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Falha do decúbito ventral na síndrome do desconforto respiratório agudo moderado-grave: e agora?

Em 2013, foi publicado o estudo randomizado, controlado, prospectivo e multicêntrico PROSEVA,(11 Guérin C, Reignier J, Richard JC, Beuret P, Gacouin A, Boulain T, Mercier E, Badet M, Mercat A, Baudin O, Clavel M, Chatellier D, Jaber S, Rosselli S, Mancebo J, Sirodot M, Hilbert G, Bengler C, Richecoeur J, Gainnier M, Bayle F, Bourdin G, Leray V, Girard R, Baboi L, Ayzac L; PROSEVA Study Group. Prone positioning in severe acute respiratory distress syndrome. N Engl J Med. 2013;368(23):2159-68.) que comparou o decúbito ventral precoce de 16 horas com o decúbito dorsal em 474 pacientes com síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA) com pressão parcial de oxigênio/fração inspirada de oxigênio (PaO2/FiO2) < 150 e pressão expiratória positiva final (PEEP) > 5cmH2O. Esse estudo revelou que o decúbito ventral, nesses pacientes, diminuiu as taxas de mortalidade aos 28 e 90 dias, e o decúbito ventral começou a ser indicado nestes casos desde então. O estudo em questão também revelou que PaO2/FiO2 foi maior nos Dias 3 e 5 no Grupo Decúbito Ventral do que no Grupo Decúbito dorsal. A pressão de platô do sistema respiratório (Pplatsr) foi 2cmH2O mais baixa no Grupo Decúbito Ventral do que no Grupo Decúbito Dorsal no Dia 3. A taxa média de decúbito ventral por paciente foi de 4 ± 4, e a duração média, por sessão, foi de 17 ± 3 horas. Os bloqueadores neuromusculares foram utilizados durante 5,6 ± 5,0 dias, no Grupo Decúbito Dorsal, e por 5,7 ± 4,7 dias, no Grupo Decúbito Ventral (p = 0,74). Foi administrada sedação intravenosa durante 9,5 ± 6,8 e 10,1 ± 7,2 dias nos dois grupos, respectivamente (p = 0,35). Os autores estratificaram os pacientes de acordo com os quartis da PaO2/FiO2 no momento da internação e não encontraram diferenças nos resultados. A taxa de sucesso de extubação foi significativamente maior no grupo decúbito ventral. No entanto, a duração da ventilação mecânica (VM) invasiva, o tempo de internação na unidade de terapia intensiva (UTI), a incidência de pneumotórax, a taxa de uso de ventilação não invasiva após a extubação e a taxa de traqueotomia não diferiram significativamente entre os dois grupos.(11 Guérin C, Reignier J, Richard JC, Beuret P, Gacouin A, Boulain T, Mercier E, Badet M, Mercat A, Baudin O, Clavel M, Chatellier D, Jaber S, Rosselli S, Mancebo J, Sirodot M, Hilbert G, Bengler C, Richecoeur J, Gainnier M, Bayle F, Bourdin G, Leray V, Girard R, Baboi L, Ayzac L; PROSEVA Study Group. Prone positioning in severe acute respiratory distress syndrome. N Engl J Med. 2013;368(23):2159-68.)

Em 2020, Lee et al.(22 Lee HY, Cho J, Kwak N, Choi SM, Lee J, Park YS, et al. Improved oxygenation after prone positioning may be a predictor of survival in patients with acute respiratory distress syndrome. Crit Care Med. 2020;48(12):1729-36.) relataram 116 pacientes com SDRA que receberam ventilação em decúbito ventral, dos quais 45 (38,8%) eram sobreviventes da UTI. Embora não houvesse diferença na PaO2/FiO2 antes da primeira sessão de decúbito ventral entre os sobreviventes da UTI e os não sobreviventes, os sobreviventes da UTI apresentavam maior PaO2/FiO2 após o decúbito ventral do que os não sobreviventes, com diferença significativa entre os grupos (p < 0,001). Na análise multivariada de regressão de Cox, os responsivos ao decúbito ventral (razão de risco - RR - 0,11; intervalo de confiança de 95% - IC95% - 0,05 - 0,25), as condições de imunocomprometimento (RR 2,15; IC95% 1,15 - 4,03) e a Sequential Organ Failure Assessment (RR 1,16; IC95% 1,06 - 1,27) foram significativamente associados à mortalidade aos 28 dias. Nesse estudo, a melhora na oxigenação após o primeiro decúbito ventral foi importante preditor de sobrevida em pacientes com SDRA moderada a grave.

Em outro estudo, Jochmans et al.(33 Jochmans S, Mazerand S, Chelly J, Pourcine F, Sy O, Thieulot-Rolin N, et al. Duration of prone position sessions: a prospective cohort study. Ann Intensive Care. 2020;10(1):66.) analisaram 103 pacientes (95% com SDRA) durante 231 sessões de decúbito ventral, com duração média de 21,5 ± 5 horas por sessão. Apresentaram aumento significativo do pH, da complacência estática e da PaO2/FiO2, com redução significativa da pressão parcial de dióxido de carbono (PaCO2), da Pplatsr, da inclinação da fase três da capnografia volumétrica, da pressão parcial do dióxido de carbono corrente final (PetCO2), da ventilação do espaço morto fisiológico (VD/VT-phy) e da pressão de distensão (∆P). Os efeitos fisiológicos benéficos continuaram após 16 horas de decúbito ventral e, pelo menos, até 24 horas em alguns pacientes. Na evolução dos parâmetros respiratórios durante a primeira sessão e durante as sessões conjuntas, não foram encontrados preditores de resposta ao decúbito ventral, quer antes, durante ou 2 horas após o regresso ao decúbito dorsal.

Em pacientes com SDRA, a mudança do decúbito dorsal para o ventral gera uma distribuição mais uniforme das razões gás-tecido ao longo do eixo dependente-não dependente da gravidade, além de uma distribuição mais homogênea da tensão (stress) e da deformação pulmonar a partir da capacidade residual funcional pulmonar (strain).(44 Guérin C, Albert RK, Beitler J, Gattinoni L, Jaber S, Marini JJ, et al. Prone position in ARDS patients: why, when, how and for whom. Intensive Care Med. 2020;46(12):2385-96.) A mudança para o decúbito ventral é, geralmente, acompanhada de melhora acentuada nos gases sanguíneos arteriais, o que se deve principalmente à melhor correspondência global entre ventilação e perfusão. A melhora na oxigenação e a redução da mortalidade são as principais razões para implementar o decúbito ventral em pacientes com SDRA com PaO2/FiO2 menor que 150.(44 Guérin C, Albert RK, Beitler J, Gattinoni L, Jaber S, Marini JJ, et al. Prone position in ARDS patients: why, when, how and for whom. Intensive Care Med. 2020;46(12):2385-96.)

Recentemente, a ventilação em decúbito ventral tem sido amplamente utilizada na insuficiência respiratória aguda devido à SDRA associada a doença do coronavírus 2019 (COVID-19). Kharat et al.(55 Kharat A, Simon M, Guérin C. Prone position in COVID 19-associated acute respiratory failure. Curr Opin Crit Care. 2022;28(1):57-65.) analisaram 24 estudos observacionais de pacientes com SDRA causada por COVID-19 que receberam ventilação em decúbito ventral. Três estudos compararam os doentes com SDRA relacionada à COVID-19 colocados em decúbito ventral com os pacientes que não foram colocados em decúbito ventral. A mortalidade não foi significativamente diferente entre os grupos (RC 0,45 [IC95% 0,09 - 2,18]), porém a heterogeneidade foi extremamente alta (I22 Lee HY, Cho J, Kwak N, Choi SM, Lee J, Park YS, et al. Improved oxygenation after prone positioning may be a predictor of survival in patients with acute respiratory distress syndrome. Crit Care Med. 2020;48(12):1729-36. = 91%). Quinze estudos tinham dados da PaO2/FiO2 disponíveis antes e durante o decúbito ventral. Exceto em dois estudos, o aumento médio da PaO2/FiO2 no decúbito ventral foi superior a 20mmHg em relação ao seu valor antes do decúbito ventral, que é um limiar comum usado para definir pacientes responsivos. A taxa de responsivos variou de 9 a 77%. Sete estudos forneceram dados sobre a complacência estática do sistema respiratório em pacientes em decúbito dorsal, pré-dorsal e ventral, a qual aumentou significativamente após algumas horas em decúbito ventral em 2mL/cmH2O em média (z = -2,68; p < 0,01; I22 Lee HY, Cho J, Kwak N, Choi SM, Lee J, Park YS, et al. Improved oxygenation after prone positioning may be a predictor of survival in patients with acute respiratory distress syndrome. Crit Care Med. 2020;48(12):1729-36. = 30%). A resposta fisiológica a curto prazo é consistente com o que é conhecido na SDRA clássica não relacionada à COVID-19. Três estudos com pacientes intubados com COVID-19 constataram que o resultado foi melhor nos responsivos do que nos não responsivos (RC 0,44 [IC95% 0,27 - 0,71]); p < 0,01] sem qualquer heterogeneidade (I22 Lee HY, Cho J, Kwak N, Choi SM, Lee J, Park YS, et al. Improved oxygenation after prone positioning may be a predictor of survival in patients with acute respiratory distress syndrome. Crit Care Med. 2020;48(12):1729-36. = 0%). Os autores observaram a inexistência de estudos randomizados sobre decúbito ventral em pacientes com SDRA decorrente de COVID-19.

Fossali et al.(66 Fossali T, Pavlovsky B, Ottolina D, Colombo R, Basile MC, Castelli A, et al. Effects prone position on lung recruitment and ventilation-perfusion matching in patients with COVID-19 acute respiratory distress syndrome: a combined CT scan/electrical impedance tomography study. Crit Care Med. 2022;50(5):723-32.) estudaram os efeitos protetores pulmonares do decúbito ventral em 21 pacientes com SDRA relacionada à COVID-19 analisando a tomografia computadorizada (TC) de tórax e a tomografia de impedância elétrica. Eles observaram que o decúbito ventral induziu um extenso recrutamento alveolar nas regiões dorsais e o desrecrutamento alveolar nas regiões ventrais do pulmão. O recrutamento dorsal reduz o risco de atelectrauma regional em comparação com o decúbito dorsal. Eles observaram que as regiões pulmonares ventrais, após o decúbito ventral, são caracterizadas por uma fração reduzida de unidades ventiladas e não perfundidas e uma relação reduzida de espaço morto/shunt. O espaço morto medido pela tomografia de impedância elétrica foi reduzido nas regiões ventrais dos pulmões, e a relação espaço morto/shunt diminuiu significativamente (5,1 [2,3 - 23,4] versus 4,3 [0,7 - 6,8]; p = 0,035), revelando melhora na relação ventilação-perfusão.

Nesta edição da Critical Care Science, Sanabria-Rodríguez et al.(77 Sanabria-Rodríguez OO, Cardozo-Avendaño SL, Muñoz-Velandia OM. Factors associated with a nonresponse to prone positioning in patients with severe acute respiratory distress syndrome due to SARS-CoV-2. Crit Care Sci. 2023;35(2):156-162.) analisaram 724 pacientes com COVID-19 e SDRA grave que receberam VM invasiva e que, devido à hipoxemia refratária, foram submetidos a decúbito ventral. Não responderam ao decúbito ventral 159 pacientes (21,9%). A variação mediana da PaO2/FiO2 foi de 62,8% nos responsivos (intervalo interquartil - IQ - 42,85 - 100) e 2,7% (IQ 7,63 - 11,36) nos não responsivos. Os não responsivos apresentaram níveis mais altos de dímero D e PaO2/FiO2 pré-decúbito ventral; consolidação pulmonar mais frequente; necessidade mais frequente de três ou mais sedativos e período mais longo entre o início da VM e o início do decúbito ventral. A resposta da PaO2/FiO2 após o decúbito ventral foi menor quando a PaO2/FiO2 pré-intubação ou pré-decúbito ventral foi maior, quando a pressão de distensão foi ≥ 15cmH2O e em pacientes que receberam mais sedativos. O modelo de regressão logística mostrou que a chance de não responder ao decúbito ventral aumentou significativamente a cada dia após o início da VM invasiva. O modelo também mostrou que a probabilidade de não responder ao decúbito ventral era maior com os achados radiológicos de consolidação pulmonar ou padrão radiológico misto do que com padrão em vidro fosco. Os autores observaram baixa correlação entre PaO2/FiO2 pré-intubação e PaO2/FiO2 pré-decúbito ventral. A probabilidade de não responder ao decúbito ventral foi menor em pacientes com PaO2/FiO2 pré-intubação de 100 a 150 do que em pacientes com PaO2/FiO2 pré-intubação de 150. A avaliação da capacidade de discriminação mostrou que o modelo previu corretamente a não resposta ao decúbito ventral em 79,28% dos casos, com capacidade de discriminação adequada (área sob a curva - ASC - 0,713). Este estudo documentou resposta em 78% dos pacientes com SDRA causada pela COVID-19 em decúbito ventral, e isso é semelhante à taxa de sucesso de 70% relatada na literatura. Os fatores associados à não resposta foram tempo desde o início da VM até o decúbito ventral; valor da PaO2/FiO2 pré-decúbito ventral e padrão radiológico misto ou de consolidação multilobar. Os pacientes não responsivos também apresentaram taxas de mortalidade mais altas (54,1% versus 31,3%; p < 0,001).

O reconhecimento dos fatores associados à falha da ventilação em decúbito ventral pode ajudar a identificar os candidatos a outras estratégias de resgate, incluindo decúbito ventral mais extenso,(88 Karlis G, Markantonaki D, Kakavas S, Bakali D, Katsagani G, Katsarou T, et al. Prone position ventilation in severe ARDS due to COVID-19: comparison between prolonged and intermittent strategies. J Clin Med. 2023;12(10):3526.) titulação da PEEP (usando impedância elétrica ou TC de tórax),(99 Barbas CS, Matos GF. Recruitment manuevers. In: Heunks L, Schultz MJ, editors. ERS practical handbook of invasive mechanical ventilation. Sheffield, UK: European Respiratory Society; 2019. p.185-194.) óxido nítrico inalado e oxigenação por membrana extracorpórea veno-venosa precoce.(1010 Combes A, Hajage D, Capellier G, Demoule A, Lavoué S, Guervilly C, Da Silva D, Zafrani L, Tirot P, Veber B, Maury E, Levy B, Cohen Y, Richard C, Kalfon P, Bouadma L, Mehdaoui H, Beduneau G, Lebreton G, Brochard L, Ferguson ND, Fan E, Slutsky AS, Brodie D, Mercat A; EOLIA Trial Group, REVA, and ECMONet. Extracorporeal membrane oxygenation for severe acute respiratory distress syndrome. N Engl J Med. 2018;378(21):1965-75.)

REFERENCES

  • 1
    Guérin C, Reignier J, Richard JC, Beuret P, Gacouin A, Boulain T, Mercier E, Badet M, Mercat A, Baudin O, Clavel M, Chatellier D, Jaber S, Rosselli S, Mancebo J, Sirodot M, Hilbert G, Bengler C, Richecoeur J, Gainnier M, Bayle F, Bourdin G, Leray V, Girard R, Baboi L, Ayzac L; PROSEVA Study Group. Prone positioning in severe acute respiratory distress syndrome. N Engl J Med. 2013;368(23):2159-68.
  • 2
    Lee HY, Cho J, Kwak N, Choi SM, Lee J, Park YS, et al. Improved oxygenation after prone positioning may be a predictor of survival in patients with acute respiratory distress syndrome. Crit Care Med. 2020;48(12):1729-36.
  • 3
    Jochmans S, Mazerand S, Chelly J, Pourcine F, Sy O, Thieulot-Rolin N, et al. Duration of prone position sessions: a prospective cohort study. Ann Intensive Care. 2020;10(1):66.
  • 4
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  • 5
    Kharat A, Simon M, Guérin C. Prone position in COVID 19-associated acute respiratory failure. Curr Opin Crit Care. 2022;28(1):57-65.
  • 6
    Fossali T, Pavlovsky B, Ottolina D, Colombo R, Basile MC, Castelli A, et al. Effects prone position on lung recruitment and ventilation-perfusion matching in patients with COVID-19 acute respiratory distress syndrome: a combined CT scan/electrical impedance tomography study. Crit Care Med. 2022;50(5):723-32.
  • 7
    Sanabria-Rodríguez OO, Cardozo-Avendaño SL, Muñoz-Velandia OM. Factors associated with a nonresponse to prone positioning in patients with severe acute respiratory distress syndrome due to SARS-CoV-2. Crit Care Sci. 2023;35(2):156-162.
  • 8
    Karlis G, Markantonaki D, Kakavas S, Bakali D, Katsagani G, Katsarou T, et al. Prone position ventilation in severe ARDS due to COVID-19: comparison between prolonged and intermittent strategies. J Clin Med. 2023;12(10):3526.
  • 9
    Barbas CS, Matos GF. Recruitment manuevers. In: Heunks L, Schultz MJ, editors. ERS practical handbook of invasive mechanical ventilation. Sheffield, UK: European Respiratory Society; 2019. p.185-194.
  • 10
    Combes A, Hajage D, Capellier G, Demoule A, Lavoué S, Guervilly C, Da Silva D, Zafrani L, Tirot P, Veber B, Maury E, Levy B, Cohen Y, Richard C, Kalfon P, Bouadma L, Mehdaoui H, Beduneau G, Lebreton G, Brochard L, Ferguson ND, Fan E, Slutsky AS, Brodie D, Mercat A; EOLIA Trial Group, REVA, and ECMONet. Extracorporeal membrane oxygenation for severe acute respiratory distress syndrome. N Engl J Med. 2018;378(21):1965-75.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    09 Jun 2023
  • Aceito
    09 Jun 2023
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