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Os Domínios da Focalização: um estudo experimental1 1 Este artigo foi desenvolvido a partir de um dos tópicos analisados na tese de Doutrorado de CARNAVAL (2021), a saber, a produção e percepção multimodal do domínio focal, isto é, da extensão dos constituintes focalizados.

The focalization domains: An experimental study

RESUMO

Este artigo relata um estudo experimental sobre a percepção de domínios focais no Português do Brasil (PB). Utilizando as noções de Foco Amplo e Foco Estreito, propomos um contínuo de extensões abarcadas pela focalização, baseado nos domínios hierárquicos propostos pela teoria da Fonologia Prosódica. São considerados, sobretudo, a palavra fonológica (ω) e o sintagma fonológico (φ), descritos como domínios da entoação no PB. Após a aplicação de um experimento perceptivo multimodal, a análise estatística dos resultados revelou que a palavra fonológica é o domínio preferível de aplicação da focalização no PB, além de apresentar uma interessante sistematicidade nas confusões ocorridas, ao se buscar identificar a incidência do foco, no domínio complexo do sintagma fonológico e de atestar que a adição da modalidade visual não aumenta (nem diminui) significativamente a identificação já eficiente do domínio focal. Além disso, uma análise qualitativa de padrões melódicos selecionados nos permitiu tecer importantes considerações sobre a implementação da focalização na estrutura prosódica do PB.

Palavras-chave:
Focalização; Entoação; Fonologia Prosódica; Português do Brasil

ABSTRACT

This paper aims at developing an experimental study about potential restrictions on identifying the length of focused structures in Brazilian Portuguese (BP). Considering Broad Focus and Narrow Focus, we propose a continuum of focalization spans, based on the hierarchical prosodic domains presented in the Prosodic Phonology theory. Specifically, we analyze the intonation domains in BP, the phonological word (ω), and the phonological phrase (φ). After running a multimodal perceptual experiment, statistical results show that narrow elements are best identified than composed ones and that confusions present a systematicity in complex focused structures. As for modality, adding the visual modality does not increase (nor decrease) significantly the already high focus span identification. Furthermore, a qualitative analysis of selected melodic patterns allowed us to develop some relevant remarks about the focalization inscription in the prosodic structure of BP.

Keywords:
Focalization; Intonation; Prosodic Phonology; Brazilian Portuguese

Introdução

Neste artigo, apresentamos um estudo experimental, baseado na percepção das fronteiras da focalização prosódica, isto é, na delimitação perceptiva do constituinte focalizado. Há, na literatura sobre o fenômeno da focalização, uma categorização baseada sobre o que poderíamos chamar de domínio focal, isto é, a porção de informação dentro de um enunciado que corresponde ao foco, à informação nova no discurso. A extensão do constituinte focalizado costuma ser abordada em termos de Foco Amplo e Foco Estreito (AVESANI; VAYRA, 2003AVESANI, Cinzia; VAYRA, Mario. Broad and narrow and contrastive focus in Florentine Italian. In: Proceedings of the 15 th ICPhS, Barcelona, 2003. p. 1803-1806. ; LADD, 1980LADD, D. Robert. The structure of intonational meaning: evidence from English. Bloomington/London: Indiana University Press, 1980.; SITYAEV; HOUSE, 2003SITYAEV, Dmitry; HOUSE, Jill. Phonetic and phonological correlates of broad, narrow and contrastive focus in English. In: Proceedings of the 15 th ICPhS, Barcelona, 2003. p. 1819-1822. ). Em uma situação discursiva hipotética, poderíamos atribuir aos contextos (1) e (2) a produção de Foco Amplo, tendo em vista a apresentação da extensão completa do enunciado como informação nova nos modos assertivo e interrogativo, respectivamente:

(1) A: Quais as novidades?

B: [ O João volta hoje para o Brasil. ] FOCO AMPLO

(2) A: Vamos matar as saudades.

B: [ O João volta hoje para o Brasil? ]FOCO AMPLO

Em ambos os contextos, o enunciado em toda sua extensão produzido pelo interlocutor B constitui informação nova no discurso, consistindo em uma resposta a uma pergunta prévia no modo assertivo (1) e em uma requisição de informação a partir de uma afirmação prévia em (2). Em relação ao Foco Estreito, este apresenta um escopo focal delimitado dentro do enunciado produzido, como observado em (3) e (4) em que, respectivamente, o constituinte “hoje” fornece a informação requisitada pelo locutor A em (3) e solicita a informação nova a partir de uma proposição realizada pelo locutor A em (4):

(3) A: Quando o João volta para o Brasil?

B: O João volta para o Brasil [hoje]FOCO ESTREITO.

(4) A: O João voltou para o Brasil.

B: O João voltou para o Brasil [hoje ?]FOCO ESTREITO

Prosodicamente, o Foco Amplo é estabelecido como padrão default, sem a proeminência focal sob uma porção específica do enunciado, uma vez que toda a extensão do enunciado compreende a informação nova introduzida no discurso. O Foco Estreito, por sua vez, recai sobre um constituinte específico dentro do enunciado, com a delimitação da informação nova em um domínio inferior ao do enunciado. Assim, Frota (2000FROTA, Sonia. Prosody and focus in European Portuguese phonological phrasing and intonation. New York: Garland Publishing, 2000.) define o Foco Amplo como padrão de acento não marcado, enquanto o Foco Estreito é definido pela marcação de acento.

Assim como em trabalhos anteriores (MORAES; CARNAVAL; COELHO, 2015MORAES, João Antônio de; CARNAVAL, Manuella; COELHO, Alexandre Braga Badaue. A manifestação prosódica do foco em interrogativas totais no Português do Brasil e sua percepção. ReVEL, edição especial n. 10, p. 170-194, 2015.; CARNAVAL, 2017CARNAVAL, Manuella. Foco informacional e foco contrastivo no português do Brasil: uma abordagem prosódica. 2017. 153 f. Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa) - Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.; CARNAVAL; MORAES; RILLIARD, 2018CARNAVAL, Manuella; MORAES, João Antonio de; RILLIARD, Albert Olivier Blaise. Marcação de foco estreito e o acento secundário em interrogativas totais no português do Brasil. Working Papers em Linguística, Florianópolis, v. 19, n. 2, p. 136-167, ago./dez. 2018.; CARNAVAL, 2021CARNAVAL, Manuella. Focalização no português do Brasil: um estudo multimodal. 2021. 303 f. Tese (Doutorado em Letras Vernáculas - Língua Portuguesa) - Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.), neste artigo trabalhamos a relação entre Foco Amplo e Foco Estreito a partir de uma perspectiva gradiente, estabelecendo um contínuo de constituintes focalizados, que variam do constituinte mais amplo ao mais estreito. O estabelecimento de tais domínios focais é baseado na teoria da Fonologia Prosódica (SELLKIRK, 1986SELLKIRK, Elisabeth. On derived domains in sentence phonology. Phonology, v. 3, p. 371-405, 1986.; NESPOR; VOGEL, 1986NESPOR, Marina; VOGEL, Irene. Prosodic phonology. Dordrecht: Foris, 1986.), que propõe uma hierarquia de domínios prosódicos constitutivos do fluxo da fala, na interface sintaxe-prosódia. Assim, a organização hierárquica da cadeia da fala, apresentada na Figura 1, é realizada a partir dos seguintes domínios prosódicos: sílaba (s), pé (S), palavra fonológica (ω), grupo clítico (C), sintagma (frase) fonológico (φ), frase entoacional (I) e enunciado fonológico (U).

Figura 1:
diagrama hierárquico de constituintes prosódicos estabelecidos na teoria da Fonologia Prosódica

Tendo em vista os principais domínios da entoação estabelecidos para o português do Brasil, a palavra fonológica (ω) (FERNANDES, 2007FERNANDES, Flaviane Romani. Ordem, focalização e preenchimento em português: sintaxe e prosódia. 2007. 444 f. Tese (Doutorado em Linguística) - Instituto de Estudoas da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007.) e o sintagma fonológico (φ) (FROTA; VIGÁRIO, 2000FROTA, Sonia; VIGÁRIO, Marina. Aspectos de prosódia comparada: ritmo e entoação no PE e no PB. In: CASTRO, R. V.; BARBOSA, P. (org.). Actas do XV Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, volume 1. Coimbra: APL, 2000. p. 533-555.; TENANI, 2002TENANI, Luciani Ester. Domínios prosódicos do português do Brasil: implicações para a prosódia e para a aplicação de processos fonológicos. 2002. 331 f. Tese (Doutorado em Linguística) - Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade estadual de Campinas, Campinas, 2002.), estabelecemos o seguinte contínuo de domínios focais: o Foco Estreito no domínio da palavra fonológica (ω), menor extensão de constituinte focalizado aqui abordada; uma extensão intermediária, a que chamamos de Foco Complexo, no domínio do sintagma fonológico (φ)2 2 Observa-se que a extensão intermediária corresponde ao domínio do sintagma fonológico (φ) quando estes são ramificados, tendo em vista que os (φ)s não ramificados apresentam extensão estreita, equivalente à palavra fonológica (ω). ; o Foco Amplo, maior extensão focal, no domínio do enunciado fonológico (U). A figura 2 ilustra este contínuo de domínios focais abordados neste trabalho.

Figura 2:
contínuo de domínios focais, em que se parte do domínio mais estreito, a palavra fonológica (ω), passando pelo domínio complexo, o sintagma fonológico (φ), e chega-se ao domínio mais amplo, o enunciado fonológico (U).

Para além da sua inscrição na estrutura prosódica, a focalização também pode veicular os mais distintos valores semântico-pragmáticos. Em nosso estudo, tais tipos focais são um fator de análise na identificação do elemento focalizado. São considerados cinco tipos focais3 3 Para maiores esclarecimentos, ver Carnaval (2021). , uma categorização baseada nos sentidos transmitidos a partir do processo de focalização. Abaixo, segue um breve resumo de cada tipo de foco analisado, alocados nos modos assertivo e interrogativo de produção:

Asserção

  • Foco Informacional (FI) - Constitui a resposta a uma pergunta prévia, preenche uma lacuna informacional no discurso.

  • Foco Contrastivo (FC) - Constitui a informação verdadeira do contexto discursivo, aquela que corrige a informação falsa apresentada previamente.

  • Foco Atenuado (FAT) - Informação sobre a qual se pode afirmar a veracidade, enquanto a informação dada anteriormente no contexto discursivo é potencialmente uma verdade simultânea à informação nova, mas sobre a qual o falante não tem certeza.

Interrogação

  • Foco Interrogativo neutro (FINT) - informação requisitada em uma pergunta, buscando sua confirmação.

  • Foco com Estranheza (FE) - Valor de estranhamento, questionando a informação recebida previamente no discurso.

Esta variedade de valores semântico-pragmáticos pode ser veiculada no âmbito do Foco Estreito, a partir da implementação de distintos padrões prosódicos. No entanto, no âmbito do Foco Amplo, apenas os valores das categorias de valor semântico mais generalizado, a de Foco Informacional (FI), no modo assertivo, e a de Foco Interrogativo Neutro, no modo interrogativo, são transmitidos, tendo em vista que a maior extensão do constituinte focalizado, no nível do enunciado fonológico (U) não abrange a especificação de significados veiculados pelos demais tipos de foco.

Outro fator considerado em nossa análise da percepção do domínio focal foi a modalidade em que as produções se apresentam. Krahmer e Swerts (2006KRAHMER, Ernest; SWERTS, Michael G. J. Perceiving focus. In: LEE, Chungmin; GORDON, Matthew; Büring, Daniel. (eds.). Topic and focus: cross-linguistic perspectives on meaning and intonation. Berlin: No. 82. Springer, 2006. p. 121-137.) apontam que pistas prosódicas na realização do foco podem ser acompanhadas por parâmetros visuais. O trabalho de Prieto et al. (2011PRIETO, Pilar; PUGLIESI, Cecilia; BORRÁS-COMES. Joan; ARROYO, Ernesto; BLAT, Josep. Crossmodal prosodic and gestural contribution to the perception of contrastive focus. In: 12 th Annual Conference of the International Speech Communication Association Florence, p. 28-31, August 2011. ) mostra que a produção visual não somente acompanha mas é de fundamental relevância para a percepção do foco contrastivo em Catalão. Já Borràs-Comes e Prieto (2011BORRÀS-COMES, Joan; PRIETO, Pilar. ‘‘Seeing tunes’’. The role of visual gestures in tune interpretation. Laboratory Phonology, v. 2, n. 2, p. 355-380, 2011.) encontram resultados que mostram, inclusive, a primazia de pistas visuais em relação às auditivas ao distinguir perguntas-eco do foco contrastivo em Catalão. Dohen e Loevenbruck (2009DOHEN, Marion; LOEVENBRUCK, Hélène. Interaction of audition and vision for the perception of prosodic contrastive focus. Language and Speech, v. 52, n. 2-3, p. 177-206, fev. 2009.) concluem que a integração das modalidades auditiva e visual contribui para a percepção do foco em Francês. Após debruçarmo-nos sobre a relevância das pistas visuais para a identificação do tipo de foco no PB (CARNAVAL, 2021CARNAVAL, Manuella. Focalização no português do Brasil: um estudo multimodal. 2021. 303 f. Tese (Doutorado em Letras Vernáculas - Língua Portuguesa) - Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.), também interessou-nos avaliar se a multimodalidade seria um fator relevante na identificação do domínio focal.

Considerando nosso objeto de estudo, a percepção do domínio focal no Português do Brasil, e os fatores de análise (a extensão do constituinte focalizado, o tipo de foco e a modalidade de apresentação), as hipóteses aventadas são:

  • O domínio focal estreito, sobre palavra fonológica (ω), apresenta maior delimitação perceptiva do que o domínio focal complexo, sobre o sintagma fonológico (φ), no PB.

  • A integração entre os canais auditivo e visual otimiza a percepção do domínio focal no PB.

  • As pistas acústicas apresentam maior relevância do que as pistas visuais na identificação dos limites da focalização no PB.

Tendo sido introduzidos nosso objeto de estudo e os fatores considerados na análise experimental desenvolvida, as próximas seções apresentam nosso método, com a construção do corpus para o desenvolvimento do estudo experimental e a configuração e aplicação do experimento perceptivo, a análise estatística dos resultados, a análise qualitativa de produções selecionadas e nossas considerações finais.

Método - Corpus e Experimento

O corpus utilizado neste estudo é de fala de laboratório (XU, 2010XU, Yi. In defense of lab speech. Journal of Phonetics, v. 38, n. 3, p. 329-336, 2010.; BARBOSA, 2012BARBOSA, Plínio A. Panorama of experimental prosody research. In: GSCP INTERNATIONAL CONFERENCE: Speech and Corpora, 7. Proceedings […] Belo Horizonte: UFMG, 2012. p. 33-42.; WAGNER; TROUVAIN; ZIMMERER, 2015WAGNER, Petra; TROUVAIN, Jürgen; ZIMMERER, Frank. In defense of stylistic diversity in speech research. Journal of Phonetics, v. 48, p. 1-12, dez. 2015.), tendo em vista o maior controle sobre os fatores de análise descritos previamente, criando “pares mínimos prosódicos”, com a exclusão de variáveis que poderiam influenciar as produções no registro espontâneo. Assim, a elaboração de um corpus para a posterior aplicação de um teste perceptivo multimodal sobre a delimitação do domínio focal considerou três fatores principais em seu desenvolvimento: o constituinte focalizado, o tipo de foco e a modalidade de apresentação. Assim, partimos da construção de um enunciado base, que apresentasse todas as condições de análise experimental definidas:

{[O professor de literatura]φ [vai aplicar] φ [a prova final] φ} U

ω ω ω ω ω

O fator constituinte focalizado foi analisado a partir da perspectiva gradual entre foco amplo e foco estreito apresentada anteriormente, podendo os variados tipos de foco recaírem sobre (i) o domínio estreito, da palavra fonológica (ω), com cinco enunciados distintos, em que poderiam ser focalizados os seguintes elementos: [O professor], [de literatura], [vai aplicar], [a prova] e [final]; (ii) o domínio complexo, que definimos na dimensão do sintagma fonológico (φ), podendo apresentar dois enunciados, com foco no sintagma inicial [O professor de literatura] e no sintagma final [a prova final]. O foco amplo, dimensionado no domínio do enunciado fonológico (U), apesar de compor nosso corpus, como descrito anteriormente, não foi utilizado no teste perceptivo, tendo em vista que nossa análise se debruçou sobre a identificação dos limites estruturais da focalização naqueles que são considerados os principais domínios da entoação no PB, (ω) (FROTA; VIGÁRIO, 2000FROTA, Sonia; VIGÁRIO, Marina. Aspectos de prosódia comparada: ritmo e entoação no PE e no PB. In: CASTRO, R. V.; BARBOSA, P. (org.). Actas do XV Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, volume 1. Coimbra: APL, 2000. p. 533-555.) e (φ) (FERNANDES, 2007FERNANDES, Flaviane Romani. Ordem, focalização e preenchimento em português: sintaxe e prosódia. 2007. 444 f. Tese (Doutorado em Linguística) - Instituto de Estudoas da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007.). Assim, os enunciados de foco amplo, tanto assertivo quanto interrogativo, foram utilizados apenas como referência, um padrão default, na análise posterior.

O tipo de foco nos permitiu avaliar a percepção dos limites da focalização na transmissão de diferentes valores semântico-pragmáticos, com 5 níveis de análise: Foco Informacional (FI) - resposta simples; Foco Contrastivo (FC) - correção explícita; Foco Atenuado (FAT) - correção atenuada; Foco Interrogativo (FINT) - pergunta simples; Foco com Estranheza (FE) - pergunta com estranhamento.

O fator modalidade de apresentação apresentou dois níveis: a modalidade auditiva (AU) e a modalidade audiovisual (AV), tendo em vista que uma das hipóteses que pretendíamos averiguar se relaciona com a influência que a inserção do elemento visual pode exercer na otimização da identificação do constituinte focalizado4 4 A modalidade visual (VI) não foi considerada, isoladamente, neste estudo, já que a identificação do constituinte focalizado sem o elemento acústico não abarcaria o componente estrutural na marcação do foco sobre os diferentes domínios prosódicos estabelecidos na organização do fluxo da fala. . Assim, considerando 2 modalidades de apresentação para enunciados que poderiam apresentar um dos 7 possíveis constituintes focalizados, pronunciados com um dos 5 tipos de foco selecionados, foram criados 70 estímulos. No entanto, cada um deles foi produzido por 4 falantes (2 femininos e 2 masculinos), totalizando 280 estímulos para avaliação.

Para evitar que o experimento perceptivo se tornasse uma tarefa exaustiva para os juízes, adotamos um protocolo de quadrado latino (COCHRAN; COX 1992COCHRAN, William Gemmell; COX, Gertrude Mary. Experimental designs. 2. ed. New York: Wiley Classics Library, 1992.), em que realizamos a distribuição sistemática das produções de cada falante por 4 grupos de aplicação, garantindo que os juízes de cada grupo avaliassem 70 estímulos (5 tipos de foco x 7 constituintes focalizados x 2 modalidades). Desse modo, garantiu-se que os juízes avaliassem todos os falantes, tipos de foco e domínios, mesmo em enunciados distintos. Cada grupo de aplicação foi composto por 6 juízes, resultando em 24 juízes no total.

O experimento foi aplicado de forma remota através da plataforma Qualtrics (Qualtrics, Provo, UT), apresentando 5 etapas, cada uma relativa ao valor semântico-pragmático de cada tipo de foco (FI, FC, FAT, FINT e FE), previamente conhecidos pelos juízes, que deveriam somente indicar o constituinte focalizado dentro dos domínios prosódicos considerados, a palavra (ω) e o sintagma (φ) fonológicos, ao selecionar uma das sete opções de resposta apresentadas, correspondentes aos níveis de constituintes focalizados abordados ([O professor], [de literatura], [vai aplicar], [a prova], [final] [O professor de literatura] e [a prova final]). Tais etapas foram apresentadas em ordem aleatória a cada aplicação, assim como os estímulos auditivos e audiovisuais dentro de cada uma delas. Desse modo, o experimento apresentou o perfil de escolha forçada e os juízes levaram em média entre 20 e 30 minutos para completar a tarefa.

Resultados

Os resultados do teste perceptivo foram tratados em termos de acerto e erro, com a estimativa da proporção de identificação do constituinte focalizado, a partir de um modelo de regressão logística. Foram consideradas as seguintes variáveis independentes na análise: o constituinte focalizado (com 7 níveis: OPROF, LIT, OPDL, APL, PROVA, FINAL, PRFI), o tipo de foco (5 níveis: FI, FC, FAT, FINT e FE), a modalidade de apresentação (2 níveis: AU e AV) e as interações entre elas. Devido a um processo de simplificação do modelo, foi criado um modelo mínimo adequado para analisar a variação da proporção de identificação correta (CRAWLEY, 2013CRAWLEY, Michael J. The R book - Second edition. Chichester: John Wiley & Sons, 2013.). Mostraram-se significativas as variáveis Constituinte focalizado e Tipo de Foco (ver Tabela 1).

Tabela 1:
tabela da análise do desvio no modelo de regressão logística da proporção de identificação correta do constituinte focalizado, com o valor do χ2 de verossimilhança, o número do grau de liberdade (df) e o p-valor.

O agrupamento dos níveis da variável Constituinte focalizado dentro do processo de simplificação do modelo estabeleceu quatro grupos de constituintes significativamente diferentes entre si (em termos de nível médio de identificação), como pode ser observado no Gráfico 1, com o constituinte vai aplicar (APL) com maior nível de identificação, seguido pelo grupo E1, em que puderam ser agrupados, por serem comparáveis entre si, todos os demais constituintes estreitos, isto é, na dimensão da palavra fonológica (ω) (O professor; de literatura; a prova; final). Por fim, os constituintes de foco complexo, no nível do sintagma fonológico (φ), a prova final (PRFI) e O professor de literatura (OPDL), com os menores níveis de identificação.

Gráfico 1:
média e intervalo de confiança na proporção de respostas corretas recebida pelo fator Constituinte focalizado, com quatro níveis (E1: constituintes de extensão estreita agrupados; OPDL; APL; PRFI)

Como pode ser percebido na interpretação do Gráfico 1, a palavra fonológica (ω) mostrou-se o domínio preferível da focalização, tendo em vista os maiores níveis de identificação dos constituintes de extensão estreita. No caso do constituinte vai aplicar (APL), por este não constituir com outro elemento um sintagma fonológico ramificado, há um número menor de confusões em relação aos demais constituintes estreitos, reunidos no grupo E1. Estes (O professor, de literatura, a prova e final), por também integrarem o nível superior de (φ), apesar do maior nível de confusão, ainda assim apresentam um nível de identificação bastante superior em relação aos constituintes complexos, no nível do sintagma fonológico (φ), O professor de literatura (OPDL) e a prova final (PRFI), cujos resultados apontam para um menor nível de identificação. Ainda assim, podemos ressaltar que a proporção de respostas corretas foi bastante superior ao acaso (0.14 - os juízes deveriam escolher 1 opção de resposta dentre 7 apresentadas).

Também foram analisadas as proporções de respostas corretas em relação ao fator Tipo de Foco, que apresentou os seguintes níveis: o mais baixo, para o Foco Informacional (FI), com menor delimitação do domínio focal; intermediário, para o grupo que reúne os Focos Atenuado (FAT), Interrogativo (FINT) e com Estranheza (FE) - comparáveis entre si; o mais alto, para o Foco Contrastivo (FC), com maior delimitação dos limites do domínio focal. É importante observar que todos os níveis de identificação encontram-se bastante acima de 60% de identificação correta. Estes distintos níveis podem ser observados no Gráfico 2.

Gráfico 2:
média e intervalo de confiança na proporção de respostas corretas recebida pelo fator Tipo de Foco, com três níveis (FI, FC, e demais níveis agrupados).

Pode-se observar que o fator Constituinte focalizado (gráfico 1) apresenta o maior efeito sobre a resposta dos juízes (com diferença de 40% entre os níveis extremos de identificação, os constituintes APL e OPDL), enquanto o fator Tipo de foco (gráfico 2), apesar de significativo, apresenta menor efeito (15% de diferença entre FC e FI).

Também foi realizada uma análise sobre as confusões entre os constituintes focalizados, a partir de uma regressão logística multinomial, avaliando a distribuição das respostas, com base nos mesmos fatores: Constituinte focalizado, Tipo de Foco e Modalidade de apresentação, bem como suas interações duplas e tripla, com uma simplificação do modelo, excluindo os fatores e interações não significativos (GRIES, 2013GRIES, Stefan Th. Statistics for linguistics with R: a practical introduction. 2. rev. ed. Berlin: De Gruyter Mouton, 2013.). Mais uma vez, os fatores que se mostraram significativos foram o Constituinte Focalizado (LRχ2 36 = 4203.5, p < 0.05), com maior efeito, e o Tipo de foco (LRχ2 18 = 116.2, p < 0.05), com um efeito menor. O gráfico 3 mostra o efeito do constituinte focalizado sobre a distribuição de respostas dos juízes, permitindo-nos visualizar as confusões ocorridas em cada categoria de resposta recebida, identificada pelas cores especificadas na legenda:

Gráfico 3:
proporções de cada categoria de resposta recebida (eixo vertical) no experimento 2, a partir do constituinte focalizado (eixo horizontal). As diversas cores especificadas na legenda representam as categorias de resposta apresentadas aos juízes.

O gráfico 3 demonstra claramente a alta proporção de identificação dos constituintes de dimensão estreita, principalmente sobre a palavra fonológica (ω) vai aplicar (acima de 0.9) que, por não integrar um sintagma fonológico ramificado, como as demais palavras fonológicas, apresentava mínimas chances de confusão. Ainda assim, as proporções de identificação do foco sobre as demais palavras fonológicas foram altas (acima de 0.7). Em relação aos constituintes complexos, a sua identificação mostrou-se expressivamente mais baixa, principalmente no sintagma que ocupa a posição inicial do enunciado O professor de literatura (OPDL), apresentando confusão com a palavra de literatura, que integra o grupo, ocupando a posição mais forte, à direita do sintagma. Também, o sintagma em posição final no enunciado a prova final (PRFI) apresenta maiores níveis de confusão com as palavras que o integram.

Assim, podemos concluir que há, em especial para o foco estreito, uma correspondência entre o constituinte alvo, aquele produzido como foco do enunciado, e o constituinte avaliado, aquele fornecido como resposta pelos juízes. Os constituintes complexos apresentam maiores confusões entre o domínio de seu sintagma e as palavras que o integram.

Análise qualitativa

Após a análise estatística dos resultados do experimento perceptivo, cabe-nos realizar uma descrição mais qualitativa das produções analisadas, atentando para as principais estratégias de focalização utilizadas pelos falantes bem como para especificidades que se mostrem relevantes na observação do fenômeno. Como a Modalidade de Apresentação não se mostrou um fator significativo na identificação das respostas dos juízes, optamos por descrever, nesta seção, apenas alguns padrões melódicos, sem a inclusão de produções visuais.

Devido à grande quantidade de produções avaliadas em nosso experimento, optamos por adotar alguns critérios na seleção dos contornos melódicos a serem descritos. Primeiramente, a fim de compreender a delimitação dos domínios focais aqui considerados, a palavra fonológica (ω), o sintagma fonológico (φ) e o enunciado fonológico (U), ilustraremos as realizações prosódicas da focalização sobre cada um deles, inclusive nos enunciados de Foco Amplo, nos modos assertivo e interrogativo, apesar de os enunciados de Foco Amplo não terem sido avaliados no experimento. Estes serviram, portanto, como padrões deafult para a posterior descrição dos demais domínios.

Também, limitaremos nossa descrição à produção de apenas dois tipos de foco: o Foco Contrastivo (FC), na asserção, por ter apresentado maior nível de identificação, e o Foco com Estranheza (FE), alocado no segundo grupo mais bem identificado, representando a contraparte de FC na interrogação, por também veicular uma noção de contraste em relação a uma informação prévia. Além disso, limitaremos nossa análise à descrição dos grupos inicial e final de constituintes, O professor de literatura (OPDL) e a prova final (PRFI), ilustrando as produções sobre os sintagmas e as palavras que os integram. Devido à observação de aspectos interessantes na realização de cada tipo de foco, nossa descrição dos grupos inicial e final será realizada, respectivamente, com produções de Foco Contrastivo (FC) e de Foco com Estranheza (FE) que obtiveram os maiores índices de identificação do constituinte focalizado.

Iniciando nossa descrição, ilustramos o contorno do Foco Amplo para o modo assertivo na Figura 3, com a produção do falante feminino 2 (F2), com 100% de identificação como Foco Amplo. Este padrão default da Asserção é caracterizado, sobretudo, por um movimento descendente na posição nuclear, última sílaba tônica do enunciado, [‘naw]. Percebe-se, também, uma discreta modulação na região pré-nuclear. Esta produção de Foco Amplo mostra que não há uma proeminência melódica sobre um constituinte específico do enunciado, tendo em vista que toda a extensão de (U) representa informação nova

Figura 3:
enunciado O professor de literatura vai aplicar a prova final pronunciado como Foco Amplo pelo informante feminino 2 (F2).

Em uma oposição clara ao contorno de Foco Amplo, estão as produções ilustradas nas figuras 4 e 5, em que o foco do enunciado recai sobre um constituinte de dimensão estreita, no domínio da palavra fonológica (ω). Tais contornos correspondem a produções de Foco Contrastivo (FC), uma correção explícita em relação a uma informação prévia. Seu padrão é caracterizado melodicamente por um movimento ascendente sobre a sílaba pretônica e descendente sobre a sílaba tônica, seguido por um deaccenting na porção pós focal. Observa-se também o reforço duracional, especialmente, sobre a sílaba tônica. Na figura 4, FC recai sobre a palavra O professor, à esquerda do sintagma a que integra (OPDL), enquanto, na figura 5, o foco do enunciado é a palavra de literatura, constituinte que ocupa a posição forte do sintagma O professor de literatura (OPDL). Ambas as produções obtiveram 100% de reconhecimento do constituinte focalizado, indicando a grande funcionalidade do foco estreito nas duas posições dentro de (φ).

Figura 4:
enunciado O professor de literatura vai aplicar a prova final pronunciado como Foco Contrastivo (FC) em O PROFESSOR pelo informante masculino 2 (M2).

Figura 5:
enunciado O professor de literatura vai aplicar a prova final pronunciado como Foco Contrastivo (FC) em DE LITERATURA pelo informante feminino 1 (F1).

Quando o foco recai sobre constituintes de dimensão complexa, no domínio do sintagma fonológico (φ), a análise dos resultados do experimento mostrou uma expressiva queda na identificação do constituinte focalizado. As figuras 6 e 7 ilustram, respectivamente, as produções de Foco Contrastivo (FC) com maior e menor identificação sobre o sintagma inicial O professor de literatura. Percebe-se uma dificuldade de acomodação do padrão melódico ascendente-descendente ao domínio de (φ). No entanto, na produção do falante masculino 1 (M1), na figura 6, pode ser observada uma tentativa de reprodução deste padrão sobre toda a extensão do sintagma fonológico, com subida sobre a sílaba tônica [‘so] da palavra O professor, que ocupa a posição mais fraca dentro do sintagma, à esquerda de (φ), e manutenção de um nível melódico alto até a sílaba tônica [‘tu] da palavra de literatura, em posição forte, à direita de (φ), sofrendo queda na pós tônica [ɾɐ]. Esta produção obteve 66,7% de reconhecimento do domínio focal sobre o sintagma O professor de literatura, nível relativamente alto, apresentando confusão com o constituinte de literatura em 33,3% das respostas.

Figura 6:
enunciado O professor de literatura vai aplicar a prova final pronunciado como Foco Contrastivo (FC) em O PROFESSOR DE LITERATURA pelo informante masculino 1 (M1).

Na figura 7, por sua vez, observamos uma produção mal sucedida de FC sobre o sintagma O professor de literatura (OPDL). Ao tentar acomodar o padrão ascendente-descendente sobre os dois elementos que constituem (φ), houve a realização de uma dupla subida melódica sobre a palavra à direita do sintagma, de literatura, atingindo um pico melódico sobre a pretônica [ɾa] e outro sobre a tônica [‘tu], concentrando a proeminência melódica sobre esta porção do enunciado, além de realizar um reforço duracional bastante expressivo na tônica da cabeça de (φ). Tais estratégias provavelmente ocasionaram a confusão em 100% do domínio focal com o constituinte de literatura.

Figura 7:
enunciado O professor de literatura vai aplicar a prova final pronunciado como Foco Contrastivo (FC) em O PROFESSOR DE LITERATURA pelo informante feminino 1 (F1).

Esta descrição das produções de Foco Contrastivo permitiu que fosse observada a grande funcionalidade na produção prosódica de Focos Estreitos em oposição a dos aqui chamados Focos Complexos. A dificuldade de acomodação melódica no domínio do sintagma nominal e a aplicação de outras estratégias, como o reforço duracional, de forma equivocada, levaram a confusões na identificação do domínio focal na asserção.

Para o modo interrogativo, avaliamos em seguida como ocorre esta transição do domínio focal estreito para o domínio complexo, porém, em enunciados produzidos com Foco com Estranheza (FE), uma vez que estes podem ser considerados contrapartes interrogativas dos enunciados de FC, já que também se propõem a contestar uma informação fornecida previamente. Iniciamos, no entanto, com o enunciado de Foco Amplo do modo interrogativo, que, assim como na asserção, funciona aqui como contorno default, uma base para a descrição das produções de Foco Estreito e Foco Complexo. A figura 8 apresenta a produção de Foco Amplo interrogativo do falante feminino 2 (F2), que obteve 100% de identificação do domínio focal amplo. É caracterizado, principalmente, pelo movimento ascendente na posição nuclear, última sílaba tônica [‘naw], em oposição ao movimento descendente no modo assertivo.

Figura 8:
enunciado O professor de literatura vai aplicar a prova final? pronunciado como Foco Amplo pelo informante feminino 2 (F2).

Adiante, apresentamos os enunciados produzidos com Foco com Estranheza (FE) sobre os constituintes do grupo na fronteira do enunciado, a prova final. O padrão melódico de FE é caracterizado por uma dupla subida melódica sobre o constituinte focalizado, com pico sobre as sílabas pretônica e tônica focais. Na figura 9, podemos observar a produção do informante masculino 1 (M1), em que, além do movimento default na posição nuclear, apresenta mais dois picos melódicos. Por apresentar pouco material segmental, principalmente em relação à sílaba pretônica, o constituinte a prova foi delimitado por uma primeira subida melódica sobre a porção pré focal, no constituinte “aplicar”, com subida na pretônica [pli]. Já a segunda subida melódica ocorre sobre a tônica focal [‘pɾͻ], em que também é observado um reforço duracional, auxiliando a delimitação do domínio focal, que obteve 100% de identificação.

Figura 9:
enunciado O professor de literatura vai aplicar a prova final? pronunciado como Foco com Estranheza (FE) em A PROVA pelo informante masculino 1 (M1).

Em relação ao foco sobre o constituinte final, há uma ambiguidade, tendo em vista que este ocupa não somente a posição focal mas também a posição nuclear do enunciado, como mostrado na figura 10. Assim, tem-se a subida melódica dupla sobre este elemento, com o primeiro pico sobre a sílaba pretônica [fi] e o segundo pico melódico sobre a tônica [‘naw]. Tendo em vista que o movimento ascendente sobre a sílaba nuclear é previsto para o modo interrogativo, a delimitação da porção focal poderia não ser reconhecida, no entanto, seu percentual de identificação foi de 100%. Podemos observar, também, um expressivo reforço duracional sobre a tônica focal e, simultaneamente, nuclear, o que pode ter sido utilizado como estratégia pelo falante para a desambiguização desta posição.

Figura 10:
enunciado O professor de literatura vai aplicar a prova final? pronunciado como Foco com Estranheza (FE) em FINAL pelo informante feminino 1 (F1).

Observou-se nas produções de FE em domínio estreito (ω) a utilização de duas estratégias: melódica e duracional. Quando produzido no domínio complexo (φ), os falantes também as implementam, porém, sua realização nem sempre é bem sucedida. Na figura 11, observamos a produção do informante masculino 2 (M2), que, além de realizar a acomodação do padrão de dupla subida melódica sobre a extensão complexa, com os picos melódicos sobre as sílabas tônicas de cada palavra que integra o sintagma, [‘pɾͻ] e [‘naw], também as produz com reforço duracional, com a tônica nuclear mais longa, dissolvendo a ambiguidade desta posição (focal e nuclear). Esta dupla delimitação do domínio do sintagma, melódica e duracional, levou a 100% de identificação do constituinte complexo (φ).

Figura 11:
enunciado O professor de literatura vai aplicar a prova final? pronunciado como Foco com Estranheza (FE) em A PROVA FINAL pelo informante masculino 2 (M2).

Por sua vez, o informante feminino 1 (F1) também utiliza as duas estratégias. Porém, sua implementação não é bem sucedida, levando a 100% de confusão da identificação do domínio do sintagma com a palavra a prova. Como ilustrado na figura 12, há um alongamento das sílabas tônicas de cada palavra que integra o sintagma a prova final. No entanto, o reforço duracional sobre a tônica da primeira palavra, [‘pɾͻ], é expressivamente superior ao alongamento verificado na tônica nuclear, [‘naw]. Esta implementação não parece ter desfeito a ambiguidade da posição nuclear, dando maior ênfase à palavra a prova, contribuindo para as confusões ocorridas.

Figura 12:
enunciado O professor de literatura vai aplicar a prova final? pronunciado como Foco com Estranheza (FE) em A PROVA FINAL pelo informante feminino 1 (F1).

As produções aqui descritas, nos modos assertivo e interrogativo, revelaram a maior funcionalidade do foco estreito (ω) em relação ao foco complexo (φ), domínio em que ocorreu a maior parte das confusões na identificação do constituinte focalizado, como apontado previamente pelos resultados do experimento perceptivo. No entanto, no modo interrogativo, as produções de FE parecem ter realizado uma maior adaptação melódica ao domínio do sintagma, além de ser observada a adoção de outra estratégia, de ordem duracional, para a delimitação do domínio focal e desambiguização da posição nuclear, já que foram analisadas produções de FE no grupo final do enunciado.

Considerações Finais

Após o desenvolvimento de um estudo experimental, baseado na percepção dos limites do domínio focal no Português do Brasil, em que pudemos aplicar análise estatística para a interpretação de resultados obtidos através de um experimento perceptivo e, então, realizar uma análise qualitativa de aspectos específicos de produção, resta-nos tecer algumas considerações sobre nossos achados, relacionando-os às hipóteses aventadas ao início deste estudo.

Podemos dizer que nossa primeira hipótese, sobre a maior delimitação perceptiva do domínio focal do Foco Estreito, sobre palavra fonológica (ω), em relação ao que chamamos de Foco Complexo (φ) foi confirmada. Não somente a identificação do Foco Estreito é maior, como também apresenta maior funcionalidade, sendo a palavra fonológica (ω) o domínio preferível de aplicação do fenômeno da focalização prosódica, enquanto o sintagma fonológico (φ), tratado aqui como Foco Complexo, concentra um maior número de confusões. Estas, no entanto, são realizadas, em geral, entre constituintes que integram o próprio domínio de (φ), especialmente aqueles que ocupam a posição forte, à direita do sintagma, indicando uma certa sistematicidade das confusões.

Em relação à nossa segunda hipótese, sobre a integração dos canais auditivo e visual na otimização da percepção do constituinte focalizado, observamos que os resultados do experimento perceptivo não mostraram um efeito significativo do fator Modalidade na proporção de identificação do domínio focal pelos juízes. Isto, no entanto, não significa que a Modalidade não desempenhe papel algum na percepção do Foco Estreito. Pode estar em parte relacionado ao que se chama de ceiling effect, que pode ter ocorrido pelo fato de as pistas auditivas já serem muito eficientes na identificação do constituinte focalizado, na modalidade auditiva (AU), não havendo como otimizar sua identificação, no caso dos focos de extensão estreita, com a adição de pistas visuais na modalidade audiovisual (AV), tendo em vista seus altos níveis de identificação. Em relação aos focos complexos, a não otimização de sua identificação na modalidade audiovisual pode estar relacionada à ausência de pistas visuais claramente sincronizadas com o início destes domínios.

Neste mesmo sentido, podemos dizer que nossa terceira hipótese, sobre a primazia das pistas acústicas sobre as visuais na identificação do constituinte focalizado, também foi contemplada, com as pistas prosódicas carregando as informações essenciais sobre a delimitação do domínio focal. Isto poderia ser atribuído à maior precisão da marcação acústica na linha temporal, enquanto as marcações visuais seriam menos precisas em seu alinhamento com a porção focalizada.

Além disso, uma descrição qualitativa, baseada em alguns critérios previamente expostos de seleção dos contornos melódicos, permitiu-nos observar aspectos interessantes: em produções de foco complexo, é comum que alguns falantes utilizem, para além da estratégia melódica de acomodação dos padrões, também uma estratégia de reforço duracional, delimitando de forma mais precisa o domínio focal. Isto foi observado principalmente quando a porção focal coincidia com a posição nuclear do enunciado, cujo alongamento silábico atuou para sua desambiguização.

Também podemos dizer que a acomodação do padrão melódico focal no modo assertivo (FC) parece encontrar maior dificuldade do que no modo interrogativo (FE). Considerando especificamente os tipos de foco analisados e seus padrões melódicos, poderíamos aventar que a realização melódica do Foco Contrastivo, por exemplo, apresentaria maior complexidade, por se estender à porção pós-focal do enunciado, com o deaccenting, enquanto a realização melódica do Foco com Estranheza estaria mais restrita ao domínio do constituinte focalizado.

Portanto, este estudo apresentou uma compreensão mais ampla da inscrição da focalização na estrutura prosódica do Português do Brasil, permitindo-nos chegar às conclusões anteriormente apresentadas. No entanto, em trabalhos futuros, a utilização de técnicas como a análise pela (res)síntese pode nos auxiliar a verificar se de fato há uma limitação da língua na produção focal sobre constituintes complexos. Desse modo, ainda há muito a ser explorado sobre este tema.

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NOTAS

  • 1
    Este artigo foi desenvolvido a partir de um dos tópicos analisados na tese de Doutrorado de CARNAVAL (2021CARNAVAL, Manuella. Focalização no português do Brasil: um estudo multimodal. 2021. 303 f. Tese (Doutorado em Letras Vernáculas - Língua Portuguesa) - Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.), a saber, a produção e percepção multimodal do domínio focal, isto é, da extensão dos constituintes focalizados.
  • 2
    Observa-se que a extensão intermediária corresponde ao domínio do sintagma fonológico (φ) quando estes são ramificados, tendo em vista que os (φ)s não ramificados apresentam extensão estreita, equivalente à palavra fonológica (ω).
  • 3
    Para maiores esclarecimentos, ver Carnaval (2021CARNAVAL, Manuella. Focalização no português do Brasil: um estudo multimodal. 2021. 303 f. Tese (Doutorado em Letras Vernáculas - Língua Portuguesa) - Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.).
  • 4
    A modalidade visual (VI) não foi considerada, isoladamente, neste estudo, já que a identificação do constituinte focalizado sem o elemento acústico não abarcaria o componente estrutural na marcação do foco sobre os diferentes domínios prosódicos estabelecidos na organização do fluxo da fala.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    14 Set 2021
  • Aceito
    18 Dez 2021
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