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O poder de denúncia do cordel no cinema: O romance do vaqueiro voador, de João Bosco Bezerra Bonfim e Manfredo Caldas

Cordel’s power of denouncing in the movies: O romance do vaqueiro voador, by João Bosco Bezerra Bonfim and Manfredo Caldas

Resumo

O filme O romance do vaqueiro voador, de Manfredo Caldas, é construído a partir do cordel homônimo de João Bosco Bezerra Bonfim - que, por sua vez, foi inspirado no documentário Brasília segundo Feldman, de Vladimir Carvalho - com a finalidade de contar, denunciar e lembrar a tragédia que foi a construção de Brasília. O artigo pretende discutir algumas questões: Por que escolher como personagem um poeta vaqueiro para perambular pelos lugares da tragédia? Por que utilizar um cordel para fazer surgir um outro filme?

Palavras-chave:
cordel; cinema; João Bosco Bezerra Bonfim; Manfredo Caldas; Vladimir Carvalho; Brasília

Abstract

The movie O romance do vaqueiro voador, by Manfredo Caldas, is built departing from the homonymous cordel by João Bosco Bezerra Bonfim - which, on its turn, was inspired by the documentary Brasília segundo Feldman, by Vladimir Carvalho - aiming to tell, denounce and remember the tragedy the building of the city was. This article aims to discuss some questions: why choose as a character a pot cowboy to wander in the places of the tragedy? Why use a cordel to give origin to another movie?

Key words:
cordel; movies; João Bosco Bezerra Bonfim; Manfredo Caldas; Vladimir Carvalho; Brasília

A estreia da literatura de cordel no cinema aconteceu exatamente no momento em que o cinema brasileiro, assim como o cinema mundial, passava por uma transformação radical: na virada dos anos 1960, quando jovens cineastas, na Europa e na América Latina, recusando o modelo americano de produção, defendiam um cinema de autor, um cinema mais fiel à identidade nacional dos países produtores. Foi assim que Glauber Rocha reivindicou um cinema de inspiração brasileira, fundado na história e cultura do país. Nesse caso, um dos elementos marcantes de sua estética foi a influência do universo de cordel em filmes como Deus e o diabo na terra do sol (1963) e Antônio das mortes (1969).

Observemos que esses dois filmes foram produzidos quando o Brasil acabara de ganhar uma nova capital, Brasília, símbolo por excelência da modernidade e igualmente símbolo da retomada brasileira das decisões sobre o destino do Brasil. Situada numa terra de ninguém, virgem de qualquer história colonial e no centro do país (não mais no litoral por onde entraram os colonizadores estrangeiros), a nova capital era um exemplo fantástico da nova potência brasileira, país do futuro... No entanto, esse mito sustentava-se sobre uma tragédia cruel, a de numerosos trabalhadores nordestinos, chamados candangos1 1 Diminutivo de kingundu: mau, ordinário, vilão. , que vieram dar suas vidas por aquela gigantesca obra.

Na época, raros fotógrafos (com exceção dos fotógrafos oficiais) se interessaram por aquele canteiro de obras. Um deles foi o americano Euge-ne Feldman, convidado em 1959 por Antonio Magalhães, um designer da equipe de Oscar Niemeyer, para conhecer o Brasil. Foi nessa ocasião que ele realizou um certo número de imagens das obras. Alguns anos mais tarde, depois da anistia, um cineasta paraibano, Vladimir Carvalho, decidiu contar a história da construção da capital com base em algumas daquelas fotografias, (assim como nas películas de 16mm cedidas por sua mulher depois de sua morte em 1975) , sob o título de Brasília segundo Feldman (Mattos, 2008MATTOS, Carlos Alberto (2008). Pedras na Lua e pelejas no Planalto, Vladimir Carvalho. São Paulo, Imprensa Oficial. p.216., p. 216). Mas a história dessa aventura cinematográfica não terminou. Nos anos 1980, quando João Bosco Bezerra Bonfim, então estudante de literatura da Universidade de Brasília, assiste ao filme Brasília segundo Feldman, de Vladimir Carvalho, fica não apenas tocado pela força das imagens, mas também, pela primeira vez no debate que se segue, ele ouve falar dos operários que caíram dos andaimes e foram enterrados no canteiro de obras. Por sua vez, uns vinte anos mais tarde, quando o poeta João Bosco Bezerra Bonfim decide retomar tal temática, optou por não fazer em forma de artigo de jornal, ou de pesquisa tradicional, mas trabalhar a emoção mais do que a razão. Ele publica então, em 2004, um cordel, O romance do vaqueiro voador, inspirado diretamente no filme de Vladimir Carvalho, cuja publicação vem a ser ilustrada pelos fotogramas desse filme e de um outro, Conterrâneos velhos da guerra (1990), que seria a sua continuação, assim que por xilogravuras assinadas por Abraão Batista.

E para fechar o círculo virtuoso, o poema foi adaptado por um cineasta da Paraíba, Manfredo Caldas, também responsável pela montagem dos filmes de Vladimir Carvalho. Em outros termos, o cineasta conhecia bem as circunstâncias trágicas da construção da capital e, sentindo a necessidade de retomar esse assunto, ele encontra finalmente no cordel de João Bosco Bezerra Bonfim a espinha dorsal do filme que ele gostaria de realizar. Tratava-se para ele de encontrar um meio de falar de uma história não escrita, até mesmo manipulada, negada, aquela dos mortos sem sepulturas, verdadeiros atos de barbárie.

Com O romance do vaqueiro voador, estamos então na presença de um duplo fenômeno: um filme, Brasília segundo Feldman, que fez surgir um cordel, Romance do vaqueiro voador, que, por sua vez, serviu de roteiro para uma adaptação livre no cinema sob o mesmo título. O que nos interessa, portanto, particularmente no caso presente, é ver como, na passagem de um meio a outro, o cordel serve como forma de denúncia de uma tragédia, a dos operários mortos na construção da capital. Assim, analisaremos o filme de Manfredo Caldas nessa perspectiva.

Um filme híbrido

Após ter evocado a gênese do filme na introdução, iremos descrever rapidamente sua estrutura. O filme de Manfredo Caldas segue fielmente a cronologia do texto original, através de uma construção clara, com dois níveis de narração: de uma parte, o texto do cordel de João Bosco Bezerra Bonfim, declamado de formas diferentes, em variadas mises en scène, sobre as quais retomaremos mais tarde, e, de outra parte, sequências documentais de dois tipos: primeiramente, imagens mostrando a chegada do ator Luiz Carlos Vasconcelos a Brasília, sua descoberta da cidade e a história oficial de Brasília nos museus e, em seguida, os depoimentos dados pelos antigos operários da construção civil. Todas as sequências dos depoimentos são entrecortadas pelas estrofes do cordel, que funcionam como contrapontos imaginários da realidade à qual as pessoas entrevistadas se referem.

No entanto, a própria construção do filme, aparentemente simples, não para de revelar, como um palimpsesto, diferentes estratos de tempo, de espaços, inclusive papéis para os personagens do filme. O maravilhoso e o real são tratados de maneira indiferenciada, mesmo do ponto de vista da linguagem, que não para de alternar ficção e documentário. A escolha do ator Luiz Carlos Vasconcelos, também paraibano, é particularmente significativa. Aliás, devido a uma semelhança gritante, este último havia interpretado o personagem de Lampião em Baile perfumado (1996), de Lirio Ferreira e Paulo Caldas. Qualquer espectador mais atento pode perceber tal semelhança, quando aparecem na tela as imagens do bando de Lampião filmadas por Benjamin Abraão (1936) e retomadas no filme de Paulo Gil Soares, Memória do cangaço (1965).

Seu papel no filme, aliás, é duplo, na medida em que está sempre a recorrer à ambivalência de sua presença. Ora ele é filmado a partir de um distanciamento brechtiano, ora no papel de vaqueiro. Uma hora, ele é apresentado como um profisional qualquer, chegando ao aeroporto e se informando sobre sua tarefa a ser cumprida: então visita a cidade e os museus, faz perguntas, conversa com o diretor, ensaia seu papel. Em outra hora, ele aparece no papel de vaqueiro, perambulando pela cidade, às vezes declamando o cordel e passa-se de uma representação a outra repetidamente. O mesmo acontece no plano das imagens, que, ao alternar fotografias da cidade no passado e na atualidade, cria um clima de intemporalidade, ampliando o poder de denúncia do cordel. Mistura de poesia com documentário, de realidade com ficção, o filme ganha também em intensidade com os depoimentos dos antigos operários.

Um cordel híbrido

Publicado de forma livre e não como folheto, o texto do cordel é encenado de forma “espetacular” pelo grafista Wagner Alves: o formato pouco usual do livro (40x30 cm e 27x20 cm na reedição), ilustrado nas páginas à esquerda, contrapondo-se ao texto à direita, com xilogravuras de Abraão Batista, dialoga com fotogramas dos filmes de Vladimir Carvalho, assim como fotografias deste último, de seu irmão Walter Carvalho, de Kim-Ir-Sen e de Juvenal Perreira. O refrão lancinante, evocando a queda, aparece duas vezes nas ilustrações: primeiramente, em linha oblíqua cortando a página e apoiando um fotograma de Brasília segundo Feldman e passando por cima de uma xilogravura da Praça dos Três Poderes, depois é repetido oitenta vezes em tela de fundo em uma xilogravura mostrando um operário em queda livre em direção a uma fotografia do canteiro de obras.

Uma outra estrofe, evocando a recusa de enfrentar um camarada, é retomada com caracteres de tamanho muito grande e na abertura com o fotograma de um candango: “Eu sou homem, tu também,/cada qual tem seu valor,/não me tente, eu não lhe tento./Cada qual com sua dor,/não tem por que aumentar/a sina do sofredor”. A lembrança e nostalgia do passado de vaqueiro são evocadas em um texto de aboio, publicado ao lado, com cinco estrofes, das quais três são repetições do refrão, logo após ter sido evocado o massacre de centenas de trabalhadores que haviam ousado se revoltar contra a má alimentação e desobedecer à polícia especial, a GEB. O que oficialmente foi desmentido acerca do massacre é colocado na boca dos responsáveis e da GEB: “Esses peão/Estão querendo é ser despedido/Deram prá ver alma penada/Vê se isso tem sentido”.

Enfim, a ilustração que acompanha as últimas cinco estrofes é uma fotografia em preto e branco dos Arquivos Públicos do Distrito Federal mostrando o presidente Juscelino Kubitschek no dia da inauguração, cobrindo os olhos com a mão direita. O livro termina com a reprise da última estrofe do aboio: “A tristeza é só triste/Quando foge a esperança/ Por isso vivo na morte/Com mi’a terra na lembrança/Ê boi!”, dominada por uma xilogravura do operário em queda livre, confrontando com o vaqueiro voador na construção. Constata-se que o ritmo das ilustrações já prefigura o do filme, nesse movimento conjunto de denúncia e denegação. O cordel, como já mencionamos, tinha sido escrito por João Bosco Bezerra Bonfim sob o impacto do filme. Ele desejava homenagear os trabalhadores nordestinos, utilizando sua linguagem, seu modo de expressão e seu imaginário cultural. Ele não pretendia voltar aos fatos tais quais (fatos que continuam sendo negados por alguns), para não cair na dicotomia limitativa da mentira e da verdade. “Queria lidar com o mundo do imaginário, para falar desse tema tão tocante. E a ‘fôrma’ do cordel me serviu, também, para homenagear meus conterrâneos nordestinos, pois essa é uma modalidade de contar histórias muito cara a todos nós.

E, principalmente, porque negocia as coisas do mundo dito real com as fantasias”2 2 Sylvie Debs, entrevista inédita com o autor (15/3/10). .

Como a maior parte dos trabalhadores nordestinos da construção civil de Brasília era de camponeses e de vaqueiros, ou seja, pessoas de origem rural sem conhecimento dos trabalhos da cidade, como o da construção civil, e como a personagem do boi ou do vaqueiro é um clássico do imaginário do cordel, João Bosco Bezerra Bonfim decidiu encarnar o operário na forma simbólica de um vaqueiro: “Até que da roça veio/para a lida do peão/pois domar boi ou martelo/exige os mesmos calos na mão”. (Bonfim, 2004BONFIM, João Bosco Bezerra (2004). Romance do vaqueiro voador. Brasília, LGE., p. 38).

Sempre na linha do cordel clássico e pensando em títulos famosos, como O romance do pavão misterioso, de José Camelo de Melo Rezende (1885-1964), o poeta encontra neles inspiração para seu poema. E tendo um dia escutado falar em boi voador, história que foi retomada por Chico Buarque em “Calabar”, ele o transforma em vaqueiro voador.

O que conta o cordel de fato? Trata-se fundamentalmente de uma especulação acerca da identidade do fantasma de um vaqueiro, misterioso indivíduo que caiu de uma construção e de quem se escuta a lamentação nas noites de lua em Brasília: “Quem em noite de lua/Da Esplanada dos Ministérios/Se aproxima há de ouvir u’a /Voz que ecoa, entre blocos /E um aboio assim sentido/De onde vem? Mistério!” (Id. ibid.).

Curiosamente entre os nomes evocados, aparece o de Oraci, palíndromo de Ícaro. O cordel também nos incita a descobrir esse mistério e a seguir a narração: “Que segredo esconde/Essa aparição medonha/Será milagre de Deus,/Será alguma peçonha?/Se quer saber então ouça,/Não faça cerimônia” (Id. ibid).

Justamente, como não se trata de uma demonstração lógica, nem de uma acusação argumentada, como seria em um artigo de jornal, o cordel convida o leitor-ouvinte, e em nosso caso o espectador, a entrar no imaginário nordestino, nas suas tradições orais, em suas histórias de fantasmas, bois, vaqueiros, sabendo que são exatamente essas as origens dos operários. Com o intuito de homenagear os nordestinos caídos, mortos e enterrados nos destroços da construção, ele opta pela emoção, pela imaginação e tenta descobrir quem foi esse vaqueiro, que na realidade é a síntese de todos os trabalhadores mortos e alegoria dos emigrantes nordestinos. Baseado na incerteza, o texto nos indaga: será que o vaqueiro realmente voou ou terá caído? Ele delirava no momento que saltou ou teria se suicidado? Teria sido cangaceiro ou não? Teria sido casado ou não? Pouco importa a resposta: positiva ou negativa, ou até mesmo talvez. O cordel sugere mais do que conta, e o objetivo mais importante, nesse momento, é reconstituir a memória daqueles mortos, a memória daquela dor. “O cordel tem esse papel de catalisador das emoções em torno da morte do vaqueiro”, confessa João Bosco Bezerra Bonfim.

As modalidades de inserção do cordel no filme

Entre todas as ocorrências do cordel no filme, iremos reter duas prioritariamente: as sequências de abertura e de encerramento do filme, assim como a repetição do refrão, dez vezes, como o tema de uma sinfonia. O texto do cordel que serviu de fio condutor para o roteiro do filme está presente sob diversas formas: voz em off do ator que interpreta o vaqueiro, o ator ensaiando o texto, o personagem do vaqueiro declamando, um antigo operário lendo o texto, um violeiro cantando uma estrofe. Essa diversidade de mise en scène utilizada ilustra o fato de que o texto, nascido da memória coletiva, retorna a essa memória coletiva, e que os “heróis” anônimos do cordel se reapropriam da história. A prova é que um antigo operário em seu depoimento faz tal associação: “As pessoas despencavam dos prédios, dos andaimes... [...] Quase todos os dias, alguém morria na construção de Brasília. Era a história do Vaqueiro Voador”3 3 Antigo trabalhador entrevistado no filme. .

A sequência de abertura do filme começa com uma interrogação em voz off: “Quem em noite de lua/Da Esplanada dos Ministérios/Se aproxima há de ouvir u’a/Voz que ecoa, entre blocos/E um aboio assim sentido/ De onde vem? Mistério!”/[…] Que segredo esconde/Essa aparição medonha” e termina com um tradicional convite para escutar a narração: “Se quer saber então ouça,/Não faça cerimônia”4 4 Idem. . A atenção do leitor/ ouvinte/espectador é voltada para o segredo do fantasma do vaqueiro que supostamente será descoberto durante o filme. Mas isso não acontece, pois tanto o texto quanto o filme terminam com a mesma interrogação: “de onde vem?”. E a mesma conclusão: “Mistério!”. Isso é completamente compreensível, na medida em que o objetivo não é de trazer respostas concretas (aliás, seria difícil fornecer os nomes dos operários mortos), mas lembrar a memória daquela tragédia, assim como a emoção que ela suscita. As palavras constituem o primeiro caminho, reforçadas pela declamação, a música dramática e as imagens de arquivos.

De fato, a primeira declamação é precedida de um plano de sobrevoo de Brasília como se o espectador fosse o vaqueiro voador. Em seguida imagens de arquivos do canteiro de obras e dos operários desfilam sob nossos olhos enquanto são exibidos os créditos. Uma música propositalmente solene e dramática destaca as imagens, em seguida se inicia um aboio.

Finalmente, em um plano de conjunto fixo mostrando a Esplanada dos Ministérios, vê-se do fundo avançar um vaqueiro enquanto em voz off escuta-se a interrogação. A injunção de escutar é proferida em um fundo preto. O objetivo dessa mise en scène é evidentemente contextualizar o que vai se desenvolver: contexto espacial, contexto histórico. A ligação com o Nordeste se faz através de um certo número de símbolos: o aboio, canto típico dos vaqueiros, e a sua vestimenta, repetida várias vezes no filme (peitoral, perneira, gibão, chapéu com barbicacho).

No entanto, há uma diferença fundamental entre os dois suportes: o cordel e o filme. No segundo, entre a primeira ocorrência da interrogação e a última, o espectador assiste aos depoimentos dos antigos operários, vê as fotos de arquivos em preto e branco, assim como os trechos do filme, de maneira que os versos declamados, na sequência de encerramento, são ricos de uma ressonância nova para quem os escuta. Além disso, na sequência final, a última estrofe não está mais pronunciada em voz off, mas declamada pelo personagem do vaqueiro, que olha de frente para a câmera, em um zoom que o faz se aproximar do espectador na medida em que, ao se dirigir diretamente ao espectador, o toma também como uma testemunha do que foi revelado durante o filme. É importante lembrar que essa última estrofe é precedida pela declamação de outras quatro estrofes que são de alguma maneira a conclusão do cordel: aquela aparição que no início assustava, agora tranquiliza, consola, deixa de ser temida para ser esperada. Não houve sepultamento, assim o vaqueiro continua errando e voando sobre a esplanada do poder.

O refrão do cordel desempenha um papel fundamental na mise en scène do filme, tanto pelo conteúdo quanto pela própria encenação. Metáfora da morte do operário que caiu na construção, ele constitui a essência do cordel e do filme, ou seja, o objeto de denúncia. Repetido não menos de dez vezes, ele intervém como o tema de uma sinfonia, tocado em cada reprise em um tom diferente: “Ei-lo caído de bruços/Para o campo paramentado/Peitoral, perneira, gibão/Chapéu passado o barbicacho/ Voou no rabo da rês/Mas só chão havia embaixo”5 5 Antigo trabalhador entrevistado no filme. .

Esses versos de João Bosco Bezerra Bonfim nos fazem aludir aos versos do poema Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto (1955MELO NETO, João Cabral (1955). Morte e vida severina. http://www.culturabrasil.org/joaocabraldemelonetoo.htm.
http://www.culturabrasil.org/joaocabrald...
)6 6 “Nenhum dos mortos daqui/Vem vestido de caixão/Portanto eles não se enterram/São derramados no chão” , em que ele constrói uma alegoria do retirante cujo protagonista se chama Severino. No filme, esses versos de João Bosco são pronunciados por diferentes vozes, como o retorno do texto à memória coletiva da qual foi originado. Todos os heróis anônimos do cordel se reapropriam da história. A reprise dos versos com regularidade dá ritmo ao filme, como um estribilho obstinado que toma conta da cidade. Ensaiado pelo ator no táxi, enquanto são exibidas imagens atuais da cidade, depois decifrado por um antigo operário no cabeleireiro onde eles costumam se encontrar, o texto deve ser primeiramente assimilado antes de se desenvolver. Em seguida, ele é encenado: a voz em off do vaqueiro com a câmera sobrevoando a Esplanada dos Ministérios, e depois “conferido” pelo ator que recita a estrofe olhando uma fotografia em preto e branco de um prédio na época da construção, como para se certificar da materialidade do texto. Depois do depoimento cru de um antigo operário explicando que se podia morrer após algumas horas de trabalho somente na obra, a estrofe é declamada em off com imagens de arquivos do canteiro de obras em preto e branco, e novamente em off quando o vaqueiro passeia na Brasília de hoje, como se tentasse materializar esse dado.

Finalmente, na visita ao Instituto de História e de Geografia do Distrito Federal, quando o diretor acaba de descrever uma imagem idílica da construção da cidade e da missão quase sagrada dos trabalhadores, a estrofe é retomada em off, enquanto a câmera varre uma mesa coberta de documentos de arquivos entre os quais é inserido um exemplar do livro O romance do vaqueiro voador que desmente violentamente o mito da construção! Ainda com imagens, agora em preto e branco, da Esplanada dos Ministérios, a estrofe é declamada em off e em seguida pelo vaqueiro diante das câmeras, em um plano americano de cima da torre de televisão. Cada ocorrência conjuga não somente uma voz, um declamador e imagens diferentes, mas também um ritmo, uma tonalidade, uma entonação, indo do simples deciframento à memorização, à interiorização, à revolta, à denúncia, aos depoimentos de testemunhas. Esse crescendo representa o termômetro da indignação que vai subindo ao longo do filme diante das contestações frias dos representantes oficiais, justapondo-se aos depoimentos incisivos dos ex-candangos.

Conclusão

A análise detalhada da transposição do cordel para o filme nos permite em primeiro lugar ver o quanto o primeiro foi enriquecido pela mudança de suporte, sem que se perdesse seu próprio valor, seu poder de sugestão e de denúncia. Tal enriquecimento aconteceu tanto no plano da imagem quanto no do som. Aliás, o cordel foi beneficiado pelas diferentes camadas da memória justapostas na hora da rodagem do filme: fotografias de época em preto e branco, sequências de filmes como Vidas secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos, Brasília segundo Feldman (1979), de Vladimir Carvalho, Memórias do cangaço (1965), de Paulo Gil Soares, Brasil, Brasília e os Brasileiros, de Mauricio Capovilla (2002), as cenas do ator e(ou) do personagem flanando em Brasília, os depoimentos dos antigos trabalhadores, as xilogravuras animadas de Ciro Fernandes. No plano do som, uma música dramática criada por Marcus Vinicius, o som direto dos ambientes filmados, o ruído acrescentado aos trechos de filmes utilizados, a própria fala das testemunhas dão vida ao texto.

Esse enriquecimento atinge o ápice na junção do cordel com os depoimentos: na medida em que as estrofes do cordel são distribuídas no interior dos depoimentos, de alguma forma são contaminadas pelo conteúdo deles, permitindo ao filme se desenvolver em dois níveis de narração, a dos fatos e a da emoção. De fato, através do conteúdo informativo, os depoimentos confirmam os fatos e conferem ao filme o “efeito de real”. Ao mesmo tempo, por seu conteúdo expressivo, os depoimentos contribuem para liberar toda emoção de dor e sofrimento ligada a essa memória. É sem dúvida a combinação entre esses dois modos (referencial e expressivo) que confere ao cordel filmado seu maior poder de denúncia da tragédia, como assinala João Bosco Bezerra Bonfim: “Então, acho que o cordel tem esse papel de catalisador das emoções em torno da morte do vaqueiro. Com a seguinte diferença: a emoção não pode ser negada. Ela só pode ser compartilhada, sentida. Ao passo que o depoimento pode ser negado, tipo assim: Fulano mente, ao dizer que houve um massacre, como ocorre frequentemente quando esse tema vem à baila. Mas quando a emoção do poema se junta com aqueles depoimentos carregados de emoção e àquelas imagens documentais de cadáveres, os dois acabam cumprindo o papel de uma denúncia”7 7 Sylvie Debs, Entrevista inédita com o autor (15/03/10). .

Referências bibliográficas

  • BONFIM, João Bosco Bezerra (2004). Romance do vaqueiro voador. Brasília, LGE.
  • DEBS, Sylvie (2005). “Cordel e cinema”. In: Anthologie du cinéma brésilien des anneés 60 aux anneés 80: Glauber Rocha et Nelson Rodrigues. Bobigny. p. 10005.
  • MATTOS, Carlos Alberto (2008). Pedras na Lua e pelejas no Planalto, Vladimir Carvalho. São Paulo, Imprensa Oficial. p.216.
  • MELO NETO, João Cabral (1955). Morte e vida severina. http://www.culturabrasil.org/joaocabraldemelonetoo.htm
    » http://www.culturabrasil.org/joaocabraldemelonetoo.htm
  • ROCHA, Glauber (1981). “Uma estética da violência”. In: Revolução do cinema novo. Rio de Janeiro. Alhambra/Embrafilme. p.28-33
  • 1
    Diminutivo de kingundu: mau, ordinário, vilão.
  • 2
    Sylvie Debs, entrevista inédita com o autor (15/3/10).
  • 3
    Antigo trabalhador entrevistado no filme.
  • 4
    Idem.
  • 5
    Antigo trabalhador entrevistado no filme.
  • 6
    “Nenhum dos mortos daqui/Vem vestido de caixão/Portanto eles não se enterram/São derramados no chão”
  • 7
    Sylvie Debs, Entrevista inédita com o autor (15/03/10).
  • 8
    Traduzido do francês por Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Jun 2010

Histórico

  • Recebido
    Abr 2010
  • Aceito
    Maio 2010
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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