Colesteatoma do rombencéfalo
Roberto Melaragno Filho
Assistente de Clínica Neurológica da Fac. Med. Univ. S. Paulo (Prof. Adherbal Tolosa)
SUMÁRIO
O autor registra o caso de um paciente de 34 anos, cuja enfermidade se iniciara há sete anos, com distúrbios diencéfalo-hipofisários (poliúria, polidIpsia, engordamento exagerado, impotência sexual), úlcera duodenal e progressiva e intensa síndrome cerebelar: ataxia estática e dinâmica, principalmente nos membros inferiores, acarretando completa astasia-abasia, assinergia, dismetria, disartria, disfagia. Não apresentava qualquer sintoma ou sinal de hipertensão intracraniana; os exames do líquido cefalorraquídio e neuroftalmológico não revelaram qualquer alteração de caráter tumoral ou hipertensivo. O exame anátomo-patológico demonstrou um grande colesteatoma do rombencéfalo, insinuando-se entre o vermis cerebelar e o bulboraquídio.
SUMMARY
This paper refers to a 34 years aged man, whose symptoms started seven years before his death, and consisted of diencephalic and hypophiseal disturbances (polypsia, obesity, sexual impotence), duodenal ulcer and a progressive and marked cerebellar syndrome: static and dynamic ataxia, chiefly of low limbs, resulting in a complete astasia-abasia, asynergia, dysmetria, dysarthria and dysphagia. No signs of intracranial hypertension were found; examination of cerebrospinal fluid and fundus oculi did not reveal any alteration indicating the presence of a tumor or hypertension. At necropsy was found in the rhombencephalon a large cholesteatoma, interposed between the cerebellar vermis and medulla oblongata.
Peculiaridades diversas tornam digno de registro o presente caso; realmente, a raridade anátomo-patológica do neoplasma, sua localização na fossa craniana posterior e, nesse sede, longa evolução desacompanhada de sinais clínicos, liquóricos e oftalmoscópicos de hipertensão intracraniana, permitem catalogar esta observação entre os casos de tumores intracranianos atípicos.
Alc. Ol., com 34 anos de idade, branco, casado, brasileiro, corretor. Internado no Hospital das Clínicas, Serviço de Neurologia (Prof. Adherbal Tolosa), em 7 de fevereiro de 1945.
Queixa - Acentuadas dificuldades na marcha, tornando impossível a locomoção sem apoio. Distúrbios da coordenação dos movimentos e alteração da fala. Visão dupla. Abolição da potência coeundi e discreta retenção urinária. Dores gástricas.
História da moléstia atual - A história de nosso paciente remonta a cerca de 7 anos, evoluindo depois de modo progressivo e insidioso. Começou por perceber que batia fortemente, durante a marcha, com o calcanhar direito no solo. Nessa ocasião apresentou vômitos, acompanhados de náuseas, repetidos e bruscos. Ao mesmo tempo, sofria de repentinas tonturas, não do tipo giratório. Cerca de 8 meses depois, a incoordenação de movimentos atingiu também o membro inferior esquerdo e a marcha revestiu-se do tipo ébrio, a ponto do paciente, em sua cidade natal, ser considerado como bêbado inveterado. Durante a marcha, não podia olhar para os lados sob pena de, exacerbando-se o desequilíbrio, cair ao chão. Contudo, à noite ou ao fechar os olhos, não havia agravação de seus sintomas atáxicos. Desde essa época, refere intensa disfagia, quer para sólidos, quer para líquidos. Paralelamente aos distúrbios do equilíbrio, foi perdendo gradualmente a potência coeundi e engordando, uniformemente, em todo o corpo. Consultou o médico da cidade onde residia que, fazendo o diagnóstico de síndromo de Parkinson, prescreveu o tratamento búlgaro, além de neosalvarsan, bismuto e mercúrio. O início de sua enfermidade acompanhou-se de uma poliúria e polidipsia acentuadas, que obrigavam o paciente a se levantar várias vezes por noite, chegando a tomar, de uma só vez, litro e meio de água; todavia, tais sintomas foram passageiros. Ainda com os primeiros sintomas, surgiram dores na região epigástrica, acompanhadas de sensação de peso e azia que, em geral, se instalavam antes das refeições e que desapareciam após a alimentação. Por vezes, à noite, acordava preso dos mesmos sintomas, sendo obrigado a ingerir qualquer alcalino, com o qual melhorava incontinente. Esta sintomatologia gástrica tem sido constante desde o início da doença até o ingresso do paciente na enfermaria, constituindo a queixa primeira do paciente. Cerca de um ano e oito meses depois do início da doença, começou a sofrer de ataques: percebia quando ia sofrer as crises, mediante tonturas muito fortes, e caía sem perder os sentidos, "reparando em tudo que se passava a seu redor, sem poder, no entanto, pronunciar qualquer palavra". Com as quedas, bruscas por vezes, contundia-se; mais tarde, ao sentir as tonturas premonitórias, acostumou-se a sentar no chão, evitando quedas. Tais acessos, que nunca manifestaram o caráter convulsivo, repetiam-se diariamente e até várias vezes no mesmo dia. Durante um ano, raros dias passavam sem se acompanhar dessas crises, as quais, vencidas, não determinavam qualquer estado de sonolência, tontura ou cefaléia, mas sim uma exacerbação do caráter ébrio da marcha. Após um ano de duração, os ataques desapareceram depois de tratamento antiluético. Dois anos após o início da doença, surgiu diplopia. Há cerca de 4 anos notou dificuldade na fala, tendo a impressão de que a palavra era "presa" e de que a "língua se enrolava na boca"; desde essa ocasião, modificou-se o timbre da voz. Há dois anos começou a sentir dificuldades na escrita; as letras passaram a ser desiguais, não conseguindo acompanhar as pautas do papel. Ao comer foram-se manifestando alterações da coordenação muscular: ao levar o garfo ou o copo à boca, por vezes atingia o nariz, ou então, entornava o conteúdo do talher ou copo. A influência visual jamais alterava tal incoordenação. Por outro lado, nunca acusou qualquer diminuição da força muscular, referindo espontâneamente que "sua força bruta é satisfatória, mas os movimentos descontrolados". Com o tempo a ataxia dos membros inferiores gradualmente se acentuou e há três anos se acha acamado, devido à impossibilidade da deambulação sem apoio. Desde essa ocasião começou a ter dificuldade para urinar, o que necessitava grande esforço; todavia, nunca precisou ser sondado e essa retenção urinária é mais pronunciada quando o intestino não está exonerado.
Em 1941, foi internado no Hospital de Juqueri, de onde lhe foi concedida alta, praticamente inalterado, algum tempo depois. Em 1942, esteve internado na 1.a Enfermaria de Medicina da Santa Casa de São Paulo onde, em vista da positividade isolada da reação de Wassermann no líquor, foi submetido a tratamento antiluético. Teve alta praticamente inalterado. Quatro ou cinco meses após, internou-se em uma Casa de Saúde desta Capital, onde foi feita a malarioterapia: teve seis acessos úteis e, ao ter alta, não acusou nenhuma melhora. Há três anos, internou-se no Serviço de Neurologia da Escola Paulista de Medicina, onde foi feito diagnóstico de esclerose em placas, sendo medicado com soro hemolítico, o que não lhe proporcionou qualquer melhora. Em outro hospital neuropsiquiátrico, onde se internara há 6 meses, foram-lhe administradas vitamina E por via intramuscular e vitamina Bi intra-raquidianamente; ainda esta medicação de nada lhe valeu.
Antecedentes pessoais - Na infância, teve as doenças eruptivas próprias da idade. Contraiu gripe em 1918. Aos 16 anos de idade, teve um cancro venéreo tratado por injeções de neosalvarsan; blenorragia aos 16 e 21 anos. Nunca teve reumatismo, malária autóctone ou outra infecção digna de menção. Antecedentes familiais - Nada de importante se apura para o lado dos antecedentes familiais: pai morto aos 96 anos, hemiplégico; mãe viva, com 77 anos e sadia, tendo tido três abortos. Esposa forte, com 2 filhos sadios e três abortos provocados. Nega a existência de qualquer colateral sofrendo de distúrbios nervosos e mentais.
Exame físico geral - Estado geral satisfatório. Tipo morfológico brevilíneo, com tecido celular subcutâneo relativamente balofo. Mucosas visíveis algo descoradas e pele normal. Gânglios ingüinais palpáveis. Gordura abundante com distribuição uniforme. Cabeça simétrica, sem exostoses ou pontos dolorosos à pressão; seios da face indolores. Aparelho circulatório: bulhas algo abafadas; tensão arterial 140-90 mms. Hg.; pulso com 110 batimentos por minuto. O exame objetivo dos aparelhos respiratório e digestivo nada revela de anormal.
Exame do sistema nervoso - Psiquismo íntegro; boa memória para fatos recentes e remotos; ausência de delírios alucinatórios; boa orientação auto e alopsíquica. Mantém-se no leito em decúbito indiferente ativo. Atitude e fácies não caraterísticas. Completa astasia-abasia. Consegue executar todos os movimentos com ótima força muscular; ao dinamómetro: mão direita 28 e mão esquerda 25 kgrms. Apesar de não apresentar qualquer paralisia ou paresia, os movimentos são realizados de modo muito brusco e incoordenado. As manobras deficitárias de Mingazzini, Barré, do pé de cadáver, Raimiste e dos braços estendidos são negativas. Nos membros inferiores, há acentuada ataxia do tipo cerebelar; a prova calcanhar-joelho revela nítida dismetria e decomposição de movimentos. Para o lado dos membros superiores, às manobras clássicas, evidencia-se ataxia cerebelar, acentuadamente mais discreta que a dos membros inferiores. As provas gráficas (fig. 1) revelam nítidas dismetria e incoordenação motora. Pela prova do copo d'água, exibem-se todos os sinais da assinergia muscular. Adiadococinesia bilateral. Prova de Stewart-Holmes esboçada à esquerda e não verificável à direita. Positiva a manobra de Babinski para pesquisa de assinergia muscular, com o doente em posição deitada. A astasia impossibilita a execução de outras provas para o mesmo fim. Ausencia de deformações articulares. Tono muscular discretamente diminuído. Marcha apenas possível quando apoiado, movimentando de modo descoordenado os membros inferiores, em completa assinergia com os movimentos do tronco. Palavra disártrica, monótona, arrastada. Disfagia constante, quer para os sólidos, quer para os líquidos; o doente engasga com facilidade, refluindo os alimentos pelo nariz. Mastigação, respiração e mímica normais. Constantes mioclonias do diafragma. Ausência de outras formas de hipercinesia. Reflexos aquileus e medioplantares muito diminuídos; r. controlateral de Pierre Marie presente de ambos os lados; r. dos adutores, esboçado bilateralmente; r. mediopúbico com respostas pouco nítidas, preominando ligeiramente a inferior; r. estilo-radial, cubitopronador e olecraniano, presentes e normais; r. tricipitais com caráter pendular; ausência dos sinais de Rossolimo e Mendel-Bechterew e de seus eqüivalentes nas mãos; r. mentoneiro vivo; r. oro-orbicular e nasopalpebrais normais; r. cutaneoplantares em flexão; ausência de Babinski também às manobras variantes; r. cremastéricos abolidos; r. cutâneo-abdominais muito diminuídos, com resposta dificultada pelo panículo adiposo; r. palmomentoneiro esboçado à direita; r. corneopalpebral presente e normal de ambos os lados. Nenhuma modificação dos reflexos tônicos profundos. Ausência de clonos e trepidações epileptóides. Não se obtém automatismo pelas manobras clássicas. Nenhuma sincinesia global. Sincinesia de imitação esboçada, quer nos membros superiores, quer inferiores. Ausência de resposta à manobra de Cacciapuoti para pesquisa de sincinesia de coordenação; entretanto, manifestam-se muito nitidamente as manobras de Raimiste dos abdutores e dos adutores. Normais todas as formas de sensibilidade objetiva, quer superficiais, quer profundas. Para o lado da sensibilidade especial, queixa-se de diplopia constante à visão binocular. Ausência de distúrbios tróficos e vasomotores.
Exames complementares - Exame neurocular: Motricidade intrínseca normal; motricidade extrínseca: paresia de um dos músculos oblíquos (pequeno oblíquo direito?) apresentando diplopia com desnível das imagens no território de excursão desse músculo. Nistagmo espontâneo, principalmente ao olhar para a direita. Aparelho sensorial parece estar normal. O exame oftalmoscópico mostra papilas e retinas normais; circulação venosa normal; sinais de arteriosclerose ocular: perda dos reflexos ao nível das artérias e redução da luz arterial em um ramo da artéria nasal superior (Cândido da Silva). Líquido cefalorraquídio - Punção suboccipital em decúbito lateral direito; pressão inicial 14 (Claude); líquor límpido e incolor; citologia 0,8 células por mm3; proteínas totais 0,15 grs. por litro; r. Pandy opalescência; r. benjoim coloidal 00000.01210.00000.0; r. Takata-Ara positiva (tipo floculante); r. Wassermann negativa com 1 cc.; glicose 0,63 grs. por litro (J. M. Taques Bittencourt). Reações de Wassermann e Kahn no sangue - negativas (A. Cunha). Radiografias do estômago e duodeno - Estômago de forma e volume normais; de paredes íntegras. Bulbo duodenal deformado, apresentando úlcera (F. Bevilaqua).
Evolução - Desde sua entrada na enfermaria, queixava-se o paciente continuamente de dores gástricas, pedindo alcalinos que as acalmavam. Em 20 de fevereiro, apresentou violentas hematemeses, motivo pelo qual foi transferido para a 2.a Clínica Cirúrgica (Prof. Edmundo Vasconcelos) a fim de ser operado da úlcera duodenal verificada pelas radiografias. Em 20 de março foi operado, sob anestesia geral, pelo Dr. J. Finocchiaro, tendo sido encontrada uma úlcera juxta-pilórica, perfurada na cabeça do pâncreas; tratava-se de úlcera antiga, com inúmeros divertículos já cicatrizados. O pós-operatório decorreu favoravelmente até o dia 23 de março, quando o paciente tornou-se extraordinariamente ansiado e dispnéico, sendo necessária tração da língua e aplicação de balão de oxigênio, com sonda traqueal; apesar desses cuidados, faleceu no dia seguinte.
Exame anátomo-patológico - Afora as lesões do sistema nervoso, que serão descritas adiante, foram verificadas as seguintes alterações: atrofia das amígdalas, congestão passiva da faringe e do esôfago; anemia das mucosas da laringe e traquéia; aderências pleurais à direita; broncopneumonia e edema dos pulmões; ateromasia da aorta; esteatose do fígado; hepatite crônica e granuloma tuberculoso (?). No aparelho digestivo, foi verificada a anastomose do estômago a uma alça jejunal; a boca anastomótica apresentava-se perfeitamente suturada, bem como o côto duodenal (Godofredo Elejalde*). Para o lado do cérebro, foi observado, macroscopicamente, achatamento das circunvoluções e edema cerebral. No rombencéfalo, o bulbo se apresentava deformado e alargado. A região do vérmis cerebelar estava tomada por um tumor de superfície nodular sendo os nódulos de cor branco-amarelada, brilhante, com aspeto de pérolas (fig. 2). O tumor, intercalado entre o bulbo e o vérmis aumentava consideravelmente a distância entre os dois órgãos. Em corte sagital, o tumor, do tamanho aproximado de um ovo, enchia o IV ventrículo, comprimindo o vérmis cerebelar (fig. 3) e o bulbo, que se mostrava reduzido a delgada lâmina. Na periferia, o tumor era constituído por tecido de côr branco-acinzentado, compacto e brilhante e, na parte central, por um material untuoso de cor amarelo-sujo. Tratava-se de tumor bem circunscrito e, em certos pontos, aparentemente encapsulado; o aspecto macroscópico permitia o diagnóstico de colesteatoma ou tumor perláceo de Cruvelhier. O exame histológico (figs. 4 e 5) mostrava, em uma das faces, folhas de queratina em arranjo concêntrico, de cor vermelha carregada, por vezes aderentes a um epitélio planocelular de 2 a 3 fileiras de células achatadas, sendo a fileira mais superficial impregnada com grãos de quérato-hialina; o exame microscópico confirmou o diagnóstico anátomo-patológico de colesteatoma ou epidermóide.
Comentários
Como fato de maior interesse na presente observação, destaca-se a evolução extraordinariamente longa, de 7 anos, sem que - excetuando as vertigens e os vômitos ocorridos nos primórdios da enfermidade, vômitos bruscos no dizer do doente - se manifestassem quaisquer sinais de hipertensão intracraniana, embora se tratasse de uma neoplasia da fossa posterior. Destarte, a evolução, ao contrário da regra geral, só serviu para desorientar o diagnóstico. A análise dos primeiros sintomas e sinais permitiria, talvez, suspeitar de um tumor cerebral, sendo viável a hipótese de uma localização primária na região infundíbulo-hipofisária: poliúria, polidípsia, engorda exagerada (30 Kgs. em 3 anos) e perda de potência sexual. Além dessas manifestações, o paciente acusava sintomas de úlcera gastroduodenal, que, segundo os clássicos trabalhos de Rokitanski e Cushing, pode também estar na dependência de uma lesão diencefálica. Paralelamente, o paciente referia ataxia do membro inferior direito que, mais tarde, se estendeu para o lado oposto, assumindo a marcha, então, o tipo cerebelar; acusava, ainda, disfagia, que se agravou com o evoluir da enfermidade. Cerca de oito meses após o início da doença, manifestou-se novo fato no quadro clínico: crises não convulsivas em que o doente não perdia os sentidos, mas que o deixavam excessivamente tonto; cessada a crise, acentuava-se o caráter cerebelar da marcha (epilepsia tônica, no sentido de Ramsay Hunt?). Tais acessos duraram um ano, havendo desaparecido com tratamento antiluético. Além disso, desde o princípio da doença, o doente acusava diplopia à visão binocular e, com 3 anos de moléstia, começou a ter disartria progressiva, que muito modificou sua palavra.
Em 1941, com 3 anos de doença, internou-se no Hospital de Juqueri, onde foi examinado pelo Dr. Paulo Pinto Pupo que, gentilmente, nos cedeu a ficha da observação feita. Em resumo, foi verificado o seguinte: 1) síndrome cerebelar, caraterizada por grande perturbação da estática do tronco, principalmente evidenciável na posição de pé e na marcha (fig. 6), com aumento da base de sustentação. Havia, ainda, dissinergia dos membros, bem visível na marcha de quatro pés, e disdiadococinesia, mais nítida à esquerda. Foi registrado o predomínio das perturbações do tronco sobre as dos membros. A marcha em estrela era positiva. Por outro lado, não havia hipotonia evidente, nem reflexos pendulares ou braditeleocinesia. A palavra era disártrica e havia um nistagmo espontâneo nítido, que se pronunciava ao olhar lateral, batendo lateralmente para a direita. 2) Como sinais oculares, além do nistagmo, havia diplopia, acusada somente ao olhar para o infinito e não para o olhar a menos de 30 centímetros. Boa convergência ocular e ausência de alterações importantes no fundo do olho. 3) Os reflexos patelares achavam-se algo vivos. Não havia sinal de Babinski ou outra qualquer manifestação de comprometimento da via piramidal, além da abolição dos reflexos cutâneo-abdominais à direita. 4) Retenção urinária discreta. 5) Certa indiferença em relação ao seu estado de saúde. Nessa ocasião haviam desaparecido os vômitos em jacto e as manifestações atribuíveis à lesão diencefálica. O líquido cefalorraquídio revelou apenas uma positividade isolada da reação de Wassermann. Deste modo, a ausência do quadro liquórico tumoral, aliada à normalidade do fundo de olho e à ausência de sinais de hipertensão craniana, e a já relativamente longa evolução, sugeriram, como mais aceitável, o diagnóstico de esclerose em placas. Com o tempo, o caráter cerebelar da marcha se acentuou, impedindo a deambulação sem apoio, motivo pelo qual, há três anos, o paciente se encontrava acamado. Intensificou-se a incoordenação muscular dos membros superiores, alterando extraordinàriamente a escrita do paciente e outros atos delicados executados com as mãos. Sucessivamente, em vista da positividade da reação de Wassermann no líquor, foi submetido a medicação antiluética e malarioterapia. Em agosto de 1942, procurou o Serviço de Neurologia da Escola Paulista de Medicina, onde foram verificados, além de síndrome cerebelar, sinais piramidais deficitários e de libertação: diminuição da força muscular, positividade da manobra de Mingazzini no membro inferior direito, vivacidade dos reflexos clônicos profundos, abolição dos reflexos cremastéricos e sinal de Babinski à direita. Comprovaram-se, ainda, discretas alterações da sensibilidade profunda. Em vista desses elementos, mais ainda se firmou o diagnóstico de esclerose em placas e sem qualquer resultado útil, foi feita a medicação pelo soro hemolítico, método de Laignel Lavastine-Koressius. Nessa ocasião, o exame do liqüido cefalorraquídio resultou negativo, sendo a pressão inicial, em punção suboccipital, igual a zero.
Finalmente, ao dar entrada no Serviço de Neurologia do Hospital das Clínicas, a um exame neurológico cuidadoso, nada mais apresentava que uma intensa síndrome cerebelar com completa astasia-abasia. Dignas de menção eram as mioclonias do diafragma que o paciente continuadamente apresentava e que, na ocasião, atribuímos às suas condições gástricas, pois as radiografias do estômago e duodeno demonstravam a existência de uma úlcera no bulbo duodenal. O exame do líqüido cefalorraquídio, em fevereiro de 1945, extraído em punção suboccipital, revelou pressão inicial de 14, ligeiro aumento do teor protêico (0,15 grs. por litro) e positividade, do tipo parenquimatoso, na reação de Takata-Ara. O exame neurocular revelou paresia do músculo pequeno oblíquo direito, além de nistagmo espontâneo, batendo para a direita. As papilas e retinas se apresentavam inteiramente normais. Como, na época da internação do paciente, o Hospital das Clínicas de São Paulo se achava em fase de organização, muitos exames paraclínicos tiveram de ser dispensados. Dentre êstes destacamos, como falhas maiores de nossa observação, os campos visuais, exame neurotorrinolaringológico e radiografias simples e contrastadas do crânio.
Neste caso, o que parece mais interessante é a ausência de qualquer manifesação clínica, liquórica ou oftalmoscópica em um tumor da fossa posterior, após 7 anos de evolução. Devemos frisar que êsse tempo de evolução para um tumor da fossa posterior não é excepcional tratando-se de colesteatoma, cujo caraterístico principal reside na lentidão do crescimento. Assim Askenazy, Arsenie e Georgiade1 referem um caso de colesteatoma com localização semelhante, curado após intervenção cirúrgica, cujas primeiras manifestações datavam de quinze anos antes. Outro aspecto digno de referência reside na raridade anatômica deste tipo de neoplasma. Na estatística de Cushing, sobre dois mil tumores intracranianos, o grupo de colesteatomas e epidermóides constitui unicamente 0,6% das neoplasias. Askenazy2 verificou, na coleção de Clóvis Vincent, uma percentagem ainda menor: 0,2% da totalidade dos tumores intracranianos. Quanto à nomenclatura do neoplasma, justifica-se plenamente a crítica ao termo "colesteatoma". Nós o empregamos apenas pelo fato de ser mais conhecido. A denominação "colesteatoma" não é justificável e a colesterina inclusa, quando existe, é apenas de aparecimento secundário e de vida, ao que parece, à impossibilidade de eliminação do detrito de células epiteliais mortas (Askenazy).
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
25 Fev 2015 -
Data do Fascículo
Jun 1946