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Radicalismo de direita: chagas da democracia incompleta

Adorno, Theodor W. (2019).

Aspekte des neuen Rechts-radikalismus.

Com prefácio de Volker Weiß.

Berlin: Suhrkamp, 87p.

Nas resenhas surgidas em jornais alemães a respeito de Aspekte des neuen Rechts-radikalismus [Aspectos do novo radicalismo de direita] é recorrente o argumento de que o texto, concebido como pronunciamento há mais de 50 anos, poderia ser lido como um comentário a processos atuais de fortalecimento de movimentos e regimes autoritários mundo afora. Um leitor de Theodor W. Adorno, porém, não deveria se surpreender com a longevidade do documento, pois um dos eixos centrais da reflexão do pensador se refere precisamente às condições objetivas para o movimento fascista, que seguem vigentes, com destaque para a tendência de concentração do capital.

Esse aspecto é o ponto de partida do livro, publicado como texto escrito apenas em 2019, a partir da gravação de palestra de Adorno a convite da Associação de Estudantes Socialistas da Áustria, ocorrida em 1967. O que se tinha no horizonte era a ascensão do Partido Nacional Democrático da Alemanha (NPD, na sigla em alemão), de extrema-direita. Adorno argumenta que a tendência de concentração do capital provocava desvalorização de estratos, cuja consciência de classe subjetiva pertencia à burguesia e que gostariam de manter seus privilégios. Tais grupos tendiam ao ódio ao socialismo, culpabilizando-o por sua desvalorização potencial como classe. Embora em 1967 o socialismo como movimento organizado já não tivesse lugar na Alemanha ocidental, era preciso encontrar um inimigo para depositar a culpa pela inflação, pelo desemprego e pelo medo da falta de liberdade - a questão, aqui e como um todo, não é resolvida pela lógica, pois os argumentos extremistas operam a partir de mecanismos irracionais. De todo modo, Adorno ressalva que os seguidores do fascismo não estão restritos a uma classe, mas distribuídos por toda a população.

O inimigo, o medo, a personalidade autoritária, o anti-intelectualismo, o nacionalismo são todos aspectos gerais dos movimentos radicais de direita, ontem e hoje. A força do texto adorniano está em identificar o teor social de tais movimentos tanto na dinâmica estrutural como no singular. Atualizando uma das maiores marcas de sua obra, também em Aspekte des neuen Rechts-radikalismus Adorno destrincha os nexos entre indivíduos “ofuscados e privados de subjetividade que se veem à solta como sujeitos” (Adorno, Horkheimer, 1985Adorno, Theodor W.; Horkheimer, Max. (1985). Dialética do esclarecimento. Trad. Guido de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.: 160) e os movimentos da sociedade burguesa.

Mobilizando essa constelação micro e macrológica, Adorno nos apresenta um sujeito autoritário que se ressente contra a democracia precisamente porque ela “nunca se concretizou plenamente em lugar algum, permanecendo algo formal” (p. 18). Por isso, a imagem dos movimentos fascistas é a das “chagas” ou “cicatrizes” de uma democracia.

Utilizando a psicanálise sempre como uma teoria social, Adorno indica que um dos traços desse sujeito é o medo. A “antecipação do pavor” de uma derrocada econômica atua como mecanismo psíquico muito potente entre os extremistas. Trata-se de um medo que tanto encontra algumas explicações racionais diante das possibilidades de uma crise, como, paradoxalmente, remonta a uma catástrofe desejada, uma “fantasia de declínio”. Quem não vê nenhuma possibilidade para si mesmo e, ao mesmo tempo, não deseja a mudança da sociedade em sua base, só pode desejar o declínio do todo.

Em seu texto, Adorno ressalta aspectos especificamente alemães. Por exemplo, o desejo de organização, a aversão ao solitário e a consequente supervalorização da identidade nacional. De todo modo, há abordagens mais gerais dos movimentos fascistas, cuja atualidade chega intacta aos dias de hoje - embora as aproximações devam respeitar os nexos do presente histórico para fazer justiça ao pensamento do autor. No âmbito persistente dos aspectos do fascismo, merece destaque a propaganda.

De modo geral, o “característico para esses movimentos é antes uma extraordinária perfeição dos meios, nomeadamente, em primeira linha, do meio propagandístico em sentido amplo, combinada à cegueira, mesmo a abstrusidade dos objetivos que são neles perseguidos” (p. 23). A capacidade que os movimentos fascistas possuem de combinar meios racionais com objetivos irracionais é sublinhada; a propaganda associa perfeição de técnicas e meios e nivelamento da diferença entre objetivos reais e objetivos falsos alegados. Nesses movimentos, a “propaganda se torna substância da política” (p. 24). Tudo isso soa muito atual quando observamos processos brasileiros contemporâneos e a forma como a direita radical nacional tem agido para mobilizar adeptos e eleitores, logrando empregar os meios técnicos hoje preponderantes (especialmente a internet e as redes sociais) para difundir ideias que, muitas vezes, não possuem qualquer verossimilhança possível (Cesarino, 2020Cesarino, Letícia. (2020). Como vencer uma eleição sem sair de casa. Internet & Sociedade, 1/1, p. 91-120.).

Adorno também elabora a dinâmica desses movimentos fascistas, indicando que os agrupamentos radicais de direita podem sobreviver a catástrofes e sistemas. Além disso, tais agrupamentos nem sempre são movimentos massivos; podem configurarse como “fantasmas de fantasmas”, que ganham força em momentos de crises sistêmicas. Nesse ponto, os “tipos manipuladores” entram em cena para mobilizar as massas - trata-se de tipos antropológicos que refletem de maneira estritamente técnica, friamente.

Nisso, mobiliza-se principalmente o tema do comunismo. Soa também muito atual e nacional a forma como Adorno elaborou esse tema na Alemanha de 1967. Lá (como aqui) justamente porque o comunismo não se materializa em partido algum, ele adquire certo caráter místico, abstrato que “leva a que, facilmente, quase tudo que não convém seja subsumido a esse conceito elástico [Gummibegriff ]de comunista e repelido como tal” (p. 31).

Também nos soa necessariamente familiar quando Adorno aponta o ódio aos intelectuais, aos “portadores do espírito”. Para o pensador, o ódio à intelectualidade aparece, entre outros motivos, porque os movimentos da direita radical são apenas técnicas de poder, não partem de nenhuma teoria bem formulada. Esse aspecto confere ao movimento fascista a flexibilidade que lhe permite adaptar-se às circunstâncias.

Adorno também descreve algumas formas práticas de atuação desses movimentos. A técnica mais importante para a colocação da “verdade a serviço da inverdade” consiste em isolar informações verdadeiras de seu contexto. E nessas propagandas, o que está em jogo é menos a divulgação de uma ideologia (em si, muito fraca) do que o arrebatamento das massas. “Portanto, a propaganda é predominantemente uma técnica de psicologia de massas” (p. 41). É preciso manter a audiência em “ebulição” (p. 36). Nesse passo, Adorno retoma aspectos do estudo sobre a personalidade autoritária (Adorno et. al., 2019Adorno, Theodor et al. (2019) [1950]. The authoritarian personality. London/New York: Verso.). A propaganda seria capaz, precisamente, de fazer um apelo a essas personalidades autoritárias, sem tornar consciente seu caráter autoritário - ao contrário, empurrando-o ainda mais no inconsciente. Nisso, símbolos são mobilizados com bastante efetividade.

A propaganda em si, entretanto, é muito fraca; trata-se de alguns truques pobres e frágeis que, pela repetição, adquirem seu valor propagandístico. Apela-se ao concreto, com dados que não podem ser contrariados facilmente. Inventam-se números difíceis de checar. Também há o truque de agir como se os dados apresentados fossem oficiais, numa “pedanteria pseudocientífica” (p. 45). Adorno indica a monopolização da palavra “alemão” por esses grupos - no Brasil, a monopolização dos símbolos e cores nacionais obedece a uma lógica similar.

A parte final do livro dedica-se a pensar formas de desmobilizar essas forças sociais que são próprias das sociedades capitalistas e suas democracias incompletas. E, de acordo com Adorno, apelos éticos à ideia de humanidade não servem para fazer frente aos ideais da direita radical. Para as personalidades autoritárias, a palavra remete às ideias de fraqueza e medo. Seria necessário conceber outras estratégias. Uma delas consiste em alertar sobre as consequências do movimento para os interesses dos seguidores da direita radical: sobre os danos da invasão da vida privada, os perigos de uma organização que não se identifica com a razão, da disciplina como fim em si mesmo, da fetichização do caráter militar. Além disso, esse fenômeno complexo de inegável origem social, mas de implicações psicanalíticas, exige abordagens que apelem para a clivagem presente na consciência das pessoas: elas agem racionalmente quando seus interesses estão em jogo, mesmo que professem ideologias irracionais. Também seria necessário tornar público os complexos psicológicos de sujeitos autoritários, que projetam em inimigos aquilo que, na verdade, tem origens em síndromes internas. Com relação à propaganda, é importante, conforme Adorno, nomear seus truques, descrever suas implicações e vacinar as pessoas contra eles. Por fim, o pensador recomenda operar com os meios da propaganda para combater o radicalismo de direita; não com mentiras, por certo, mas com a “força atravessadora da razão” (p. 55).

Com publicação de edição brasileira prevista pela editora Unesp, Aspekte des neuen Rechts-radikalismus aparece quase como leitura obrigatória para nós, brasileiros, que temos dificuldade de compreender o fenômeno da direita extremista que tomou corpo e governo por aqui. Obviamente, tal fenômeno não surgiu do nada, mas fomos incapazes de antecipar as tendências que se anunciavam como fantasmas de fantasmas. A tarefa urgente, porém, de destrinchar os nexos de nosso próprio radicalismo de direita cabe a nós próprios.

Nesse sentido, o último parágrafo do texto também fala diretamente a nós, que ainda contemplamos esse fenômeno como catástrofe, por conta da dificuldade de o elaborar. Se Adorno inicia o livro apontando as condições objetivas que possibilitam (ontem e hoje, lá e aqui) o surgimento de movimentos fascistas, conclui, dialeticamente, com um chamamento ao indivíduo, que não deveria resignar-se, nem se obliterar como sujeito político: “como essas coisas vão se desenvolver e a responsabilidade por isso, como seguirão, isso depende, em última instância, de nós” (p. 55).

Referências

  • Adorno, Theodor et al. (2019) [1950]. The authoritarian personality London/New York: Verso.
  • Adorno, Theodor W.; Horkheimer, Max. (1985). Dialética do esclarecimento Trad. Guido de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
  • Cesarino, Letícia. (2020). Como vencer uma eleição sem sair de casa. Internet & Sociedade, 1/1, p. 91-120.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    08 Maio 2020
  • Aceito
    21 Jul 2020
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