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Tratamento com hrGH da baixa estatura induzida pelo uso crônico de glicocorticóide em crianças

hrGH treatment of glucocorticoid-induced short stature in children

Resumos

O uso crônico de glicocorticóides no tratamento de doenças sistêmicas causa diminuição da velocidade de crescimento (VC), podendo acarretar perda estatural final. As interações entre o eixo adrenal e o eixo GH-sistema IGF têm sido descritas, podendo ocorrer em nível hipotalâmico-hipofisário e na regulação do sistema IGF, inclusive modulando o sinal do IGF-1R. Pode-se dizer que o quadro clínico deve ser considerado como estado de deficiência de Igf-1, absoluta e/ou funcional. As intervenções que possibilitam a normalização funcional do eixo GH-IGF poderiam reduzir a perda estatural destas crianças. Os estudos realizados em pacientes com artrite reumatóide juvenil em tratamento com corticóides mostraram aceleração da VC e diminuição da perda protéica com o uso de GH recombinante humano (hrGH). A aceleração da VC foi também descrita em pacientes sob corticoterapia crônica por causa da doença intestinal inflamatória ou do transplante renal após o uso de hrGH. A dose de hrGH guarda correlação positiva com a aceleração da VC e os resultados reforçam que esta deficiência funcional do eixo GH-IGF pode ser revertida com a administração de hrGH. O efeito do hrGH é restrito ao período de tratamento e depende do esquema de reposição do hrGH, do estado nutricional e das condições da doença de base.

Glicocorticóide; GH; Igf-1; Corticoterapia; Crescimento; Velocidade de crescimento


The treatment of systemic diseases with glucocorticoids is often associated with decreased height velocity (HV), and can result in shorter final height. Interactions between adrenal and GH-IGF axis have been described and can occur at hypothalamic-pituitary level or at the regulation of IGF system, including the IGF1R signaling. The clinical state of these patients may be considered as an absolute and/or functional IGF-1 deficiency. Interventions aiming to restore the normal function of GH-IGF axis might reduce the glucocorticoids-induced growth suppression in these children. It has been shown that recombinant human GH (hrGH) induces an increase in HV and a decrease in protein loss in patients with juvenile idiopathic arthritis treated with glucocorticoids. Significant increment in HV was also described after hrGH treatment in children under glucocorticoid therapy due to inflammatory bowel disease or renal transplantation. There is a positive correlation between HV and the dose of hrGH. The results support that the IGF-1 deficiency in these children may be counteract by hrGH therapy. The effect of hrGH is observed only during the treatment period and depends on the replacement strategy, nutritional status and disease control.

Glucocorticoid; Glucocorticoid therapy; GH; IGF-1; Growth; Height velocity


REVISÃO

Tratamento com hrGH da baixa estatura induzida pelo uso crônico de glicocorticóide em crianças

hrGH treatment of glucocorticoid-induced short stature in children

Carlos Eduardo Martinelli Jr.I; Heloísa M. Cunha PalharesII

IServiço de Endocrinologia Pediátrica do Departamento de Puericultura e Pediatria da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), Ribeirão Preto, SP, Brasil

IIDisciplina de Endocrinologia e Metabologia do Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), Uberaba, MG, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Carlos Eduardo Martinelli Jr. Departamento de Puericultura e Pediatria da USP Av. Bandeirantes, 3900 14049-900 Ribeirão Preto, SP E-mail: cemart@fmrp.usp.br

RESUMO

O uso crônico de glicocorticóides no tratamento de doenças sistêmicas causa diminuição da velocidade de crescimento (VC), podendo acarretar perda estatural final. As interações entre o eixo adrenal e o eixo GH-sistema IGF têm sido descritas, podendo ocorrer em nível hipotalâmico-hipofisário e na regulação do sistema IGF, inclusive modulando o sinal do IGF-1R. Pode-se dizer que o quadro clínico deve ser considerado como estado de deficiência de Igf-1, absoluta e/ou funcional. As intervenções que possibilitam a normalização funcional do eixo GH-IGF poderiam reduzir a perda estatural destas crianças. Os estudos realizados em pacientes com artrite reumatóide juvenil em tratamento com corticóides mostraram aceleração da VC e diminuição da perda protéica com o uso de GH recombinante humano (hrGH). A aceleração da VC foi também descrita em pacientes sob corticoterapia crônica por causa da doença intestinal inflamatória ou do transplante renal após o uso de hrGH. A dose de hrGH guarda correlação positiva com a aceleração da VC e os resultados reforçam que esta deficiência funcional do eixo GH-IGF pode ser revertida com a administração de hrGH. O efeito do hrGH é restrito ao período de tratamento e depende do esquema de reposição do hrGH, do estado nutricional e das condições da doença de base.

Descritores: Glicocorticóide; GH, Igf-1; Corticoterapia; Crescimento; Velocidade de crescimento

ABSTRACT

The treatment of systemic diseases with glucocorticoids is often associated with decreased height velocity (HV), and can result in shorter final height. Interactions between adrenal and GH-IGF axis have been described and can occur at hypothalamic-pituitary level or at the regulation of IGF system, including the IGF1R signaling. The clinical state of these patients may be considered as an absolute and/or functional IGF-1 deficiency. Interventions aiming to restore the normal function of GH-IGF axis might reduce the glucocorticoids-induced growth suppression in these children. It has been shown that recombinant human GH (hrGH) induces an increase in HV and a decrease in protein loss in patients with juvenile idiopathic arthritis treated with glucocorticoids. Significant increment in HV was also described after hrGH treatment in children under glucocorticoid therapy due to inflammatory bowel disease or renal transplantation. There is a positive correlation between HV and the dose of hrGH. The results support that the IGF-1 deficiency in these children may be counteract by hrGH therapy. The effect of hrGH is observed only during the treatment period and depends on the replacement strategy, nutritional status and disease control.

Keywords: Glucocorticoid; Glucocorticoid therapy; GH, IGF-1; Growth; Height velocity

INTRODUÇÃO

EMBORA NOVAS ALTERNATIVAS terapêuticas sejam buscadas, os glicocorticóides continuam a representar a principal opção de tratamento nas doenças inflamatórias crônicas, doenças auto-imunes e em receptores de transplantes. O uso de glicocorticóides no tratamento de diversas doenças sistêmicas na infância e na adolescência constitui causa reconhecida de diminuição da velocidade de crescimento (VC), podendo acarretar perda estatural final quando realizado por período prolongado. Diferentemente do que se observa na desaceleração da VC que ocorre em algumas doenças sistêmicas de curta duração, não se verifica recuperação da estatura após o uso crônico de glicocorticóides. Na maioria das doenças nas quais o tratamento com glicocorticóides é indicado, o planejamento terapêutico prevê uso prolongado ou intermitente de grandes doses deste esteróide, tornando mais preocupante as conseqüências sobre o desenvolvimento estatural destes pacientes. A desaceleração do crescimento está presente tanto no hipercortisolismo exógeno quanto no endógeno, constituindo sinal maior na diferenciação clínica entre obesidade primária e síndrome de Cushing. Os diferentes esquemas terapêuticos, com variações de dose, continuidade e freqüência, têm sido propostos na tentativa de minimizar os efeitos indesejáveis da corticoterapia, contudo, em geral a menor dose necessária para controlar a doença já se mostra suficiente para afetar o crescimento. As intervenções têm sido avaliadas, inclusive com o uso de hormônio de crescimento (GH), buscando impedir esta desaceleração.

GLICOCORTICÓIDE E O EIXO GH-IGF

As interações entre o eixo adrenal, representado pelo ACTH e cortisol, e o eixo GH-sistema IGF, incluindo IGF-1, IGF-2, IGFBPs (proteínas carreadoras dos IGFs) e os receptores de IGF têm sido estudadas nas últimas décadas. Os pacientes com hipercortisolismo endógeno apresentam, em associação à desaceleração do crescimento, diminuição da secreção hipofisária de GH e concentrações baixas de IGF-1 (1,2). Entretanto, alguns pacientes com síndrome de Cushing apresentam concentrações normais de IGF-1 quando comparados a controles com idade e índice de massa muscular (IMC) semelhantes, sugerindo que alterações em outros componentes do eixo GH-IGF possam também ocorrer para justificar a desaceleração de crescimento observada nessas crianças (3).

Em crianças normais, em condições fisiológicas, as concentrações de GH estão intimamente relacionadas às concentrações de cortisol. Estudo da secreção fisiológica do GH e do cortisol realizado em indivíduos normais sem doença crônica, genética ou endócrina, mostrou correlação entre as secreções destes dois hormônios nas 24 horas (4). Foi observada correlação positiva significante entre os parâmetros que expressam a quantidade de cortisol e de GH secretada ao longo de 24 horas, sugerindo que essas secreções, em condições fisiológicas, estão intimamente relacionadas (4). Essa inter-relação parece ser conseqüência de interações em nível hipotalâmico-hipofisário, mediante regulação da secreção do GHRH e da somatostatina e também da participação dos glicocorticóides na regulação do sistema IGF, desde a síntese de alguns componentes até a modulação do sinal do receptor tipo 1 dos IGFs (IGF-1R). Em estudos recentes, foi observado, de maneira bastante evidente, a participação do cortisol na regulação das IGFBPs, tanto in vivo quanto in vitro (5,6).

A IGFBP-1 é regulada principalmente pelas concentrações de insulina, que inibem sua produção, e apresenta variação ao longo das 24 horas que se sobrepõe quase perfeitamente ao ritmo circadiano do cortisol. A possibilidade deste fenômeno refletir apenas variação oposta à das concentrações de insulina é contestada por trabalhos com clampes hipoinsulinêmicos, nos quais a ação estimuladora do cortisol sobre a secreção de IGFBP-1 seja particularmente observada nas situações de hipoinsulinemia. A presença de região responsiva aos glicocorticóides no promoter do gene da IGFBP-1 reforça ainda mais esses achados. Embora, a ação da IGFBP-1 sobre a bioatividade dos IGFs dependa de seu estado de fosforilação, seu papel in vivo, tem sido mais freqüentemente descrito como inibidor (7-9).

Em relação à IGFBP-2, a ação dos glicocorticóides parece ser predominantemente inibitória, sendo observada correlação negativa entre as concentrações matinais de IGFBP-2 e a secreção noturna de cortisol (5).

Embora o cortisol não influencie diretamente a secreção da IGFBP-3, este esteróide parece exercer ação estimuladora sobre a proteólise da IGFBP-3, com maior quantidade de fragmentos sendo produzida em situações de maior concentração de cortisol, tanto in vitro quanto in vivo (6). O aumento da proteólise da IGFBP-3 tem sido também descrito em situações de estresse e orgânico, como na cetoacidose diabética, na qual as concentrações de cortisol se encontram elevadas (10).

Colocados em conjunto, o aumento das concentrações de IGFBP-1, o aumento de fragmentos resultantes da proteólise da IGFBP-3 e a diminuição das concentrações de IGFBP-2, conseqüência de concentrações mais elevadas de glicocorticóides, poderiam ser responsáveis pela diminuição da biodisponibilidade ou mesmo da bioatividade dos IGF. Esta diminuição de ação dos IGFs, por sua vez, ao reduzir a retroalimentação negativa em nível hipotalâmico-hipofisário, estimularia o aumento da secreção de GH, fazendo que as secreções de cortisol e de GH apresentem variações concordantes.

Entretanto, é preciso ressaltar que nas situações de hipercortisolismo endógeno ou exógeno, outras alterações hormonais, como o hiperinsulinismo secundário ao hipercortisolismo, podem mascarar este equilíbrio regulador. O hipercortisolismo é causa reconhecida de deficiência de IGF-1 secundária à deficiência de GH; todavia, a fisiopatologia desta alteração não é completamente entendida. A redução da liberação de GHRH (11) e/ou o aumento do tônus somatostatinérgico (1) ou, ainda, a inibição direta dos somatotrofos (12) têm sido considerados como causas da diminuição da secreção hipofisária de GH induzida pela exposição prolongada a concentrações suprafisiológicas de glicocorticóides. A recuperação do eixo GH-IGF em pacientes com doença de Cushing tratada pode não ocorrer, sendo elevada a porcentagem de pacientes que, após dois anos de remissão do hipercortisolismo, persiste com algum grau de deficiência de GH. O tempo de duração do hipercortisolismo parece ser um dos fatores preditivos desta deficiência (13).

Estudo em crianças com hiperplasia adrenal congênita sugeriu a existência, in vivo, de outros pontos de regulação do sistema IGF pelos glicocorticóides (14). Na hiperplasia adrenal congênita, a deficiência da secreção dos glicocorticóides associada ao aumento das concentrações de andrógenos adrenais oferece modelo único para o estudo da ação destes esteróides na regulação do sistema IGF. As pacientes virgens de tratamento ou com tratamento insuficiente apresentam concentrações elevadas de andrógenos adrenais na presença de quadro virilizante e VC acelerada, acompanhado ou não de perda de sal. Após a introdução, ou o ajuste do tratamento de reposição com glicocorticóides, as concentrações de andrógenos mostram-se menores, com normalização da VC e do balanço hidroeletrolítico. As correlações positivas entre as concentrações de andrógenos e as concentrações de IGF-1 e de IGFBP-3 são descritas em indivíduos normais ou com puberdade precoce central, visto que a associação de antiandrogênicos ao tratamento clássico da puberdade precoce central com análogos de GnRH se acompanha de diminuição das concentrações de IGF-1 e de IGFBP-3, fato não observado quando se utiliza apenas o análogo de GnRH (15,16). Entretanto, o estado de hipocortisolismo presente nas crianças com hiperplasia adrenal congênita mostrou-se de grande importância no equilíbrio das forças reguladoras dos componentes do sistema IGF. As concentrações mais elevadas de IGF-1, IGF-2 e IGFBP-3, ao lado de menores concentrações de IGFBP-1, foram observadas em situação de controle clínico adequado, na qual as concentrações de andrógenos e a VC eram menores quando comparadas às dos pacientes com controle clínico inadequado (14). Estes achados sugeriram a participação dos glicocorticóides na regulação de ponto mais distal do eixo GH-IGFs, possivelmente modulando a expressão ou a sinalização do IGF-1R. Este perfil, exatamente oposto ao observado com a elevação dos esteróides sexuais durante a puberdade, pode ser explicado pela ação dos glicocorticóides na sinalização intracelular do IGF-1R, observada in vitro. Os glicocorticóides atuam de maneira inibitória, particularmente sobre a via da fosfoinositol-3-quinase (PI3K), reduzindo a bioatividade dos IGFs (17). Esta diminuição de bioatividade dos IGFs após a instituição do tratamento com glicocorticóide parece ser o evento determinante desta regulação que levaria ao aumento da secreção de GH e conseqüente elevação das concentrações dos peptídeos cuja secreção é estimulada pelo GH, ou seja, do IGF-1, da IGFBP-3 e, possivelmente, da IGFBP-5 e da ALS (subunidade ácido-lábil). A elevação da insulinemia decorrente do aumento das concentrações de cortisol e de GH explicaria a redução nas concentrações de IGFBP-1. Nestas crianças, assim como observado em condições fisiológicas, a elevação das concentrações de glicocorticóides acompanhou-se de redução das concentrações de IGFBP-2. Por outro lado, o papel exercido pelos andrógenos parece predominar na regulação da IGFBP-4 sobre o papel dos glicocorticóides e dos IGFs, todos eles inibitórios (7).

Todas estas interações fazem que pacientes que recebam tratamento crônico com glicocorticóide em doses suprafisiológicas ou que sejam portadores de síndrome de Cushing apresentem, como sinal maior, a desaceleração da velocidade de crescimento, muitas vezes precedendo quadros clínicos mais exuberantes com outras manifestações do hipercortisolismo. Em algumas situações clínicas, estas alterações do eixo GH-IGF podem estar ainda mais agravadas pela associação com comprometimento do estado nutricional, importante regulador deste eixo, tal como observado na doença intestinal inflamatória (DII) e em doenças sistêmicas graves. Cabe salientar, também, que nas doenças inflamatórias crônicas, por exemplo, a artrite reumatóide juvenil (ARJ), o papel das citocinas inflamatórias sobre o eixo GH/IGF-1, retardando o crescimento, tem sido extensivamente estudado, principalmente da interleucina (IL)-6, do TNF-α e da IL-1β. Os altos níveis de IL-6 em camundongos transgênicos estão associados a baixos níveis de IGF-1 e IGFBP-3, secundários ao aumento do clearance de IGF-1 e da proteólise da IGFBP-3 (18). Em pacientes com ARJ e altos níveis de IL-6 também foram observados baixos níveis de IGF-1 e IGFBP-3, aumento da proteólise da IGFBP-3 e níveis normais da ALS, resultando diminuição da associação do IGF-1 ao complexo ternário de 150 kDa (19). Discute-se, também, a possibilidade de o excesso de IL-6 causar diminuição do crescimento, em parte, mediante modulação do receptor do GH (20).

USO DE GH EXÓGENO NOS QUADROS DE HIPERCORTISOLISMO

Diante da compreensão de como ocorre a regulação do crescimento pelos glicocorticóides, pode-se dizer que o quadro clínico resultante das principais alterações do eixo GH-IGF encontradas nos pacientes com hipercortisolismo endógeno ou exógeno deve ser considerado como estado de deficiência de IGF-1 absoluta e/ou funcional. Assim sendo, toda a intervenção que possibilite a normalização funcional do eixo GH-IGF poderia ser considerada como possibilidade de tratamento na tentativa de reduzir a perda estatural destas crianças e adolescentes.

É importante salientar que o paciente com hipercortisolismo, seja exógeno (terapêutico) ou endógeno (doença), é em geral portador de doença grave que representa ameaça à sua vida, e que este estado de "inativação" do eixo GH-IGF pode tanto constituir efeito colateral do tratamento quanto, em determinado momento, mecanismo adaptativo protetor.

Os estudos em pacientes com doença de Cushing têm mostrado taxas variáveis de recuperação do eixo somatotrófico após a cura do hipercortisolismo. O grande número de pacientes com deficiência de GH, por vezes, é difícil de ser interpretado, diante dos diferentes métodos terapêuticos (ressecção cirúrgica e irradiação ou ressecção cirúrgica isoladamente). Estes pacientes se beneficiam da terapia com GH exógeno quando instituída precocemente (21).

Estudo recente, analisando a recuperação do eixo GH-IGF em pacientes adultos submetidos apenas à ressecção cirúrgica para o tratamento de doença de Cushing, revelou que mais da metade apresentava algum grau de deficiência de GH após dois anos da cura do hipercortisolismo (13). A duração do hipercortisolismo mostrou-se um fator preditivo desta deficiência, revelando que a deficiência de GH-IGF pode persistir por tempo prolongado, mesmo após a normalização das concentrações de cortisol ou do término da corticoterapia.

USO DE GH NA CORTICOTERAPIA CRÔNICA

O uso mais liberal de corticóides tópicos em cremes ou soluções inalatórias (bombinhas) associado à ausência do controle adequado de vendas propiciou nova via de inibição do eixo GH-IGF, particularmente em crianças pequenas. Entretanto, a maioria dos casos de desaceleração do crescimento secundária ao uso de glicocorticóides é composta por adolescentes e crianças em uso crônico de corticoterapia sistêmica. Diversos estudos têm analisado o uso de GH recombinante como alternativa para normalizar a bioatividade do eixo GH-IGF e minimizar este efeito indesejável da terapia. Na Tabela 1 encontram-se sumarizados os principais achados de alguns destes estudos, cujos aspectos mais relevantes serão discutidos a seguir.

Tanto o uso de GH recombinante humano (hrGH) quanto do IGF-1 recombinante humano (rhIGF-1) são capazes de diminuir a perda protéica imposta pelo tratamento com glicocorticóide em humanos, sendo descrito que o IGF-1 aumenta a produção de colágeno tipo I por osteoblastos previamente tratados com hidrocortisona (37-38). Estudos realizados em pacientes com ARJ em tratamento prolongado com corticóides mostraram aceleração da VC, que estava reduzida desde a instituição do tratamento, e diminuição da perda protéica com o uso concomitante de hrGH (23-26, 30), sendo observada também em alguns estudos melhora da mineralização óssea (31,33). Esta intervenção impediria que houvesse perda da estatura final, sendo descrito que cerca de 40% destes pacientes atingem estatura final abaixo de -2 escore do desvio-padrão (EDP) e que mais de 80% ficam abaixo da estatura-alvo quando não-tratados com hrGH (34). Na maioria destes estudos, a gravidade da doença (subtipo de ARJ), a atividade da doença (citocinas elevadas), a dose do glicocorticóide e o tempo de exposição a concentrações elevadas de citocinas e glicocorticóides parecem contribuir para a heterogeneidade da resposta destas crianças. A dose de hrGH utilizada nestes estudos variou de 0,15 mg/kg/semana (22 µg/kg/dia), dose próxima à dose inicial de tratamento para pacientes com deficiência de GH (33 µg/kg/dia), a 0,46 mg/kg por semana (66 µg/kg/dia) com recuperação estatural variável, mas menor que a observada nos pacientes com deficiência de GH.

Vale ressaltar que a maioria destes estudos avaliou o tratamento de crianças já comprometidas pelos efeitos secundários do uso do glicocorticóide. Estudo recente, todavia, propôs o tratamento precoce com hrGH de crianças com ARJ, tão logo preencham o diagnóstico de corticodependência (30). Das avaliadas, 30 crianças pré-puberes com ARJ foram randomizadas 1:1 para tratamento com hrGH (0,46 mg/kg/semana) ou para não receberem hrGH durante três anos. Todas haviam iniciado corticoterapia (prednisona > 0,2 mg/kg/dia) entre 12 e 15 meses, sem outras comorbidades. Os dois grupos apresentavam VC semelhante e baixa no último ano, que normalizou com o uso de hrGH já no primeiro ano de tratamento, levando ao ganho estatural médio ao término dos três anos de 0,37 EDP contra perda de 0,96 EDP no grupo não-tratado. As crianças que receberam hrGH praticamente recuperaram a estatura que tinham por ocasião do diagnóstico, enquanto as não-tratadas acumularam, desde então, -1,8 DP de déficit estatural, mostrando que a terapia com hrGH em pacientes com ARJ, quando iniciada antes do retardo de crescimento, normaliza o crescimento pré-puberal, podendo preservar o potencial de altura (30). Os autores acreditam que quanto antes for iniciado o tratamento, maior a chance de recuperação plena da estatura diante da menor exposição da placa de crescimento aos efeitos tóxicos diretos das citocinas e dos glicocorticóides (30). O efeito do tratamento com hrGH nestas crianças é restrito ao período de uso da medicação (25,32). O uso do hrGH foi bem tolerado neste estudo, entretanto, concentrações mais elevadas de insulina foram observadas no grupo que recebeu hrGH (30). Dois pacientes tiveram intolerância à glicose transitória e um apresentou diabetes melito transitória; todos os episódios ocorreram em associação a períodos de agravamento da doença e doses elevadas de corticóide (0,7 a 0,9 mg/kg/dia) (30). Intolerância à glicose foi descrita em outro grupo de pacientes que recebeu dose semelhante de hrGH, ou seja, 66 µg/kg/dia (31). Tais alterações do metabolismo dos carboidratos não foram relatadas nos estudos que empregaram dose menor de hrGH, contudo, elevação das concentrações de insulina foi observada mesmo quando utilizada doses de hrGH tão baixas quanto 33 µg/kg/dia (25).

Os estudos que analisam pacientes com ARJ em corticoterapia crônica tratados com hrGH até atingirem estatura final são escassos. Em 2007, Bechtold e cols. (23), em um dos mais longos estudos sobre o uso de GH em crianças em corticoterapia crônica, descreveram que a terapia com hrGH em longo prazo tem efeito benéfico sobre a estatura final na maioria das crianças estudadas com a forma grave da ARJ e retardo do crescimento. Neste estudo, foram selecionados 31 pacientes (n = 18 no grupo-controle e n = 13 no grupo de tratamento) com ARJ sistêmica e poliarticular com retardo importante do crescimento (desvio maior que -2,0) ou VC abaixo do percentil 25 no ano de inclusão no estudo. Todos os pacientes tinham recebido glicocorticóide diariamente pelo período médio de 3,9 ± 0,9 anos antes de iniciar o estudo. Após o período de observação de 8,4 anos, a estatura final foi alcançada nos 13 pacientes tratados por 6,7 anos com hrGH na dose de 47 µg/kg/dia (0,33 mg/kg/semana). O ganho estatural durante a puberdade foi de 1,5 vezes maior no grupo que recebeu o hrGH comparado aos 18 pacientes do grupo-controle; embora, no limite inferior descrito para indivíduos normais. Nos pacientes tratados, 11 de 13 alcançaram a altura final dentro da variação-alvo esperada, enquanto no grupo-controle somente quatro de 18 pacientes obtiveram este resultado. A perda estatural durante o período observado ocorreu em 15 pacientes do grupo-controle contra um do grupo tratado. A dose do glicocorticóide utilizada não foi estatisticamente diferente entre os dois grupos. Houve aumento absoluto na estatura de 1,6 DP no grupo tratado e perda de 0,7 DP no grupo não-tratado no período de duração do estudo, resultando ganho na estatura final de 2,3 DP no grupo que recebeu hrGH. Os autores concluíram que o uso do hrGH em crianças com ARJ tratadas com glicocorticóide resultou catch-up de crescimento mantido e conseqüente altura final dentro do canal familiar na maioria dos pacientes estudados. Apesar de a terapia com hrGH ter sido mais eficaz nos pacientes com moderada atividade da doença, os autores recomendam o tratamento em todos os pacientes com ARJ tão logo seja detectada a deficiência de crescimento, com o intuito de se evitar perda estatural adicional (23).

O uso de hrGH mostrou resultados promissores também em outras situações de corticoterapia crônica. Os pacientes com DII em uso de corticóide sistêmico, há pelo menos quatro meses, apresentaram aceleração da VC com uso de hrGH (29). A VC aferida após 6 e 12 meses mostrou aceleração significativa passando de 3,6 ± 0,5 cm/ano para 7,4 ± 0,8 cm/ano com ganho estatural de 0,5 EDP em relação à estatura no início do hrGH. Tais alterações foram acompanhadas de aumento da massa magra, diminuição da porcentagem de massa gorda e elevação das concentrações de IGF-1 e IGFBP-3. Nenhum efeito colateral foi reportado com a dose de hrGH utilizada de 50 µg/kg/dia (0,35 mg/kg/semana), embora tendência a concentrações mais elevadas de insulina tenha sido observada nos indivíduos que receberam hrGH e corticóide. Não houve repercussão sobre a doença de base (29).

A aceleração da VC foi descrita em outros estudos envolvendo uso de hrGH em pacientes com DII e em pacientes sob corticoterapia pós-transplante renal (22,27).

Foi descrita em estudo baixa VC na presença de concentrações normais de IGF-1 envolvendo oito crianças com síndrome nefrótica dependente de glicocorticóide, sugerindo a existência de quadro de resistência ao IGF-1 nestas crianças. A administração durante um ano de hrGH na dose de 46 µg/kg/dia resultou aceleração da VC e ganho estatural em todos os indivíduos, acompanhadas de elevação das concentrações de IGF-1 (28,38).

Como esperado, estes estudos mostram que a dose de hrGH e as concentrações de IGF-1 guardam correlação positiva com a aceleração da VC (25). Embora em alguns trabalhos seja descrita correlação negativa entre a dose de glicocorticóide empregada e a melhor resposta ao hrGH, os estudos não são concordantes, podendo esta refletir apenas a correlação com a gravidade da doença de base (22,23,25,26). É importante destacar que o controle da doença de base, do quadro inflamatório e o estado nutricional representam fatores importantes na determinação do crescimento destas crianças e conseqüentemente da melhor ou pior resposta ao GH (23,39,40). Um caso isolado de papiledema, sem outros sinais de hipertensão intracraniana benigna, revertido com a suspensão do hrGH, e um caso de epifisiólise da cabeça do fêmur foram descritos, ambos em pacientes pós-transplante renal, existindo questionamento sobre a participação da terapia com hrGH em alguns casos de rejeição do enxerto renal (22,27).

Na busca de alternativas terapêuticas visando à reversão da inibição do crescimento das crianças que necessitam do uso prolongado de corticóides, experimento em animais utilizando-se análogo de ghrelina, como agente estimulador do eixo GH-IGF, mostrou resultados interessantes ao descrever que a administração deste peptídeo a animais submetidos à corticoterapia crônica acompanhou-se de elevação das concentrações de IGF-1, aumento da ingestão de alimentos e da eficácia destes alimentos, definida como o ganho de peso dividido pela quantidade de alimento ingerido e conseqüente recuperação do crescimento (41).

A associação de DHEA ao tratamento clínico com GH, em mulheres idosas em uso crônico de prednisona (5-10 mg/dia), não apontou resultado significativamente superior ao do tratamento com GH isoladamente, na redução do anabolismo protéico determinado pelos glicocorticóides. Tanto o tratamento com GH, na dose de 0,8 mg/dia, quanto a associação com DHEA, na dose de 50 mg/dia, mostrou-se capaz de normalizar as concentrações de IGF-1. Entretanto, em ambos os tratamentos, apesar de a baixa dose de hrGH utilizada, observou-se elevação da insulinemia e diminuição da sensibilidade insulínica (42). Vale salientar a menor secreção fisiológica de GH observada em idosos, com conseqüente menor dose de reposição necessária para normalizar as concentrações de IGF-1 em pacientes com deficiência de GH.

CONCLUSÕES

Estes dados reforçam o conceito de que estados de deficiência funcional ou "inativação" do eixo GH-IGF induzida pela corticoterapia crônica podem ser revertidos com a administração de hrGH. O efeito do tratamento é, todavia, restrito ao período de uso do hrGH.

A aceleração da VC ocorre, de maneira significativa, na maioria dos casos e a recuperação estatural (catch up) pode também ocorrer durante o uso do hrGH. A intensidade destes resultados depende de fatores intrínsecos e extrínsecos ao tratamento, ou seja, do esquema de reposição do hrGH e das condições da doença de base (gravidade, atividade, estado nutricional, comorbidades). Assim sendo, diante do conhecimento das interações do eixo GH-IGF com os glicocorticóides, citocinas e fatores nutricionais, entre outros e, considerando-se a latência de recuperação do eixo após reversão do hipercortisolismo, a terapia com hrGH poderá oferecer melhor resultado se iniciada tão logo se estabilize a doença de base e seja caracterizada a necessidade do uso crônico do glicocorticóide, evitando-se a perda estatural prévia à instituição do tratamento com hrGH.

A dose utilizada deve ser individualizada visando proporcionar a retomada do crescimento, com monitorização das concentrações de IGF-1. Provavelmente, doses de hrGH que estimulem concentrações de IGF-1 próximas ao limite superior da normalidade sejam as que melhor resultado proporcionem em relação ao crescimento, tendo em vista as ações dos glicocorticóides sobre o IGF-1R. Considerando que as ações hiperglicemiantes do GH podem somar-se ao efeito hiperglicemiante da corticoterapia crônica e do estado inflamatório da doença de base, o monitoramento de possíveis alterações no metabolismo de carboidrato, particularmente em relação à resistência insulínica, deve ser realizado de modo mais intensivo nestes pacientes.

Recebido em 12/6/2008

Aceito em 20/6/2008

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  • Endereço para correspondência:

    Carlos Eduardo Martinelli Jr.
    Departamento de Puericultura e Pediatria da USP
    Av. Bandeirantes, 3900
    14049-900 Ribeirão Preto, SP
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Ago 2008
    • Data do Fascículo
      Jul 2008

    Histórico

    • Recebido
      12 Jun 2008
    • Aceito
      20 Jun 2008
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