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Gênero em desafio: das trobairitz provençais às repentistas nordestinas

Gender in mach: from the provençal trobairitz to Northeast Brazilian repentistas

Resumo

Este artigo trata das poéticas de tradição oral cantadas por mulheres na Idade Média e no atual Nordeste brasileiro. Busca-se, para tanto, identificar o diálogo entre os desafios de mulheres repentistas e as canções medievais dialogadas - as tensons das trobairitz provençais e os versos satíricos das poetisas do Al-Andalus. A aproximação se dá não somente no plano formal, mas também no temático, em especial no debate gendrado dessa produção feminina.

Palavras-chave:
mulheres repentistas; trobairitz; tenson; desafio

Abstract

This article spaeks of the poetics of the oral tradition sung by women during the Middle Ages and in nowadays Northeast Brazil. Thus, we try to identify the dialogue between the matches of women repentistas and the dialogued medieval songs - the tensons of the provençal trobairitz and the satirical verses of the women poets from the Al-andalus. The proximity is due not only in the formal level, but also in the thematic, specially in the gendered debate over these female production.

Key words:
women improvisators; trobairitz; tenson; match

Este trabalho insere-se em uma pesquisa iniciada no Grupo Interdisciplinar de Estudos Medievais, coordenado por mim desde 2007, na Universidade Federal da Paraíba. Um dos objetivos do grupo consiste em estudar obras da literatura medieval de autoria feminina e fazer a tradução para o português de alguns textos. Da produção feminina medieval, selecionamos, entre outros textos, o corpus de cantigas escritas por trovadoras, originárias do sul da França, as trobairitz, figuras que até bem pouco tempo estavam ausentes das antologias da poesia trovadoresca e da história literária. Nas últimas décadas do século XX, com o impulso dado pelos movimentos feministas dos anos 1960 e 1970, vê-se emergir uma crescente inquietação em relação a tal insignificância da autoria feminina nas edições de manuscritos medievais, consequentemente nos objetos de pesquisas de estudiosos da arte trovadoresca, ao menos com uma perspectiva diferente. É importante ressaltar que alguns medievalistas já haviam se referido às trobairitz e sua obra, mas em uma perspectiva muitas vezes depreciadora, como observado no julgamento do grande especialista dos trovadores Alfred Jeanroy:

A maior parte das trobairitz praticarou apenas gêneros inferiores, em que era exigido um esforço medíocre (tenson, partimen, cobla). Apenas cinco lançaram-se na cansó; e três delas deixaram apenas um pequeno número de versos, insignificantes tanto pela forma quanto pelo conteúdo1 1 “La plupart des [trobairitz] ne se sont exercées qu’à des genres inférieurs, n’exigeant qu’un médiocre effort (tenson, partimen, cobla). Cinq seulement se sont haussées jusqu’à la chanson; enconre trois d’entre elles n’ont laissé qu’un petit nombre de vers, insignifiants par leurs forme comme par leur contenu...“ (apud Pierre Bec, 1995, p. 21).

Infelizmente, essa tradição androcêntrica não é um caso restrito aos estudos medievais. Qualquer leitor mais atento consegue observar, mesmo na atualidade, o domínio masculino no que se refere à autoria literária. Aqui no Brasil, até bem pouco tempo atrás as vozes de cantadoras e cordelistas eram ausentes das antologias de literatura popular em verso. Podemos falar de tais limites não somente nos registros escritos, mas também no fonográfico e no próprio espaço da performance dessas poéticas, como nos relatam o depoimento de duas repentistas, Minervina e Maria da Soledade2 2 Depoimentos de Minervina e Maria da Soledade respectivamente. Cf.: http://www.studiorural.com/?noticia=1520. , em entrevista ao programa radiofônico Domingo Rural, em dezembro de 2009:

Tem algumas mulheres cantando, não são muitas; é um grupo restrito de mulheres, mas a gente está se infiltrando bem no mercado, os próprios cantadores estão reconhecendo, estão abrindo mais espaços, estão aceitando mais, no princípio não era fácil, viu, Tavares, mas agora graças a Deus os colegas estão aceitando e a sociedade [...].

É muito importante que a gente seja convidada, todas as mulheres sejam vistas, não somente repentistas, mas também coquistas, cirandeiras, essas mulheres artistas que estão lá no final das suas terras, dos seus sítios abandonadas sem incentivo e [que] o Ministério do Turismo, Ministério da Cultura estejam mais em benefício da gente, abram mais espaço, porque a gente vê aí em todo o Nordeste, melhor dizendo, em todo o Brasil, que a cultura tem se espalhado bastante mas para os homens, os homens têm um festival toda semana, têm encontros, têm tudo e nós mulheres não, ficamos esquecidas, é uma raridade uma dupla ser agraciada.

É, portanto, notório o esforço emergente nas últimas décadas do século XX de alguns estudos para dar visibilidade à voz feminina na historiografia da literatura popular, como testemunham as dissertações de mestrado: Uma voz feminina no mundo do Folheto, de Maristela Mendonça (1991MENDONÇA, Maristela (1991). Uma voz feminina no mundo do folheto. Brasília: Thesaurus.); Romaria dos versos: mulheres autoras na ressignificação do cordel, de Francisca Pereira dos Santos (2002SANTOS, Francisca Pereira dos (2002). Romaria dos versos: mulheres autoras na ressignificação do cordel. Dissertação. Ceará, Universidade Federal do Ceará.); Mulheres de repente: vozes femininas no repente nordestino, de Laércio Queiroz de Souza (2003SOUZA, Laércio Queiroz de (2003). Mulheres de repente: vozes femininas no repente nordestino. Dessertação. Pernambuco, Universidade Federal de Pernambuco.); e as teses de doutorado defendidas em 2009: Novas cartografias no cordel e na cantoria: desterritorialização de gênero nas poéticas das vozes, de Francisca dos Santos, e A poética do improviso: prática e habilidade no repente nordestino, de João Miguel Manzolillo Sautchuk.

Mesmo considerando a poesia popular do Nordeste na sua multiplicidade de culturas que constitui as raízes do nosso país, é inegável a influência da literatura medieval como elemento estruturador das modalidades poéticas recriadas no contexto nordestino, tanto a literatura de cordel quanto a poesia improvisada dos cantadores: o desafio, a peleja, o repente. Segundo Ariano Suassuna,

a cantoria, ou desafio, é a forma usada para a poesia improvisada. Dois cantadores, de viola em punho, às vezes durante toda uma noite, improvisam à maneira das tensons provençais. O que existe de melhor nesses desafios é o tom jocoso, satírico (Bec, 1995BEC, Pierre (1995). Chants d’amour des femmes-troubadours. Paris: Stock.).

Pretendemos, pois, identificar o diálogo existente, enquanto memória coletiva, entre as cantorias nordestinas e as canções medievais das trobairitz provençais e as poetisas do Al-Andalus.

A tenson das trobairitz

Dos gêneros encontrados nas poucas edições de cantigas de trobairitz, identificamos a tenson, modalidade cultivada desde os primeiros troubadours, que consiste em um debate poético entre dois interlocutores, no qual cada um defende em estrofes alternadas sua opinião sobre um tema estabelecido. Desse gênero, doza nomes de trobairitz aparecem nos manuscritos como autoras ou coautoras: N’Alaisina Iselda, Na Caraenz, Almuc de Castelnou, Iseult de Capion, Na Felipa, Guilheima de Rosers, Na Lombarda, Maria de Ventadorn, Isabela e Domna H. De acordo com o enunciador, a tenson pode ser classificada como:

  • tenson de mulher x mulher (3 cantigas);

  • tenson mista homem x mulher (7 ou 8 cantigas), das quais, tanto as trobairitz quanto os troubadours têm a autoria referenciada nas biografias dos trovadores, chamadas “vidas”.

  • tensons fictícias, em que apenas o interlocutor masculino é identificado e a dama é anônima.

O tema mais debatido nas canções trovadorescas é de ordem amorosa. O tratado de poética provençal anônimo do século XIII, La doctrina de compondre dictats3 3 Disponível em catalão no site: http://www.aulamariustorres.org/materials/biblioteca/preceptives. , tinha como regra primeira: falar de amor, com mesura, pudor, banindo qualquer vocabulário grosseiro (vilanal). Porém, nas composições escritas por trobairitz, identificamos um tom mais direto, provocador, que se distancia do código da “Fin’Amor”, no qual a mesura era uma virtude recomendada ao trovador tanto como regra de conduta quanto como forma de expressão da lírica trovadoresca.

Seja nas cansós, seja nas tenson, as trobairitz utilizam o código do amor cortês, adotando um estilo mais livre, com maior grau de subjetividade em relação aos poemas de seus colegas troubadours. Segundo alguns pesquisadores, como Pierre Bec, Meg Bogin, John Baldwin, Beretta Spampinato, sobre a produção poética dessas mulheres, tais diferenças e a essência mesma das duas poesias (de autoria masculina e de autoria feminina) se justificam na própria motivação de suas escritas. Enquanto os troubadours encontravam no fazer poético uma maneira de ascensão social, uma motivação de ordem profissional, as trobairitz encontravam nessa atividade um meio de expressão, de se tornarem visíveis, portanto razões pessoais.

O código sociopoético trovadoresco é utilizado pelas mulheres trovadoras de maneira invertida na representação da situação erótica habitual, na medida em que são as poetisas que assumem o papel ativo do prejador, ou seja, que rogam o amor do seu amante (cavalier ou amic) escolhido por suas qualidades (proeza). Além da inversão “gendrada” de papéis, a doutrina que rege a lírica feminina são extraídas de sua própria poesia, como testemunham os versos da poetisa Na Castelosa (Bec, 1995BEC, Pierre (1995). Chants d’amour des femmes-troubadours. Paris: Stock., p. 82): “Quepòis dòmna s´avé/D´amar, prejar deu be/Cavalièr, s´em lui vê/Proez´e vassalatge” (Pois, quando uma dama decide amar, é ela quem deve pedir o amor do cavaleiro, se ela vê nele proeza e qualidades cavalheirescas).

A poesia trovadoresca escrita no feminino permite uma linguagem mais direta, mais ousada, com uma carga de sensualidade mais marcante, como observamos na estrofe a seguir da trobairitz Condessa de Dia (Ibid, p. 105):

Bels amics, avinenz e bos, Belo amigo, cortês, charmoso,
Quora´us tnerai em mon poder Quando em meu poder vos terei
Et que jagués ab vos um ser, E junto a vós me deitarei
Et qu´us dês um bais amoròs? Para dar-vos beijo amoroso?
Sapchatz, gran talan n´auria Em meus braços, como almejo
Que´us tengués en luòc del marit Ter-vos em lugar do marido!
Ab çò que m´aguessetz plevit Que vós cumprais o prometido:
De far tot co qu´eu volria“ Será tudo ao meu desejo!

Entre as tensons provençais, encontra-se um corpus de canções obscenas, designada pelo especialista Patrice Uhl (2008UHL, Patrice (2008) “La tenso entre Montan et une dame (P-C 306.2): petit dialogue obscène entre amics fins“. In: Expressions. Université de la Réunion. n. 31. p. 67-86.) de “contratextos”, na medida em que se revela a antidoxa cortês. “Tal corpus, durante muito tempo ignorado do público devido à censura intelectual, foi desenterrado pela onda de renovação dos estudos medievais nos anos 1970-1980. Na França, Réné Nelli (Nelli, 1977NELLI, Réné (1977). L’érotique des troubadours. Paris: Privat.) e Pierre Bec (Bec, 1984______ (1984). Burlesque et obscénité chez les troubadours. Le contretexteau Moyen Âge. Paris: Stock.) contribuíram ativamente ao redescobrimento dessa parte maldita do trobar.”4 4 Ce corpus longtemps ignoré du public du fait de la censure savante a refait surface à la faveur du renouvellement des études médiévales dans les années 1970-1980. En France, René Nelli (Nelli, 1977) et Pierre Bec (Bec, 1984) ont activement contribué à la redécouverte de cette ‘part maudite’ du trobar.” Uhl, Patrice. “La Tenson entre Montan et une dame (P-C 306. 2): petit dialogue obscène entre amics fins. In: Expressions, Université de la Réunion, n.31, 2008. p. 67-85. Cf: www.reunion.iufm.fr/Recherche/Expressions/31/Uhl.pdf As composições de teor mais ousado são atribuídas, quase unanimemente pelos medievalistas, a uma criação exclusivamente masculina, mesmo quando o eulírico é feminino, como no caso da tenson “Montan e uma dama”. Transcrevo a seguir a primeira estrofe dessa tenson, iniciada pela dama, e que revela bem o teor satírico de alusão sexual explícita:

Eu veing vas vos, Seingner, fauda levada, Venho a vós, Senhor, saia levantada,
c’auzit ai dir c’avetz nom En Montan, Pois falam que vos chamais Montador.
c’anc de fotre non fui asassonada, Como de foder, nunca estou saciada,
et ai tengut dos anz un capellan, Em dois anos, tive um monsenhor,
e sos clergues e tota sa masnada; Seus sacerdotes e toda a cambada!
et ai gros cul espes e trameian Tenho um bumbum grande e bemtentador
e maior con que d’autra femna nada5 5 Tradução literal : “Venho a vós, Senhor, saia levantada,/Pois ouvi dizer que sois chamado de Seu Montador,/Como de foder, não estou nunca saciada de foder,/Durante dois anos, tive um padre da capela, /Seus sacerdotes e toda sua cambada,/Tenho um bumbum grande e rechonchudo que vibra,/E a vagina maior do que a de qualquer outra mulher”. . E no mundo boceta maior não há.

Apenas a pesquisadora Angélica Rieger (apudUhl, 2008UHL, Patrice (2008) “La tenso entre Montan et une dame (P-C 306.2): petit dialogue obscène entre amics fins“. In: Expressions. Université de la Réunion. n. 31. p. 67-86.) inclui entre poemas de trobairitz tal tenson, alegando que:

considerando a execução oral e musical, do ponto de vista da performance, - que tem relevante papel nessa composição -, a introdução de uma voz feminina só tem sentido se tais versos forem declamados por uma mulher. Desse modo, não é inconcebível que uma mulher também tenha sido corresponsável pela composição.6 6 “[...] dans le cadre d’une exécution orale et musicale - elle a certainement joué un rôle important dans cette pièce - l’introduction d’une voix féminine dans ce texte n’a de sens que si, du point de vue de la ‘performance’, cette voix est réellement interprétée par une femme. Mais si c’est une femme qui récite de tels vers, il n’est plus inconcevable qu’elle soit aussi co-responsable de la composition.”

Acerca da grande resistência em se considerar de autoria feminina composições de caráter provocador, com alusões sexuais diretas, o pesquisador Patrice Uhl argumenta que:

Não é medieval a idéia de que as mulheres não empregariam uma linguagem obscena ou escatológica em poesia. É o produto de uma representação da mulher tipicamente burguesa; uma imagem clichê da “fragilidade” e “delicadeza” femininas, convergindo com o pudor e o recato que “por natureza” são característicos das damas.

Uma imagem anacrônica conforme as normas da sociedade, da moral e da religião da burguesia bem pensante do século XIX! Quanto à obscenidade, inclusive aquela enunciada pelas mulheres, tudo indica que nas cortes medievais, occitânicas ou não, era tão cultivada quanto no meio popular.7 7 “L’idée que des femmes ne sauraient employer un langage obscène ou scatologique en poésie n’est pas une idée médiévale. C’est le produit d’une représentation de la femme typiquement bourgeoise; une image clichée de la ‘fragilité ‘ et de la ‘délicatesse’ féminines, allant de pair avec la pudeur et la retenue qui ‘par nature ‘ seraient aux dames. Une image anachronique conforme aux normes sociétales, morales et religieuses de la bourgeoisie bien pensante du XIXe siècle! Quant à l’obscénité, y compris énoncée par des femmes, tout indique que les cours médiévales, qu’elles fussent occitanes ou non, en étaient aussi friandes que le petit peuple.”

A sátira das poetisas de Al-Andalus

De fato, mesmo antes da eclosão da poesia trovadoresca, há registros de reuniões de poetas e nobres nas terras do Al-Andalus, com participação de poetisas, em que se escutavam poemas satíricos e muitos com teor de “safadezas”. A poesia al-andalusa desempenhava também uma função de diversão para a sociedade. Entre os letrados, era comum a performance de poemas dialogados, em que eram trocados insultos ou um poeta completava o verso que um outro havia iniciado. Segundo Teresa Garulo (1986GARULO, Teresa (1986). Diwan de las poetisas de Al-Andalus. Madrid: Poesía Hiperión., p. 49), “esse tipo de poesia está muito ligado à improvisação que tanto interesse despertou entre os autores árabes, que discorreram com afinco numerosíssimos poemas ditos improvisados. Mas essa modalidade na composição afeta a todos os gêneros poéticos e improvisam-se tanto panegíricos como poemas descritivos e sátiras”.

Na antologia crítica de poetisas al-andalusas, Teresa Garulo reuniu poemas de cerca de quarenta poetisas arábico-espanholas entre os séculos VIII e XIV, identificando inclusive as circunstâncias em que foram produzidos, em especial, os poemas de improviso. Nazh~um Bint AlQalã’i é uma das poetisas satíricas que mais deixou poemas dialogados com outros poetas. As fontes árabes a chamavam de poetisa desavergonhada (Garulo, 1986GARULO, Teresa (1986). Diwan de las poetisas de Al-Andalus. Madrid: Poesía Hiperión., p. 111), salientando seu espírito engenhoso e ágil para a réplica. Há vários registros de suas réplicas, em especial com um poeta cego de Almodóvar. Em uma das performances, descrita na biografia de al-Mas~umi, registra-se o duelo poético entre Nazh~um e o poeta cego; após vários insultos trocados, a poetisa responde com a seguinte réplica:

Di a esse hombre rastrero unas palabras
Que se repitan el día del juicio:
En Almodóvar te criaste,
Donde la mierda extiende su perfume,
Donde incivilizados nómadas caminan con orgullo,
Por eso te enamoras de todo lo redondo;
Naciste ciego y amas a los tuertos.
He pagado poema por poema;
Por mi vida, ahora dime quién es mejor poeta;
Si soy mujer por mi naturaleza
Mi poesía es hombre.8 8 Os poemas da antalogia Diwan de las poetisas de Al-Andalus foram traduzidos do árabe para o espanhol de modo a resgatar o sentido literal, sem preocupação com rima e métrica. Em nota, a tradutora dá indicações de ordem literária e outras informações como no trecho citado, em que ela explica o jogo de palavras com o sentido do termo Almodóvar, que em árabe significa redondo.

Interessante notar o comentário que faz nos últimos versos, mostrando-se orgulhosa de sua poesia, que considera de mesmo vigor que a produzida por homens. Tal afirmação pode ser interpretada como o desejo de ter reconhecida sua poesia com o mesmo mérito que a de seus pares poetas.

Outra poetisa de renome que usou com frequência esse tipo de poema dialogado com versos que revelam uma espécie de autopromoção é Wallãda, que viveu no século XI. Segundo fontes árabes, era uma poetisa prolífica, que não só competia com os poetas e literatos, mas superava-os. Um fato curioso, revelado na antologia de Teresa Garulo (1986GARULO, Teresa (1986). Diwan de las poetisas de Al-Andalus. Madrid: Poesía Hiperión., p. 142-3), é que Wallãda, segundo a moda entre pessoas refinadas, tinha bordado nos ombros os seguintes versos, descrito por ela própria:

Sobre o ombro direito estava escrito este verso:
Fui feita por Deus para a glória
e caminho orgulhosa pelo meu próprio caminho.
E sobre o esquerdo:
Dou poder a meu amante sobre minhas faces
e meus beijos os ofereço a quem os deseja.

Em um poema satírico (Garulo, 1986GARULO, Teresa (1986). Diwan de las poetisas de Al-Andalus. Madrid: Poesía Hiperión., p. 148) contra Ibn Zayd~um, poeta e antigo amante de Wallãda, ela o insulta, fazendo alusão a esse costume de se colocar versos sobre os ombros:

Tu apodo es el hexágono, un epíteto
que no se apartará de ti
ni siquiera después de que te deje la vida:
pederasta, puto, adúltero, cabrón, cornudo y ladrón.

O desafi o das repentistas nordestinas

A utilização de insulto e injúrias em réplicas alternadas faz parte da retórica de um gênero bem conhecido da nossa poesia popular: o desafio. Encontramos nas nossas cantorias o mesmo tom satírico e o jogo de ataques entre os poetas em suas performances. Na sua tese, A poética do improviso: prática e habilidade no repente nordestino, o pesquisador João Miguel Manzolillo Sautchuk (2009, p. 178-9) relata uma performance entre um repentista e uma mulher repentista em um festival:

Assim como Mocinha, Louro é conhecido por suas respostas rápidas no repente e por não recear em dizer “imoralidades”. Na segunda noite do festival, escolheram a Gemedeira como gênero livre, e isso foi o ponto alto de suas apresentações naquele evento. Mocinha partiu com provocações a Louro, afirmando que ele estava velho e sexualmente impotente. Nas primeiras estrofes, ele refutou o enfrentamento nos mesmos termos. Mas Mocinha foi insistente e Louro optou por “descer” ao mesmo nível da companheira. Seguiuse então uma troca de ofensas em uma grande demonstração da capacidade de ambos como repentistas, respondendo, estrofe a estrofe, o que o outro disse.

Descrevo a seguir duas dessas estrofes:

Mocinha de Passira: Eu admiro é você
Chegar aonde chegou
Pensa até que fez um filho,
Viu a bola e não marcou.
Foi um vizinho que fez,
Ai, ai, ui, ui,
Foi o besta que criou.
Louro Branco: Porque ela chafurdou
Com dez machos mesmo assim.
e ela se banhar num rio,
A traíra passa ruim
E se ela mijar num canto,
Ai, ai, ui, ui,
Nunca mais nasce capim

A repentista de espírito ágil citada é pernambucana e em 1999 lançou com a paraibana Minervina Ferreira o CD Mulheres no repenteCD Mulheres no repente. Minervina Ferreira e Mocinha da Passira. CPC-UMES, 1999., o primeiro registro fonográfico de uma peleja entre duas mulheres repentistas. Nesse CD de onze faixas, e gêneros bem diversos da cantoria nordestina, como gemedeira, oitavão rebatido, mourão você cai, quadrão mineiro, toada de vaqueiro, quebra-cabeça (ou Cantador de Vocês), apenas na penúltima faixa, “Mourão você cai em desafio”, vê-se a disputa entre as repentistas com trocas de insultos. O mourão é um gênero bem próprio a esse tipo de desafio por apresentar uma grande interatividade e alternância entre os interlocutores. É constituído de doze versos, de sete sílabas, sendo que o terceiro, sexto e nono versos são fixos e funcionam como refrão.

Quanto às outras cantorias do CD, observamos uma grande cumplicidade na parceria feminina, que apresenta, em temáticas variadas, uma poética utópica, na medida em que questionam o status quo - denunciando as injustiças, desigualdades sociais e de gênero, do presente e do passado, como na faixa 3: “Vítimas da sociedade”, e na faixa 1: “A mulher de hoje” -, através de uma visão crítica do presente e o sonho de uma realidade possível no futuro, como escutamos na faixa de número 7: “O Brasil do futuro”, e na faixa 1, citada. Essa última peleja encerra-se, na voz de Minervina Ferreira, com o apelo de união entre os sexos como meio possível de mudança:

Pedimos que o homem entenda
Nossa maneira de agir
Não queremos divisão
Precisamos nos unir
Pra o futuro surgir, lindo
E a liberdade sorrir

O espírito de otimismo e esperança estende-se também à faixa “Gosto de viver”. As repentistas trazem ainda temas de casuística amorosa: ora declarando seu amor ao amado, como no mote em decassílabo “O meu coração bate outro tanto, quando vejo você na minha frente”, ora com tom mais satírico, revelando que não aceita mais a volta do amado que se foi, no mote de sete sílabas “Não pense que eu vou chorar/porque você foi embora”. Na composição de oito estrofes, obedecendo às rimas ABBAACCD, as repentistas assumem um papel crítico e não conformista diante da traição do amado. Tema bastante recorrente nas cantigas medievais de trobairitz, além de outros temas, como a condição feminina, a maternidade, a aspiração de igualdade entre os sexos, que aparecem com frequência nas duas poéticas.

Em uma das tensons, as trobairitz N’Almucs e N’Iseutz (Bec, 1995BEC, Pierre (1995). Chants d’amour des femmes-troubadours. Paris: Stock., p. 124), discutem se a mulher deve ou não perdoar a falta do amante, se ele pedir humildemente e de maneira sincera. Em uma outra tenson mulher x mulher (Bec, 1995BEC, Pierre (1995). Chants d’amour des femmes-troubadours. Paris: Stock., p. 134), as trobairitz9 9 Na versão transcrita por Peter Dronke, em Women writers of the middle ages (p. 101-2), ele considera uma tenson entre três trobairitz: Alais, Iselda, Carenza, baseado na edição de Meg Bongin. discutem qual a melhor opção: casar-se e ter filhos ou ficar virgem, entendendo que a maternidade causa malefícios ao corpo feminino. O diálogo se estende em quatro estrofes, duas de oito versos e duas de quatro, obedecendo simetricamente as mesmas rimas ABBACCDD nas duas primeiras e CCDD nas últimas.

Na Carenza ab bel còrs avenenz, - Dona Carenza de bela aparência,
Donatz conselh a nos doas serors, Somos duas irmãs a vos clamar:
E car saubetz mielhz triar La melhors, Melhor conselho sabereis nos dar
Consilhatz mi segon costr´escienz: Aconselhai-me com vossa consciência,
Penrai marit a vòstra concoissença, De acordo com vossa sabedoria
O ´starai mi pulcela? E si m´agença, Casar-me ou ficar virgem deveria?
Que far filhons non cuit que sai bos Ter filhos não deve ser prazeroso,
E sens marit mi par tròp angoissós. Mas parece triste não ter esposo.
N´Alaisina Iselda, ´nsenhamenz, - Dona Alaisina Iselda, vossa ciência,
Prètz e balatz, jovenz, frescas colors Beleza e frescor fazem-me notar
Conosc qu´avètz, cortisia e valors, Que outra dama a vós não pode igualar.
Sobre totas lãs autras conoissenz; Em cortesia, valor e prudência.
Per qu´ies´us conselh per far bona semença Portanto, um bom conselho vos daria:
Penre marit coronat de scïença, Ter um marido com sabedoria,
Em cui faretz fruit de filh glorïós: Para dar-vos um filho glorioso.
Retenguda´s pulcel´a cui l´espós. A uma donzela, eis um casamento honroso!
Na Carenza, penre marit m´agença, - Dona Carenza, casar me agradaria,
Mas far infanz cuit qu´es gran penitença, Mas ter filhos parece-me uma sandia,
Que lãs tetinas pendon aval jos Pois deixa o seio flácido e feioso
E lo ventrilh ES rüat e ´nojós. E o ventre enrugado e penoso!
N´Alaisina Iselda, sovinença Dona Alaisina Iselda, lembrai-vos
Ajatz de mi em l´ombra de guirença: De mim como a sombra da garantia:
Quant i siretz, prejatz lo Glorïós Quando acontecer, rogai ao Glorioso
Qu´al departir mi ritenga près vos. Para que eu possa sempre estar convosco.

A maternidade é também um leitmotiv nas pelejas das cantadoras nordestinas. O discurso do universo feminino e seus desafiantes papéis de mãe e mulher é tematizado por Minervina em belíssimos versos decassílabos de rimas interpoladas: ABBACDDEED, observados na estrofe transcrita a seguir:

A mulher se supera, quem diria!
Sexo frágil quem disse errou bastante,
Pois ser mãe sempre foi desafiante
E ela em nome da vida desafia.
Mês de maio que é o mês de Maria
Tem pra ela um domingo mariano;
Mês de março, o terceiro mês do ano,
Dia oito não é um dia qualquer
Que o dom de ser mãe faz da mulher
Algo mais do que um simples ser humano.10 10 Versos registrados pelo jornalista Nelson Augusto, disponível em http://www.nelsons.com.br/informasons/pgtextmusiapresentacao.asp?pcod=3233&ptipo=2.

É interessante notar a importância do contexto da produção artística e o espaço sociocultural da criação literária. Apesar de pontos de discussão distintos em relação à maternidade, em ambos os versos é marcante a alusão à religiosidade, bem presente tanto na Idade Média quanto no Nordeste brasileiro.

Outro aspecto interessante observado é a questão da performance enquanto ato de fala, de vozes. No caso das duas poéticas a performance é essencialmente importante, na medida em que é através dela que a voz feminina consegue se expressar no espaço predominantemente masculino. Daí a relevância atual dos CDs, como o já citado Mulheres no repenteCD Mulheres no repente. Minervina Ferreira e Mocinha da Passira. CPC-UMES, 1999., ou o CD Tensons e partimens de trobairitzCD Troubadour Songs: Tensons e partimens de trobairitz. Gérard Zuchetto, 1994. v.3, organizado em 1994 por Gérard Zuchetto. Pois, apesar de transformar a oralidade primária em secundária (Zumthor, 1993ZUMTHOR, Paul (1993). A letra e a voz. São Paulo: Companhia das Letras.), essa outra forma de registro eterniza as cantorias, permitindo revelar a um público maior a persistência do fenômeno da cultura oral também entre as mulheres.

Como últimas considerações, podemos ressaltar o desafio dessas mulheres cantadoras de ontem e de hoje que conseguiram se inserir em um universo reconhecidamente androcêntrico, o das letras na Idade Média, dominado pelo monopólio clerical, e o mais recente meio popular das cantorias e repentes no Brasil. Mais do que revelar suas vozes, essas poetisas cantaram e cantam seus anseios, suas inquietações, de forma ora lírica, ora satírica, como meio de romper o silêncio que a historiografia lhes tentou impor. Deixá-las cantar é, pois, também nosso desafio.

Referências bibliográficas

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  • GARULO, Teresa (1986). Diwan de las poetisas de Al-Andalus. Madrid: Poesía Hiperión.
  • MENDONÇA, Maristela (1991). Uma voz feminina no mundo do folheto. Brasília: Thesaurus.
  • NELLI, Réné (1977). L’érotique des troubadours. Paris: Privat.
  • SANTOS, Francisca Pereira dos (2002). Romaria dos versos: mulheres autoras na ressignificação do cordel. Dissertação. Ceará, Universidade Federal do Ceará.
  • SAUTCHOUK, João Miguel Manzolillo (2009). A poética do improviso: prática e habilidade no repente nordestino. Tese de doutorado. Universidade de Brasília, Brasília.
  • SOUZA, Laércio Queiroz de (2003). Mulheres de repente: vozes femininas no repente nordestino. Dessertação. Pernambuco, Universidade Federal de Pernambuco.
  • SUASSUNA, Ariano (1997). “Violeiros e ciranda: poesia improvisada”. In: FALCÃO, Aluízio. O nordeste e sua música. Estudos avançados. São Paulo, jan-abr. v.11. n. 29.
  • UHL, Patrice (2008) “La tenso entre Montan et une dame (P-C 306.2): petit dialogue obscène entre amics fins“. In: Expressions. Université de la Réunion. n. 31. p. 67-86.
  • ZUMTHOR, Paul (1993). A letra e a voz. São Paulo: Companhia das Letras.

Discografia:

  • CD Troubadour Songs: Tensons e partimens de trobairitz. Gérard Zuchetto, 1994. v.3
  • CD Mulheres no repente. Minervina Ferreira e Mocinha da Passira. CPC-UMES, 1999.
  • 1
    “La plupart des [trobairitz] ne se sont exercées qu’à des genres inférieurs, n’exigeant qu’un médiocre effort (tenson, partimen, cobla). Cinq seulement se sont haussées jusqu’à la chanson; enconre trois d’entre elles n’ont laissé qu’un petit nombre de vers, insignifiants par leurs forme comme par leur contenu...“ (apud Pierre Bec, 1995BEC, Pierre (1995). Chants d’amour des femmes-troubadours. Paris: Stock., p. 21).
  • 2
    Depoimentos de Minervina e Maria da Soledade respectivamente. Cf.: http://www.studiorural.com/?noticia=1520.
  • 3
  • 4
    Ce corpus longtemps ignoré du public du fait de la censure savante a refait surface à la faveur du renouvellement des études médiévales dans les années 1970-1980. En France, René Nelli (Nelli, 1977NELLI, Réné (1977). L’érotique des troubadours. Paris: Privat.) et Pierre Bec (Bec, 1984______ (1984). Burlesque et obscénité chez les troubadours. Le contretexteau Moyen Âge. Paris: Stock.) ont activement contribué à la redécouverte de cette ‘part maudite’ du trobar.” Uhl, Patrice. “La Tenson entre Montan et une dame (P-C 306. 2): petit dialogue obscène entre amics fins. In: Expressions, Université de la Réunion, n.31, 2008. p. 67-85. Cf: www.reunion.iufm.fr/Recherche/Expressions/31/Uhl.pdf
  • 5
    Tradução literal : “Venho a vós, Senhor, saia levantada,/Pois ouvi dizer que sois chamado de Seu Montador,/Como de foder, não estou nunca saciada de foder,/Durante dois anos, tive um padre da capela, /Seus sacerdotes e toda sua cambada,/Tenho um bumbum grande e rechonchudo que vibra,/E a vagina maior do que a de qualquer outra mulher”.
  • 6
    “[...] dans le cadre d’une exécution orale et musicale - elle a certainement joué un rôle important dans cette pièce - l’introduction d’une voix féminine dans ce texte n’a de sens que si, du point de vue de la ‘performance’, cette voix est réellement interprétée par une femme. Mais si c’est une femme qui récite de tels vers, il n’est plus inconcevable qu’elle soit aussi co-responsable de la composition.”
  • 7
    “L’idée que des femmes ne sauraient employer un langage obscène ou scatologique en poésie n’est pas une idée médiévale. C’est le produit d’une représentation de la femme typiquement bourgeoise; une image clichée de la ‘fragilité ‘ et de la ‘délicatesse’ féminines, allant de pair avec la pudeur et la retenue qui ‘par nature ‘ seraient aux dames. Une image anachronique conforme aux normes sociétales, morales et religieuses de la bourgeoisie bien pensante du XIXe siècle! Quant à l’obscénité, y compris énoncée par des femmes, tout indique que les cours médiévales, qu’elles fussent occitanes ou non, en étaient aussi friandes que le petit peuple.”
  • 8
    Os poemas da antalogia Diwan de las poetisas de Al-Andalus foram traduzidos do árabe para o espanhol de modo a resgatar o sentido literal, sem preocupação com rima e métrica. Em nota, a tradutora dá indicações de ordem literária e outras informações como no trecho citado, em que ela explica o jogo de palavras com o sentido do termo Almodóvar, que em árabe significa redondo.
  • 9
    Na versão transcrita por Peter Dronke, em Women writers of the middle ages (p. 101-2), ele considera uma tenson entre três trobairitz: Alais, Iselda, Carenza, baseado na edição de Meg Bongin.
  • 10
    Versos registrados pelo jornalista Nelson Augusto, disponível em http://www.nelsons.com.br/informasons/pgtextmusiapresentacao.asp?pcod=3233&ptipo=2.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Jun 2010

Histórico

  • Recebido
    Abr 2010
  • Aceito
    Maio 2010
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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