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Poses Imundas: o funk, a fotografia, performatividade de gênero e a dança na construção do portrait fotográfico contemporâneo

Resumo:

O fenômeno do Funk é mais amplo do que as suas especificidades como gênero musical. O lugar cultural por ele ocupado coloca em evidência questões relativas ao corpo, gênero, raça e classe social como conteúdos sociopolíticos em constante fricção com a cultura da elite e das mídias, que o absorvem e buscam higienizá-lo. Entende-se que se algo deve ser higienizado pelo apagamento dos traços sociais e raciais dos funkeiros é porque essa condição é entendida como abjeta - imunda. Parte-se aqui do conceito de imundo para tratar do corpo negro e LGBT no universo do Funk por meio do portrait de seis rapazes tendo como suporte teórico reflexões do campo da dança, da performance art e da política.

Palavras-chave:
Funk; Fotografia; Performance; LGBT; Dança

Abstract:

As a phenomenon, funk is wider than its specificities as a musical genre. The cultural space it occupies highlights issues related to the body, gender, race and social classes as sociopolitical aspects in constant friction with elite culture and the media, which absorb it and attempt to sanitize it. If something needs to be sanitized through the erasure of social and racial traits of funk singers and dancers, it is because this condition is seen as abject - immund. This article makes use of the concept of immund to analyze the black and LGBT body within the funk universe by examining the portraits of six young men in light of theoretical reflections derived from the fields of dance, performance art and politics.

Keywords:
Funk; Photography; Performance; LGBT; Dance

Résumé:

Le Funk est un phénomène plus ample que ses spécificités en tant que genre musical. L’espace culturel qu’il occupe met en évidence des questions concernant le corps, le genre, la race et les classes sociales. Son côté sociopolitique se frotte constamment avec la culture des élites et des médias, qui le pénètrent en essayant de le nettoyer, comme s’il était abject et imundo. Cet article s’approprie le concept d’impureté pour analyser le corps noir et LGBT dans l’univers du Funk. En examinant les portraits de six hommes, on propose une méthodologie d’analyse et de réflexion basée sur les théories de la dance, de la performance art et de la politique.

Mots-clés:
Funk; Photographie; Performance; LGBT; Danse

Ao nos defrontarmos com o funk nos colocamos diante de um gênero musical que tem especificidades que vão muito além do ritmo, letra e composição. Através dele revelam-se conteúdos sociopolíticos que tornam visíveis vozes que se expandem, e corpos que explicitam seu ethos.

Nesse contexto eclodem as questões de raça, gênero, classe social como marcadores performativos que afirmam um lugar cultural popular e insubordinado à cultura da elite, mas que a perturba e fricciona gerando novos modos de convívio e confronto.

Nesse sentido, o Funk vem a revelar corpos que rompem as barreiras do gueto tanto pela diluição dos polos de informação, mediante canais que falam de todos para todos, quanto pela circulação física não restrita a um único lugar em uma cidade tão demarcada por territórios como o Rio de Janeiro.

Neste estudo vamos tratar da criação de portraits de seis rapazes provenientes de diferentes regiões do Rio de Janeiro e refletir sobre o fazer artístico, em uma discussão que tangencia questões como atos de linguagem, performance de gênero de pessoas negras LGBTs e lugar da arte contemporânea quando aproximada de manifestações de música popular massiva, como o funk.

O arco teórico que sustenta este estudo circula entre o ritmo e o corpo, entre o campo da dança, das artes visuais, e da performance art. O entendimento das relações entre coreografia e política, tal como expresso nas teorias da dança de André Lepecki (2003LEPECKI, André. O corpo colonizado. Gesto. Revista do Centro Coreográfico do Rio, Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, jul. 2003.; 2005LEPECKI, André. Desfazendo a fantasia do sujeito (dançante): ‘Still acts’ em The Last Performance de Jérôme Bell. In: PEREIRA, Roberto; SOTER, Silvia (Org.). Lições da Dança 5. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2005.; 2011LEPECKI, André. Coreopolítica e coreopolícia. Ilha Revista de Antropologia, Florianópolis, v. 13, n. 1, p. 41-60, jan./jun. 2011. ; 2012LEPECKI, André. Planos de Composição. In: GREINER, Christine; ESPÍRITO SANTO, Cristina; SOBRAL, Sonia (Org.). Cartografia Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010. São Paulo: Itaú Cultural, 2012. P. 12-20.), nos fez refletir especialmente sobre as relações entre a dança e o portrait. Nesse sentido, o trabalho fotográfico realizado e que será aqui apresentado buscou criar enunciados sobre o corpo negro e LGBT, circulando, sem esquivas, por seus embates.

Assim, o desejo de refletir por essas vias passa por alguns entendimentos: (a) a força que a dança retém nas culturas da diáspora; (b) a aderência que a dança encontra junto aos interlocutores da pesquisa, na condição de pessoas negras e LGBT; (c) a possibilidade de ver a pose no portrait fotográfico em constante analogia com a dança, ambas perpassadas pela ideia de coreografia - para, assim, criar também imagens nas quais o próprio ato se assume como performance artística.

Desse modo, tendo recaído nosso olhar sobre a cultura popular de massa, com a temática do Funk, foi estruturado um trabalho fotográfico intitulado Poses Imundas, que vem a problematizar o portrait contemporâneo.

O título em si já aponta alguns caminhos traçados para que refletíssemos à realização do trabalho fotográfico. Este teve como suporte os próprios conteúdos expressos no funk - os corpos se movimentando de forma sincopada, as letras e bordões desaforados que saem dos guetos buscando legitimidade -, bem como sua marginalização.

A imagem do funk suas letras, seus enredos chocam as elites ao mesmo tempo que invadem seus territórios. Dialeticamente a ocupação desse espaço e a ruptura de fronteiras têm implicado em processos de higienização dos agentes culturais promotores de tais músicas, seja na retirada de palavras chulas de suas letras, seja na transformação dos corpos que sofrem intervenções quanto ao vestir, pentear, se comportar e até geram mudanças físicas que visam a esconder traços raciais negros. Se a elite e as mídias entendem que algo precisa ser higienizado é porque nele identificam algo de imundo. O conceito de imundo vai ser operacional para nós porque nele podemos identificar o modo através do qual o ritmo, como fenômeno social e musical enfrenta as instâncias de poder no seu processo de legitimação.

Para entender melhor a potência conceitual desse termo fomos buscar sua raiz epistemológica. Segundo Houaiss (2019IMUNDO. Significado. In: HOUAISS, Antônio. Grande Dicionário Houaiss Uol. São Paulo, 2019. Disponível em: <Disponível em: https://houaiss.uol.com.br >. Acesso em: 17 out. 2019.
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), imundo tem origem no termo em latim immundus, que assume o sentido de sujo ou impuro, sendo a formulação im- + mundus indicativa de fora do mundo.

Há o entendimento de que o termo tem origem no mito da fundação das cidades romanas. Consta que existia um ponto central, de onde partiria toda aquela configuração urbana, criando uma origem, um marco fundador, privilegiando locais como o palácio do imperador, conhecido como mundus.

Trata-se, em suma, de uma ideia arcaica e muito difundida: a partir de um Centro projetam-se os quatro horizontes nas quatro direções cardeais. O mundus romano era uma fossa circular, dividida em quatro; era ao mesmo tempo a imagem do Cosmos e o modelo exemplar do hábitat humano. Sugeriu-se com razão que a Roma quadrata deve ser entendida não como tendo a forma de um quadrado, mas como sendo dividida em quatro. O mundus era evidentemente equiparado ao omphalos, ao umbigo da Terra: a Cidade (Urbs) situava se no meio do orbisterrarum (Eliade, 1992ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992., p. 29).

O mito da fundação das cidades antigas contava com uma espécie de ritual para encontrar um lugar ideal em um dado território, e, em seguida, dar significado ao seu ponto central. Ali deveria ser edificado o centro da cidade. O que antes era um espaço aleatório, tornava-se singular, um lugar único para organizar o começo.

Assim, delimitava-se uma cidade romana tomando esse ponto privilegiado como centro. Posteriormente, estabeleciam-se seus muros para criar proteção aos vivos. Os cemitérios, seus corpos mortos e demais dejetos não eram permitidos dentro da cidade. Estipular o que estava dentro do mundus era também estipular aquilo que deveria ficar fora.

Retomando o sentido etimológico do termo, vemos uma radical dicotomia entre o dentro e o fora, o primeiro por sua pureza e, o segundo, por sua sujeira. Sendo assim, o im- é o indicativo oposto do mundus. Dejetos, abjeções e impurezas não devem estar próximos da origem, da sacralidade, do centro do mundo. Assim também percebemos que o termo imundo indica a abjeção e, ao mesmo tempo, revela o reconhecimento por parte das elites da alocação dessa abjeção no mundo, no seu mundo, ainda que sujo.

Nesse aspecto, o termo imundo parece magnetizar-se em dois polos. No entanto, é interessante observar onde a ideia de abjeto é perturbada diante da enorme cristalização de seus significados - como a ideia de masculino e feminino, elo importante de nossas análises. Tomemos, por ora, o exemplo de Herculine Bardin9 1 Butler (2017) propõe criticamente uma leitura alternativa à de Foucault ao caso de Herculine Barbin a partir dos diários que o autor afirma ter encontrado. , um hermafrodita francês do século XIX.

No nascimento, atribuíram o sexo ‘feminino’ a Herculine. Na casa dos vinte anos, após uma série de confissões a padres e médicos, ela/ele foi legalmente obrigada/o a mudar seu sexo para ‘masculino’. [...] Juntamente com os documentos médicos e legais que discutem as bases sobre as quais foi decidida a designação de seu ‘verdadeiro’ sexo (Butler, 2017BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017., p. 165).

Poderiam ser muitos os exemplos para borrar os ideários que se cristalizam em polos binários. A finalidade, aqui, é buscar extrapolar o sentido etimológico do termo imundo e as dicotomias do mito do mundus, em antagonismos tão sólidos, socialmente, como o par masculino/feminino. A perspectiva de Butler (2017BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.) enfatiza a discussão dos atos corporais que pretendem subverter esses polos, de modo que nos vinculemos às temáticas em quadro.

A existência de um ser intersexuado coloca em xeque as convenções de poder médicas e jurídicas que regulam e cristalizam o que é permitido às categorias sexuais de masculino e feminino. São as sanções, a lei do discurso, é o que distingue o que é dizível do que é indizível, delimitando o que é legítimo e o que é ilegítimo (Butler, 2017BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017., p. 120).

A autora, em sua leitura de Foucault, destaca o que ele prediz sobre Herculine quando entende que sexo unifica as funções e significados corporais e que a existência de um hermafrodita poderia diluir os significados dados aos órgãos sexuais por essas leis discursivas. Desse modo, seria possível que esse sujeito criasse prazeres fora do contexto de inteligibilidade imposto pelos sexos unívocos na relação binária (Butler, 2017BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017., p. 169).

Ele(a) é tanto uma coisa quanto outra, pois desde pequeno(a) ele(a) relata ser diferente de outras meninas. Segundo Butler (2017BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017., p. 170), “essa diferença é causa de estados alternados de angústia e envaidecimento”, ao longo de sua narrativa nos diários.

Ela/ele própria/o presume em vários momentos que seu corpo é a causa de sua confusão de gênero e de seus prazeres transgressivos, como se fossem ambos tanto resultado como manifestação de uma ausência que de algum modo fica fora da ordem natural/metafísica das coisas. Contudo, ao invés de entender seu corpo anômalo como a causa de seu desejo, sua aflição, seus casos e suas confissões, devemos ler esse corpo, aqui plenamente textualizado, como o signo de uma ambivalência insolúvel, produzida pelo discurso jurídico sobre o sexo unívoco. No lugar da univocidade, deixamos de descobrir a multiplicidade [...] (Butler, 2017BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017., p. 173).

Herculine, por obrigatoriedade jurídica, fora transformada(o) em Alexia, nome com curiosa terminação feminina, salienta Butler (2017BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.). Impuseram-lhe documentos e trajes de homem. Diante desse cumprimento da lei pelas instituições médicas juristas, chegamos a um ponto em que a regulação de sua anormalidade assume na fala da própria(o) um lugar de existência, tornando-se uma coisa, na medida que também é outra. É como Butler (2017, p. 181) sublinha a descrição de sua gargalhada de desdém para o médico que emitiu laudos conclusivos sobre sua incompreendida condição, assim como sua gargalhada de humilhação diante da perspectiva de cumprir tal imposição.

Para Herculine, portanto, gargalhada parece designar humilhação ou desdém, duas posições inequivocamente ligadas a uma lei condenatória, estando a ela sujeitas como seu instrumento ou objeto. Herculine não está fora da jurisdição dessa lei; até mesmo seu exílio é compreendido à luz do modelo da punição. Logo na primeira página, ela/ele relata que seu ‘lugar não foi marcado [pas marquée] neste mundo que me evitou’. E ela/ele articula o sentido inicial de abjeção que depois é sancionado, primeiro como filha ou amante dedicada, a ser assemelhada a um ‘cão’ ou um ‘escravo’, e depois finalmente em forma plena e fatal, quando ela/ele é expulsa e se expulsa do âmbito de todos os seres humanos. A partir deste isolamento pré-suicida, ela/ele afirma elevar-se acima de ambos os sexos, mas seu ódio se volta mais plenamente contra os homens, cujo ‘direito’ ela/ele tentou usurpar em sua intimidade com Sara, e aos quais ela/ele agora culpa sem restrições como aqueles que de algum modo proibiram a ela/ele a possibilidade do amor (Butler, 2017BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017., p. 181, grifo nosso)10 2 Sara é a mulher por quem Herculine fora apaixonado(a). .

É no relato de seus diários que estão expressos os sentidos que ele(a) próprio(a) atribuía à sua abjeção, oscilando entre narcisismos negativos e positivos, declarando-se a criatura mais negligenciada e a mais encantadora, e sublinhando seus impasses na leitura de sua não-categoria: “[...] alguém que, para todas as mulheres, é melhor do que qualquer homem” (apud Butler, 2017BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017., p. 183). E é dirigida ao mundo dos homens, à sua lei, a sua gargalhada de desdém.

Sua condição anômala, tomada como abjeção pelas leis médicas e jurídicas, nos diários de Herculine apresenta essas dobras subversivas que recusa os extremos de determinação, a necessidade de exatidão. A lei não constitui mera imposição cultural, mas gera uma conformação à própria noção de natureza, criando assimetrias binárias para transformar as anatomias corporais em estruturas simbólicas a serem assimiladas.

Desse modo, o que é ao mesmo tempo abjeto, anômalo, também pode ser um lugar para existir e expurgar a lei, ou ao menos conturbá-la. Na abordagem desse caso por Butler (2017BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.), acreditamos que a autora produz sua crítica à leitura de Foucault por entender que Herculine, transformada(o) em Alexia, apontou um lugar para existir com sua angústia, sem fechar os olhos nem romancear um lindo não-lugar, mas tomando a possibilidade de existir também pela abjeção. É por esse viés que propomos pensar a abjeção a que o termo imundo pode aludir, assumindo uma leitura que demarca uma existência de algo que está em trânsito constante, que existe mais no entre do que nos extremos.

O entre é muito caro ao mundo do funk, embora pouco apareça nas abordagens que reproduzem o senso comum acerca do ritmo. O corpo do(a/x) funkeiro(a/x) existe pairando num universo muito extremo de constante abjeção, seja pelas performances corporais de homens e mulheres, seja pelas suas expressões de gênero para além desses binários, mesclando suas infinitas possibilidades. Isso aparece nas roupas, no tipo de cabelo, nas letras de músicas, na forma de falar, no tipo de som que a batida leva a ouvir - e, claro, no que propomos: as imagens, que para esta pesquisa são catalisadoras dessas características.

O conceito de imundo irá nos permitir uma abordagem que seguirá trilha semelhante ao campo dos estudos culturais latino-americanos, embora não seja o foco deste estudo. Autores como Nestor García Canclini (2006CANCLINI, Nestor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2006. ), Jesus Martin-Barbero (2009MARTIN-BARBERO, Jesus. Dos Meios às Mediações. Comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.) oferecem diálogos a partir da plurissignificação da ideia de cultura popular e a mídia, como atualmente propõe Omar Rincon (2016RINCON, Omar. O popular na comunicação: culturas bastardas + cidadanias celebrities. Revista Eco-Pós, Rio de Janeiro, v. 19, n. 3, set./dez. 2016. P. 27-49.) sobre a ideia de culturas bastardas, observando as relações com a cultura de massa. Perspectiva que permite observar esse popular a partir de sua riqueza expressiva corporal, sentimental e narrativa (Rincon, 2016, p. 29).

Trata-se de um popular que aborda uma vivência pública que compromete o sujeito em sua totalidade, não sendo nem puro, nem virtuoso, afastando-se de oposições e exaltando aquilo que dá a ver as nuances. O popular que desejamos pensar em paridade com o conceito de imundo aproxima-se da afirmativa de Rincon (2016RINCON, Omar. O popular na comunicação: culturas bastardas + cidadanias celebrities. Revista Eco-Pós, Rio de Janeiro, v. 19, n. 3, set./dez. 2016. P. 27-49., p. 31): “O popular é muitas coisas de uma só vez: o popular dá conta de mais do que só uma maneira pura e higienizada de existir, ele é uma experiência bastarda”.

Desse modo, interessa-nos as formas imundas pelas quais as grafias que tomam o corpo do funkeiro se concatenam em imagem e afronta às instâncias do poder hegemônico, bem como os modos como esse poder constituído e dominante irá tratar esses agentes culturais. Entendemos que o funk se revela como elemento disruptivo, bastardo (Rincon, 2016RINCON, Omar. O popular na comunicação: culturas bastardas + cidadanias celebrities. Revista Eco-Pós, Rio de Janeiro, v. 19, n. 3, set./dez. 2016. P. 27-49.) - imundo -, que se articula por meio de atos e linguagens que chocam e agridem, que revelam comportamentos éticos particulares de uma forma de viver que afronta a elite por sua imundice, sua potência de sujar, de tornar imunda a linguagem, os espaços, as siglas, as músicas, o corpo, a arte. Tal imundice, todavia, é pregnante e vem revelar as fissuras no campo hegemônico empreendidas pelos atos de cantar e dançar dos pobres e dos negros.

Dessas reflexões surgiu a questão de como abordar os corpos dançantes em imagem de forma a não simplesmente retratar a estática dos movimentos dançados, ou fotografar o ato de dançar, mas formular uma imagem do funk que revelasse seu conteúdo imundo. Foi preciso, para tanto, articular a pose em portrait como um recurso para pensar as representações desses corpos negros e LGBTs no contexto sociocultural em tela.

Muitas definições e redefinições podem ser discutidas para abordar o gênero artístico portrait. Identificamos uma abundância de textos na segunda metade do século XIX, como os manuais fotográficos franceses, especialmente do fotógrafo Eugene Disdéri (1819-1889), sobre o processo artístico de criação de portrait. Os manuais vislumbravam um padrão de representação do ato de criação em que modelo e fotógrafo estão um diante do outro.

Voltar-se para reflexões de mais de um século atrás sobre a pose implica em reengajar essas questões na fotografia contemporânea, percebendo ainda sua relevância. Com os avanços técnicos dos dias atuais, pensar a pose significa dar importância à maneira potente como os dispositivos podem operar.

Para entender melhor esse processo e vinculá-lo às questões ligadas ao portrait ou à relação modelo-fotógrafo, buscaremos nas discussões a seguir um entendimento de corpo, movimento e coreografia, a partir das reflexões de André Lepecki (2011LEPECKI, André. Coreopolítica e coreopolícia. Ilha Revista de Antropologia, Florianópolis, v. 13, n. 1, p. 41-60, jan./jun. 2011. ). Em sequência, buscamos referências na etnografia do funk feita por Hermano Vianna (1987VIANNA, Hermano. O Baile Funk Carioca: Festas e Estilos de Vida Metropolitanos. 1987. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal de Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1987.) e nos agenciamentos possíveis que as performances de gênero (Butler, 2017BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.) podem nos dar a ver sobre marcadores de gênero, classe e raça, conforme trabalhado por França, Macedo e Simões (2010FRANÇA, Isadora Lins; MACEDO, Marcio; SIMÕES, Júlio Assis. Jeitos de corpo: cor/raça, gênero, e sociabilidade juvenil no centro de São Paulo. Cadernos Pagu, Campinas, v. 35, p. 37-78, jul./dez. 2010.).

Os estudos sobre a temática funk vêm cada vez mais envolvendo uma multiplicidade de vozes, tanto entre os agentes de fala do mercado musical do funk quanto entre acadêmicos e militantes do campo da cultura. Assim, o gênero musical vem ganhando um multiperspectivismo rico, atravessado por problematizações densas. Lopes (2010LOPES, Adriana Carvalho. ‘Funk-se quem quiser’ no batidão negro da cidade carioca. 2010. 176 f. Tese (Doutorado em Linguística) - Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010., p. 16) assinala que o funk carioca não pode ser compreendido apenas como uma música ou uma linguagem, mas como uma forma de ver o mundo, o que o leva a configurar-se como uma maneira de expressar formas de sentir e perceber.

Cabe então pensar o modo de operar na realização dos portraits no ambiente em questão. Tais circunstâncias convocam cuidado e cautela para pensar as imagens do funk, que já foram caso de polícia. Em diálogo com Stuart Hall (1997HALL, Stuart. Cultural identity and Diaspora. In: WILLIAMS, Patrick; CHRISMAN, Laura. Colonial Discourse and Post-colonial Theory: a reader. New York: Columbia University Press, 1997.), Lopes (2010LOPES, Adriana Carvalho. ‘Funk-se quem quiser’ no batidão negro da cidade carioca. 2010. 176 f. Tese (Doutorado em Linguística) - Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010., p. 111) irá destacar que raça é um significado mutável e intrinsecamente relacionado com as formas de exclusão de determinados sujeitos do mundo moderno. Esse tratamento segregador, por parte do Estado, esteve presente em outras manifestações culturais oriundas da diáspora negra, ignorando a forma de vida que se instala no cotidiano atual, conforme destaca Lopes (2010, p. 174):

Ao longo de minha pesquisa de campo observei que o funk carioca, além de ser lazer, trabalho, identidade e comunicação das juventudes de periferias e favelas, é também uma forma de letramento típica da diáspora africana e, assim, da cultura popular presente nas favelas cariocas, em que a música, a dança e o estilo têm um lugar central. No interior dessa prática musical são produzidos e disseminados inúmeros textos orais e escritos através dos quais os jovens das favelas tornam-se autores textuais, estruturam e fornecem significado para si próprios e para o mundo funk carioca (Lopes, 2010LOPES, Adriana Carvalho. ‘Funk-se quem quiser’ no batidão negro da cidade carioca. 2010. 176 f. Tese (Doutorado em Linguística) - Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010., p. 174).

Em sua totalidade como música, ritmo ou linguagem, o fenômeno funk detém extrema aderência nas comunidades. Lopes (2010LOPES, Adriana Carvalho. ‘Funk-se quem quiser’ no batidão negro da cidade carioca. 2010. 176 f. Tese (Doutorado em Linguística) - Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010.) chama a atenção para as reflexões sobre suas formas de escrita. A autora também aponta para o privilégio da escrita sobre as tradições orais que não dominam a formalidade dos letramentos, o que deixa à margem outras possibilidades de entendimento sobre culturas em condições de subalternidade, caso das oralituras (Martins, 2006MARTINS, Leda. Performances da Oralitura: corpo, lugar da memória. Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras, Santa Maria, UFSM, n. 23, p. 63-81, jun. 2006.) que enfatizam o lugar do corpo negro como local de inscrição de saberes.

É preciso pensar a forma de escrita e leitura para além dos polos letrado e não-letrado, ou deixar que se façam imundos um ao outro. Isso significa deixar de opor as formas de escrita hegemônicas - que são escolarizadas e, dessa maneira, reconhecidas como o único capital simbólico (Bourdieu, 1989BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S.A., 1989.), sob a forma de um índice de desenvolvimento ou inteligência - às escritas e leituras que são produzidas e circulam à margem das instituições de privilégio (Lopes, 2010LOPES, Adriana Carvalho. ‘Funk-se quem quiser’ no batidão negro da cidade carioca. 2010. 176 f. Tese (Doutorado em Linguística) - Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010., p. 175-176).

Em vista dessa problemática, o papel do corpo, bem como dos processos e aparatos que dão a ver formas de registrá-lo, é crucial para esse debate. Ele se torna também uma maneira de propor escritas fora dos textos e grafar uma dada cultura, uma vez que é difícil pensar o funk sem pensar sobre tudo que o compõe junto a seus embates.

Isso fica evidente no portrait e nas oralituras que, durante o processo fotográfico, se evidenciaram. A grafia que o portrait propõe transfere para a imagem conteúdos que revelam muito da vida e dos confrontos que tais corpos enfrentam e afrontam. Eles deixam evidentes os rastros indicadores da abjeção criados pelas perspectivas hegemônicas, excludentes e pejorativas, realocando-as e ressignificando-as.

Figura 1
Poses Imundas. Portrait Lucca Machado

Adriana Lopes (2010LOPES, Adriana Carvalho. ‘Funk-se quem quiser’ no batidão negro da cidade carioca. 2010. 176 f. Tese (Doutorado em Linguística) - Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010., p. 123; p. 169) nos lembra que “[...] a linguagem que subalterniza e estigmatiza determinados sujeitos fornece-lhes, paradoxalmente, forma de existência pública e até mesmo estratégias de resistência”. Nesse sentido, as produções de imagem realizadas no ensaio Poses Imundas buscam apresentar visualidades da estética funk que revelem a coalizão das categorias pessoa negra e LGBts, dando-lhes mais um local de representatividade (Figura 1).

Além disso, outro ponto nevrálgico para a pesquisa foi perceber no corpo e na vida dos modelos o lugar da dança como um lugar de expressão e fala. Nesse sentido, ficou clara a necessidade de estudar as formas de dança não-institucionalizadas e como as noções de coreografia e dança, tais como analisadas por Lepecki, alinham-se de maneira relevante para o processo de construção do portrait na contemporaneidade e que possibilitam entender o chão onde modelo e fotógrafo se coreografam.

Lepecki (2011LEPECKI, André. Coreopolítica e coreopolícia. Ilha Revista de Antropologia, Florianópolis, v. 13, n. 1, p. 41-60, jan./jun. 2011. ) resgata a noção de “objeto artístico” em Rancière, buscando-o a partir de uma espécie de partilha - “[...] partições do sensível, do dizível, do visível e do invisível” que podem ativar “novos modos coletivos de enunciação” (Rancière apud Lepecki, 2010, p. 173). O autor pretende, assim, engendrar novos modos de vida e subjetivação, oferecendo distintos metabolismos à arte. Lepecki (2011, p. 43) traz o conceito de “dissenso” - termo que Rancière utiliza para dar conta dos novos regimes estéticos da arte - como âmago do regime estético, pois é o elo entre arte e política.

Esse âmago tem uma dinâmica; é em si mesmo dinâmico, cinético, no sentido de que dissenso produz a ruptura de hábitos e comportamentos, e provoca assim o debandar de toda sorte de clichês: sensoriais, de desejo, valor, comportamento, clichês que empobrecem a vida e seus afetos (Lepecki, 2011LEPECKI, André. Coreopolítica e coreopolícia. Ilha Revista de Antropologia, Florianópolis, v. 13, n. 1, p. 41-60, jan./jun. 2011. , p. 44).

Lepecki destaca a fusão da arte e da política em um só binômio, “arte-política”, para afirmar que as formações gestuais de movimento e coreografia não são isentas e precisam ser perturbadas, pois a percepção dessas cinéticas não deve ser compreendida como naturalmente pré-existente (Lepecki, 2011, p. 44). Entende-se, assim, que a dança, ao dançar, “[...] no momento em que se incorpora no mundo das ações humanas, teoriza inevitavelmente nesse ato o seu contexto social” (Lepecki, 2011, p. 45). Sendo assim, a dança, em sua capacidade imanente de pensar o contexto no qual emerge, pode ser para o funk um importante ponto de observação; não se trata de uma abstração teórica, mas de um entendimento da relação que os corpos estabelecem com seus lugares.

Se, sob a perspectiva de Lepecki (2011LEPECKI, André. Coreopolítica e coreopolícia. Ilha Revista de Antropologia, Florianópolis, v. 13, n. 1, p. 41-60, jan./jun. 2011. ), os marcadores sociais que nos atravessam - como raça, gênero e classe - são linhas de força para a dança, pode-se adotar disposição semelhante para pensar a coreografia e aplicá-la à pose em retrato. Conduzir esses deslocamentos teóricos do campo da dança à construção da pose é uma percepção que se dá na própria materialidade da ação de fotografar, no momento em que os corpos estão em cena e são postos em relação, ou seja, coreografados.

A noção expandida de coreografia de Lepecki (2011LEPECKI, André. Coreopolítica e coreopolícia. Ilha Revista de Antropologia, Florianópolis, v. 13, n. 1, p. 41-60, jan./jun. 2011. ), para além dos domínios do campo da dança, pode nos ajudar a formular uma crítica à arte contemporânea em relação à construção das poses:

[...] são múltiplas as formações do coreográfico. E elas se expandem bem além do campo restrito da dança. Para mim, tal expansão do campo coreográfico tem uma consequência incontornável: o entendimento de dança como coreopolítica (Lepecki, 2011LEPECKI, André. Coreopolítica e coreopolícia. Ilha Revista de Antropologia, Florianópolis, v. 13, n. 1, p. 41-60, jan./jun. 2011. , p. 47).

Encarar essa multiplicidade de conformações coreográficas fora do campo da dança é um deslocamento de sentido muito próprio das diluições e apropriações de suportes produzidos na arte contemporânea, em que tanto os materiais quanto o cruzamento de linguagens são intrínsecos a esse fazer artístico. A coreopolítica surge como um instrumento de análise poderoso para esta pesquisa, na medida em que permite pensar o corpo que dança funk e seus interlocutores sem isolá-lo de seu chão. “Chão” é onde se dá a coformatação de diversos elementos, “[...] um atentar agudo às particularidades físicas de todos os elementos de uma situação” (Paul apud Lepecki, 2011LEPECKI, André. Coreopolítica e coreopolícia. Ilha Revista de Antropologia, Florianópolis, v. 13, n. 1, p. 41-60, jan./jun. 2011. , p. 47). Essas particularidades se assentam no chamado plano de composição, que irá compor a relação do corpo com esse chão que, para o autor, significa o próprio chão onde se passa a história.

Em outras palavras, o ato de posar para um fotógrafo, visto sob essa perspectiva coreopolítica, leva em conta o lastro histórico que forja os corpos em relações estéticas e políticas. Buscar produzir dissenso pode dar a ver aquilo que está posto, porém invisível, e tentar pôr em prática uma partilha do sensível.

É importante sublinhar o desejo de transitar fora dos acordos consensuais de movimento aos quais, de modo geral, a pessoa LGBT da periferia está sujeita. É importante também lembrar que, enquanto os retratos policiais enquadravam os MCs em poses criminais, os fotógrafos Danielle Dacorso e Vincent Rosenblatt11 3 Ambos criaram materialidade artística a partir de trabalhos autorais sobre as visões pejorativas forjadas pela imprensa. Entre os anos de 1998 e 2008, Dacorso foi a primeira fotógrafa a frequentar bailes da Baixada Fluminense, reunindo registros da cena do funk carioca em uma série de exposições. De imensa contribuição visual e dissidente, as séries do acervo de Vincent Rosenblatt, Rio Baile Funk! Favela Rap!, produzem narrativas que combatem as visões pejorativas. O trabalho autoral do artista francês é posterior ao de Dacorso, situando-se em bailes funk da cidade entre os anos de 2005 e 2014. Alcançou notoriedade midiática, sendo pioneiro também ao iniciar o registro ao longo de quase 10 anos. Para além de espaços expositivos, Rosenblatt frequentemente leva também projeções do Rio Baile Funk ao Morro do São João, na Vila Cruzeiro, no Santa Marta e na Boca do Mato. , a partir de um dissenso arte/política, coreografaram outras poses em seus retratos, possibilitando abordagens com mais nuances, sem se esquivar das imundices, e ao mesmo tempo requalificando e revalorizando o funk na condição de um lugar de fala.

Esses trabalhos nasceram nos bailes funk e trazem em si a força do momento de sua captação, o envolvimento com a música nos seus locais de nascimento. Trata-se de registros que deram uma nova cara ao funk e, por conseguinte, ao seu chão. Já o ensaio realizado nesta pesquisa se realiza dentro de performatividades específicas ao portrait e busca seu chão de forma particular, centrado na ideia de plano de composição.

A dança contemporânea, como modo de fazer arte, tem como plano de composição elementos como o chão, o corpo, o movimento, a energia, gozo, etc. Sendo assim, são muitos os possíveis planos, Lepecki (2012LEPECKI, André. Planos de Composição. In: GREINER, Christine; ESPÍRITO SANTO, Cristina; SOBRAL, Sonia (Org.). Cartografia Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010. São Paulo: Itaú Cultural, 2012. P. 12-20.) expõe sete possíveis e afirma que a mistura desses diferentes planos determina eventuais políticas de movimentos e linhas de força, que se inter-relacionam no metacampo que os agencia, ou seja, a dança. Desses planos de composição, destacaremos três que apontam caminhos para este estudo.

O primeiro plano, denominado de introdutório, diz respeito à tentativa de mediar escrita e movimento por meio de uma folha de papel e do chão. Para o autor, há uma fantasia de usar esse chão da dança como um espaço branco, neutro, liso, que parece tentar neutralizar o espaço de maneira violenta, constituindo assim para a dança uma espécie de política do uso do chão. Lepecki (2012LEPECKI, André. Planos de Composição. In: GREINER, Christine; ESPÍRITO SANTO, Cristina; SOBRAL, Sonia (Org.). Cartografia Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010. São Paulo: Itaú Cultural, 2012. P. 12-20.) faz uma crítica à naturalização dos movimentos da dança, como se estes fossem isentos de história, na tentativa de neutralizar o chão e deixá-lo liso, longe dos tropeços, deslizes de sua acidentada formação.

Essa perspectiva de Lepecki (2012LEPECKI, André. Planos de Composição. In: GREINER, Christine; ESPÍRITO SANTO, Cristina; SOBRAL, Sonia (Org.). Cartografia Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010. São Paulo: Itaú Cultural, 2012. P. 12-20.) é instigante, pois o controle das variáveis também é um tema na fotografia, especialmente quando, no século XIX, os acessórios do estúdio fotográfico tinham por objetivo o congelamento da pose por meio da utilização de armações de metal, imobilizando o corpo para a longa exposição. Naquela época, muitos eram os manuais que indicavam a maneira de se fazer uma boa pose. O fotógrafo francês, Eugène Disdéri (1819-1889), oferece conselhos para a produção de um portrait adequado, assinalando, em seu A Arte da Fotografia, de 1862, que “devemos reproduzir o indivíduo com fidelidade” (Disdéri apud Bastos, 2007BASTOS, Teresa. Uma investigação na intimidade do portrait fotográfico. 2007. Tese (Doutorado em Letras) - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007., p. 56). Em geral, nos manuais desse período, o objetivo era o resultado final, em que o conjunto, ou seja, a convergência entre vestuário, ambientação, objetos, fundos infinitos, luminosidade necessária e tipo de pose, culminava no sucesso do bom portrait. A aproximação dos manuais desse período com o conceito desse plano de composição é ilustrativa do pareamento entre dança e pose, como se ambas pudessem ser codificadas em um papel.

Para pensar essa questão vamos destacar o segundo plano de composição apontado por Lepecki (2012LEPECKI, André. Planos de Composição. In: GREINER, Christine; ESPÍRITO SANTO, Cristina; SOBRAL, Sonia (Org.). Cartografia Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010. São Paulo: Itaú Cultural, 2012. P. 12-20.), o plano movimento. Ao longo da história, a dança sofreu capturas por regimes representativo-burocráticos e até estatais. Por exemplo, há manuais que regulavam a forma de se fazer os primeiros exercícios para as marchas militares, bem como outros aparatos disciplinados, disciplinantes e organizadores, conforme apontado no plano de movimento.

Hoje estão pulverizados os registros reguladores de movimentos, tanto no caso da dança quanto no da fotografia - o que pode ser ilustrado pelos tutoriais encontrados na internet. Diversos vídeos no YouTube regulam a maneira de dançar e se movimentar com o funk, por exemplo. Quanto à pose, os tutoriais de moda, em especial, também cumprem essa função. O meio que, ao mesmo tempo, captura e dissemina as múltiplas movimentações oferece aos dias atuais um imenso número de possibilidades, ora instigantes, ora impotentes. Emblemático dessa dimensão cinético-política é o documentário Paris is burning (1991), sobre as expressões de gênero de pessoas negras LGBT da periferia de Nova York entre a década de 1980 e 1990 (Figura 2).

Figura 2
Cartaz do filme Paris is burning, lançado em 1991

O filme narra os concursos informais de drags queens que ocorriam nas boates mais abastadas da cidade. É possível perceber que as expressões de gênero manifestadas nas coreografias são recortadas sobre as linhas de força de classe e raça.

Em um ambiente sociocultural (New York, 1980) em que os heterossexuais e brancos podiam fazer tudo enquanto os gays deviam controlar como se vestiam, falavam e se portavam, a ball culture forjava espaços em que os participantes podiam ser o que quisessem, mostrar sua elegância, sedução, beleza, habilidades e conhecimentos (Berte, 2014BERTE, Odailso. VOGUE: dança a partir de relações corpo-imagem. Dança, Salvador, v. 3, n. 2, p. 69-80, jul./dez., 2014., p. 70).

O filme apresenta a cultura drag, cujos integrantes, diante da falta de acesso ao glamour dos vultuosos trajes da famosa revista de moda Vogue, rechaçam seu bom gosto criando o estilo de dança conhecido como vogue, estilizando movimentos corporais em forma de poses que mimetizam os editoriais do mundo fashion. É uma espécie de união declarada entre pose e dança.

A dança mistura pantomima, trejeitos de manuseio de estojos de maquiagem, passos de break, movimentos de ginástica, hieróglifos do Egito antigo, desfile de moda e imagens de poses de revistas, articulando linhas corporais sinuosas ou retilíneas e posições rebuscadas (Berte, 2014BERTE, Odailso. VOGUE: dança a partir de relações corpo-imagem. Dança, Salvador, v. 3, n. 2, p. 69-80, jul./dez., 2014., p. 70).

Também em 1990, Madonna lança Vogue, uma de suas canções mais famosas, em que convida o ouvinte a fazer uma pose - strike a pose, ‘faça uma pose’ (Figura 3). Por mais que a popstar tenha se alimentado de referências marginais, a apropriação midiática e espetacular do estilo pouco conservou de seu tom contestatório; pelo contrário, aprisionou-o, tornando-o impermeável à crítica inicial da sociedade de consumo, ou aquele modo de consumir, higienizando os movimentos imundos. O vestuário e movimentos corporais de contravenção que avacalhavam a ideia heterossexual e branca de bom gosto tornaram-se mais brandos e reelaborados. No vídeo de Madonna, os corpos são envolvidos por uma roupagem hollywoodiana que media o gosto pelo vogue e assim o leva a milhões de fãs no mundo todo.

Figura 3
Willi Ninja, coreógrafo da House of Ninja. Pose de dança vogue

Os movimentos corporais abruptos da pose gerada pelo vogue passaram a vibrar com a habilidosa destreza dos bailarinos profissionais. Em outras palavras, os movimentos que nascem contestatórios operam uma disputa política em sua cinética - de um lado, encontra os movimentos próprios de uma expressão de gênero subalternizada; do outro, os mesmos movimentos, ou quase, porém com novos agentes, dançarinos de dança contemporânea, a própria Madonna e seus meios de produção, em sua representação mais popular - o vídeo -, em nada se parecem com os das pessoas LGBT que lhes deram origem. Assim, é marcante o corte de classe e raça que caracteriza esse outro vogue.

Para melhor entender esse mecanismo, voltamos a Lepecki (2012LEPECKI, André. Planos de Composição. In: GREINER, Christine; ESPÍRITO SANTO, Cristina; SOBRAL, Sonia (Org.). Cartografia Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010. São Paulo: Itaú Cultural, 2012. P. 12-20., p. 17), que afirma que o “[...] dançarino e coreógrafo de seus passos vai, ou pensa que vai, aonde bem quiser”, de certa maneira, isso reflete também os sujeitos desapropriados de seus próprios movimentos. Assim, o autor reflete:

Desafio cinético-político para planos de composição na dança contemporânea: o que fazer com o destino do meu movimento? O que fazer com a subjetividade idiota do automovente? Como agenciar movimento e subjetividade de modo que se saia do delírio ontoteológico automobilístico? […] o sujeito se vê como automovente apenas para se descobrir num eterno engarrafamento de seu desejo, numa cumplicidade obscena perante a pilhagem escrota da natureza, num testemunhar passivo de uma violência neocolonial desmedida e sádica - tudo para garantir o combustível que o moverá para o próximo engarrafamento, desde que os topógrafos e suas máquinas aplainantes da história continuem a trabalhar para que a borracha deslize sem um solavanco sequer (Lepecki, 2012LEPECKI, André. Planos de Composição. In: GREINER, Christine; ESPÍRITO SANTO, Cristina; SOBRAL, Sonia (Org.). Cartografia Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010. São Paulo: Itaú Cultural, 2012. P. 12-20., p. 17).

O terceiro plano de composição que vai nos interessar é o plano de retorno, da repetição, da diferença ou do reenactment. Lepecki (2012LEPECKI, André. Planos de Composição. In: GREINER, Christine; ESPÍRITO SANTO, Cristina; SOBRAL, Sonia (Org.). Cartografia Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010. São Paulo: Itaú Cultural, 2012. P. 12-20.) recorre a Foucault ao pontuar que o movimento se arquiva no corpo. O arquivo, para Foucault, não é imutável, ao contrário, trata-se de um “[...] sistema dinâmico de formações e transformações de enunciados” (Foucault apud Lepecki, 2012, p. 19) que delimita o nosso estar no mundo. Logo, o corpo é o modelo privilegiado desse arquivo, pois “o corpo é errante, agenciador, precário, inventivo, desejante, fugitivo de si mesmo e mortal”. É a noção de corpo-arquivo, formador e transformador de si mesmo e dos enunciados que o fazem e o delimitam.

Tais questões, relativas à força expressiva corporal que aponta para aquilo que o corpo faz, foram importantes no aprofundamento das questões levantadas por esta pesquisa e fundamentais para a composição de imagens que trouxessem à tona o que aqui chamamos de imundices.

Figura 4
Behind the Funk: Jhury Nascimento em aquecimento para show em Madureira

Figura 5
Show de Valesca no Espeto Carioca. Jhury ao fundo, à esquerda. Recreio dos Bandeirantes (RJ)

Para o estudo fotográfico foram selecionados seis rapazes cujas vestimentas, estilo e jeitos do corpo apontavam um modo marcante e particular de estar no mundo, especialmente em suas performances de gênero e raça (Figura 4; Figura 5). Tais performatividades e o desejo de circular pela periferia do Rio de Janeiro, destacando-se por suas visualidades, além de serem representativas de uma parcela da população LGBT, correspondiam a uma constante reinvindicação de estar no mundo.

Em termos do próprio corpo físico, o simples fato de estar no mundo e existir é, por si só, político, revestindo a sigla LGBT de mais complexidade nos espaços em que as pessoas por ela contempladas circulam. Nesses chãos, os caminhos sempre propõem desvios, diante da iminência de tiros, pedradas, agrupamentos temporários para proteção, inclusive do policial, sobretudo para aqueles de pele negra.

Sob esse prisma, a dança, cheia de camadas específicas para esse corpo, extrapola a compreensão de que dançar é algo apenas cinético. A ideia de plano de composição nos conduz a um corpo atravessado por vetores de força, capaz de se atualizar, interrogar, correr, circular, se esconder pelo chão por onde passa.

Para pensar esse corpo e essas forças que atravessam o chão da massa funkeira, vamos buscar os conceitos de descarga e síncopa engendrados respectivamente por Hermano Vianna (1987VIANNA, Hermano. O Baile Funk Carioca: Festas e Estilos de Vida Metropolitanos. 1987. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal de Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1987.) e Muniz Sodré (1998SODRÉ, Muniz. Samba dono do corpo. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. Maud, 1998.). Ambas as noções fazem ver no corpo, seja coletiva ou individualmente, oscilações cinéticas que guardam certa similitude.

Hermano Vianna, um pouco antes de 1990, explorou os primeiros bailes funks. O antropólogo produziu densas descrições sobre o movimentar do corpo e como a música era capaz de regular aqueles espaços em diferentes intensidades. Vianna (1987, p. 97) relata:

No baile funk, não encontramos esses movimentos ‘refinados’ de língua e olhos, mas todos os passos são simultâneos e idênticos. A sensação é a mesma: estamos diante de uma única criatura, com centenas de braços, centenas de pernas, centenas de cabeças.

Aqui seria difícil dizer se as letras das músicas que falavam em massa funkeira eram uma nomeação dessa sensação; mas é possível entender, por meio de Vianna (1987VIANNA, Hermano. O Baile Funk Carioca: Festas e Estilos de Vida Metropolitanos. 1987. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal de Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1987.), que o funk é algo enlouquecedor. O corpo que vai, escorrega, desliza, se move no e para o chão para dançar funk é um corpo do festejo intenso e frenético. Vianna (1987, p. 140) pontua que:

A festa é excesso, em todos os sentidos, para não fazer sentido algum. O som muito alto, o contraste entre as luzes que piscam sem parar e a escuridão quase dominante, as danças cada vez mais intensas, os gritos de satisfação, a ameaça sempre presente da violência. A festa é loucura, uma afirmação inconsequente e irresponsável de que a vida vale a pena ser vivida.

A descrição se aproxima das manifestações festivas frequentes da diáspora africana, que sempre se materializaram no corpo negro. Sodré (1998SODRÉ, Muniz. Samba dono do corpo. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. Maud, 1998., p. 11) resgata a noção de síncopa, componente que, na música negra, provoca um vazio rítmico, uma espécie de “batida que falta”. “Síncopa”, para a música, é a ausência no compasso da marcação de um tempo: um fraco, que convoca outro tempo, um forte, característica sine qua non para o samba e o jazz, por exemplo. Sodré explica que “[...] de fato, tanto no jazz quanto no samba, atua de modo especial a síncopa, incitando o ouvinte a preencher o tempo vazio com a marcação corporal - palmas, meneios, balanços, dança”. Gestos corporais que são magnetizados pela força do impulso provocado pelo ritmo (Figura 6).

Figura 6
Força do ritmo nas fotografias. Passinho da Angola

As manifestações culturais populares bastardas e subalternas das últimas décadas - hip-hop, funk, charme, entre outros - conservam certa continuidade histórica para esse fenômeno. Tais como lógicas, relatos e linguagens próprias, que permitem reconhecer outras subjetividades (Rincon, 2016RINCON, Omar. O popular na comunicação: culturas bastardas + cidadanias celebrities. Revista Eco-Pós, Rio de Janeiro, v. 19, n. 3, set./dez. 2016. P. 27-49., p. 35), como a dança, o movimento e o corpo.

O corpo exigido pela síncopa do samba é aquele mesmo que a escravatura procurava violentar e reprimir culturalmente na História brasileira: o corpo do negro. Sua integração com a música, através da dança, já era evidente no Quilombo dos Palmares: ‘Dispostas previamente as sentinelas, prolongam as suas danças até o meio da noite com tanto estrépito batem no solo, que de longe pode ser ouvido’. E já era bem visível a coreografia do samba: ‘Por via de regra, aos lados da rude orquestra, dispõem-se em círculo os dançarinos que, cantando e batendo palmas, formam o coro e o acompanhamento. No centro do círculo, sai por turnos a dançar cada um dos circunstantes. E estes, ao terminar a sua parte, por simples aceno ou violento encontrão, convida outros a substituí-lo (sic). Por vezes, toda a roda toma parte no bailado, um atrás do outro, a fio, acompanhando o compasso da música em contorções cadenciadas dos braços e dos corpos’ (Sodré, 1998SODRÉ, Muniz. Samba dono do corpo. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. Maud, 1998., p. 11-12).

Quando observou essa força cinética dos bailes funk (Figura 7), Vianna (1987VIANNA, Hermano. O Baile Funk Carioca: Festas e Estilos de Vida Metropolitanos. 1987. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal de Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1987.) encontrou uma noção oriunda dos rituais religiosos, tentando entender como o ritmo é capaz de movimentar centenas de corpos. A batida musical permitiu-lhe entender que ela pode “produzir descargas”. Nos bailes, esse é o momento de densidade máxima: “[...] praticamente não existe mais espaço entre as pessoas, os corpos se pressionam uns contra os outros, e cada um fica tão perto do outro como de si mesmo” (Canetti apud Vianna, 1987, p. 28).

Devemos entender a descarga como uma intensidade sonora, que vibra e se estende pelo movimento coletivo dos corpos. Embora guarde uma aproximação conceitual com a síncopa, o termo trata especificamente da mixagem eletrônica encontrada no funk, na qual o ponto, base eletrônica sem voz, é manipulado pelo DJ de maneira a regular a intensidade sonora.

Vianna (1987VIANNA, Hermano. O Baile Funk Carioca: Festas e Estilos de Vida Metropolitanos. 1987. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal de Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1987.) conta que os DJs da época precisavam mesmo desenvolver recursos de controle ou domesticação da massa funkeira de corpos, tal como nos cultos religiosos, devido ao excesso de euforia nos bailes; por conseguinte, essa forma de regulação estratégica encontrava eficácia na dança.

Figura 7
Grupos de Dançarinas e Início de uma briga no Baile do Clube do Canto, em Niterói (RJ)

Observar que o mesmo frenesi se mantém (Figura 8), passados mais de trinta anos, e em diferentes locais e ambientes, aponta para o poder de descarga do funk e sua forte aderência nos espaços que ocupa.

Figura 8
Show particular de Dennis DJ em um Bar Mitzvah no Parque Lage.

Ao nos darmos conta da penetração e poder do funk sobre os corpos, retornamos à questão das possibilidades de fotografar, à questão da pose e à noção expandida de coreografia e dos planos de composição, além, é claro, da ideia de “aparelho” (Flusser, 1985FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Hucitec, 1985.) ou as profanações do dispositivo de Agamben (2009AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. São Paulo: Iluminuras, 2009.), o que aproxima a reflexão ao campo teórico da fotografia.

Para se pensar a fotografia, hoje, é instigante relembrar Agamben (2009AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. São Paulo: Iluminuras, 2009.), quando busca a ideia de dispositivo - termo largamente utilizado por Foucault. Para ele dispositivo é:

(a) É um conjunto heterogêneo, linguístico e não-linguístico, que inclui virtualmente qualquer coisa no mesmo título: discurso, instituições, edifícios, leis, medidas de polícia, proposições filosóficas etc. O dispositivo em si mesmo é a rede que se estabelece entre esses elementos. (b) O dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta e se inscreve sempre numa relação de poder. (c) Como tal, resulta do cruzamento de relações de poder e de relações de saber (Agamben, 2009AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. São Paulo: Iluminuras, 2009., p. 29).

O autor propõe um deslocamento do sentido original do termo focaultiano, ressituando-o, permitindo assim, uma amplitude dessa compreensão. O que, por sua vez, nos leva a apropriar o entendimento sobre dispositivo de Agamben (2009AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. São Paulo: Iluminuras, 2009.) como um modo potente para criar e, desde já, convocando o que ele irá chamar de profanações:

[...] qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as prisões, os manicômios, o Panóptico, as escolas, a confissão, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc.; cuja conexão com o poder é num certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, as navegações, os computadores, os telefones celulares e - por que não - a própria linguagem, que talvez é o mais antigo dos dispositivos (Agamben, 2009AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. São Paulo: Iluminuras, 2009., p. 41).

Os dispositivos, em Agamben (2009AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. São Paulo: Iluminuras, 2009.), propõem deslocamentos de seus usos comuns, sugerem que se crie um corpo a corpo com eles, e assim se possa profanar seus usos. Profanar significa um contradispositivo que convoca maneiras de fazer o corpo abandonar suas docilidades e assujeitamentos para criar subjetivação.

Também é razoável trazer à discussão o que Flusser (1985FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Hucitec, 1985., p. 9) fala sobre o “aparelho”, como “brinquedos que simulam um tipo de pensamento”. O aparelho tradutor de um pensamento conceitual pode ser o ato de fotografar, sendo os fotógrafos capazes de travar um duelo, um corpo a corpo com o aparelho, levando-o a uma desprogramação.

Nesse sentido, e no caso da fotografia do funk, existe um confronto mais ou menos explícito entre a imagem que os artistas têm de si mesmo e aquela que as mídias querem ver revelada. Se compararmos os editoriais produzidos por Marcos Serra Lima e por Rodolfo Viana (Figura 9), pertencentes ao mesmo período, vemos abordagens plásticas que dizem muito da cultura visual na qual o funkeiro e seu fotógrafo se encontram. Nessas imagens, se observam fenômenos que higienizam para esconder as imundices. Na Figura 9, à esquerda, o corpo é assujeitado a uma pose que desvincula a funkeira de seu universo de fama, realocando-a em um cenário mais erudito. Os cabelos são postos para baixo, a postura da coluna é ereta e o rosto rígido, a mão mimetiza tocar o piano, mas o pé permanece distante do pedal. Não há intimidade entre o sujeito da imagem e o cenário de glamour escolhido.

Já no editorial de Rodolfo Viana (Figura 9, à direita), não se buscou esconder as particularidades expressivas do corpo da cantora. Ludmilla, em sua pose, debruça-se sobre uma escada, seu cabelo está armado para o alto, e na maquiagem não foram usados artifícios para afilar seu nariz.

Figura 9
Ludmilla

Em síntese, tanto os fotógrafos quanto os modelos são sujeitos a coreopolíticas vigorosas, que enquadram de maneira rígida, capaz de impedir torções, imundices. Na percepção das equipes de produção, qualquer escape é tomado como pura abjeção. Mesmo para aqueles que, nesse tipo de trabalho, driblam os coreopoliciamentos, existe a necessidade evidente de seguir as regras de consumo que atravessam as relações e coíbem a expressão legítima dos artistas.

É justamente nesse sentido, e em confronto com essa ideologia, que surgiu o desejo da realização do ensaio fotográfico com pessoas que, em relação à sua sexualidade e comportamento transviado em espaços majoritariamente heterossexuais, assumiram modos de ser desviantes. Tais performances ficaram evidentes em bailes suburbanos que permitiram a produção de dissenso e o início de trabalho fotográfico autoral que gerou a série intitulada Behind-the-Funk (Figura 10), como uma maneira de burlar e desprogramar o aparelho, repensando as imagens dos lugares e o desejo de aproximar o funk do campo da arte.

Figura 10
Série Behind-The-Funk. Anitta e os fãs e Concurso improvisado de passinho

A partir dessa experiência surgiu a necessidade de escolher modelos para a criação de um processo mais refletido com retratos. Nesse sentido, foi possível ensaiar formas livres de estar diante dos modelos a partir de uma escuta privilegiada. A intenção foi de subjetivar a relação modelo-fotógrafo e buscar horizontalizar as hierarquias de falas e escolhas da tal boa foto ou boa pose imposta pelos coreopoliciamentos.

Nesse sentido, há aproximações mais específicas do gênero artístico performance que colaboram para o desenvolvimento dessa materialidade artística. A performer e teórica Eleonora Fabião (2013FABIÃO, Eleonora. Programa performativo: o corpo-em-experiência. ILINX - Revista Lume, Campinas, Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais - UNICAMP, n. 4, p. 1-11, dez. 2013. , p. 4) elaborou uma incursão metodológica na qual chama a montagem de uma peça performativa de “programa”. Segundo Fabião (2013), “[...] quanto mais claro e conciso for o enunciado - sem adjetivos e com verbos no infinitivo - mais fluida será a experimentação”.

A proposta de Fabião (2013FABIÃO, Eleonora. Programa performativo: o corpo-em-experiência. ILINX - Revista Lume, Campinas, Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais - UNICAMP, n. 4, p. 1-11, dez. 2013. ) move-se no próprio fazer, é a própria ação. Embora Agamben (2009AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. São Paulo: Iluminuras, 2009.) provoque uma releitura do dispositivo que também utiliza verbos no infinitivo indicando ação, e Flusser (1985FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Hucitec, 1985.) fale em desprogramar o aparelho, como motor estanque de um processo artístico, o modus operandi do programa de Fabião é capaz de engajar os enunciados no corpo de seus leitores.

A partir desse marco teórico foi determinado um programa de experimentação. Nele ficou determinado que as fotos só seriam feitas quando o modelo se encontrasse dentro do quadrado demarcado no chão. O quadrado, que pode ser desenhado ou posto no chão, ao som de música, faz com que modelo e fotógrafo criem um dueto, uma espécie de dança, acionada pela coreografia do mise-en-scène fotográfico.

A partir dessa fusão conceitual da performance art e das teorias da fotografia, passamos a operar sobre o que iremos chamar de aparelho do programa performativo, uma forma de experienciar essas linguagens de maneira híbrida.

A ideia problematiza-se a partir do chão onde se passa o dueto fotógrafo-modelo, no estúdio. Significa tentar entender como esses corpos, que estão sob múltiplas linhas de força, se sobrepõem e se influenciam. É o plano de composição que ilumina os contornos coreopolíticos da relação estabelecida entre esses atores. Assim, a coreografia, tanto do modelo quanto do fotógrafo, emerge como fruto de um processo para além do movimento em si e se constitui em ato político. Esse rearranjo pretende gerar uma poética e, de maneira estratégica, produzir poses no portrait fotográfico que possam dar a ver uma fotografia que problematize os estigmas visuais ativados nos marcadores de gênero, classe e raça.

Dessa forma, são burlados e explicitados os coreopoliciamentos dos sets fotográficos uma vez que são recusados aquilo que o aparelho, ou o dispositivo, quer que o fotógrafo faça. Tal mecanismo gera desprogramação, subjetivação, contradispositivos, o que perturba as formas de enunciar dos corpos em cena e deixa visíveis suas oralituras em imagens e acontecimentos para assim deixar que existam as poses imundas.

As linguagens da performance art e do gênero portrait, nesta pesquisa, encontram no aparelho do programa performativo o agenciamento que leva à pose. Já a indumentária e os índices visuais do corpo dos rapazes, as músicas escolhidas, a dança e o momento em que o dançarino entra dentro do quadrado e faz a pose, concretizam no portrait um elemento emblemático, no qual esse encontro de linguagens deixa ver a imundice que perseguimos.

Figura 11
Frame do vídeo: duo modelo-fotógrafo e Portrait Jhury

Para tanto, é preciso preocupar-se com a produção da pose para além da estética do estático e utilizar as materialidades e artifícios possíveis nesse estúdio expandido - referimo-nos aos trânsitos entre as linguagens artísticas, bem como seus suportes, relação do artista com uma incursão etnográfica12 4 A incursão que nos referimos está alinhada às perspectivas de Hal Foster (2014[1996]). No texto o Artista enquanto etnógrafo, o autor traz abordagens por trabalhos que se propõem a empreender investigações cuidadosas entre a arte e o campo da etnografia. O que Foster (2014) observa é como se dá a produção dos vínculos a certas temáticas, criando, assim, possibilidades que podem ser construídas a partir das incursões etnográficas do artista. O que levou a pesquisa a outros aprofundamentos, tais como Viana de Paulo (2017; 2018). ou tudo que for potente - para uma criação de retratos ante aos dispositivos que nos tangem. Novamente, a coreografia expandida que aciona linhas de força para criar um plano de composição magnetiza os materiais artísticos.

No processo de campo formulado a partir desse estúdio expandido, essa cocriação de pose e retratos intrínseca ao aparelho do programa performativo coloca o fotógrafo em duelo com o dispositivo, criando rotas de fuga do lugar de poder daquele que detém a fala em uma estratégia de relação com os próprios modelos.

Assim, tomados pelos debates traçados, encaminhamos a concepção do plano de composição como uma fuga das linhas de força que higienizam a pose, tal como ocorre na tentativa de planificar o chão da dança. Provocamos uma aproximação com os planos de composição, pontuando o que compõe o mise-en-scène desse universo do funk. Para tanto, levamos em conta os construtos dos relatos etnográficos e a descarga sincopada da batida, que coreografam as poses imundas nos portraits (Figura 11; Figura 12).

Figura 12
Poses Imundas. Portraits Lucca Machado e Jeffin Picciane

As pessoas negras e LGBT aqui visadas adotam estilos de corpo e indumentárias alimentadas, muitas vezes, por iconografias da cultura pop. Para a produção desse estilo, uma fronteira é cruzada quanto ao que se espera de uma corporalidade referenciada no masculino. Os rapazes com os quais nos propusemos a iniciar essa relação apresentam-se para as fotografias da maneira que França, Macedo e Simões (2010FRANÇA, Isadora Lins; MACEDO, Marcio; SIMÕES, Júlio Assis. Jeitos de corpo: cor/raça, gênero, e sociabilidade juvenil no centro de São Paulo. Cadernos Pagu, Campinas, v. 35, p. 37-78, jul./dez. 2010., p. 48) nos colocam em relação a “estilo”:

Sugerimos aproximar essas preocupações à noção de estilo formulada por Hebdige (1979; 1988), como arranjos voltados à produção e performance de corporalidades que lidam com valores e representações associados a marcadores de diferença, reelaborando contextualmente seu significado e seu impacto nas interações sociais. O estilo é um jeito de ‘dar-se a ver’ em público, uma forma de encenação e comunicação.

Esse modo de “dar-se a ver” em público consiste, como expõem os autores, em um movimento sempre parcial e inacabado, no qual formas de produção de subjetividade e identidade passam por esse esforço. Nessas negociações, índices visuais, no corpo compreendido por meio de cruzamentos de marcadores sociais, deixam ver, nas imagens, a lacração e o close dessa condição - em que o ato de pôr à mostra vaidades imundas propõe ao mundo um valor positivo para a diversidade de estilos.

A título de exemplo, os dois portraits da Figura 13 permitem-nos ver algumas marcas que se cruzam, tanto de gênero, quanto de raça. Sublinhamos o que se evidencia na corporificação de certos estigmas de pobreza, quanto aos aspectos de classe - o que pode lhes atribuir, segundo concepções mais hegemônicas, uma espécie de ausência de refinamento cultural diante das convenções do bom gosto, que reificam os racismos, a partir de arlequinações contemporâneas.

Figura 13
Portrait. Rio Favela Rap

No contexto do Rio de Janeiro, um bigode descolorido com blondor em uma pessoa de pele negra aciona estigmas pejorativos por meio da tríade simbólica preto, pobre, favelado - perversamente construída pela mídia -, criando rastros de leitura que levam a temer o que o corpo do negro expõe (Figura 13).

Outros marcadores de cor/raça combinam-se: certos estilos de vestimenta, como camisa regata, lenço no cabelo longo com dread cinza, roupas coloridas, delicadeza da pose e bigode aparente, além do tipo físico, são performances de gênero particularizadas da pessoa negra e LGBT (França; Macedo; Simões, 2010FRANÇA, Isadora Lins; MACEDO, Marcio; SIMÕES, Júlio Assis. Jeitos de corpo: cor/raça, gênero, e sociabilidade juvenil no centro de São Paulo. Cadernos Pagu, Campinas, v. 35, p. 37-78, jul./dez. 2010.).

Em termos de estilo, vale destacar a elaborada manipulação de próteses, como cabelos artificiais, tintura, bronzeamentos, cor e tamanho das unhas, maquiagem, customização das roupas. Inúmeras são as possibilidades em que o plano de composição do estilo leva a coreografar as poses com o intuito de deixar que vejam (Figura 14) as imundices, ao invés de higienizá-las.

Figura 14
Poses Imundas. Portrait Lucca Machado

No funk, a partir da performance de gênero pintosa13 5 Pintosa é a expressão nativa utilizada para nomear aqueles que deixam explícito o fato de serem gays. , o corpo se apropria de seu caráter contestador, como no caso de atos de fala presentes nas canções de mulheres, como a cantora Valesca ou Linn da Quebrada. Com isso, a pintosa cria também seu campo de poder, tornando seu corpo visível para os embates do chão, mesmo que, nesse processo, surjam contradições, em geral inerentes à cultura popular massiva.

Desse modo, torna-se mais evidente que as representações, por meio da performance de gênero pintosa, aparecem de modo mais plural, correspondendo na música e no corpo à diversidade da fluidez dos muitos gêneros, para além das falsas dicotomias entre masculino e feminino. Sob esse prisma, podemos pensar o funk como um modulador dessas vozes, mediando reinvindicações tanto na musicalidade como no corpo, de maneira semelhante ao ocorrido com a chegada da figura feminina, que abriu a mesma trilha na década passada.

Essa percepção é importante quando observamos a cena musical brasileira. A cidade do Rio de Janeiro reivindica o funk para si - muito a partir da fala dos MCs, que afirmam que os outros lugares ou cantores não estão fazendo funk de verdade. Circula no senso comum carioca certa contestação em ver o ritmo assumindo outros contornos e imundiçando-se em outros estados - caso do tecnobrega paraense e do funk ostentação paulista, bem como outros ritmos que ganham representatividade e notoriedade pública junto a novos nomes da música no Brasil. Basta pensar nas seguintes figuras públicas da música que têm ganhado espaço no mercado fonográfico recentemente, como Liniker (SP), Pabblo Vittar (SP), MC Linn da Quebrada (SP), MC Trans (RJ), MC Xuxu (MG), Lia Clarck (SP), que faz dueto com MC Pepita (RJ), e muitos outros (Figura 15; Figura 16; Figura 17). Toda(o/x/s) transitam pela música pop de modo efervescente.

Os cantores em questão dão pinta, suas expressões de gênero são visíveis a partir de seus estilos. Além disso, falam abertamente sobre políticas de gênero e sexualidade.

Figura 15
Liniker, Mc Linn da Quebrada e Lia Clack

Figura 16
Mulher Pepita e Mc Trans

Figura 17
Mc Xuxu e Pabblo Vittar

Contudo, a cultura pop que as pessoas negras e LGBT escolhem experienciar estende suas imundices para além dos domínios da música e da dança - e lhe conferem mobilidade -, em coreopolíticas, tais como: proximidades das casas de shows, parques com brincadeiras como gaymadas, quadras de escola de samba, ruas específicas, universidades, galerias de arte etc. Nesses chãos, as gays são as lacradoras, femininas, bonitas, fervidas, perigosas, que mandam um papo, não são incubadas14 6 Embora não contemple inteiramente a pesquisa, circula na internet um dicionário informal de termos nativos LGBT, o livro Aurélia – A Dicionária da Língua Afiada, de Fred Lib e Ângelo Vip, com edição esgotada (não foi possível encontrar o ano da primeira edição). Nele há alguns verbetes situando a região do país em que alguns usos são mais correntes. - apenas para citar algumas categorias nativas e seus padrões êmicos, na forma de atos de fala que acompanham o manejo e o jeito desses corpos.

É interessante pensar a aderência que o funk magnetiza ao dar pinta. O plano de composição da performance de gênero pintosa coreografa a pose da pintosa no chão que faz soar o funk. Trata-se de conferir esse lugar em imagens e dar “à aparência a aparência mesma” (Agamben, 1996AGAMBEN, Giorgio. ‘Il Volto’. In: AGAMBEN, Giorgio. Mezzi senza fine. Note sula politica. Tradução de Murillo Duarte Costa Corrêa. Torino: Bollati Boringhieri, 1996. P. 74-80. ). Daí ser característico da pinta um certo exagero, o deboche, a apropriação da gestualidade de maneira contundente, assumindo-se assim uma posição de ataque ao estigma, visando endossar uma tarefa política, exagerando expressões no rosto de maneira subversiva, tema, inclusive, central ao gênero portrait (Figura 18).

Figura 18
Poses Imundas. Portrait Lucas Gabriel (esquerda e centro) e Portrait Wallace Terra (direita)

A pinta não reserva apenas a brutalidade do gesto, mas também o saber criar suavidades e nuances no corpo imundo (Figura 19) - o que macula, em certo sentido, os clichês da virilidade do macho. A pinta surge como uma potente possibilidade de dar amplitude ao corpo que se coreografa, desde o gesto mais brusco até o mais suave.

Figura 19
Poses Imundas. Portrait Jhury

Aos portraits concatena-se um importante elo: a dança, caso da pinta, cujo plano de composição se soma a outros (Figura 20; Figura 21). A cinética dançante é localizada na descarga sincopada (Vianna, 1987VIANNA, Hermano. O Baile Funk Carioca: Festas e Estilos de Vida Metropolitanos. 1987. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal de Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1987.; Sodré, 1998SODRÉ, Muniz. Samba dono do corpo. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. Maud, 1998.) da batida do funk, produzindo pelas oralituras corporais uma espécie de plano de composição (Lepecki, 2012LEPECKI, André. Planos de Composição. In: GREINER, Christine; ESPÍRITO SANTO, Cristina; SOBRAL, Sonia (Org.). Cartografia Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010. São Paulo: Itaú Cultural, 2012. P. 12-20.) capaz de coreografar poses.

No dueto entre fotógrafo e modelo estabeleceram-se planos de composição que oferecem ao pensamento sobre o corpo a possibilidade de observar sua cinética a partir da negritude de maneira abrangente. Trata-se das noções e inferências, observadas pelos teóricos aqui citados (Sodre, 1998SODRÉ, Muniz. Samba dono do corpo. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. Maud, 1998.; Vianna, 1987VIANNA, Hermano. O Baile Funk Carioca: Festas e Estilos de Vida Metropolitanos. 1987. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal de Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1987.), aplicadas aos fenômenos culturais da diáspora africana - caso de uma característica marcante: o ponto que, para o funk, consiste na leitura eletrônica e mixada dos ritmos afro, que confere ao som a vibração do tambor, ou tamborzão, convocando à participação corporal por meio da síncopa.

Figura 20
Poses Imundas. Portrait Lucas Gabriel e Lucca Machado

Figura 21
Poses Imundas. Portrait Wallace Terra

Para o funk, a intensidade dessa convocação do corpo tem sua regulação na ideia da descarga que modula o clímax cinético-corporal. Para pensar o plano de composição que formula a pose, a descarga sincopada é a mola-mestra responsável pela oscilação e convite desses corpos. A descarga-sincopada é capaz de disparar as imundices, trazendo à tona as oralituras e conduzindo uma gestualidade, (re)coreografando-nos produzindo pose.

Em análise, nas teorias da dança há discussões que oferecem uma dimensão potente para adensar o que se passa nesses corpos, sendo relevante, por exemplo, a noção dos atos parados (Lepecki, 2005LEPECKI, André. Desfazendo a fantasia do sujeito (dançante): ‘Still acts’ em The Last Performance de Jérôme Bell. In: PEREIRA, Roberto; SOTER, Silvia (Org.). Lições da Dança 5. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2005.):

Essa conclamação da paragem escapa dos campos das considerações cinestésicas ou de composição que costumava ser o seu território para tornar-se uma ação cheia de força. Essa força da parada é o que eu chamo de still act (ato parado) na dança, [...] um ato tão poderoso, perturbador, como escreve Didi-Huberman, que pode ser denominado resistente (Lepecki, 2005LEPECKI, André. Desfazendo a fantasia do sujeito (dançante): ‘Still acts’ em The Last Performance de Jérôme Bell. In: PEREIRA, Roberto; SOTER, Silvia (Org.). Lições da Dança 5. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2005., p. 14).

Mais adiante, discute:

As qualidades simbólicas e expressivas da paragem clareiam a natureza fenomenológica desse (resistente) ato de interrupção. Ela não é sinônima de congelamento. Antes, o que a paragem faz é iniciar o sujeito em uma outra relação com a temporalidade. A paragem opera num nível do desejo do sujeito de inverter uma certa relação com o tempo e com alguns ritmos corporais (preestabelecidos) (Lepecki, 2005LEPECKI, André. Desfazendo a fantasia do sujeito (dançante): ‘Still acts’ em The Last Performance de Jérôme Bell. In: PEREIRA, Roberto; SOTER, Silvia (Org.). Lições da Dança 5. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2005., p. 14).

A qualidade simbólica e emblemática da pose como gesto parado, tanto no momento do clique quanto na própria imagem em um portrait, leva-nos a um paradoxo sem oposições: está parada, mas não é estática - sendo nessa relação indissociável entre indecidíveis15 7 Indecidíveis são unidades de simulacro, falsas propriedades verbais, nominais ou semânticas que não se deixam compreender na oposição filosófica (binária) e que, no entanto, habitam-na, resistem-lhe e a desorganizam, sem jamais constituir um terceiro termo, sem jamais dar lugar a uma solução na forma da dialética especulativa (o pharmakon não é nem o remédio, nem o veneno); o suplemento não é nem um mais nem um menos; o hímen não é nem a confusão nem a distinção; [...] o encetamento não é nem a integridade de um começo, de um corte simples, nem a simples secundariedade. Nem/nem sendo ao mesmo tempo ou bem isso, ou bem aquilo” (Derrida apud Santiago et al., 1976, p. 46). Segundo a explicação de Nascimento (2004, p. 26-28), os indecidíveis versam sobre traços de metáforas, desviando-se de sua origem plena, e traços de conceitos. Funcionam com certa regularidade, sendo operadores de leituras limítrofes dos discursos, sublinhando os impasses. contrários que podemos grafar o corpo do chão para as imagens, constituindo, assim, um terceiro rastro que nomeia a pesquisa - as poses imundas.

A pose não evoca estática nem interrupção; a pose, nas cenas, evoca movimentos, mesmo estando parada. Uma cinética-política resultante do clímax do duo modelo-fotógrafo, coreografados no estúdio expandido. Ademais, as condições, nesse caso, reivindicam um enunciado próprio, no qual encontramos potentes balizadores no conceito de programa (Fabião, 2013FABIÃO, Eleonora. Programa performativo: o corpo-em-experiência. ILINX - Revista Lume, Campinas, Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais - UNICAMP, n. 4, p. 1-11, dez. 2013. ). O duo modelo-fotógrafo, no aparelho do programa performativo, tendo como plano de composição a pulsão da batida, ou ponto, permite uma libertação de movimentos direcionada à câmera.

O plano de composição da descarga sincopada, quando compõe o processo coreográfico dessas poses, parece provocar uma recarga no momento imediatamente após a pose. Ironicamente, o característico zumbido do flash de estúdio indica que, por algumas frações de segundo, todos os corpos e agentes dessa composição devem aguardar a recarga, literal, do equipamento para voltar ao trabalho.

Voltando a dançar, modelo e fotógrafo retomam a troca de impressões a partir da coreografia; ambos sabemos que haverá o instante do clímax. Enquanto o fotógrafo anseia o clique, o modelo, como uma centrífuga, lança-se para dentro do quadrado, extrapolando as possibilidades desse corpo na pose.

Em mutualidade, corpos magnetizados pela proposição artística, o aparelho do programa performativo, veem nos verbos no infinitivo a condução da execução da ação fora das zonas de conforto, o que possibilita que o portrait fotográfico transite com mais clareza em nosso tempo, levando em conta todos os elementos de uma ação.

A potência está em inventar horizontalidades e acreditar que a relação modelo-fotógrafo não se detém em quem domina o instante do clique, da pose, ou mesmo do tipo de gestualidade a ser feita. Ambas as partes estão perpassadas pelos lastros históricos que as sustentam, pelo chão, por um cenário ou contexto, às vezes sufocante, de imposições e higienizações. Infringi-las é parte da poética - como ao propor que o abjeto nem sempre é só abjeto e o imundo nem sempre é imundo, introduzindo indecidibilidades nos rastros mais hegemônicos, deixando menos à deriva os signos e ancorando-os próximo àqueles que detêm os privilégios de voz.

Nesse sentido, os planos de composição oferecem noções expandidas da dança, em que a construção de poses assume formas potentes ao relacionar-se com a câmera que não pertence ao fotógrafo apenas, mas à cena, sendo muitas as linhas de força integrantes do jogo. O que buscamos na construção dessas poses é entender que o corpo do fotógrafo também é um elemento nas cenas. Basta percebermos o lugar que Dacorso e Rosenblatt ocupam no mundo funk carioca, pois seria ingênuo desconsiderar essa posição que o fotógrafo ocupa ao buscar uma imagem ou fazê-la ecoar.

A coalizão pessoa negra e LGBT propõe questões para serem exploradas nos muitos preâmbulos e contextos culturais brasileiros. O que esta pesquisa concatena em imagens, tanto do universo midiático quanto do artístico, faz ver a relação de parte da história do funk como parte da história LGBT.

References

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  • 1
    Butler (2017) propõe criticamente uma leitura alternativa à de Foucault ao caso de Herculine Barbin a partir dos diários que o autor afirma ter encontrado.
  • 2
    Sara é a mulher por quem Herculine fora apaixonado(a).
  • 3
    Ambos criaram materialidade artística a partir de trabalhos autorais sobre as visões pejorativas forjadas pela imprensa. Entre os anos de 1998 e 2008, Dacorso foi a primeira fotógrafa a frequentar bailes da Baixada Fluminense, reunindo registros da cena do funk carioca em uma série de exposições. De imensa contribuição visual e dissidente, as séries do acervo de Vincent Rosenblatt, Rio Baile Funk! Favela Rap!, produzem narrativas que combatem as visões pejorativas. O trabalho autoral do artista francês é posterior ao de Dacorso, situando-se em bailes funk da cidade entre os anos de 2005 e 2014. Alcançou notoriedade midiática, sendo pioneiro também ao iniciar o registro ao longo de quase 10 anos. Para além de espaços expositivos, Rosenblatt frequentemente leva também projeções do Rio Baile Funk ao Morro do São João, na Vila Cruzeiro, no Santa Marta e na Boca do Mato.
  • 4
    A incursão que nos referimos está alinhada às perspectivas de Hal Foster (2014[1996]). No texto o Artista enquanto etnógrafo, o autor traz abordagens por trabalhos que se propõem a empreender investigações cuidadosas entre a arte e o campo da etnografia. O que Foster (2014FOSTER, Hal. O Artista como Etnógrafo. In: FOSTER, Hal. O Retorno do Real. São Paulo: Cosac Naify, 2014. P. 159-186.) observa é como se dá a produção dos vínculos a certas temáticas, criando, assim, possibilidades que podem ser construídas a partir das incursões etnográficas do artista. O que levou a pesquisa a outros aprofundamentos, tais como Viana de Paulo (2017VIANA DE PAULO, Rodolfo R. Fotografia e Performance: a etnografia enquanto material para a criação artística com a temática funk. In: SEMINÁRIO DOS ALUNOS DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL DO MUSEU NACIONAL/UFRJ, 7., 2017. Anais... Rio de Janeiro: UFRJ, 2017.; 2018VIANA DE PAULO, Rodolfo R. Bixas-pretas do funk: relatos etnográficos sobre construção da vaidade ‘pintosa’. In: ENECULT, 14., 2018, Salvador. Anais... Salvador, 2018.).
  • 5
    Pintosa é a expressão nativa utilizada para nomear aqueles que deixam explícito o fato de serem gays.
  • 6
    Embora não contemple inteiramente a pesquisa, circula na internet um dicionário informal de termos nativos LGBT, o livro Aurélia – A Dicionária da Língua Afiada, de Fred Lib e Ângelo Vip, com edição esgotada (não foi possível encontrar o ano da primeira edição). Nele há alguns verbetes situando a região do país em que alguns usos são mais correntes.
  • 7
    Indecidíveis são unidades de simulacro, falsas propriedades verbais, nominais ou semânticas que não se deixam compreender na oposição filosófica (binária) e que, no entanto, habitam-na, resistem-lhe e a desorganizam, sem jamais constituir um terceiro termo, sem jamais dar lugar a uma solução na forma da dialética especulativa (o pharmakon não é nem o remédio, nem o veneno); o suplemento não é nem um mais nem um menos; o hímen não é nem a confusão nem a distinção; [...] o encetamento não é nem a integridade de um começo, de um corte simples, nem a simples secundariedade. Nem/nem sendo ao mesmo tempo ou bem isso, ou bem aquilo” (Derrida apud Santiago et al., 1976SANTIAGO, Silviano (Org.). Glossário de Derrida. Rio de Janeiro: Ed. Livraria Francisco Alves, 1976., p. 46). Segundo a explicação de Nascimento (2004NASCIMENTO, Evando. Derrida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004., p. 26-28), os indecidíveis versam sobre traços de metáforas, desviando-se de sua origem plena, e traços de conceitos. Funcionam com certa regularidade, sendo operadores de leituras limítrofes dos discursos, sublinhando os impasses.
  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.
  • Editora-responsável: Celina Nunes de Alcântara

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    31 Jul 2018
  • Aceito
    26 Mar 2019
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