagem sobre a chegada do homem na Lua (passagem que também inspiraria a canção Terra), assim como o inquérito documentado da ditadura, que Caetano lê, tais documentos surgem não tanto quanto provas do que está sendo dito (o que não deixam de ser) quanto gatilhos da memória, a despertar a recordação do que se está por dizer. A violência também não aparece nas suas formas mais imediatas, ou seja, nas formas pelas quais se captura a sua manifestação diretamente no mundo como agressão física, tortura, espancamento, destruição de um objeto, de um corpo ou ser vivo (a derrubada de uma árvore, por exemplo), etc. De modo mais engenhoso, a retirada de cena da representação (visual ou auditiva) da violência imediata abre a narrativa fazendo eco, no plano técnico, a convenções tão antigas quanto as do drama clássico grego, além de reforçar, dando espessura ao conteúdo que assim toma forma, “uma das características mais decisivas da ditadura brasileira: sua legalidade aparente ou, para ser mais preciso, sua capacidade de reduzir a legalidade à dimensão da aparência” (Safatle, 2010SAFATLE, Vladimir. “Do uso da violência contra o Estado ilegal”. TELES, Edgar. SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 237-252.: 251).

Em Narciso em férias, todo um arcabouço factual é trazido ao público a partir do ângulo particular de um discurso, bem circunscrito no tempo e no espaço, acerca da experiência de um indivíduo destituído arbitrariamente da proteção jurídica, e de tudo o que ela “normalmente” significa, no processo de derrocada da democracia e do direito. O fato de que esse indivíduo, no entanto, fosse um cantor e compositor da Música Popular Brasileira, e mais ainda, expoente de um movimento contestador da situação corrente da cultura, a Tropicália, agrega mais um “fio” na construção da “trama” narrativa do relato documentário, pois é o homem e o artista, vale dizer, o artista enquanto homem e o homem enquanto artista, que são sobrepostos na imagem atual – a do cantor e compositor, poeta Caetano Veloso, agora “ator social”, personagem do documentário com nome, sobrenome, profissão, gênero, cor.13 13 O conceito de “ator social” é utilizado para nomear aquelas e aqueles que atuam com sua voz e corpo diretamente no documentário, vistos (ou ouvidos) pela objetiva (cf. Nichols, 2010). O cineasta e o ator social porventura podem se encontrar no mesmo “papel”, por exemplo, quando o diretor se torna atuante na “cena” filmada não apenas como quem pergunta ou dirige, mas como quem se manifesta – ele (ou ela) passam então para o outro lado da lente. Como argumentamos na seção anterior, nota-se toda uma contaminação existente entre a terminologia condizente ao cinema (documentário, e não apenas ficcional) e aquela relativa à narrativa literária. Com isso, é sempre uma voz que nos fala, no plano do som, a voz do “sujeito” da experiência, Caetano Veloso, exceto nos momentos em que ela se converte em canto, acompanhada de violão, ou nas raras manifestações dos cineastas, quando ouvimos intervenções e perguntas dirigidas ao “depoente”. As nuances da voz, portanto, são aquelas decorrentes dos tons conferidos pelo falante aos segmentos de discurso que enuncia e do quanto ainda experimenta das marcas de seu passado no presente. Dessa maneira, não apenas o homem e o artista estão sobrepostos, mas também o presente e o passado, razão e emoção:

A expressão de um corpo e sua fala traz uma intensidade ampliada quando este corpo é de um personagem público, uma ‘estrela’. Sua configuração, para nós, adquire a inevitável particularidade que a encenação de fisionomias anônimas não possui. Os trejeitos fazem parte de nosso repertório comum. A voz que conhecemos na modalidade canção é a mesma fala que ouvimos no depoimento, compondo indiretamente recordações que podem ser acionadas como afetos em nossa memória. Some-se a isto a presença do Caetano-corpo falando na duração do presente da tomada, e em nosso tempo espectatorial, num modo de discurso com retórica forte, articulado na maneira incisiva que é uma das características do poeta (Ramos, 2020RAMOS, Fernão Pessoa. “Caetano Tardio”. A Terra é Redonda (blog), 2020. Disponível em: < https://aterraeredonda.com.br/caetano-tardio/>. Acesso em: 02 fev. 2021.
https://aterraeredonda.com.br/caetano-ta...
).

Nesse sentido, quando pensamos a “exceção brasileira” narrada em Narciso em férias, precisamos considerar que o termo possui uma notação que remete a algo mais do que à simples aplicação de uma teoria da exceção (ou melhor, do “estado de exceção”) ao Brasil, ou ainda, à aposta de que esse país é em si mesmo, totalmente, uma “exceção”. Pelo contrário, trata-se de considerar que talvez estejamos diante da existência de uma exceção que é própria da experiência jurídico-política brasileira (Teles e Safatle: 2010), em outros termos, de uma “exceção à brasileira”, como aquela configurada com a ditadura civil e militar que lhe faz jus como imagem violenta. Sendo assim, o desafio que se coloca ao pensamento consiste em considerar a ditadura brasileira como caso extremo de uma violência que “se mede não [apenas] por meio da contagem de mortos deixados para trás, mas através das marcas que ela deixa no presente, ou seja, através daquilo que ela deixará para frente” (Teles e Safatle, 2010TELES, Edgar. SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.: 10).

Quais são as marcas características da ditadura civil e militar brasileira que podemos aqui isolar? De um lado, como já aludimos, temos a conversão de ilegalidade em (aparência de) legalidade, de outro, a própria violência que não apenas se projeta no tempo, encadeando formas que se espelham umas nas outras e apontam para a permanência do passado autoritário, mas que também define a instituição daquela “conversão”. Assim, a violência e a legalidade configuram a abertura da exceção como as duas faces de uma mesma moeda, que se sustenta com a existência das suas duas efígies. Valendo a pena da obviedade lembrar que as faces de uma moeda não podem ser vistas ao mesmo tempo, a efígie violenta do regime é a todo tempo minada pela tentativa de legalização que apresenta a sua face como “representável” e visa a apagar, a todo custo, a exposição daquela outra face. É então que aparece, segundo compreendemos, aquela que pode ser vista como outra marca da experiência brasileira da exceção (compreendida como o mecanismo que permite articular justamente aquelas duas faces, borrando as fronteiras entre a violência e o direito): a negação da violência e de qualquer experiência do direito que não seja algo além de uma estratégia para aparentemente legitimar a violência real.14 14 Não se deve entender, porém, que o direito aqui diga respeito apenas à aparência e que a realidade seja simplesmente a violência. Essa leitura perde de vista que a experiência da exceção diz respeito à possibilidade mesma de estabelecimento do direito e de relação com a ordem jurídica, isto é, a possibilidade de materialização (aplicação) de regras, normas, procedimentos, etc., que ultrapassa a vigência puramente normativa. Para além do sentido liberal moderno, pelo qual o direito se volta à limitação do (poder) soberano, isto é, da força e da violência, entende-se que a exceção não se coloca simplesmente fora ou dentro da própria organização do aparato estatal e do direito, mas significa um modo de relação que borra (“indetermina”) os próprios limites entre violência e direito ao criar um nexo onde “não existe nenhuma articulação substancial” (Agamben, 2007: 131-132). O problema da violência deixa de estar fora, por conseguinte, para se colocar de uma vez por todas, inequivocamente, no limite mesmo da definição não apenas do Estado moderno, mas, enquanto disposição dos “meios”, também do direito e da política. Assim, conciliam-se também os dois enunciados correntes da negação da natureza ditatorial do regime civil e militar vigente entre 1964 e 1985: antes de tudo, “‘Não houve, no Brasil, tortura e assassinato como política sistemática de segurança de Estado’” ditadura”; mas também, subsidiariamente, ‘’Houve tortura e assassinato, mas estávamos em uma guerra contra ‘terroristas’” (Safatle, 2010SAFATLE, Vladimir. “Do uso da violência contra o Estado ilegal”. TELES, Edgar. SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 237-252.: 241-242). Em outros termos, mais genéricos, mas ainda mais impactantes no presente e com efeitos mais profundos: “não houve ditadura”; “se houve, ela era necessária para...” (impedir os comunistas, garantir a constituição, defender a família, etc.), de modo que a ditadura pode ser “legitimada” por praticamente quaisquer fins que o enunciador do discurso lhe possa atribuir.

A experiência de legitimar a exceção ao direito negando a violência do direito, portanto, configura um modo pertinente ao peculiar modo brasileiro de estruturar a relação entre o direito, a violência e a vida. A negação das experiências da perseguição e da violência que atravessam os aparatos de Estado adquire um papel fundamental na conformação política do presente brasileiro, inclusive no sentido de obstruir o confronto com nosso passado político não democrático. Nesse sentido, a ameaça permanente do regresso ditatorial indica para uma válvula aberta da violência, traduzida não apenas nas heranças propriamente institucionais da ditadura, mas também reproduzida em cada ato de violência estatal, notadamente as agressões policiais que são a regra da exceção que permeia o cotidiano, subtraída na corrosão da memória. Se diversas estratificações, “sedimentos” do passado têm nome – a violência sendo um dos mais marcantes – e continuam a persistir no presente, permitindo designar o “autoritarismo brasileiro” (Schwarz, 2019) que ainda o permeia, temos de ter em vista que “da incapacidade de lidar com nosso passado vem o caráter deteriorado de nossa democracia” (Safatle, 2010SAFATLE, Vladimir. “Do uso da violência contra o Estado ilegal”. TELES, Edgar. SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 237-252.: 251).

As relações entre os tempos históricos, no entanto, longe de serem lineares, estão comprometidas no sentido de uma sabotagem do próprio futuro, pois também “não basta culpar o passado e fazer as pazes com o presente” (Schwarcz, 2019SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.: 39). A consequência para a fundação da ordem jurídica democrática e constitucional é de grande monta, pois, se cada “lugar de memória”15 15 Desenvolvido pelo historiador francês Pierre Nora no final dos anos de 1970, o conceito de “lugar de memória” resultou de um aprofundamento no estudo das memórias coletivas na construção da história da França, sendo, em um primeiro momento, uma tentativa de estabelecer uma possibilidade de contraponto a uma história nacional unitária e autocelebrativa. Nesse sentido, os lugares de memória “nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não naturais" (Nora, 1993, p. 13). Estudos atuais utilizam do conceito como mecanismo para a proteção e promoção dos direitos humanos, afastando silenciamentos contra populações vulnerabilizadas e garantindo-lhes o direito de representação e opinião. existente e disponível pode se considerar potencialmente sob ataque, a consciência da fragilidade dessa ordem deve ser o ponto de partida das práticas que visam ao estabelecimento da memória da exceção.

Mais uma vez, o autoritarismo em latência em diversas formações sociais, políticas e jurídicas irrompe nos limites da exceção (pressuposta como excluída para ser incluída), tornando-se regra, tal como os tantos “casos isolados” que, por definição, apresentam os “exemplos” da exceção.16 16 Segundo Agamben (2010), um exemplo significa a exclusão de um elemento (termo, enunciado, etc.) do conjunto ao qual pertence. Nesse sentido, o filósofo o define como “inclusão exclusiva” (isto é, a expulsão do incluído) que é simétrica (e oposta) à exceção, que seria, por seu turno, uma “exclusão inclusiva” (a inclusão do expulso). Ambos, no entanto, a exceção e o exemplo, “forma[m] sistema”, revelando “os dois modos através dos quais um conjunto procura fundamentar e manter a própria coerência” (Agamben, 2010: 29) Daqui o contexto naturalizador no qual o “abuso, no aparato social, estatal e midiático instalado no país, é a prática em que se objetiva a aplicação pura e real da força; a narrativa social do direito permanece aprisionada em uma representação herdada das situações em que a violência é a lei concreta e aplicável do Estado” (Cordeiro e Stamile, 2018CORDEIRO, Roan Costa. STAMILE, Natalina. “A construção da narrativa jurídica periférica e a preponderância da força: uma leitura de Osman Lins”. Tigor. Rivista di scienze della comunicazione e di argomentazione giuridica, v. X (2018), n. 2, Trieste, 2018, p. 3-15. Disponível em: <http://hdl.handle.net/10077/22630>. Acesso em: 20 dez. 2020.
http://hdl.handle.net/10077/22630...
: 6).

Diante da dificuldade de tornar esse processo inteligível, se considerado apenas no plano do conceito, os expedientes mobilizados pelo documentário realçam a composição sutil da relação que estabelecemos com o mundo, sendo capaz de nos apresentar, por meio desses expedientes, também uma interpretação dele. Pela sua própria composição narrativa, o cinema permite modular a relação com o mundo em termos de distância e proximidade ao colocar em cena, “em particular, aquela proximidade extrema do corpo que faz com que o rosto, as mãos e os olhos alcancem um patamar inusitado de expressão e significação, desde que, na exploração desse potencial específico, o cineasta seja capaz de criar um estilo” (Xavier, 2003XAVIER, Ismail. “Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema”. In: PELLEGRINI, Tânia (et al.). Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac São Paulo; Instituto Itaú Cultural, 2003, p. 61-89.: 87). Nesse caso, em Narciso em férias, o rosto de Caetano Veloso torna-se um expediente “narrativo” que apresenta também a exposição do ator e do espectador diante das marcas da experiência que nos desarma pela violência, seja mediante exercícios de sua pura manifestação, seja pela capacidade de manipular as fronteiras entre o legal e o ilegal de modo a articular um exercício do direito marcado pela violência.

As múltiplas formas de tecer uma relação com a experiência situam o jogo de forças sempre atual entre a lembrança e o esquecimento do fato de que existe algo em nossas práticas políticas e jurídicas que insiste em não se tornar passado, uma vez que as raízes autoritárias do Brasil continuam a persistir em manifestações mais ou menos sutis no cotidiano e a alimentar os renitentes projetos que buscam, reafirmando o autoritarismo, retirar dos cidadãos “o direito de imaginar uma interferência ambiciosa no futuro do mundo” (Veloso, 2017: 82).

A radicalidade dessa última consideração – não apenas um “direito à imaginação”, mas de imaginar uma relação ativa com o futuro do mundo – alimentava a Tropicália, que então capitaneava a necessidade de uma reinvenção radical do Brasil (Veloso, 2017: 81). Diante disso, a atuação da Tropicália, antes de tudo estética, cultural, pôde ser vista como algo tão ultrajante pela ditadura e seus sequazes porque a injunção do regime comandava não apenas o juízo dominante de que tudo o que tínhamos era “bom”, mas também, algo ainda mais sensível aos artistas, era “belo”. Longe de tenebrosas transgressões, como queria (e quer fazer crer) o autoritarismo instalado no poder, o que havia era o exercício pleno daquele “direito de imaginar” pelos artistas: “queríamos ver o Brasil numa mirada em que surgisse a um tempo super-Rio internacional-paulistizado, pré-Bahia arcaica e pós-Brasília futurista” (Veloso, 2017: 81). Em outros termos, o mandamento sustentado pelo regime consistia numa intervenção arbitrariamente denegatória daquele “direito de imaginar”, bem como das suas garantias, tornando passível de cerceamento qualquer outra coisa que não a simples reafirmação da ordem existente da realidade em qualquer um de seus termos (sociais, culturais, jurídicos, etc.). Ao comandar a não concorrência de valores, revela-se o sentido profundamente autoritário da conformação jurídico-política que solapa a noção de que “a legalidade de todo e qualquer Estado está ligada à sua capacidade de criar estruturas institucionais que realizem a experiência social da liberdade” (Safatle, 2010SAFATLE, Vladimir. “Do uso da violência contra o Estado ilegal”. TELES, Edgar. SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 237-252.: 246).

Ao operar, portanto, a contrafação do vínculo inexorável da Tropicália com o Brasil, o discurso dos agentes da ditadura revela a importância e a extensão do desafio colocado pelas tentativas de articular projetos para este “nome sem país” (Veloso, 2017: 48). Daqui, portanto, que possamos compreender o elemento genuíno da prisão de Caetano Veloso como sendo o da reação à Tropicália, isto é, a materialização do patrulhamento e controle movido pelos aparatos da ditadura sobre quaisquer manifestações (não apenas políticas) dissonantes em suas vozes, gestos e afetos.

Essa reação é mais facilmente vista quando temos em mãos o processo explorado no documentário. Hoje parte do acervo do Arquivo Nacional, o documento de registro do Inquérito aberto contra Caetano Veloso pelo Estado, via Conselho Nacional de Segurança, conta com pouco mais de trezentas páginas (330 no total, sendo a grande maioria composta por cópias e páginas vazias), nas quais estão registrados não apenas alguns momentos vivenciados pelo cantor enquanto preso, como o seu interrogatório, mas também a forma como era visto, ao lado de alguns de seus parceiros musicais, pelo então regime, bem como a razão de sua prisão. De todos os registros ali contidos, é este último o que ganha maior destaque no documentário, já que até o ano de 2018 o próprio Caetano jamais soube as razões que o levaram à prisão.

Tal como se dão os processamentos hoje, os autos contam com uma exposição dos motivos que levaram à prisão e com a ficha individual do acusado. E tal como nos procedimentos atuais, o conhecimento sobre eles muitas vezes é restrito aos agentes do Estado. Encontramos, ainda, informações providas pelo Serviço Nacional de Informações e o Processo Administrativo do Ministério da Justiça nº 56.635, aberto em 23 de junho de 1969, para agrupar informações relativas aos atos de Caetano.

A leitura completa das peças acusatórias, acompanhada da transcrição dos interrogatórios conduzidos pelo Major da arma de Artilharia Hilton Justino Ferreira (Arquivo Nacional, 1969ARQUIVO NACIONAL – CONSELHO DE SEGURANÇA NACIONAL. Arquivo Caetano Emanoel Viana Telles Veloso (manuscrito). Código: BR. DFAN. BSB. N8.PRO.CSS.56.01. 23 de junho de 1969.: 50-54), mostra que Caetano foi investigado por uma série de diferentes razões, dentre elas: letras de músicas consideradas “revolucionárias”; a participação na Passeata dos Cem Mil; seu famoso discurso no Festival Internacional da Canção de 1968, após ser vaiado por cantar É proibido proibir. Entretanto, a ordem de prisão veio apenas com o alegado lançamento do disco “Che” (uma ode ao guerrilheiro argentino que recentemente promovera a Revolução Socialista Cubana ao lado de Fidel Castro), cuja divulgação teria sido feita com um show na extinta boate Sucata, onde Caetano e Gilberto Gil, identificados como “grupo Baiano (...) de cantores e compositores de orientação filocomunista [sic]”, teriam cantado uma paródia do Hino Nacional em “ritmo de Tropicália” (Arquivo Nacional, 1969ARQUIVO NACIONAL – CONSELHO DE SEGURANÇA NACIONAL. Arquivo Caetano Emanoel Viana Telles Veloso (manuscrito). Código: BR. DFAN. BSB. N8.PRO.CSS.56.01. 23 de junho de 1969.: 27). A fundamentação das justificativas no absurdo se torna bastante profunda com o fato de que um tal grupo e um tal disco jamais existiram17 17 Recentemente, levantou-se a hipótese de que possa ter havido uma confusão entre Caetano Veloso e Francisco Cataneo (Pancho Cataneo), compositor e cantor mexicano radicado na Europa, inexpressivo no Brasil, que lançara o compacto Che pouco antes da prisão de Caetano. Na versão original, o disco foi lançado sob o nome: Hasta Siempre, Che! e incluía, além dele, fotos de Fidel Castro, entretanto, visando a afastar possíveis embates com o regime, optou-se por manter na capa apenas “Che”. Não encontramos versões disponíveis do disco em serviços de streaming. Para mais ver: Vieira, 2020. Também se levantou a hipótese de que possa ter havido outra confusão, não com o disco de Cataneo, mas com o disco Soy Loco por ti América, lançado naquele mesmo ano (Veloso, 2020: 143). e que, num relance algo surreal que o próprio Caetano teve de afirmar, seria impossível cantar o Hino Nacional “em ritmo de Tropicália”, pois, enquanto o Hino é formado por versos decassílabos, a canção se serve de oito sílabas poéticas.

Na documentação, lê-se que o cantor foi detido para que se averiguasse – sumariamente – a prática de “subversão e incitamento à desordem” (Arquivo Nacional, 1969ARQUIVO NACIONAL – CONSELHO DE SEGURANÇA NACIONAL. Arquivo Caetano Emanoel Viana Telles Veloso (manuscrito). Código: BR. DFAN. BSB. N8.PRO.CSS.56.01. 23 de junho de 1969.: 164), tendo-se por base o objetivo de “aplicação do Artigo 4º do Ato Institucional nº 5” (2), no qual se previa que “No interesse de preservar a Revolução [sic], o presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais”.

As páginas que se seguem no documento se apresentam como um grande redemoinho de carimbos de “secreto”, burocracias diversas e embasamentos pífios. Sob pretexto de justificar a legalidade dos atos praticados, constrói-se uma narrativa comparável, no plano do absurdo relatado, à obra O processo18 18 A obra de Franz Kafka permanece por encerrar. Num estilo muito particular, oscilando entre o absurdo e o surreal, o autor tcheco judeu narra a busca de K. pela razão de seu processo, vale dizer, pela culpa que se lhe imputava. A obra é inconclusa, como as demais narrativas kafkianas de maior fôlego, mas sabemos que K. morre – e foi como “se a vergonha devesse sobreviver a ele” (Kafka, 2005, p. 228). Kafka morreu prematuramente, vítima de uma tuberculose, aos 40 anos. Desejava que toda sua obra fosse queimada. Max Brod, amigo a quem confiou a tarefa, não a realizou, assim auxiliando a tornar Franz Kafka um dos maiores escritores do século XX. , de Franz Kafka, na qual resta claro que a opressão gerada pela burocratização fria e impessoal da máquina estatal está baseada em uma lei maior, inacessível ao entendimento direto, que tende a escamotear quaisquer limites. No entanto, apesar da aproximação bastante cabível, Caetano Veloso não guarda com o pobre Josef K. muita semelhança no tocante à confiança inicial na rápida explicação do que acha ser um simples mal-entendido: após longa e desesperada espera, em seu primeiro interrogatório, logo fica clara a vigilância sobre sua vida cotidiana, além da falta de interesse, da parte do processamento militar, em verificar as informações apresentadas como denúncia. Enquanto K. desloca-se entre diversos espaços, tentando se guiar entre diversas instâncias e repartições, Caetano é desde o princípio abduzido e deslocado sem saber para onde.19 19 Esse episódio é consumado por Caetano (2017, p. 356) com a frase “Os civis sumiram”. O terror despertado pela abdução de civis está contido no espaço de anomia introduzido e assegurado pelo AI-5, que deve ser compreendido como o dispositivo que alargou a exceção da ordem “normal” aberta pelo primeiro Ato Institucional.

A autocompreensão moderna do direito é paradigmática nesse sentido, pois apresenta a oposição entre o que se apresenta diante dele, e, portanto, fora – os fatos, o mundo, a face do seu ser, a ciência que sobre ele se debruça, etc. – e o que propriamente é concebido como lhe dizendo respeito (a norma, a sua face de dever-ser) (cf. Troper, 2008TROPER, Michel. Filosofia do direito. Trad. São Paulo: Martins Fontes, 2008.). A configuração do nomos passa a ser posta para além dos limites da realidade que ele ordena, sendo tomado como origem e princípio da realidade jurídica que, ao ordenar a si mesma, postula então todo um mundo ao revés. No extremo, conjugando duas imagens conceituais que têm força, o “fora da lei” (outlaw) é aquele que se situa “diante da lei” (before the law), como o diálogo de Josef K. com o Sacerdote na Catedral o revelam: a porta da lei, diante da qual se posiciona o porteiro, que a guarda, e o “homem do campo”, que aguarda para nela entrar, sem que jamais receba permissão, a este estava destinada, e apenas a ele (Kafka, 2005KAFKA, Franz. O processo. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.: 214-215).

Assim, ao se perguntar o que seria, pois, subversão em 1968 (assim como o que seria ordem hoje), as respostas ficam restritas às elucidações em muita medida falaciosas vindas de variadas fontes. Prova disso, por exemplo, não apenas o já citado disco Che, mas também a acusação de que Caetano havia discursado “sobre ‘Caminhos da Música Popular’ na ‘Semana de Cultura’ (...) do DA [Diretório Acadêmico] Barão de Mauá da Faculdade de Ciências Políticas e Econômicas do Rio” (Arquivo Nacional, 1969ARQUIVO NACIONAL – CONSELHO DE SEGURANÇA NACIONAL. Arquivo Caetano Emanoel Viana Telles Veloso (manuscrito). Código: BR. DFAN. BSB. N8.PRO.CSS.56.01. 23 de junho de 1969.: 14), evento e lugar desconhecidos pelo cantor, que afirma, no interrogatório, que estivera uma única vez num diretório acadêmico, o da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, em São Paulo, onde fora inclusive hostilizado como figura representativa da Tropicália, vista pela esquerda acadêmica como vendida ao domínio imperialista, como registra o escrivão.

A leitura dada ao fato pelo Major Hilton Justino Ferreira, responsável pela investigação, indicou que

O indiciado não tomou parte em debate sobre a música popular brasileira na SEMANA DA CULTURA (...), no entanto, tomou parte em DEBATE sobre sua música na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, em São Paulo, (...), juntamente como GILBERTO GIL (...), num ambiente de balbúrdias (...), o que torna evidente sua participação em movimentos estudantis em faculdades, num ambiente de deturpação da ordem, com orientação escusa, quiçá comunista e de filo-comunistas (Arquivo Nacional, 1969ARQUIVO NACIONAL – CONSELHO DE SEGURANÇA NACIONAL. Arquivo Caetano Emanoel Viana Telles Veloso (manuscrito). Código: BR. DFAN. BSB. N8.PRO.CSS.56.01. 23 de junho de 1969.: 142, grifos nossos).

Com base em criações mais ou menos fantásticas, deturpando-se a realidade nas fôrmas narrativas do discurso persecutório da ditadura, que para isso se valeu também de mentiras, o artista foi enquadrado nos artigos nº 3820 20 Decreto-Lei nº 314, de 13 de março de 1967, artigo 38: “Destruir ou ultrajar a bandeira, emblemas ou ultrajar símbolos nacionais, quando expostos em lugar público”. e 5521 21 Decreto-Lei nº 314, de 13 de março de 1967, artigo 55 (redação original, posteriormente alterada pelo Decreto-Lei nº 898, de 29 de setembro de 1969): “São inafiançáveis os crimes previstos neste decreto-lei”. da Lei de Segurança Nacional (Decreto-Lei nº 314, de 13 de março de 1967, em sua redação original). O interrogatório seguiu com a apuração da acusação trazida da denúncia de que Caetano, ao lado de Gil, teria cantado uma paródia do hino nacional – algo que ainda configura contravenção22 22 No artigo 35 da Lei 5.700, de 01 de setembro de 1971, lê-se: “Art. 35. A violação de qualquer disposição desta Lei, excluídos os casos previstos no art. 44 do Decreto-lei nº 898, de 29 de setembro de 1969, é considerada contravenção, sujeito o infrator à pena de multa de uma a quatro vezes o maior valor de referência vigente no País, elevada ao dobro nos casos de reincidência”. – e de que sua música seria “desvirilizante”, algo que Caetano afirma jamais ter tido ideia de que fazia, não “sabendo até esse deste [sic] interrogatório o que era isso” (Arquivo Nacional, 1969ARQUIVO NACIONAL – CONSELHO DE SEGURANÇA NACIONAL. Arquivo Caetano Emanoel Viana Telles Veloso (manuscrito). Código: BR. DFAN. BSB. N8.PRO.CSS.56.01. 23 de junho de 1969.: 105). No documentário, Caetano ri ao comentar tal acusação dizendo que “Isso é demais, né? Olha, desvirilizante, legal, eu gostei, subversivo e desvirilizante é uma combinação que tem a ver comigo, eu sou essa pessoa, tá certo” (Narciso, 2020a).23 23 De Randal Juliano, ainda em interrogatório, Caetano afirmou que aquele “‘o picha’ [sic] muito, por ter, digo, porque as letras de suas músicas não têm sentido, que o seu cabelo grande era horrível, suas roupas extravagantes etc” (Arquivo Nacional, 1969: 83), e segue “o falar mal do disc-jóquei não passa de promoção em benefício ou causa-própria” (Arquivo Nacional, 1969: 84).

O condutor do interrogatório focou-se em saber sobre a relação de Caetano com o Hino Nacional e com outros Hinos, tais como o da Bandeira, perfazendo-se, apenas para tratar dessa questão, um total de nove perguntas, que cessam apenas com a afirmação de Caetano de que não poderia cantar o hino em melodia diferente da correta, pois, em suas palavras “o Hino Nacional é a canção oficial da Nação Brasileira, e eu sou brasileiro” (Arquivo Nacional, 1969ARQUIVO NACIONAL – CONSELHO DE SEGURANÇA NACIONAL. Arquivo Caetano Emanoel Viana Telles Veloso (manuscrito). Código: BR. DFAN. BSB. N8.PRO.CSS.56.01. 23 de junho de 1969.: 84). Caetano não o sabia, mas no dia anterior ao seu interrogatório, Ricardo Amaral, conhecido também como o Rei da Noite Carioca e, atualmente, laureado com a Ordem do Mérito Cultural (OMC), dono da boate onde teriam se dado as violações ao Hino Nacional, tinha sido chamado a testemunhar (Arquivo Nacional, 1969ARQUIVO NACIONAL – CONSELHO DE SEGURANÇA NACIONAL. Arquivo Caetano Emanoel Viana Telles Veloso (manuscrito). Código: BR. DFAN. BSB. N8.PRO.CSS.56.01. 23 de junho de 1969.: 47), afirmando, “sem medo de errar[,] que o cantor não cantou tal paródia” nem que se tivesse feito quaisquer alterações ao Hino Nacional.

O interrogatório segue tentando fazê-lo confessar que buscava, com sua arte, praticar “terrorismo cultural”, sem, entretanto, identificar o que isso seria, ao que Caetano responde dizendo não saber do que se trata, mas que, de toda sorte, nunca havia pensando em praticar qualquer forma de terrorismo ou mesmo qualquer forma de ofensa a qualquer pessoa ou autoridade. Diante disso, as acusações, esparsas e desconexas, escancaram a meta de controle cultural. Há, entre as muitas perguntas, um esforço para tornar Caetano culpado pelo que quer que fosse. Para esse fim, inclusive, convergem as diversas fontes que foram oficiadas a apresentar informações sobre ele, sejam fontes não oficiais, como os Jornais O Globo, do Rio de janeiro, e o Correio da Manhã, hoje Folha de São Paulo, sejam oficiais, como o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), para o qual nada constava além de uma ficha de acompanhamento que o identificava como “membro de um grupo orientado por Martha Alencar, dirigente da editora cultural do jornal O Sol, que vem se constituindo num dos principais meios de ação psicológica sobre o público”. Além disso, o processo traz algumas tantas letras de canções de Caetano Veloso, como Tropicália, De manhã, Coração vagabundo, Superbacana, Não identificado, Baby, etc., ainda que, a despeito do escrutínio dos órgãos de censura, não fosse possível encontrar nelas subversão explícita. Há, ainda, como marca da desconfiança do regime e do cerco que este vai fechando ao redor do investigado na tentativa de fragilizá-lo, uma declaração de bens de Caetano, feita de próprio punho na prisão, contratos de trabalho e boletins de recebimento de direitos autorais. Todos com os impostos devidamente recolhidos, sem nenhum registro de transação financeira suspeita.

O registro do Inquérito não foi capaz de guardar, todavia, algumas das situações mais inesperadas – einexplicáveis – vivenciadas pelo cantor aprisionado, como é o caso do jantar de um general a que foram obrigados a assistir, logo após a prisão e antes de serem encaminhados às celas: “Não achamos ridículo, nem nojento, nem cômico, nem odioso: achamos chato. Tampouco tivemos fome ou inveja do general. Estávamos cansados de tantos incômodos incompreensíveis” (Veloso, 2017: 357). A situação pitoresca representou mais que uma síntese do absurdo ali vivido, antes, era um reflexo do porvir. Contra ele, Caetano começa a mobilizar toda uma série de

pequenos estímulos [que] iam pouco a pouco me encorajando a acreditar que o mundo de fora e de antes da prisão existia de fato, e, o que é mais importante, que eu – a pessoa que pensava ‘eu’ – era parte desse mundo. O primeiro esforço no sentido de me reconhecer em mim mesmo se deu na forma de uma tentativa de chorar (...). Mas tentava em vão emocionar-me (...). Nem uma lágrima sequer começava a se preparar em minha alma para que eu esperasse senti-la escorrer generosamente sobre meu rosto invisível (Veloso, 2017: 360, grifos nossos).

A perda das lágrimas e dos demais “líquidos que parecem materializar-se a partir de uma intensificação momentânea, mas demasiada da vida do espírito” (Veloso, 2017: 362), também representados na ausência de ejaculação, é retomada no documentário. O que a palavra escrita oculta na relação do presente do autor com o seu passado experimentado – a possível lágrima do escritor –, a imagem em movimento revela: a re-apresentação, para cada espectador, das (quase) lágrimas de Caetano é uma invasão do real que perpassa distintas formas de representação e que tende a ser aguçada na própria forma cinematográfica do documentário. É sintomático, para ressaltarmos o papel do cineasta nessa composição, que o diretor polonês Krzysztof Kieślowski afirmasse ter medo das “lágrimas reais” (cf. Zizek, 2001ZIZEK, Slavoj. The Fright of Real Tears: Krzysztof Kieślowski between Theory and Post-Theory. London: British Film Institute, 2001.: 72) e as apontasse na sua guinada do cinema documentário àquele propriamente ficcional: agora, ao dirigir a cena, construindo a ficção do real, ele poderia até mesmo controlar as lágrimas, fazendo uso de glicerina durante as filmagens. Assim, despertada no real intrusivo, como é o caso do documentário, ou no set da ficção, a passagem às lágrimas apresenta uma laceração da experiência, apontando-nos uma forma de reapropriação do si, de relação com o “eu” da experiência que narrativamente captura as lágrimas do mundo (Zizek, 2018ZIZEK, Slavoj. Lacrimae rerum: ensaios sobre o cinema moderno. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2018.).

Em uma Quarta-feira de Cinzas, após 54 dias preso, privado da imagem no espelho, mas não da voz no canto, Caetano foi posto, com Gil, em liberdade vigiada, sugerida pelo Major que o interrogou, e enviado a Salvador. Sob pena de prisão por descumprimento, ambos tinham a obrigação de se apresentar diariamente ao coronel da Polícia Federal responsável pelo caso, o que se cumpriu até que acatassem o indicativo de saída do país, dado pelo regime, quando então se iniciaria outro período de desterro.

3. Terra e a experiência lacerada: a vista de Orfeu

Escrita cerca de dez anos após a saída do cárcere, a canção Terra é composta por Caetano Veloso em Salvador, após assistir ao filme Star Wars, refletindo sobre a situação de seres humanos numa realidade em que a Terra havia sido abandonada e sequer é mencionada (Narciso, 2020bNARCISO em férias. Locutor: Caetano Veloso. [s.l.]: Spotify, 10 set. 2020b. Podcast. Disponível em: <https://open.spotify.com/playlist/2Wll1Wdgh0iK000dag6Kcb>. Acesso em: 19 dez. 2020b.
https://open.spotify.com/playlist/2Wll1W...
). Veloso se lembra, então, de que viu uma fotografia da Terra pela primeira vez quando estava preso nas dependências da Vila Militar, na revista Manchete que apresentava as fotografias que Frank Borman, Jim Lovell e William Anders fizeram do planeta em seu voo ao redor da lua, em 21 de dezembro de 1968. A revista fora trazida ao cárcere por sua primeira esposa, Dedé, que contava com o beneplácito de um “baiano preto, de origem humilde, que me disse que nunca passaria de sargento por não ter tido instrução” (Veloso, 2017: 388-389).

As experiências narradas permitem uma primeira leitura da canção e auxiliam as demais tentativas de entender o gesto de um Narciso que se re-erotiza ao tomar a lira de Orfeu24 24 A personagem aparece em diversas obras da literatura clássica, Metamorfoses entre elas (veja-se o Livro X em Ovídio, 2017). O poeta narra-nos a descida de Orfeu aos infernos para resgatar Eurídice. Chegando às regiões infernais, Orfeu toca sua lira e comove até as temíveis Eumênides, conseguindo que sua esposa, Eurídice, lhe acompanhe de volta ao mundo humano. A condição dada: ele não deveria voltar seus olhos para trás até sair das regiões infernais. O medo lhe faz quebrar o pacto e Eurídice morre, por assim dizer, uma segunda morte. Seja como for, Orfeu perde o amor pelas mulheres, recusando-lhes as investidas, e não toca mais sua lira. e cantar. A se seguir Herbert Marcuse (1974)MARCUSE, Herbert. Eros and Civilization: A Philosophical Inquiry into Freud. Boston: Beacon Press, 1974., ambos são manifestações de Eros, as manifestações imagéticas e sonoras da possibilidade de uma ordem do real liberta da repressão dos sentidos e do sentido da repressão. Enquanto mundo e Eros órfico e narcísico (livre dessa imagem da conotação solipsista e egóica que lhe foi atribuída pela psicologia moderna) permanecem como imagens que, preservadas pelas várias artes, qualificam e atestam outros possíveis usos da linguagem e da expressão, inclusive da jurídica. Aqui, com a visão de uma ordem não repressiva (em conexão com a “dimensão estética” marcusiana), a “natureza no homem e fora do homem torna-se livremente suscetível a ‘leis’ – as leis da exposição [display] e da beleza” (Marcuse, 1974MARCUSE, Herbert. Eros and Civilization: A Philosophical Inquiry into Freud. Boston: Beacon Press, 1974.: 194).

O nome de Marcuse, antes como agora, assombra a mentalidade autoritária. Em suas narrativas, Veloso relata um interrogatório extraoficial com um capitão que, tendo formação nos Estados Unidos e uma “discreta vaidade intelectual” (Veloso, 2017: 395), citava os nomes de Freud e Marcuse para expor a “sofisticada interpretação que fazia do tropicalismo” (Veloso, 2017: 395): “de fato, a gente lia Marcuse. Eu gostava de Marcuse (...) da ideia de mais-repressão” (Narciso, 2020bNARCISO em férias. Locutor: Caetano Veloso. [s.l.]: Spotify, 10 set. 2020b. Podcast. Disponível em: <https://open.spotify.com/playlist/2Wll1Wdgh0iK000dag6Kcb>. Acesso em: 19 dez. 2020b.
https://open.spotify.com/playlist/2Wll1W...
). Em outro momento, ainda, Veloso revela seu desejo inicial de dar ao livro Verdade Tropical o título de Boleros e civilização, “um velho trocadilho meu de 1968 (que estaria na contracapa de um disco que não fiz porque a prisão interrompeu meus planos de composição), como piada com o famosíssimo título Eros e civilização, de Marcuse” (Veloso, 2017: 43).

O Narciso do cárcere já há dois meses não vê seu rosto no espelho (poder-se-ia esperar que achasse tudo feio, já que não há espelho?). Narciso, então, se apaixona pelo que vê – não por sua própria imagem, mas pela imagem da Terra/estrela azulada:

Esse acercamento sensual que se insinua na consideração de que a Terra não estava ‘nua’ nas páginas da revista, embora no instante de fazer a canção eu não me desse conta, me veio à mente sem dúvida por causa das outras fotografias que mais me impressionavam na cela do PQD: as de mulheres seminuas que me enchiam de desejo e com que sonhava todas as noites (Veloso, 2017: 388).

No nível formal da canção, o “acercamento sensual” se pode sentir em diversos momentos por meio da identificação da Terra com figuras femininas e, ainda no primeiro parágrafo, pela nudez das fotografias da parede em oposição às nuvens que cobriam o planeta: as palavras “nuvens” e “nua” aparecem em posições finais em cada verso, o que faz o leitor ver que as unidades lexicais apresentam a mesma sílaba inicial. Na execução da música, o efeito é obtido pelo alongamento destas mesmas sílabas.

O refrão da canção – que se repetirá seis vezes na letra (aqui extraída de Tatit e Lopes, 2004TATIT, Luiz. LOPES, Ivã Carlos. “Terra à vista: aportando na canção”. Gragoatá, Niterói, n. 16, p. 187-208, jan.-jun. 2004.) e oito vezes na gravação no álbum Muito (Dentro da estrela azulada), de 1978, onde Terra aparece originalmente – apresenta o recurso poético do “eco” no verso “por mais distante do errante navegante”. Eis Eco, “pura voz”, reaproximando-se de Narciso.

Assim como na narrativa ovidiana, o Narciso de Caetano Veloso está dentro e fora do objeto de seu desejo. Em Veloso, a cela da cadeia é, a um só tempo, o apartamento da Terra, o local onde se trava “pela primeira vez” o contato com a Terra inteira e uma metáfora da prisão da Terra em que, humanos, nos encontramos. Para além da Terra há apenas o nada através do qual ela carrega “o nome da sua carne”. Todavia, enquanto o Narciso ovidiano é o ser terrestre que encontra seu fado na água, o Narciso de Veloso encontra sua libertação na própria Terra ou, dito de outro modo, na estrela azulada, imagem que aparecerá na terceira estrofe (a única, sem se considerar o refrão, a não possuir sete versos). Nesta estrofe chama atenção a citação a Luiz Gonzaga (cf. Tatit e Lopes, 2004TATIT, Luiz. LOPES, Ivã Carlos. “Terra à vista: aportando na canção”. Gragoatá, Niterói, n. 16, p. 187-208, jan.-jun. 2004.: 204) que, na canção Paraíba (1946), “mand[a] um abraço pra ti, pequenina” e, na lira do Narciso órfico, metamorfoseia-se em pura palavra, em “saudoso poeta”.

Em oposição ao Narciso ovidiano, ainda, o Narciso de Caetano se apaixona por uma “menina terra” (contra a imagem-água do mito). Na narrativa clássica, a paixão pela imagem no espelho d’água é essencial, ao passo que, na canção, esta é a estrofe em que por mais vezes se repete o termo “terra” (cinco, ao total), em posições enfáticas, tanto no texto quanto na realização vocal. O elemento água aparece, aqui, metamorfoseado em mar, mas mesmo este aparece como recurso narrativo para fazer surgir terra (“do mar se diz terra à vista”) e que, mais uma vez, se torna um reino sensual, cujos signos são “carícia” e “firmeza”.

No que tange a esta estrofe, Tatit e Lopes (2004TATIT, Luiz. LOPES, Ivã Carlos. “Terra à vista: aportando na canção”. Gragoatá, Niterói, n. 16, p. 187-208, jan.-jun. 2004., 205) notam nessa repetição do vocábulo terra não apenas um valor encantatório, como também “a simetria de ordenação das ocorrências desse termo na estrofe: em posição final segundo e terceiro versos, em seguida em posição mediana, no verso mediano da estrofe (quarto verso), e, por fim, em posição inicial no quinto e sexto versos”, fazendo com que o enunciador, a cada verso, traga para mais perto de si a terra que é objeto de seu desejo, seu lar e sua prisão. No verso que encerra a estrofe (“Outros astros lhe são guia”), parece haver menção, concomitantemente, ao valor divinatório dos astros, a seu valor georreferencial e, por fim, àqueles demais astros que, em companhia da Terra, perfazem sua jornada no nada.

A estrofe seguinte traz à lume ainda outro elemento presente no mito de Narciso: o fogo. Ao longo da narrativa, encontra-se mais frequentemente associado à paixão, sendo que o fogo deveria consumir o corpo de Narciso na pira fúnebre. Como, todavia, Narciso metamorfoseia-se em flor, pode-se dizer que apenas o fogo metafórico do amor, dirigido à sua própria imagem, o consome. Dez anos após a experiência do cárcere, o Narciso em férias diz-se um “leão de fogo”25 25 Aqui, também, pode-se ver referência ao signo de Leão e à sua natureza ígnea, autodestrutiva, que precisa de um outro para sobreviver. que se consumiria de todo não fosse a presença de um “tu” a que deseja. Aqui, parece haver o cumprimento da profecia de Tirésias e uma melhor sorte para Narciso. Esta mesma estrofe que muda o destino de Narciso também traz possível citação ao poema A extraordinária aventura vivida por Vladimir Maiakóvski no verão na Datcha, do poeta Vladimir Maiakovski. Na tradução de Augusto de Campos, lemos:

Brilhar pra sempre,

brilhar como um farol,

brilhar com brilho eterno,

gente é pra brilhar,

que tudo o mais vá pro inferno,

este é o meu slogan

e o do sol (Maiakóvski, 2003MAIAKOVSKI, Vladímir. Poemas. Org. e trad. de Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman. São Paulo: Perspectiva, 2003.: 90).

A imagem do leão de fogo que se consome eternamente parece remeter ao sol que brilha. “Gente é pra brilhar”, mas é preciso brilhar para um outro para não repetir o destino do Narciso do mito. Brilhar como gente, não como estrela que ofusca, mas como astro que guia os caminhos.

Na última estrofe de Caetano, a mais metafísica, a Terra assume o sentido do “planeta girante onde tudo se [dá]” (Pessoa, 1996PESSOA, Fernando. Poemas. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.: 58). Porém, a voz do Narciso re-erotizado não deixa de cantar, também aí, a sensualidade. A terra tem carne, e a carne da terra tem o nome que ela carrega. Esta carne maltratada é onde se dá a história de Narcisos, Ecos e Orfeus. A carne necessita de carinho e a voz do Narciso pede por ele. À diferença do Narciso ovidiano, que quer resposta a seus abraços, aqui, temos um Narciso que pede à força coragem para dar carinho e, assim, livra-se do castigo de Nêmesis.

Livre, o Narciso orfeizado de Caetano Veloso assume, na estrofe final de Terra, a voz de Dorival Caymmi, constituindo-se a estrofe inteira de citação à canção Você já foi à Bahia? (cf. Tatit e Lopes, 2004TATIT, Luiz. LOPES, Ivã Carlos. “Terra à vista: aportando na canção”. Gragoatá, Niterói, n. 16, p. 187-208, jan.-jun. 2004.: 204). Assim, livre até mesmo das amarras de ser ele mesmo, o Narciso metamorfoseia-se, finalmente, em Eco que orficamente saúda a Bahia, terra natal de Caetano Veloso. A citação a Caymmi traz consigo a “lembrança das donzelas”, uma memória, pois, também re-erotizada. A canção Terra, que tem em seu refrão o verbo esquecer no futuro do pretérito (“quem jamais te esqueceria?”), é toda ela um processo de retomada do vivido, um processo de elaboração da memória da experiência da exceção composta na tensão entre os fluxos da lembrança e do esquecimento. Assim, ao ser reproduzida, na sua versão de estúdio, nos últimos minutos do documentário, a canção não apenas o encerra, mas vivifica, nele, a relação com a experiência. Narciso sem espelho reflete, toma para si a lira de Orfeu, canta e, vendo-se da perspectiva dos anos, toca finalmente a própria imagem.

Considerações finais

Toda a história que se seguiu à entrada dos policiais federais no apartamento de Caetano Veloso, no despontar daquela manhã de 27 de dezembro de 1968, pode ser lida como “sombra” dessa terrível constituição da palavra que tomou forma jurídica com o abominável AI-5. Narciso em férias aparece, portanto, como episódio exemplar da incidência do AI-5 na história e na vida, o momento em que a política, o direito e a violência disputam as fronteiras das linguagens, das expressões e dos modos de vida.

Em contraste com o direito, é no âmbito da arte que encontramos uma preocupação mais radical (portanto profunda) com o problema da representação. Nesse sentido, o documentário possibilita refletir a relação entre representação e realidade de um modo que a abre para nós enquanto atores do mundo, e não apenas meros espectadores no mundo – afinal, requer-se de nós, antes de tudo, a crença na realidade apresentada. Essa crença, porém, aparece como o requisito de qualquer instituição social baseada na representação: é ela que está comprometida, ou ameaçada, quando as narrações que as fundam não mais conseguem articular e transmitir um sentido do mundo comum.

Ao mesmo tempo em que nega a sua violência instituinte, o modelo de nossa experiência jurídico-política, que só aceita a própria imagem, encontra o mecanismo mais eficiente e mais insano para o apagamento de outras imagens e o silenciamento de outras vozes na própria remoção do espelho, vale dizer, dos mecanismos pelos quais poderíamos formar, para nós, uma imagem (de pensamento) do que acontece na realidade, estabelecendo alguns canais de transmissão da memória que nos permitem narrar e com isso produzir sentidos. Culminando esse violento processo, quando Caetano Veloso enfim se olha no espelho, já na casa dos pais em Salvador, não indaga por um “quem”, mas por “o quê” (Narciso, 2020bNARCISO em férias. Locutor: Caetano Veloso. [s.l.]: Spotify, 10 set. 2020b. Podcast. Disponível em: <https://open.spotify.com/playlist/2Wll1Wdgh0iK000dag6Kcb>. Acesso em: 19 dez. 2020b.
https://open.spotify.com/playlist/2Wll1W...
). Encarando a sua face na tela, agora a própria realidade dos assuntos humanos aparece entremeada por narrações, constituindo-se num espelhamento complexo entre Narciso (cuja imagem se nos revela em múltiplos espelhamentos) e Eco (o som, a voz), mas também Orfeu (o canto, a música) e Eros (a experiência do desejo), dando origem ao jogo narrativo que constitui um arcano jurídico-político do mundo contemporâneo.

Sendo assim, as significações que extraímos do mundo, que compartilhamos e disputamos, surgem já de uma experiência com o narrado. Mesmo que a experiência concreta pertença ao passado, é ela que está em primeiro plano, no corpo e imagem daquele que, em Narciso em férias, a relata e a reapresenta na sua voz – reapresentação que o documentário transforma, pelo próprio narrar, em representação. Agora, a experiência presente conecta-se com o passado enquanto ponto de ruptura que dá abertura ao próprio presente – então, um futuro.

O cinema – e o documentário, de modo mais específico – pode revelar, por meio de sua trama, uma rede mais ampla de cruzamentos de narrações que atravessam o imaginário jurídico-político existente e que podem reforçá-lo ou combatê-lo. Nós podemos nos ver lá, “na cela de uma cadeia” – potencialmente, todos podemos estar lá. É com a busca por compreender tais relações, situando o presente, que se abre a possibilidade de habitar, afinal, a Terra como nosso mundo.

  • 1
    Registramos aqui nosso agradecimento ao queridíssimo amigo Aukai Quint Leisner pela versão, atenta e sensível ao texto poético, do título do artigo em língua inglesa.
  • 2
    Caetano Veloso é músico, produtor, arranjador, escritor, mas antes de mais nada é alguém que acredita neste “nome sem país” chamado Brasil (Veloso, 2017, p. 48): seja em sua vida como músico, quando nos diz: “Vejo uma trilha clara pro meu Brasil, apesar da dor / Vertigem visionária que não carece de seguidor / Nu com a minha música, afora isso somente amor / Vislumbro certas coisas de onde estou” (Nu com minha música); seja na carreira de escritor, quando nos conta: “É que penso e ajo como se soubesse na carne quais as potencialidades verdadeiras do Brasil, por ter entrado num diálogo com suas motivações profundas —e simplesmente não concluo que somos um mero fracasso fatal” (Veloso, 2017, p. 457), Caetano parece nunca abandonar a certeza de que vale a pena lutar pelo Brasil. E foi justamente essa luta que marcou toda sua vida pública. Ainda na juventude deixou a Bahia, onde nasceu, para viver no “sul maravilha”, criando ao lado de outros tantos como Gilberto Gil, Tom Zé e Hélio Oiticica, aquele que ficou conhecido como movimento da Tropicália que culminou na disco Tropicália ou Panis et Circensis, ao lado de vários músicos, em 1967. Já no ano seguinte, respondeu ao endurecimento do regime militar no Brasil com "É Proibido Proibir", sendo desclassificado do III Festival Internacional da Canção. Em 1969, foi preso político pelo regime militar e partiu para exílio político em Londres, onde continuou a compor. Dos anos 70 para cá, lançou mais de cinquenta discos e contribuiu em trilhas sonoras de diversos filmes e peças de teatro, alcançando reconhecimento internacional e sendo homenageado por diversos países, que lhe concederam prêmios e Comendas. Em todo esse tempo, jamais deixou de manifestar seu descontentamento com figuras públicas autoritárias e de utilizar de seu capital simbólico para alavancar debates variados sobre temas que lhe chamassem a atenção. Durante a atual pandemia do coronavírus foi incessante em denunciar violações de direitos humanos aproveitando-se das duas únicas aparições ao vivo feitas por redes sociais para criticar a postura de descaso do governo em meio a uma crise de saúde global e alertar para o grande número de mortos pelo coronavírus em aldeias indígenas. Além disso, lançou nas plataformas digitais o show do projeto “342 Amazônia”, na semana nacional do meio ambiente, marcando seu novo (e já forte) ativismo ambiental. Caetano é memória viva do Brasil e impulso plural de raças, cores e sons para um futuro onde o melhor (do) Brasil é possível.
  • 3
    Enquanto a literatura tem conduzido diversas formas de aproximação com o direito dentro da área de estudos que se convencionou chamar de Direito e Literatura, a exemplo do “direito na literatura”, do “direito da literatura” e até mesmo do “direito como literatura” (OST, 2007OST, François. Contar a lei: as fontes do imaginário jurídico. Trad. Paulo Neves. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2007.: 48-52), tendo em vista a pertença comum ao campo de experiências fundantes da palavra, a retomada do cinema, por sua vez, nos estudos sobre Direito e Cinema, tem dado origem ao enfoque que podemos denominar “direito no cinema”, posição da qual partimos neste artigo. Porém, tendo em vista a natureza das distintas operações em jogo, não deixaremos de indicar as ocasiões em que o confronto teórico a partir das práticas e categorias do cinema se mostra uma possibilidade metafórica que se trata de questionar de modo a lançar luzes sobre o fenômeno jurídico, evitando-se a todo custo aqueles emolduramentos de suas práticas ratificados por meio de uma nociva “estetização” do direito – tal como a “estetização da política” que, alertava Walter Benjamin (2017BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na época da sua possibilidade de reprodução técnica”. In. Benjamin, Walter. Estética e sociologia da arte. Ed. e trad. João Barrento. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017, p. 7-47.: 47), ao culminar na glorificação da guerra (e da violência), consome junto com ela a arte e a própria humanidade.
  • 4
    A relação indexadora define a natureza do vínculo existente entre sons e imagens do filme e o que é gravado e filmado: na leitura de Xavier (2005XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005.: 18), que retoma a definição de “índice” de Peirce, estamos diante de “‘um signo que se refere ao objeto que ele denota em virtude de ter sido realmente afetado por este objeto’”, uma vez que, de fato, “o processo fotográfico implica numa ‘impressão’ luminosa da imagem na película”.
  • 5
    O poeta romano Ovídio (43 a.C. - 17 d.C.) escreve suas Metamorfoses com o objetivo de narrar a origem do mundo e dos deuses (poema cosmogônico) e a razão de diversos acontecimentos (poema etiológico), sob o fio unificador da metamorfose – palavra que não ocorre em momento algum do texto. Acredita-se que a obra esteja incompleta por conta do exílio a que Ovídio foi condenado no Ponto Euxino, atual Mar Negro. Mais informações sobre o autor e sua obra podem ser encontradas na Apresentação, de João Angelo Oliva Neto, e na Nota introdutória, de Domingos Lucas Dias, em Ovídio, 2017, p.7-39.
  • 6
    Como esclarece Kiening (2016: 262-263), a sentença de Tirésias, “Típica de declarações proféticas, explicita e, ao mesmo tempo, encobre as circunstâncias. O ponto é que todas as nuances de significado convergem na história: ‘se ele não se perceber’, ‘se ele não se encontrar fisicamente’, ‘se ele não se reconhecer’ – tudo que deveria ter sido evitado para que a criança tivesse uma longa vida acontece e constitui a fatalidade da história: Narciso se vê, deseja o seu próprio corpo como se fosse um outro, reconhece a situação, sem conseguir enfrentá-la”.
  • 7
    O termo grego γοργών (gorgón), conquanto possa fazer referência a uma série de criaturas mitológicas gregas de aparência terrível (γοργός, gorgós), costuma ser usado para descrever irmãs que, punidas pelos deuses, tiveram seus cabelos transformados em serpentes venenosas cuja visão petrificava quem quer que a elas lançasse o olhar. A mais conhecida das três é Medusa, conhecida principalmente pela lenda de Teseu. Também o escritor Primo Levi, ao narrar os horrores dos campos de concentração em Afogados e sobreviventes (1990), usa o termo para se referir à máquina de destruição nazista. Em sua obra O que resta de Auschwitz (1999), essa figura será fundamental para Giorgio Agamben quando ele considera a figura do “muçulmano” no universo concentracionário e sua relação com o testemunho (Cf. Agamben, 2008, p. 60-62). Guardadas as devidas proporções entre fenômenos tão distintos, é a relação extrema entre a palavra e a imagem com a sua (im)possibilidade que está em questão nessa retomada da figura.
  • 8
    Nesse sentido, vale ressaltar que “Estamos tão acostumados com a interpretação que a psicologia moderna deu a respeito do mito de Narciso, quando se define como narcisismo o fechar-se e o retrair-se da libido no eu, que acabamos esquecendo que, afinal de contas, no mito o jovem não está enamorado diretamente de si, mas da própria imagem refletida na água, e que ele toma por uma criatura real” (Agamben, 2008: 147). Assim, por exemplo, para o pensamento e poética medievais importava não tanto o amor por si, criticado já por Ovídio, mas antes o apaixonar-se por uma imagem (cf. Agamben, 2008: 146 e ss).
  • 9
    Pintada a óleo entre 1598 e 1600, a tela encontra-se na Galeria Nacional de Arte Antiga (Palazzo Corsini), em Roma.
  • 10
    Acerca das relações entre um livro e um filme, pondera Xavier (2003XAVIER, Ismail. “Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema”. In: PELLEGRINI, Tânia (et al.). Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac São Paulo; Instituto Itaú Cultural, 2003, p. 61-89.: 62) que “O lema deve ser ‘ao cineasta o que é do cineasta, ao escritor o que é do escritor’, valendo as comparações entre livro e filme mais como um esforço para tornar mais claras as escolhas de quem leu o texto e o assume como ponto de partida, não de chegada”. Assim, temos de considerar a autonomia entre Narciso em férias como obra literária (seja como capítulo de Verdade Tropical, seja como livro publicado per se em 2020) e como documentário. Seguindo a ressalva metodológica de Xavier, invocaremos o livro para tornar “mais claras” as opções “retóricas” (Nichols, 2010NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Trad. Monica Saddy Martins. 5. ed. Campinas: Papirus, 2010.) do documentário, buscando trazer tanto a experiência configurada no filme quanto os problemas teóricos que nos levam a pensar aquela experiência nos limites de nossa representação, seja aquela pressuposta pelo direito, seja aquela do cinema.
  • 11
    Podemos notar que essa distinção contém muitas zonas de contato que “não garantem uma separação absoluta entre ficção e documentário” (Nichols. 2010NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Trad. Monica Saddy Martins. 5. ed. Campinas: Papirus, 2010.: 17), o que nos leva a considerar que a inclusão de um ou outro filme num ou noutro lado da fronteira também é fruto de um ato de autonomeação que depende das pretensões do cineasta.
  • 12
    De fato, ele ressalta no livro e no documentário que “Todos nós, presos políticos, sabíamo-nos sob a proteção de uma ordem de não-agressão física a que, por vezes, alguns oficiais se referiam com desdém e impaciência. A irritação com essa ordem não raro se manifestava em sessões de humor negro, com algum oficial, apontando o cano do revólver para dentro do xadrez, num protesto contra a benevolência de seus superiores, a dizer: ‘Se fosse por mim, eu metia logo bala em vocês’ (...). Os presos comuns não se beneficiavam dessa benevolência (...). Às vezes eu era acordado no meio da noite por gritos horrendos vindos do corredor. Eram surras intermináveis e, mais de uma vez, ouvi as vozes dos verdugos pedirem com urgência a ‘padiola’. Essas vozes por vezes pareciam surpresas com o resultado dos maus-tratos (...). De fato, desde essa experiência na PE da Vila Militar, passei a ter uma ideia diferente da sociedade brasileira, a ter uma medida da exclusão dos pobres e dos descendentes de escravos que a mera estatística nunca me daria” (Veloso, 2017: 376).
  • 13
    O conceito de “ator social” é utilizado para nomear aquelas e aqueles que atuam com sua voz e corpo diretamente no documentário, vistos (ou ouvidos) pela objetiva (cf. Nichols, 2010NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Trad. Monica Saddy Martins. 5. ed. Campinas: Papirus, 2010.). O cineasta e o ator social porventura podem se encontrar no mesmo “papel”, por exemplo, quando o diretor se torna atuante na “cena” filmada não apenas como quem pergunta ou dirige, mas como quem se manifesta – ele (ou ela) passam então para o outro lado da lente. Como argumentamos na seção anterior, nota-se toda uma contaminação existente entre a terminologia condizente ao cinema (documentário, e não apenas ficcional) e aquela relativa à narrativa literária.
  • 14
    Não se deve entender, porém, que o direito aqui diga respeito apenas à aparência e que a realidade seja simplesmente a violência. Essa leitura perde de vista que a experiência da exceção diz respeito à possibilidade mesma de estabelecimento do direito e de relação com a ordem jurídica, isto é, a possibilidade de materialização (aplicação) de regras, normas, procedimentos, etc., que ultrapassa a vigência puramente normativa. Para além do sentido liberal moderno, pelo qual o direito se volta à limitação do (poder) soberano, isto é, da força e da violência, entende-se que a exceção não se coloca simplesmente fora ou dentro da própria organização do aparato estatal e do direito, mas significa um modo de relação que borra (“indetermina”) os próprios limites entre violência e direito ao criar um nexo onde “não existe nenhuma articulação substancial” (Agamben, 2007: 131-132). O problema da violência deixa de estar fora, por conseguinte, para se colocar de uma vez por todas, inequivocamente, no limite mesmo da definição não apenas do Estado moderno, mas, enquanto disposição dos “meios”, também do direito e da política.
  • 15
    Desenvolvido pelo historiador francês Pierre Nora no final dos anos de 1970, o conceito de “lugar de memória” resultou de um aprofundamento no estudo das memórias coletivas na construção da história da França, sendo, em um primeiro momento, uma tentativa de estabelecer uma possibilidade de contraponto a uma história nacional unitária e autocelebrativa. Nesse sentido, os lugares de memória “nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não naturais" (Nora, 1993, p. 13). Estudos atuais utilizam do conceito como mecanismo para a proteção e promoção dos direitos humanos, afastando silenciamentos contra populações vulnerabilizadas e garantindo-lhes o direito de representação e opinião.
  • 16
    Segundo Agamben (2010), um exemplo significa a exclusão de um elemento (termo, enunciado, etc.) do conjunto ao qual pertence. Nesse sentido, o filósofo o define como “inclusão exclusiva” (isto é, a expulsão do incluído) que é simétrica (e oposta) à exceção, que seria, por seu turno, uma “exclusão inclusiva” (a inclusão do expulso). Ambos, no entanto, a exceção e o exemplo, “forma[m] sistema”, revelando “os dois modos através dos quais um conjunto procura fundamentar e manter a própria coerência” (Agamben, 2010: 29)
  • 17
    Recentemente, levantou-se a hipótese de que possa ter havido uma confusão entre Caetano Veloso e Francisco Cataneo (Pancho Cataneo), compositor e cantor mexicano radicado na Europa, inexpressivo no Brasil, que lançara o compacto Che pouco antes da prisão de Caetano. Na versão original, o disco foi lançado sob o nome: Hasta Siempre, Che! e incluía, além dele, fotos de Fidel Castro, entretanto, visando a afastar possíveis embates com o regime, optou-se por manter na capa apenas “Che”. Não encontramos versões disponíveis do disco em serviços de streaming. Para mais ver: Vieira, 2020. Também se levantou a hipótese de que possa ter havido outra confusão, não com o disco de Cataneo, mas com o disco Soy Loco por ti América, lançado naquele mesmo ano (Veloso, 2020VELOSO, Caetano. Narciso em Férias. Companhia das Letras: São Paulo, 2020.: 143).
  • 18
    A obra de Franz Kafka permanece por encerrar. Num estilo muito particular, oscilando entre o absurdo e o surreal, o autor tcheco judeu narra a busca de K. pela razão de seu processo, vale dizer, pela culpa que se lhe imputava. A obra é inconclusa, como as demais narrativas kafkianas de maior fôlego, mas sabemos que K. morre – e foi como “se a vergonha devesse sobreviver a ele” (Kafka, 2005KAFKA, Franz. O processo. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2005., p. 228). Kafka morreu prematuramente, vítima de uma tuberculose, aos 40 anos. Desejava que toda sua obra fosse queimada. Max Brod, amigo a quem confiou a tarefa, não a realizou, assim auxiliando a tornar Franz Kafka um dos maiores escritores do século XX.
  • 19
    Esse episódio é consumado por Caetano (2017, p. 356) com a frase “Os civis sumiram”. O terror despertado pela abdução de civis está contido no espaço de anomia introduzido e assegurado pelo AI-5, que deve ser compreendido como o dispositivo que alargou a exceção da ordem “normal” aberta pelo primeiro Ato Institucional.
  • 20
    Decreto-Lei nº 314, de 13 de março de 1967, artigo 38: “Destruir ou ultrajar a bandeira, emblemas ou ultrajar símbolos nacionais, quando expostos em lugar público”.
  • 21
    Decreto-Lei nº 314, de 13 de março de 1967, artigo 55 (redação original, posteriormente alterada pelo Decreto-Lei nº 898, de 29 de setembro de 1969): “São inafiançáveis os crimes previstos neste decreto-lei”.
  • 22
    No artigo 35 da Lei 5.700, de 01 de setembro de 1971, lê-se: “Art. 35. A violação de qualquer disposição desta Lei, excluídos os casos previstos no art. 44 do Decreto-lei nº 898, de 29 de setembro de 1969, é considerada contravenção, sujeito o infrator à pena de multa de uma a quatro vezes o maior valor de referência vigente no País, elevada ao dobro nos casos de reincidência”.
  • 23
    De Randal Juliano, ainda em interrogatório, Caetano afirmou que aquele “‘o picha’ [sic] muito, por ter, digo, porque as letras de suas músicas não têm sentido, que o seu cabelo grande era horrível, suas roupas extravagantes etc” (Arquivo Nacional, 1969: 83), e segue “o falar mal do disc-jóquei não passa de promoção em benefício ou causa-própria” (Arquivo Nacional, 1969ARQUIVO NACIONAL – CONSELHO DE SEGURANÇA NACIONAL. Arquivo Caetano Emanoel Viana Telles Veloso (manuscrito). Código: BR. DFAN. BSB. N8.PRO.CSS.56.01. 23 de junho de 1969.: 84).
  • 24
    A personagem aparece em diversas obras da literatura clássica, Metamorfoses entre elas (veja-se o Livro X em Ovídio, 2017). O poeta narra-nos a descida de Orfeu aos infernos para resgatar Eurídice. Chegando às regiões infernais, Orfeu toca sua lira e comove até as temíveis Eumênides, conseguindo que sua esposa, Eurídice, lhe acompanhe de volta ao mundo humano. A condição dada: ele não deveria voltar seus olhos para trás até sair das regiões infernais. O medo lhe faz quebrar o pacto e Eurídice morre, por assim dizer, uma segunda morte. Seja como for, Orfeu perde o amor pelas mulheres, recusando-lhes as investidas, e não toca mais sua lira.
  • 25
    Aqui, também, pode-se ver referência ao signo de Leão e à sua natureza ígnea, autodestrutiva, que precisa de um outro para sobreviver.

Referências bibliográficas

  • AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2007.
  • ______. Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Trad. Selvino José Assmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
  • ______. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Trad. Henrique Burigo. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
  • ______. O que resta de Auschwitz: o arquivo e o testemunho. Trad. Selvino José Assmann. Belo Horizonte: São Paulo: Boitempo, 2008.
  • ARENDT, Hannah. “A grande tradição”. Trad. de Paulo E. Bodziak Jr. e A. Correia. In: O que nos faz pensar [s.l.], v. 20, n. 29, p. 273-298, mai. 2011. Disponível em: <http://www.oquenosfazpensar.fil.puc-rio.br/index.php/oqnfp/article/view/338>. Acesso em: 10 mar. 2021.
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  • ARQUIVO NACIONAL – CONSELHO DE SEGURANÇA NACIONAL. Arquivo Caetano Emanoel Viana Telles Veloso (manuscrito). Código: BR. DFAN. BSB. N8.PRO.CSS.56.01. 23 de junho de 1969.
  • BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na época da sua possibilidade de reprodução técnica”. In. Benjamin, Walter. Estética e sociologia da arte. Ed. e trad. João Barrento. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017, p. 7-47.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    25 Ago 2021
  • Aceito
    09 Out 2021
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