Resumo
O artigo analisa decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o direito dos povos indígenas à propriedade coletiva a partir do caso Xukuru vs. Brasil. Para tanto, identifica a proteção transnacional desses direitos no paradigma democrático e os fluxos comunicativos entre a Sentença e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Conclui, assim, que a emergência de normas cosmopolitas de justiça possibilita iterações democráticas aptas a fornecer maior segurança aos direitos dos povos indígenas.
Palavras-chave:
Direitos territoriais dos povos indígenas; Caso Xukuru; Corte Interamericana de Direitos Humanos
Abstract
This article analyzes the judicial decision of the Inter-American Court of Human Rights on the right of indigenous peoples to collective property in the case of Xukuru v Brazil. To do so, it identifies transnational protection of these rights in the democratic paradigm, and the communication flows between the Judgment and the jurisprudence of the Brazilian Supreme Court. Thus, it concludes that the emergence of cosmopolitan norms of justice enables democratic iterations capable of providing greater security to the rights of indigenous peoples.
Keywords:
Indigenous peoples land rights; Xukuru Case; Inter-American Court of Human Rights
A Constituição de 1988 reafirmou a tradição do constitucionalismo brasileiro de proteção das terras indígenas, inaugurada pela Constituição de 1934. Inovou, contudo, ao romper com o paradigma integracionista que orientava a legislação indigenista, assegurando cidadania para os povos indígenas, a partir do reconhecimento de sua capacidade jurídica, de sua autonomia, da proteção às terras indígenas pelo conceito de terra tradicionalmente ocupada estabelecido no art. 231, e do reconhecimento de suas identidades e do direito à diferença.
Na busca por consolidar um constitucionalismo democrático, a Constituição atribuiu tratamento a esses direitos enquanto fundamentais, com base em seus princípios e em normas internacionais aplicáveis ao Brasil, como dispõe o próprio art. 5º, § 2º (CARVALHO NETO e SCOTTI, 2012). Desse modo, projetou temporalmente a superação dos deletérios efeitos dos séculos de relação colonial, por meio do reconhecimento da multiculturalidade e plurietnicidade do Estado brasileiro no contexto de transição democrática.1 1 Sobre a questão, conferir: YAMADA (2009) e MAGALHÃES (2015).
A passagem de um paradigma integracionista para o democrático implicou no respeito à diferença como percurso para o aprofundamento da igualdade. Essa mudança é percebida nos planos doméstico e internacional, graças às articulações dos povos indígenas e suas representações na sociedade civil em diversas partes do mundo e no Brasil, que pavimentaram o caminho para reconhecimento, promoção e proteção de seus direitos. No final dos anos 1980, por exemplo, a Convenção nº 107 da OIT, de 1957, foi substituída pela Convenção nº 169 da OIT. Adotada na 76ª Conferência Internacional do Trabalho, em 1989, esta foi o primeiro instrumento internacional a determinar o direito à identidade do povo indígenas a partir do princípio fundamental da autoidentificação (OIT, 2011, p. 7).2 2 Convenção n° 169 sobre povos indígenas e tribais. Organização Internacional do Trabalho. Brasília: OIT, 2011, p. 7.
Dessa forma, igualdade e diferença constituem pilares para a proteção dos direitos fundamentais dos povos indígenas e comportam a afirmação de suas identidades, códigos, práticas, línguas, territorialidades e tradições, seus planos de vida e projetos de futuro enquanto sujeitos e coletividades autônomos. As terras indígenas, que são a base para o exercício desses direitos, também foram impactadas pelas mudanças de paradigma trazidas pela Constituição de 1988 e por instrumentos internacionais de direitos humanos dos povos indígenas.
Seu conceito, como estabelecido no art. 231 na figura do advérbio “tradicionalmente ocupada”, passou a comportar a projeção do presente e futuro e o reconhecimento de que as territorialidades dos povos indígenas se reorganizaram, em muitos casos, por movimentos forçados ao longo do processo colonial e pós-colonial. Trata-se de uma concepção de ocupação não vinculada exclusivamente ao passado, mas, sobretudo, ao modo como determinado povo exerce sua territorialidade no presente e os recursos aos quais necessita para sua reprodução física e cultural no futuro. Assim, a delimitação de uma terra indígena comporta e representa a espacialidade do próprio povo indígena. Essas inovações impedem a ideia de transitoriedade desses sujeitos e coletividades, com a qual se pautava o paradigma integracionista, no Brasil encartado na figura da tutela3 3 Sobre a figura da tutela e a discussão sobre capacidade, conferir: SOUZA LIMA (1995 e 2015) , LACERDA (2007) e ELOY AMADO (2020). .
Esses trânsitos ou ondas nos abrem reflexões sobre os diálogos entre o direito internacional dos direitos humanos e os direitos indígenas no Brasil, sobretudo no que concerne aos caminhos ou dispositivos de comunicação que reforçam a proteção jurídica transnacional dos povos indígenas, tanto pelo arcabouço dos direitos humanos universais e da emergência de normas cosmopolitas de justiça, quanto pelos direitos dos povos indígenas no plano interno.
A partir deles, propomos analisar os desdobramentos do caso do Povo Xucuru e seus membros vs. Brasil, no qual o Estado brasileiro foi condenado em 2018 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), e suas interações com a jurisprudência recente sobre as terras indígenas, em especial com relação à tese do marco temporal da ocupação, segundo a qual são passíveis de reconhecimento pelo Estado apenas as terras indígenas para as quais se comprova a efetiva ocupação por esses povos em 05 de outubro de 1988. Introduzida no julgamento do caso da terra indígena Raposa Serra do sol pelo Supremo Tribunal Federal, em 2009, e posteriormente aprofundada em 2014 no caso Guyraroka, pela segunda turma da Corte,4 4 A PET nº 3388/RR discutiu a demarcação administrativa da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e no RMS 29.087 foi suspensa a Portaria nº 3.219/2009, do Ministério da Justiça, que havia declarado a Terra Indígena Guyraroka como de ocupação tradicional dos Guarani-Kaiowá. a tese tem sido alvo de controvérsias jurídicas desde então, em função do seu efeito restritivo sobre o reconhecimento dos direitos territoriais dos povos indígenas.
Na primeira seção retomaremos de modo breve a dupla proteção jurídica das terras indígenas e as disputas discursivas atuais sobre o regime jurídico dessas áreas. Na segunda, a partir do detalhamento do caso Xucuru e sua Sentença, verificaremos a adequação da atual jurisprudência brasileira sobre a matéria. Na terceira, tendo por base o cenário exposto, a existência de normas cosmopolitas de justiça e os usos da sentença, analisamos os potenciais diálogos entre o plano internacional e doméstico, apontando, na quarta seção, para um balanço dos impactos atuais.
1. Os direitos dos povos indígenas: proteção transnacional e disputas atuais
A Constituição de 1988 é clara ao definir o conceito de terras indígenas como as tradicionalmente ocupadas por esses povos. Seu texto também consolida uma proteção exposta a partir da tese do indigenato, para a qual tais direitos configuram-se como originários5 5 Uma ampla análise da tese, incluindo a reprodução da obra de João Mendes Junior, primeiro jurista a tratar do indigenato, pode ser encontrada em CUNHA e BARBOSA (orgs.), 2018. . O parágrafo 4º do art. 231 caracteriza as terras indígenas como inalienáveis e indisponíveis e o direito dos povos indígenas sobre elas imprescritível. Por outro lado, o parágrafo 6º também declara serem nulos ou extintos quaisquer atos que tenham por objetivo a ocupação, o domínio ou a posse dessas terras, o que reforça o núcleo de proteção essencial destas, imprescindíveis que são aos povos indígenas.
Essas definições embasaram farta jurisprudência sobre as terras indígenas na ordem constitucional atual (ACO 323, ACO 312, ACO 366). Além disso, o Brasil é signatário de inúmeros instrumentos internacionais que, com base no direito internacional dos direitos humanos, disciplinam a atuação estatal com relação aos povos indígenas. A Convenção nº 169 da OIT, editada em 1989, foi recepcionada em nosso ordenamento pelo Decreto nº 5051/2004, após aprovação pelo Congresso Nacional em 20026 6 Decreto 5.051/2004. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5051.htm Acesso em 20/03/2020. . A despeito da mora na ratificação, resta claro em seu texto o reforço à proteção dos valores e práticas culturais e religiosas dos próprios povos indígenas para a resolução de conflitos, tanto individuais quanto coletivos, e a obrigação estatal de salvaguardar o direito dos povos indígenas de “utilizar terras que não estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência”.7 7 Idem. Convenção nº 169 da OIT, artigo 14.
A Declaração da ONU sobre os direitos dos povos indígenas, aprovada por sua Assembleia Geral em 2007 ao se manifestar “preocupada com o fato de os povos indígenas terem sofrido injustiças históricas como resultado, entre outras coisas, da colonização e da subtração de suas terras, territórios e recursos”, dispõe que os Estados devem proporcionar a reparação, por meio de mecanismos eficazes e estabelecidos conjuntamente com os povos indígenas, que podem incluir a restituição “em relação aos bens culturais, intelectuais, religiosos e espirituais de que tenham sido privados sem o seu consentimento livre, prévio e informado, ou em violação às suas leis, tradições e costumes”.
O artigo 26 da Declaração protege os modos tradicionais de ocupação desses povos e define que esses devem ser considerados pelos Estados ao atuarem no reconhecimento das terras indígenas. Com relação ao direito à justiça, o instrumento ressalta o direito a uma decisão rápida sobre controvérsias e estabelece que estas devem tomar em consideração os costumes, as tradições, as normas e os sistemas jurídicos dos povos indígenas interessados e as normas internacionais de direitos humanos.8 8 Declaração da ONU sobre os direitos dos povos indígenas, 2007, artigo 40. In: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Declaracao_das_Nacoes_Unidas_sobre_os_Direitos_dos_Povos_Indigenas.pdf . Acesso em 20.02.2020. Sobre o pluralismo jurídico e povos indígenas, FAJARDO (2004).
No âmbito do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, ainda, foi aprovada em 15 de junho de 2016 a Declaração Americana dos Direitos dos Povos Indígenas que dispõe que estes “têm direito ao reconhecimento legal das modalidades e formas diversas e particulares de propriedade, posse ou domínio de suas terras, territórios e recursos, de acordo com o ordenamento jurídico de cada Estado e os instrumentos internacionais pertinentes”.9 9 Declaração Americana sobre os direitos dos povos indígenas. In: https://www.oas.org/en/sare/documents/DecAmIND_POR.pdf. Acesso em 20.02.2020.
Nota-se, portanto, que é cediço no direito internacional dos direitos humanos o direito à diferença experimentado por povos indígenas, pela proteção de seus usos, costumes e tradições, sendo imprescindível que seus modos de ocupar e seu histórico de ocupação sejam efetivamente considerados, assim como os direitos de propriedade sobre seus territórios, mesmo que deles tenham sido despojados a qualquer tempo.
No entanto, incongruências e ameaças de retrocessos do Estado brasileiro com relação aos direitos humanos dos povos indígenas foram identificadas pelos dois últimos relatores especiais das Nações Unidas para os Direitos dos Povos Indígenas, James Anaya (2009) e Victoria Tauli-Corpuz (2016)TAULI-CORPUZ, Victória. Relatório da missão ao Brasil da Relatora Especial sobre os direitos dos povos indígenas. Genebra: Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, 8 de agosto de 2016. A/HRC/33/42/Add.1..
Em 2016, o relatório sobre a situação dos direitos humanos dos povos indígenas no Brasil encaminhado ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas concluiu que “interpretações altamente controversas e fortemente contestadas da Suprema Corte no caso Raposa Serra do Sol” impõem restrições ao direito dos povos indígenas de possuírem e controlarem suas terras e identificou que “Cortes de primeira instancia assim como as cortes Superior e Suprema estão aplicando a decisão de maneira completamente contrária com as previsões constitucionais sobre direitos territoriais indígenas”, o que acarretaria óbices ao gozo, por esses povos, de seus direitos básicos, bem como uma escalada de violência.10 10 TAULI-CORPUZ, Victória. Relatório da missão ao Brasil da Relatora Especial sobre os direitos dos povos indígenas. Genebra: Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, 8 de agosto de 2016. A/HRC/33/42/Add.1. Disponível em: http://unsr.vtaulicorpuz.org/site/images/docs/country/2016-brazil-a-hrc-33-42-add-1-portugues.pdf Acesso em 03/03/2020. (A/HRC/33/42/Add.1)
A tese do marco temporal da ocupação, inaugurada no caso Raposa Serra do Sol, estabeleceu-se pelo “conteúdo positivo do ato de demarcação de terras indígenas” afirmado pelo STF na teoria do fato indígena, basicamente a partir de dois marcos: o da tradicionalidade da ocupação, que se refere ao modo como os povos indígenas se relacionam com suas terras, e o marco temporal da ocupação, que se relaciona à comprovação de materialidade da ocupação indígena sobre suas terras em 05 de outubro de 1988 (data da promulgação da Constituição) como condição para caracterização do conceito de terra tradicionalmente ocupada, ressalvados os casos de renitente esbulho.
Em 2014 a tese foi aplicada pelo Supremo Tribunal Federal ao caso da Terra Indígena Guyraroka (RMS 29.087), cujo processo de demarcação foi declarado nulo pela segunda turma da Corte, e no caso da Terra Indígena Limão Verde (ARE 803.462), no qual a mesma segunda turma definiu as possibilidades de comprovação de renitente esbulho, enquanto exceção à regra imposta pelo marco temporal da ocupação. Nesse último acórdão foi definido que renitente esbulho não poderia ser confundido com ocupação passada ou desocupação forçada, ocorrida no passado e, para que haja configuração de esbulho, seria necessária comprovação de situação de “efetivo conflito possessório” que, mesmo ocorrido no passado, persista até a data da promulgação da Constituição, o que seria passível de comprovação por “circunstancia de fato ou, pelo menos, por uma controvérsia possessória judicializada”.11 11 Supremo Tribunal Federal. Ementa do Acórdão. Relatoria: Ministro Teori Zavascki. DJE 12/02/2015 - ATA Nº 9/2015. DJE nº 29. Para uma análise da decisão, ver DUPRAT (2018).
Essas inovações nos colocariam em colisão com normas de direito internacional dos direitos humanos e dos povos indígenas, como afirmou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos em relatório recente sobre a situação dos direitos humanos no Brasil. No entender do colegiado, a tese do marco temporal desconsidera o histórico de violentas expulsões dos povos indígenas de seus territórios que ocupavam tradicionalmente antes de 1988.12 12 (OEA/Ser.L/V/II. Doc.9/21)
Frente ao avanço desse cenário restritivo no plano doméstico e dos inúmeros desafios postos ao aprofundamento democrático, podemos notar que povos indígenas têm recorrido a fóruns internacionais como forma de denunciar e buscar reparações pelas violações de direitos humanos consolidadas na imposição de óbices ao reconhecimento e garantia de posse plena sobre suas terras de ocupação tradicional, seja em decorrência de decisões judiciais que anulam processos de demarcação ou da morosidade desses processos conduzidos pelo Poder Executivo, aliados a um ambiente potencialmente hostil na esfera política.
A recente condenação do Estado Brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso do povo indígena Xucuru, em 2018, pela violação do direito à garantia judicial de prazo razoável, previsto no artigo 8.1 da Convenção Americana dos Direitos Humanos-CADH, à proteção judicial e à propriedade coletiva, previstos nos artigos 21 e 25 da Convenção Americana13 13 A demanda foi submetida à Corte IDH em 16 de março de 2016. Caso Xucuru versus Estado brasileiro. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_346_por.pdf Acesso em 15/07/2019. , é exemplar. Cabe-nos, pois, questionar quais elementos possibilitam essa estratégia de judicialização e dão base para os pleitos dessas comunidades e ao resgate da segurança jurídica das terras indígenas.
Convém lembrar que apesar de a Convenção Americana de Direitos Humanos - CADH ter sido adotada em 1969 – momento marcado por diversos regimes autoritários na América Latina – somente em 1992 o Brasil a ratificou, pelo Decreto Legislativo nº 27, e a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos – Corte IDH foi reconhecida somente em 1998. A mora se justificaria em razão do processo de transição brasileiro, tanto no que concerne ao sistema político – com resquícios legislativos da ditadura – quanto a uma ausência de cultura em direitos humanos. O reconhecimento da jurisdição da Corte IDH se deu em meio a uma série de escandalosas violações de direitos humanos, como os massacres do Carandiru, Eldorado dos Carajás, Corumbiara e a chacina da Candelária (RAMOS, 2012, p. 259).
O Brasil, pelo Decreto n. 4.463 de 2002,14 14 Cf: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4463.htm, acesso em 15/07/2019. promulgou a declaração de reconhecimento da competência obrigatória da Corte IDH para fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998, em consonância com o art. 62 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Tal aceitação tem por consequência a vinculação do Estado brasileiro e seus poderes Legislativo, Executivo e Judiciário ao cumprimento das decisões exaradas pela Corte.
Segundo o artigo 67 da CADH, as sentenças proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos são definitivas e inapeláveis. Não obstante, o não cumprimento de decisões da Corte, nos termos do art. 65 da CADH, implica na inclusão do caso, acrescido de recomendações, no relatório da Corte IDH encaminhado anualmente à Assembleia Geral das Nações Unidas, o que objetivamente pode representar prejuízos em âmbito internacional ao Estado, porquanto a obrigatoriedade de basear sua política nos direitos humanos e pelas obrigações que assumira por meio de tratados e convenções internacionais, incluindo-se o cumprimento das decisões de tribunais internacionais cuja jurisdição tenha sido por ele reconhecida.
Essas questões desvelam uma ordem internacional na qual a igualdade entre os Estados depende cada vez mais da adesão a valores comuns, como a observância dos Direitos Humanos, do Estado de Direito e o respeito pela Democracia (BENHABIB, 2006BENHABIB, Seyla. Another Cosmopolitanism. New York: Oxford University Press, 2006.). Alguns estudos ainda têm destacado a superação do entendimento da Corte Internacional de Justiça sobre o papel desempenhado pela jurisprudência dos tribunais internacionais como fontes do direito. Nota-se o crescimento do papel das cortes na produção do direito enquanto fontes do direito internacional na atual ordem global, promovendo o diálogo entre sistemas de direito. Esse cenário, marcado por uma ênfase na solução de conflitos por instituições da ordem global acarretaria um controle judicial e, consequentemente, tecnocrático de pautas como os direitos humanos. As possibilidades e limitações das experiências atuais de governança transversal dos direitos humanos na América Latina se inserem nesse contexto (TORELLY, 2016TORELLY, Marcelo. Governança Transversal dos Direitos Fundamentais: experiências Latino-Americanas. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Direito, UnB, Brasília, 2016., p. 41- 52).
Por outro lado, o fenômeno da transnacionalização aponta para a discussão sobre diversos atores no plano internacional terem se tornado fonte para o direito, seja no plano econômico, através da regulação de mercados e atividades empresariais, seja com relação aos direitos humanos. Atores coletivos não estatais tornaram-se proeminentes em litígios de interesse público. A sociedade civil global desempenha, dessa forma, papel fundamental ao dar visibilidade a violações de direitos humanos, inclusive a partir da judicialização dos casos. Com relação aos direitos humanos dos povos indígenas no Brasil, a litigância tem envolvido um sistema multinível e dialógico, viabilizado a partir do ativismo transnacional da sociedade civil,15 15 Por exemplo, conferir: TEUBNER (2013), PIOVESAN, 2017, p. 1379 e SANTOS (1997). no contexto de propulsão de uma atuação fundada no cosmopolitismo, para a qual os direitos humanos podem servir como processo contra hegemônico de lutas locais com potencial universalista.
Com relação aos direitos territoriais dos povos indígenas, a janela para a litigância estratégica nas cortes internacionais se materializa a partir da proteção transnacional desses direitos, tanto encartados como fundamentais na constituição, como protegidos pelo direito internacional dos direitos humanos. Vejamos, pois, os detalhes do caso Xucuru e como este dialoga com tais pressupostos.
2. Caso povo Xucuru x Brasil e o direito à propriedade coletiva
A petição referente ao caso do Povo Indígena Xucuru x Brasil foi apresentada em 16 de outubro de 2002 à Comissão Interamericana de Direitos Humanos sob a alegação de violação do direito à propriedade coletiva e às garantias e proteções judiciais asseguradas nos artigos 21, 8 e 25 da CADH, em virtude da mora no processo demarcação da Terra Indígena Xucuru, localizada no Município de Pesqueira, estado de Pernambuco, e a ineficácia judicial para a proteção desses direitos.
A Comissão expediu o relatório de admissibilidade nº 98/2009, concluindo que o caso potencialmente representaria violação de direitos humanos, com relação aos artigos 8, 21, 25, 1.1. e 2 da Convenção Americana, mas também aos artigos XVIII e XXIII da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e, em 2015, foi expedido relatório de mérito no qual constavam recomendações ao Estado brasileiro, dentre as quais a adoção de medidas necessárias – inclusive legislativas, administrativas ou de outra natureza – para garantir a posse do território pelo povo Xucuru; a conclusão dos processos judiciais então em curso que discutiam a demarcação e a posse das terras; reparação em âmbito individual e coletivo das consequências das violações de direitos e a adoção de medidas necessárias para evitar a ocorrência de conflitos futuros.
Em 16 de março de 2016 o caso foi submetido à Corte IDH, ante à ausência de comprovação pelo Estado do cumprimento das cautelares, sob a alegação de violação do direito à propriedade coletiva e integridade pessoal do Povo Xucuru em consequência da alegada mora de mais de 16 anos (1989-2005) do processo administrativo de identificação, delimitação e regularização fundiária de suas terras e, consequentemente, da impossibilidade de exercício da posse plena pelo povo Xucuru sobre seu território. Alegava-se, também, a violação dos direitos, garantias e proteção judiciais, frente à mora na resolução de ações civis requeridas por não indígenas sobre parte das terras em discussão, além do assassinato de sua principal liderança ao longo do processo de reconhecimento das terras pelo Estado, o Cacique Chicão. 16 16 CIDH, Relatório No. 44/15, Caso 12.728. Mérito. Povo indígena Xucuru. Brasil. 28 de julho de 2015. Para uma reconstrução histórica da questão, ver FIALHO, NEVES e FIGUEIROA orgs. (2011).
Em sua sentença sobre o caso, a Corte considerou que o art. 21 da Convenção Americana protege o vínculo indissolúvel que os povos indígenas guardam com suas terras e os recursos naturais nelas existentes, reafirmando entendimento consolidado em outros casos17 17 Por exemplo: Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni vs. Nicaragua, Corte IDH, 2001; Comunidade Yakye Axa vs. Paraguay, Corte IDH, 2005, Caso Comunidade Indígena Xákmok Kásek. vs. Paraguay, Corte IDH, 2010 e Comunidade Indígena Sawhoyamaxa vs. Paraguai, Corte IDH, 2006. . Para o colegiado, apesar das noções de domínio e da posse dos povos indígenas sobre seus territórios não corresponderem à concepção clássica de propriedade, elas merecem a mesma proteção disciplinada no art. 21 da Convenção, já que desconhecer versões específicas do direito ao uso e gozo dos bens informadas pela cultura de cada povo equivaleria a afirmar que só existe uma forma de possuir e dispor dos bens, tornando ilusória a proteção do direito de propriedade aos povos indígenas.18 18 Corte IDH. Caso Povo Xururu e seus membros x Brasil. Sentença de 02 de fevereiro de 2018, pág. 29.
Dessa forma, o art. 21 da CADH, que trata do direito fundamental à propriedade privada, deve ser compreendido de modo reflexivo e também contemplar o direito de propriedade coletiva da terra dos povos indígenas e comunidades quilombolas para proteger o estreito vínculo que esses povos “mantêm com suas terras e seus recursos naturais e elementos incorporais que neles se originam”19 19 Idem, p. 29. e que são exercidos de modo coletivo e relacionados à sua reprodução física e cultural. O vínculo desses povos com determinada terra não é centrado no indivíduo, mas no grupo e marcado por dada cosmologia, sistemas de pertencimento, de justiça e de organização social.20 20 Uma análise relevante sobre a relação dos povos indígenas com suas terras e diferentes ambientes encontra-se em KOPENAWA e ALBERT (2015). Destacamos os tópicos “falar aos brancos” e “paixão pela mercadoria”, pp. 375-421. Outra obra relevante é KRENAK (2019).
Por outro lado, a Corte também estabeleceu que, em atenção ao princípio da segurança jurídica aplicado ao direito internacional dos direitos humanos, é necessário materializar os direitos territoriais dos povos indígenas a partir da adoção de medidas legislativas ou administrativas que criem um mecanismo efetivo de delimitação e titulação desses direitos. Ao fazê-lo, deu especial atenção à necessária estabilidade das situações jurídicas como parte fundamental da confiança do cidadão na institucionalidade democrática, um dos pilares essenciais “do Estado de Direito, desde que se fundamente em uma real e efetiva certeza dos direitos e liberdades fundamentais”, conforme expõe.21 21 Idem. p. 31
Trata-se de um reconhecimento reiterado da Corte, combinando o art. 21 da CADH com a Convenção n. 169 da OIT e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, assim como os direitos reconhecidos pelos Estados em suas leis internas ou em outros instrumentos e decisões internacionais, que, em suas palavras, constitui “um corpus juris que define as obrigações dos Estados partes na Convenção Americana, em relação à proteção dos direitos de propriedade indígenas”.22 22 Idem.
A jurisprudência firmada pela Corte IDH, pois, nos traz um olhar atento acerca dos embates atuais entre distintas concepções do direito de propriedade. Uma primeira tornada preponderante no direito e permeada por ficções que desconsideram a própria historicidade do instituto, e outra periférica, insurgente e, pode se dizer, considerada residual por setores majoritários da sociedade.23 23 Apesar da pluralidade histórica das formas de propriedade, observar-se-ia uma tensão no discurso jurídico, calcada em uma ideia unívoca do instituto, que guarda relações epistêmicas em uma tensão com a ideia de posse ou apossamento. A modernidade, podemos dizer, cristalizou um modelo jurídico singular preponderante, com carga não só individual, mas eminente potestativa. Trata-se da operação inaugurada por Locke ao traduzir o dominium rerum em bases individuais, transplantando a propriedade das coisas para a lógica da propriedade intra-subjetiva, por si só absoluta, porquanto corresponde a própria vocação do ser enquanto um direito natural (GROSSI, 2006, p. 11-12). Tratam-se de concepções de uso e ocupação historicamente definidas e que desafiam a própria noção de propriedade universal e centrada no indivíduo constituída no século XIX que orienta as normas de regularização fundiária24 24 Para uma análise crítica da historiografia sobre o direito de propriedade na América Espanhola e a noção de propriedade, ver SAAVEDRA (2020). Sobre os desafios à regularização fundiária de territórios indígenas, à luz do Caso Xukuru, ver NÓBREGA e LIMA (2021). .
O embate entre essas distintas concepções e práticas sobre a propriedade lança, sem dúvidas, enormes desafios aos legisladores e, sobretudo, aos magistrados. Proteger formas específicas de se relacionar com a terra representa a proteção do próprio direito à vida, o que não pode prescindir de efetivos diálogos interculturais.
Além de destacar o caráter específico da propriedade coletiva dos povos indígenas sobre a terra, a Corte IDH reforça esse entendimento a partir da necessidade de proteção aos recursos naturais e imateriais que fundamentam o vínculo desses com seus espaços de pertença. Também reforçou que “os povos indígenas que involuntariamente tenham perdido a posse de suas terras, e estas tenham sido trasladadas legitimamente a terceiros de boa-fé́, têm o direito de recuperá-las”, conforme já havia sido determinado nos casos da Comunidade Indígena Sawhoyamaxa Vs. Paraguai, par. 128, da Comunidade Indígena Xákmok Kásek Vs. Paraguai, par. 109 e dos Povos Kaliña e Lokono Vs. Suriname.25 25 CIDH. Caso Xucuru e seus membros vs. Brasil. Sentença de 05 de Fevereiro de 2018, p. 30.
Particularmente em relação ao caso Sawhoyamaxa vs. Paraguai, reafirmado na sentença expedida do caso Xucuru, dois aspectos da jurisprudência são relevantes no contexto de discussões brasileiras: se a posse constitui um requisito para o reconhecimento pelos Estados das terras indígenas e se esses direitos possuem algum limite temporal para o seu reconhecimento, à luz do art. 21 da CADH.
Com relação à primeira hipótese, entendeu a Corte IDH que se por um lado a posse dos indígenas sobre as terras bastaria para o seu reconhecimento pelo Estado como terras indígenas (Caso Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni), por outro, a ausência de posse decorrente de saída involuntária não poderia ser considerada como um obstáculo ao reconhecimento do direito dos povos indígenas (Caso Comunidade Moiwana).26 26 CIDH. Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa vs. Paraguai. Sentença de 29 de março de 2006, p. 72.
Sobre eventual limitação temporal do direito de recuperação dessas terras, concluiu a Corte IDH que este permanece indefinidamente no tempo. O que deve ser observado, nesses casos, é a permanência do vínculo espiritual e material dos povos indígenas com suas terras que, logicamente, não é aferido a partir de pressupostos temporais vinculados exclusivamente ao passado, mas, sobretudo ao presente e futuro. O critério a ser adotado é o da identidade, e a comprovação de permanência do vínculo pode incluir o uso e presença de modo tradicional, laços espirituais e cerimoniais, assentamentos, cultivos esporádicos, pesca, atos de coleta e usos de recursos naturais relacionados aos seus costumes ou qualquer outro elemento característico de sua cultura.27 27 Idem, pág. 73, parágrafo 131. O entendimento já havia sido consolidado no Caso Comunidad Indígena Yakye Axa. Todavia, até essas formas de comprovação são relativizadas nos casos em que os usos pelos povos indígenas dos recursos existentes não sejam possíveis em razão de óbices impostos por terceiros, situação particularmente recorrente em terras indígenas em disputa no Brasil.
O caso Xukuru, assim, demonstra as possibilidades de sucesso na litigância estratégica dos povos indígenas no plano internacional, sobretudo considerando a reafirmação da jurisprudência da Corte IDH com relação ao entendimento da aplicabilidade do art. 21 da Convenção para o direito de propriedade coletiva dos povos indígenas sobre as suas terras e a inexistência de perda de vínculo indissolúvel nos casos de esbulho sofrido por essas comunidades, a qualquer tempo.
Esse entendimento com base no direito internacional dos direitos humanos e dos povos indígenas colide com as representações recentes no plano doméstico sobre o art. 231 da Constituição de 1988. São possibilidades de diálogo e fluxo comunicativo que se abrem, tendo por base parâmetros cosmopolitas de justiça.
3. O cosmopolitismo e as bases de litigância para a proteção dos direitos humanos dos povos indígenas.
A expansão dos debates sobre as implicações entre os direitos fundamentais, o direito internacional dos direitos humanos e a recepção dessas normas como constitucionais em âmbito doméstico pressupõe a abertura do direito constitucional, que passa de mediador entre direito e política interna aos Estados para também mediador dessa no plano internacional, superando uma lógica dualista. A dupla positividade de direitos fundamentais, prescritos como direito constitucional nas ordens domésticas e direitos humanos no direito internacional dos direitos humanos, resulta em processos jurídicos transnacionais, colocando como atores constitucionais novos agentes que operam de maneira similar ao atores constitucionais clássicos do constitucionalismo estatal (TORELLY, 2016TORELLY, Marcelo. Governança Transversal dos Direitos Fundamentais: experiências Latino-Americanas. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Direito, UnB, Brasília, 2016.).
Organizações públicas e privadas, sejam domésticas ou internacionais, assim, promovem interações perante o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. São interações relevantes, considerando o complexo contexto de violações de direitos humanos na América Latina, marcada por um número considerável de países ainda em fase de consolidação de suas democracias e, consequentemente, pelo convívio com uma precária tradição de respeito aos direitos humanos nos âmbitos domésticos. Por outro lado, esses recursos também demonstram a crescente legitimidade do sistema interamericano na proteção e promoção dos direitos humanos e os desafios para a manutenção do padrão internacional de direitos humanos no nível regional (PIOVESAN, 2017PIOVESAN, Flavia. Ius Contitutionale Commune Latino-Americano em Direitos Humanos e o Sistema Interamericano: perspectivas e desafios. Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 8, N. 2, 2017, p. 1379.).
Na atual fase da governança global, a partir do uso da litigância em tribunais internacionais, o diálogo entre o direito internacional e doméstico é sensivelmente ampliado, não somente pelos mecanismos inerentes ao controle de convencionalidade, mas também pelo fluxo comunicativo estabelecido pelos atores não estatais de proteção aos direitos humanos, que conformam uma sociedade civil global. A construção de um modelo judicial de governança no direito internacional produz um rearranjo na maneira como direitos fundamentais e coletivos são tratados, assim como nas estratégias de mobilização para mudanças legais e políticas (TORELLY, 2016TORELLY, Marcelo. Governança Transversal dos Direitos Fundamentais: experiências Latino-Americanas. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Direito, UnB, Brasília, 2016., p. 52), a partir de uma litigância, que combina mobilização doméstica e transnacional.28 28 Sobre a noção de litígio estratégico, conferir: CARVALHO e BAKER (2014).
Esse contexto, favorecido por aberturas constitucionais no plano doméstico a exemplo da Emenda Constitucional nº 45/2004, torna frutífera e desejável a ascensão de normas cosmopolitas de justiça na América Latina, tendo em conta o processo jurisdicional exercido pela Corte IDH. Conforme já decidido pelo STF, tanto os tratados de direitos humanos anteriores ou posteriores à reforma integram o bloco de constitucionalidade brasileiro, independente do seu quórum de aprovação, no claro sentido de atribuir segurança jurídica aos direitos fundamentais no país.29 29 Julgamento do HC 72.131-RJ pelo STF. PIOVESAN, 2008.
Tendo por base os fluxos comunicativos de normas cosmopolitas de justiça, a litigância internacional relativa à proteção dos direitos indígenas se aproxima das questões suscitadas por Seyla Benhabib (2006)BENHABIB, Seyla. Another Cosmopolitanism. New York: Oxford University Press, 2006. sobre a proeminência de normas cosmopolitas de justiça na atual fase de governança global. A partir do debate entre Hannah Arendt e Karl Jaspers sobre o julgamento de Adolf Eichmann e o status legal do crime de genocídio, a filósofa promove uma reflexão sobre a ascensão das normas cosmopolitas de justiça particularmente interessante para a compreensão do estabelecimento do direito internacional dos direitos humanos no contexto pós 1945.
Segundo afirma, desde 1948, com a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos Humanos, inaugurou-se uma nova fase no percurso da sociedade civil global, que reflete uma transição no que se refere a normas internacionais de justiça cosmopolita. Essas normas, quaisquer que sejam as condições de sua origem legal, são atribuídas aos indivíduos como pessoas morais e legais em uma sociedade civil mundial, dotando os sujeitos de um estatuto jurídico próprio, diferente das normas de justiça internacional clássicas, centradas nas relações estabelecidas entre os Estados em tratados.
Mesmo que as normas cosmopolitas surjam por meio de obrigações semelhantes às clássicas para os Estados, aproximando-as dos tratados, como a Carta das Nações Unidas pode ser considerada para os Estados signatários, sua peculiaridade é que elas dotam os indivíduos e não os Estados e seus agentes de certos direitos fundamentais, inerentes à condição humana. Essa virada, ampliada no final da década de 1980, possibilitou a construção de fluxos comunicativos que favorecem a proteção de direitos fundamentais pela gramática dos direitos humanos e um direito público internacional que vincula e limita a vontade das nações soberanas, não somente com relação a outros Estados, mas sobretudo com relação à população civil (BENHABIB, 2006BENHABIB, Seyla. Another Cosmopolitanism. New York: Oxford University Press, 2006., p. 16).
Esse caminho pode suscitar mecanismos de luta e defesa frente a experiências autoritárias no presente, principalmente no que se refere à aparente tensão entre maiorias democráticas e os direitos de minorias. Por exemplo, os direitos fundamentais à igualdade e à diferença, assegurados tanto no direito indígena e no sistema constitucional brasileiro quanto pelo direito internacional dos direitos humanos, seriam nutridos em sua semântica por princípios éticos fundamentais e dotados de necessária reflexividade, de modo a ofertar um consenso crescente sobre as limitações da soberania estatal em dispor de direitos fundamentais e o papel crucial do estabelecimento de diálogos interculturais.
Inspirada pela filosofia da linguagem de Derrida, Benhabib (2006)BENHABIB, Seyla. Another Cosmopolitanism. New York: Oxford University Press, 2006. denomina esses diálogos de iterações democráticas, enquanto processos de repetição que sempre trazem algo de novo e enriquecem conceitos, mesmo que de modo sutil. Essas iterações podem promover a ampliação de sentidos comuns que favoreçam o respeito à igualdade na diferença e se tornem pressupostos para a leitura de uma série de institutos jurídicos, como no caso da propriedade coletiva exercida por povos indígenas sobre seus territórios, que demanda a busca por um efetivo diálogo intercultural para sua compreensão.
Benhabib nos provoca, ainda, a refletir como pode a vontade das maiorias democráticas se reconciliar com as normas da justiça cosmopolita, de modo que normas e padrões legais que se originam fora da vontade das legislaturas democráticas tornem-se para estas vinculantes. Tal reflexão transcende a lógica dual entre hierarquia de normas do direito internacional dos direitos humanos e as constituições estatais ou entre as duas jurisdições e nos provoca sobre os pressupostos éticos dos direitos humanos em uma perspectiva transnacional e, portanto, essencialmente reflexiva e aberta aos fluxos comunicativos.
Trata-se de questões fundamentais para a compreensão dos limites impostos às democracias com relação aos direitos humanos de minorias, que são protegidas juridicamente no plano interno e no plano do direito internacional dos direitos humanos, especialmente em face da emergência de regimes de caráter nacionalista e autoritário. No mundo contemporâneo a relação de tensão entre a soberania dos Estados e normas cosmopolitas tem se tornado mais evidente, fruto do paradoxo da “legitimidade democrática”, a saber, a necessária e inevitável limitação das formas democráticas de representação e responsabilização em termos da distinção formal entre membros e não-membros. A promoção de atos reflexivos de autoconstituição, pelos quais os próprios limites de povo podem ser reajustados, é relevante e favorece a expansão de normas universalistas da ética do discurso para além das fronteiras do Estado-nação. (BENHABIB, 2006BENHABIB, Seyla. Another Cosmopolitanism. New York: Oxford University Press, 2006., p. 36).
Assim, as iterações democráticas podem ofertar soluções normativas para o paradoxo da legitimidade democrática (BENHABIB, 2006BENHABIB, Seyla. Another Cosmopolitanism. New York: Oxford University Press, 2006., p. 45). A expectativa da autora é que, a partir do processo de iterações democráticas, as maiorias dos próprios Estados se influenciem, convencidas pela validade independente das normas cosmopolitas, e incorporem progressivamente o direito cosmopolita às normas positivas dos Estados democráticos.
A despeito do atual cenário de emergência de governos nacionalistas, em geral com discursos prejudiciais à ordem global e à efetivação de direitos humanos, entende-se que essas iterações foram responsáveis por parte significativa do bloco de constitucionalidade dos países que tiveram suas transições democráticas no final dos 1980 e ao longo da década de 1990, como o Brasil. A consolidação progressiva da jurisprudência internacional, ao reiteradamente tratar de casos semelhantes no contexto latino-americano, guardadas as inevitáveis e fundamentais particularidades de cada um, promove diretrizes de proteção aos direitos humanos e aos povos originários. Desse modo, atores não estatais, transnacionais e as cortes regionais desempenham um papel fundamental na proteção desses direitos e no resguardo ao constitucionalismo democrático por meio da difusão dessas normas cosmopolitas de justiça. Os povos indígenas, assim, proporcionam novos contextos semânticos, que permitem a ampliação do significado do direito (BENHABIB, 2006BENHABIB, Seyla. Another Cosmopolitanism. New York: Oxford University Press, 2006., p. 50).
É interessante ressaltar que, longe de ser puramente uma ética global, o cosmopolitismo se refere a normas que devem governar as relações entre os indivíduos em uma sociedade civil global. O direito à autonomia e, portanto, a afirmação da diferença que pressupõe o princípio da igualdade, poderia ser considerado como um exemplo. Ao analisar as características do cosmopolitismo, Kwame Anthony Appiah esclarece a incorreção em se confundir este como o humanismo, já que o cosmopolitismo não se contempla por uma homogeneidade global, mas a partir da celebração da existência de diferentes modos locais de ser e existir (APPIAH, 1998APPIAH, Kwame Anthony. Patriotas cosmopolistas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 13, vol. 36 fev. 1998, pp. 79-94., p. 7).
É certo que a construção da cidadania liberal com base no Estado-nação ensejou um elevado custo social para minorias étnicas, a exemplo dos povos indígenas, para os quais as identidades distintas das aspirações de autonomia nacional foram suprimidas por Estados liberais, vistas como não integrantes dos grupos nacionais privilegiados e, recorrentemente, como ameaças a serem combatidas ou suprimidas (KYMLICKA, 2006KYMLICKA, Will. Liberal Nationalism and Cosmopolitan Justice. In BENHABIB, Seyla. Another Cosmopolitanism. New York: Oxford University Press, 2006., p. 130). Não obstante, como nos sugere Benhabib, os direitos e outros princípios do Estado liberal-democrático precisam ser periodicamente desafiados e rearticulados na esfera pública a fim de reter e enriquecer seu significado original.
Dessa forma, a condenação do Estado brasileiro no caso Xucuru, para além de um efeito pedagógico ao Estado e de reparação àquele povo, promove a possibilidade de reafirmação de um fluxo comunicativo a partir de normas cosmopolitas de justiça. Vejamos quais impactos têm se desvelado, até o momento, na jurisprudência brasileira.
4. Impactos do caso do Povo Xucuru na jurisprudência atual: possibilidades de diálogo
Em sentido amplo, o papel da jurisprudência internacional sobre os direitos fundamentais tem crescido no ambiente doméstico brasileiro como fonte do direito. O controle de convencionalidade, por sua vez, oferece possibilidades de articulação da proteção de direitos transnacionalmente. Apesar dos desafios, é possível notar um processo de interação e iteração na consolidação de normas cosmopolitas de justiça, seja no discurso e lutas dos atores não estatais, seja na jurisdição.
Esse crescente papel da Corte Interamericana de Direitos Humanos na consolidação de normas cosmopolitas de direitos humanos na América Latina não é marcado somente por critérios de subordinação hierárquica, mas, sobretudo, pelo fluxo comunicativo de ideias e interpretações relacionadas aos direitos humanos, considerando a dupla positividade dos direitos fundamentais (TORELLY, 2016TORELLY, Marcelo. Governança Transversal dos Direitos Fundamentais: experiências Latino-Americanas. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Direito, UnB, Brasília, 2016., p. 276). Podemos notar o crescimento da interação argumentativa entre os sistemas doméstico brasileiro e o regional para a proteção dos direitos fundamentais dos povos indígenas, ainda que persistam desafios.
Apesar da consolidação de um entendimento sobre a propriedade coletiva ou ancestral experimentada pelos povos indígenas que caracteriza a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos desde meados dos anos 2000, ainda é possível notar limitações no cenário brasileiro, como as decorrentes da interpretação restritiva promovida pela tese do marco temporal em 2009, que implementa uma linha de corte cronológica à caracterização do conceito de terra tradicionalmente ocupada disposto no art. 231 da Constituição de 1988.
Em que pese o esforço argumentativo da Corte IDH referir-se ao direito de propriedade, diferente do protegido pelo ordenamento brasileiro, que definiu a propriedade das terras indígenas à União ressalvando a posse e o usufruto exclusivo aos povos originários, em substância, o que se está a tratar é de elementos análogos, com a proteção da posse e ocupação. Os próprios tribunais brasileiros assim têm começado a assim reconhecer.
Ao proteger a propriedade coletiva a Corte IDH deixa claro estar protegendo as formas de propriedade no sentido de relações e usos específicos da terra, seus recursos naturais e elementos simbólicos imprescindíveis à reprodução física e cultural de determinado povo indígena. Dessa forma, a ideia de propriedade coletiva ganha o contorno de uso e ocupação, nos termos da posse tradicional reconhecida pela Constituição de 1988, e não de propriedade em termos da tradição civilista.
A Corte IDH, como exposto, também é clara ao definir a inexistência de limitação temporal para o reconhecimento dos direitos territoriais dos povos indígenas, assim como que a posse atual não se configura como requisito inafastável (Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa) para o reconhecimento de suas terras. Nesse sentido, a jurisprudência da Corte IDH sobre a propriedade coletiva dos povos indígenas se assemelha à teoria do indigenato, consagrada na Constituição de 1988, já que o vinculo material ou imaterial são suficientes para a declaração do direito dos indígenas a determinada terra, excluindo-se contingências de ordem temporal (CARVALHO RAMOS, 2019CARVALHO RAMOS, André de. Curso de direitos humanos. São Paulo: Saraiva Educação, 2019., p. 860).
Entretanto, é a primeira vez que esse entendimento é externado em uma condenação dirigida ao Estado brasileiro. Objetivamente, uma condenação ao Estado chama atenção de seus agentes sobre as condutas com relação à matéria. Nesse sentido, abre-se mais um capítulo das iterações promovidas pela interpretação da CIDH sobre o direito dos indígenas às suas terras.
A partir de um levantamento não exaustivo no sistema de busca processual do Supremo Tribunal Federal sobre questões envolvendo direitos indígenas e territoriais coletivos após a expedição da sentença condenatória no caso Xucuru pela Corte IDH foi possível verificar um uso do precedente pelo tribunal e maior interação com relação à disciplina do direito à propriedade coletiva. Foram pesquisados os termos “corte”, “interamericana” e “terras indígenas” e os dados foram cruzados. Vejamos alguns casos.
No julgamento da ADI 3239, realizado três dias após a expedição da sentença condenatória do Estado brasileiro, o Supremo Tribunal Federal promoveu amplo diálogo com a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre sua interpretação do art. 21 da CADH. A ação, requerida pelo Partido Democratas – DEM, tinha por objetivo a declaração de inconstitucionalidade do Decreto 4.887/2003, que regulamentou o procedimento de identificação, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por comunidades quilombolas no país. Em síntese, a argumentação do partido centrava-se sob dois pontos principais: a adoção do critério da autoidentificação para o reconhecimento desses povos pelo diploma impugnado e a sujeição das terras a serem identificadas ao perímetro indicado pelos próprios povos interessados.30 30 Supremo Tribunal Federal. Acórdão ADI 3239. Relatora do Acórdão, Ministra Rosa Weber. DJE 01/02/2019 - Ata nº 1/2019.
Por maioria dos votos os pedidos foram julgados improcedentes. Na ementa do acórdão, o STF reconheceu que o direito dos povos quilombolas à proteção de seus territórios, assegurado pelo art. 68 do ADCT, constitui direito fundamental dos grupos étnico-raciais minoritários e é dotado de plena eficácia e aplicação imediata. Também recuperou o compromisso constituinte com uma sociedade livre, justa e solidária, indutora da redução das desigualdades sociais e históricas, que conduz ao reconhecimento dessas terras no bojo das lutas por reconhecimento de grupos com identidades específicas. Foi reafirmado, ainda, o caráter vinculante da Convenção nº 169 da OIT, que define o critério da autoidentificação como insubstituível para tratar o reconhecimento das identidades de povos tradicionais, declarando como constitucionalmente legítima a adoção do critério da autoatribuição étnica, o que articula mutuamente as dimensões individuais e coletivas de tais direitos.
É interessante que, ao aventar essas conclusões na ementa do Acórdão, o STF consignou os precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos expostos nos casos Moiwana v. Suriname (2005) e Saramaka v. Suriname (2007) enquanto fontes do direito, em conjunto com a interpretação sistêmica da Constituição de 1988. Especificamente, o tribunal destacou o reconhecimento do direito de propriedade de comunidades quilombolas e ressaltou, com base no art. 21 da CADH, o compromisso dos Estados partes de adotar tais medidas. Apesar de não ser mencionado no Acórdão a Sentença do caso Xucuru, entendemos ser este um percurso das iterações interpretativas entre ambas as cortes com relação à matéria.
Em seu voto-vista, a Ministra Rosa Weber, ao ressaltar o direito fundamental dos povos quilombolas às suas terras, destacou o caso Mayagna (Sumo) Awas Tingni (2001). Nesse caso, a Corte IDH reconheceu que a Nicarágua havia violado o art. 21 da CADH no que concerne ao direito à propriedade coletiva do povo indígena porque, não obstante o reconhecimento desse direito na Constituição daquele país, jamais havia sido regulado procedimento específico para permitir seu pleno gozo. O Ministro Roberto Barroso também destacou a CADH, a partir de seu status supralegal, como fundamento de validade do Decreto 4.887/2003 e utilizou interpretação reflexiva de seu artigo 21 conforme sustentado pela Corte IDH.
A tese do marco temporal também foi discutida em diversos votos, em que pese uma consideração específica não ter sido caracterizada na parte dispositiva do acórdão, o que desvela a ainda ausência de consenso na Corte sobre a questão. No acórdão sobre os embargos de declaração opostos pela Associação dos Quilombos Unidos do Barro Preto e Indaiá, Associação dos Moradores Quilombolas de Santana, a Coordenação das comunidades Negras Rurais Quilombolas de Mato Grosso do Sul e outros, a questão foi retomada.
Os embargos foram apresentados apontando suposta omissão no acórdão com relação à inaplicabilidade do marco temporal para a titulação das terras quilombolas, rejeitada na maior parte dos votos, e pugnavam a inserção de tal referência na ementa do acórdão. Apesar de não terem sido reconhecidos, porquanto postulados por amici curiae, os ministros Edson Facchin e Luís Roberto Barroso, todavia, promoveram ressalvas e destacaram em seus votos que no julgado havia sido declarada a constitucionalidade do Decreto 4.887/2003, que não faz qualquer menção à aplicação da tese do marco temporal, ou seja, não impõe qualquer limite temporal como condição para o reconhecimento de direitos, mas, tão somente, o critério da identidade. 31 31 Supremo Tribunal Federal. Acórdão Eds ADI 3239. Relatora do Acórdão, Ministra Rosa Weber. DJE 13/03/2020 - ATA Nº 28/2020.
Mais recentemente, no julgamento da ADI 6062, requerida pelo Partido Socialista Brasileiro – PSB em face da MP 870/2019 que, reeditada pela MP 8886/2019, transferia ao Ministério da Agricultura a competência para demarcação de terras indígenas o relator, Ministro Luís Roberto Barroso, destacou que o reconhecimento e demarcação das terras indígenas, juntamente com o reconhecimento de suas línguas, tradições e proteção às suas expressões culturais constituem obrigações inadiáveis do Estado brasileiro. Estas devem ser cumpridas em conjunto com os povos indígenas, em processo “como estabelece a Declaração de Direitos dos Povos Indígenas, ‘equitativo, independente, imparcial, aberto e transparente, em que nele se reconheçam devidamente as leis, tradições, costumes e sistemas de usufruto da terra dos povos indígenas’”.32 32 ADI 6062. DJE 29/11/2019, Ata nº 182/2019. Para reforçar esse entendimento o ministro citou a condenação do Estado brasileiro pela Corte IDH no caso do Povo Xucuru, notadamente quanto ao cumprimento, pelos processos de demarcação, das regras do devido processo legal consagradas nos art. 8 e 25 da Convenção Americana.
Na Ação Rescisória 2761, ajuizada pela comunidade indígena do Povo Kaingang da Terra Indígena Boa Vista em face de Silvestre Chruscinski, tendo por objeto a desconstituição do acórdão proferido nos autos do RE nº 984.335, que manteve decisão do TRF4 que anulou o processo de demarcação da Terra Indígena Boa Vista, no Paraná, o Ministro Barroso deferiu o pedido cautelar da comunidade indígena em 05/11/2019 valendo-se de farta jurisprudência da Corte IDH com relação à personalidade jurídica desses povos, que possui uma dupla dimensão, garantindo-lhes tanto o direito à terra quanto o direito de acesso à justiça, enquanto instrumento de proteção do primeiro.
Na ocasião, o ministro ressaltou o caso da Comunidade Indígena Yakye Axa vs. Paraguai, com relação à capacidade de reivindicação dos povos indígenas, e do Povo Saramaka vs. Suriname, no qual a corte entendeu que o reconhecimento da personalidade jurídica é “um modo, ainda que não seja o único, de assegurar que a comunidade, em seu conjunto, poderá gozar e exercer plenamente o seu direito à propriedade, de acordo com seu sistema de propriedade comunal”.33 33 Supremo Tribunal Federal Ação Rescisória 2761. DJE nº 243, de 06/11/2019.
Somam-se ainda a essas manifestações decisões do Superior Tribunal de Justiça, a exemplo da proferida em 23/04/2019 na Petição no Recurso Especial nº 1.583.946, referente à Terra Indígena Toldo Pinhal, em Santa Catarina, na qual o Ministro Herman Benjamin, ao defender o ingresso da comunidade indígena Kaingang no feito, ressaltou a recente condenação do Estado brasileiro pela Corte IDH no caso Xucuru. O mesmo se pode observar em outros processos, seja em tribunais ou juízos de primeira instância.34 34 São exemplos as decisões proferidas na ACP 1004249-82.2018.4.01.3200/AM, na Ação Declaratória 10917-73.2015.4.01.3400/MG e na Apelação nº 0001220-18.2012.4.03.6000/MS. Agradecemos a Anne Heloise Barbosa do Nascimento pela colaboração com as informações.
Paralelamente, esse processo de iteração, com a interpretação do direito de propriedade coletiva conforme exposta pela Corte IDH, também pode ser encontrada em manifestações de outros atores do sistema de justiça. Seja em ações civis públicas destinadas a compelir a União a cumprir sua obrigação constitucional para demarcação de terras indígenas, ou em manifestações sobre outras ações e procedimentos em curso, como se tem observado na atuação do Ministério Publico Federal.
Por fim destacamos que o pleno do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, reconheceu repercussão geral no RE nº 1.017.365, referente à Terra Indígena Ibirama La Klano, em Santa Catarina, com relação à definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de ocupação tradicional indígena, à luz do art. 231 da Constituição. A decisão fundamentou-se em razão de que, a despeito da assentada tese do marco temporal da ocupação no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, os parâmetros para o reconhecimento dos direitos fundamentais dos povos indígenas às suas terras não se encontram pacificados, já que devem transcender questões meramente possessórias ou de domínio. A condenação do Estado brasileiro no caso Xucuru e os fundamentos da jurisprudência da Corte IDH sobre art. 21 da Convenção Americana de Direitos Humanos serão subsídios muito relevantes para esse caso de repercussão geral.
5. Conclusões
Buscamos apresentar como o fluxo comunicativo entre a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o direito dos povos indígenas e tradicionais à propriedade coletiva, com base no art. 21 da CADH, e os entendimentos na jurisprudência brasileira podem promover a almejada segurança jurídica das terras indígenas no Brasil e se revelarem como processos de iterações democráticas que favoreçam a semântica da proteção dos direitos desses povos.
A partir de uma análise dos principais instrumentos jurídicos no plano internacional, combinados com a proteção atribuída pela Constituição de 1988 a essas terras, pudemos verificar o duplo grau de proteção desses direitos. Fundados no direito à identidade, o direito dos povos indígenas às suas terras é orientado pelo princípio da igualdade que, em uma abordagem reflexiva, pressupõe o exercício da diferença e autonomia. Essa compreensão nos permite vislumbrar como esses direitos são alimentados por uma tradição cosmopolita de normas de justiça.
A análise do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos e seu papel na atual ordem regional de governança transversal dos direitos humanos nos aponta para a ampliação do olhar, para além das estruturas hierárquicas relativas ao controle de convencionalidade, decerto extremamente relevantes, às possibilidades de integração jurisprudencial por meio dos fluxos comunicativos e da atuação de atores estatais e não estatais na proteção dos direitos fundamentais dos povos indígenas.
Entendemos que essas possibilidades se abrem graças à consolidação de normas cosmopolitas de justiça, que permitem a transcendência das questões referentes aos direitos fundamentais da esfera exclusiva do Estado-nação. Essas normas, fundadas um estatuto jurídico global, mas não na ideia de homogeneidade ética, possibilitam a articulação de discursos e iterações democráticas, nos termos de Seyla Benhabib, que são fundamentais à consolidação de um regime protetivo dos direitos humanos, em especial para os povos indígenas, e favorecem diálogos interculturais.
Essas constatações e um levantamento do impacto jurisprudencial da ainda recente condenação do Estado brasileiro no caso Xucuru nos permitem indicar um cenário que, se é certo que marcado por disputas, já se mostra aberto ao uso das interpretações consolidadas na Corte IDH. Potencialmente, a sentença condenatória do caso do povo Xucuru certamente representa um enorme ganho para os povos indígenas e fundamento imprescindível ao debate hoje em curso sobre o regime jurídico das terras indígenas e das garantias democráticas no Brasil.
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1
Sobre a questão, conferir: YAMADA (2009)YAMADA, Erika Magami. International Humam Rights Law in the context of Indigenous Peoples: Moving From Legislation To Implementation. Lands rights’ cases at the Brazilian Federal Supreme Court. James E. Rogers College of Law, Indigenous Peoples Law & Policy Program, University of Arizona, 2009. e MAGALHÃES (2015)MAGALHÃES, Juliana Neuenschwader. Diversidade cultural e justiça de transição. Os casos de perseguição aos índios durante a ditadura militar e a transição política no Brasil. Quaderni Fiorentini XLIV. 44, Tomo II, Giuffrè Editore, 2015..
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2
Convenção n° 169 sobre povos indígenas e tribais. Organização Internacional do Trabalho. Brasília: OIT, 2011, p. 7.
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3
Sobre a figura da tutela e a discussão sobre capacidade, conferir: SOUZA LIMA (1995SOUZA LIMA, Antonio Carlos de. Um Grande Cerco de Paz. Poder Tute lar, Indianidade e Formação do Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1995. e 2015)SOUZA LIMA, Antonio Carlos. Sobre tutela e participação: povos indígenas e forma de governo no Brasil, séculos XX/XXI In: MANA 21(2): 425-457Rio de Janeiro, 2015. , LACERDA (2007)LACERDA, Rosane Freire. Diferença não é incapacidade: gênese e trajetória histórica da concepção da incapacidade indígena e sua insustentabilidade nos marcos do protagonismo dos povos indígenas e do texto constitucional de 1988. Tese de Doutorado – UnB, Brasília, 2007. e ELOY AMADO (2020).
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4
A PET nº 3388/RR discutiu a demarcação administrativa da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e no RMS 29.087 foi suspensa a Portaria nº 3.219/2009, do Ministério da Justiça, que havia declarado a Terra Indígena Guyraroka como de ocupação tradicional dos Guarani-Kaiowá.
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5
Uma ampla análise da tese, incluindo a reprodução da obra de João Mendes Junior, primeiro jurista a tratar do indigenato, pode ser encontrada em CUNHA e BARBOSA (orgs.), 2018.
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6
Decreto 5.051/2004. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5051.htm Acesso em 20/03/2020.
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7
Idem. Convenção nº 169 da OIT, artigo 14.
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8
Declaração da ONU sobre os direitos dos povos indígenas, 2007, artigo 40. In: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Declaracao_das_Nacoes_Unidas_sobre_os_Direitos_dos_Povos_Indigenas.pdf . Acesso em 20.02.2020. Sobre o pluralismo jurídico e povos indígenas, FAJARDO (2004)FAJARDO, Raquel Yrigoyen. Pluralismo jurídico, derecho indígena y jurisdicción especial en los países andinos. In: El Otro Derecho, n. 30, junio de 2004, ILSA, Bogotá D.C..
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9
Declaração Americana sobre os direitos dos povos indígenas. In: https://www.oas.org/en/sare/documents/DecAmIND_POR.pdf. Acesso em 20.02.2020.
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10
TAULI-CORPUZ, Victória. Relatório da missão ao Brasil da Relatora Especial sobre os direitos dos povos indígenas. Genebra: Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, 8 de agosto de 2016. A/HRC/33/42/Add.1. Disponível em: http://unsr.vtaulicorpuz.org/site/images/docs/country/2016-brazil-a-hrc-33-42-add-1-portugues.pdf Acesso em 03/03/2020.
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11
Supremo Tribunal Federal. Ementa do Acórdão. Relatoria: Ministro Teori Zavascki. DJE 12/02/2015 - ATA Nº 9/2015. DJE nº 29. Para uma análise da decisão, ver DUPRAT (2018)DUPRAT, Deborah. O Marco Temporal de 5 de outubro de 1988: TI Limão Verdde. In: CUNHA, Manuela Carneiro da e BARBOSA, Samuel. Direitos dos povos indígenas em disputa. São Paulo: Unesp, 2018, pp. 43-74..
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12
(OEA/Ser.L/V/II. Doc.9/21)
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13
A demanda foi submetida à Corte IDH em 16 de março de 2016. Caso Xucuru versus Estado brasileiro. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_346_por.pdf Acesso em 15/07/2019.
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14
Cf: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4463.htm, acesso em 15/07/2019.
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15
Por exemplo, conferir: TEUBNER (2013)TEUBNER, Gunther. The Project of Constitutional Sociology: Irritating Nation State Constitutionalism. Transnational Legal Theory, 2013., PIOVESAN, 2017PIOVESAN, Flavia. Ius Contitutionale Commune Latino-Americano em Direitos Humanos e o Sistema Interamericano: perspectivas e desafios. Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 8, N. 2, 2017, p. 1379., p. 1379 e SANTOS (1997)SANTOS, Boaventura Sousa. Por uma concepção multicultural dos Direitos Humanos. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, no 48, junho de 1997..
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16
CIDH, Relatório No. 44/15, Caso 12.728. Mérito. Povo indígena Xucuru. Brasil. 28 de julho de 2015. Para uma reconstrução histórica da questão, ver FIALHO, NEVES e FIGUEIROA orgs. (2011).
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17
Por exemplo: Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni vs. Nicaragua, Corte IDH, 2001; Comunidade Yakye Axa vs. Paraguay, Corte IDH, 2005, Caso Comunidade Indígena Xákmok Kásek. vs. Paraguay, Corte IDH, 2010 e Comunidade Indígena Sawhoyamaxa vs. Paraguai, Corte IDH, 2006.
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Corte IDH. Caso Povo Xururu e seus membros x Brasil. Sentença de 02 de fevereiro de 2018, pág. 29.
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19
Idem, p. 29.
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Uma análise relevante sobre a relação dos povos indígenas com suas terras e diferentes ambientes encontra-se em KOPENAWA e ALBERT (2015)KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã Yoanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. Destacamos os tópicos “falar aos brancos” e “paixão pela mercadoria”, pp. 375-421. Outra obra relevante é KRENAK (2019)KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019..
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Idem. p. 31
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Idem.
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Apesar da pluralidade histórica das formas de propriedade, observar-se-ia uma tensão no discurso jurídico, calcada em uma ideia unívoca do instituto, que guarda relações epistêmicas em uma tensão com a ideia de posse ou apossamento. A modernidade, podemos dizer, cristalizou um modelo jurídico singular preponderante, com carga não só individual, mas eminente potestativa. Trata-se da operação inaugurada por Locke ao traduzir o dominium rerum em bases individuais, transplantando a propriedade das coisas para a lógica da propriedade intra-subjetiva, por si só absoluta, porquanto corresponde a própria vocação do ser enquanto um direito natural (GROSSI, 2006, p. 11-12).
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Para uma análise crítica da historiografia sobre o direito de propriedade na América Espanhola e a noção de propriedade, ver SAAVEDRA (2020)SAAVEDRA, Manuel Bastias. “The Normativity of Possession. Rethinking Land Relations in Early-Modern Spanish America, 1500-1800”. In: Colonial Latin America Review, 2020, p. 223-238.. Sobre os desafios à regularização fundiária de territórios indígenas, à luz do Caso Xukuru, ver NÓBREGA e LIMA (2021)NOBREGA, Flavianne Fernanda Bitencourt; LIMA, Camila Montanha. How the indigenous case of Xukuru before the Interamerican Court of Human Rights can inspire decolonial comparative studies on property rights in: Brazilian Journal of International Law, Vol. 18, nº 21, pp. 353-373, 2021..
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CIDH. Caso Xucuru e seus membros vs. Brasil. Sentença de 05 de Fevereiro de 2018, p. 30.
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CIDH. Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa vs. Paraguai. Sentença de 29 de março de 2006, p. 72.
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Idem, pág. 73, parágrafo 131. O entendimento já havia sido consolidado no Caso Comunidad Indígena Yakye Axa.
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Sobre a noção de litígio estratégico, conferir: CARVALHO e BAKER (2014)CARVALHO, Sandra; BAKER, Eduardo. Experiências de litígio estratégico no Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos. SUR - Revista Internacional de Direitos Humanos, vol. 11, nº 20, jun/dez de 2014, pp. 465-477..
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Julgamento do HC 72.131-RJ pelo STF. PIOVESAN, 2008PIOVESAN, Flavia. Hierarquia dos tratados internacionais de proteção dos Direitos Humanos: jurisprudência do STF. Revista do Instituto de Hermemnêutica Jurídica, vol. 6, 2008..
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30
Supremo Tribunal Federal. Acórdão ADI 3239. Relatora do Acórdão, Ministra Rosa Weber. DJE 01/02/2019 - Ata nº 1/2019.
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Supremo Tribunal Federal. Acórdão Eds ADI 3239. Relatora do Acórdão, Ministra Rosa Weber. DJE 13/03/2020 - ATA Nº 28/2020.
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ADI 6062. DJE 29/11/2019, Ata nº 182/2019.
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Supremo Tribunal Federal Ação Rescisória 2761. DJE nº 243, de 06/11/2019.
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São exemplos as decisões proferidas na ACP 1004249-82.2018.4.01.3200/AM, na Ação Declaratória 10917-73.2015.4.01.3400/MG e na Apelação nº 0001220-18.2012.4.03.6000/MS. Agradecemos a Anne Heloise Barbosa do Nascimento pela colaboração com as informações.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
04 Abr 2022 -
Data do Fascículo
Jan-Mar 2022
Histórico
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Recebido
31 Jan 2022 -
Aceito
02 Fev 2022