Resumos
Descreve-se um caso de crise focal somatosensorial ipsilateral a tumor cerebral e revê-se a literatura. Trata-se de ocorrência excepcional, tendo sido descritos apenas seis casos. Vários mecanismos fisiopatológicos foram propostos para explicar a crise focal somatosensorial ipsilateral. A proximidade das lesões da convexidade cerebral baixa (perisilviana) sugere o comprometimento da área somatosensorial secundária e parece comprovar os achados experimentais de crises somatosensoriais originadas desta área.
epilepsia focal; crises epilépticas homolaterais
Focal somatosensory epileptic seizures ipsilateral to a brain tumor is reported and the literature reviewed. It is an exceptional occurrence, having been described only six cases, with several mechanisms being proposed. The proximity of the lesions with the low cerebral convexity (perisylvian) suggests the compromising of the secondary somatosensorial area, seeming to prove the experimental observation of somatosensorial crises originating in this area.
epileptic seizures; ipsilateral epileptic seizures
CRISE EPILÉPTICA FOCAL IPSILATERAL A TUMOR CEREBRAL
Relato de caso
Sebastião Silva Gusmão1 1 Professor Adjunto da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte MG, Brasil, (UFMG); 2 Neurologista do Hospital Madre Teresa (Belo Horizonte MG, Brasil) e do Hospital das Clínicas da UFMG; 3 Neurocirurgião do Hospital Madre Teresa. , Mirian Fabíola Studart Mendes2 1 Professor Adjunto da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte MG, Brasil, (UFMG); 2 Neurologista do Hospital Madre Teresa (Belo Horizonte MG, Brasil) e do Hospital das Clínicas da UFMG; 3 Neurocirurgião do Hospital Madre Teresa. , Roberto Leal Silveira3 1 Professor Adjunto da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte MG, Brasil, (UFMG); 2 Neurologista do Hospital Madre Teresa (Belo Horizonte MG, Brasil) e do Hospital das Clínicas da UFMG; 3 Neurocirurgião do Hospital Madre Teresa.
RESUMO - Descreve-se um caso de crise focal somatosensorial ipsilateral a tumor cerebral e revê-se a literatura. Trata-se de ocorrência excepcional, tendo sido descritos apenas seis casos. Vários mecanismos fisiopatológicos foram propostos para explicar a crise focal somatosensorial ipsilateral. A proximidade das lesões da convexidade cerebral baixa (perisilviana) sugere o comprometimento da área somatosensorial secundária e parece comprovar os achados experimentais de crises somatosensoriais originadas desta área.
PALAVRAS-CHAVE: epilepsia focal, crises epilépticas homolaterais.
Focal epileptic seizures ipsilateral to the tumor: case report
ABSTRACT - Focal somatosensory epileptic seizures ipsilateral to a brain tumor is reported and the literature reviewed. It is an exceptional occurrence, having been described only six cases, with several mechanisms being proposed. The proximity of the lesions with the low cerebral convexity (perisylvian) suggests the compromising of the secondary somatosensorial area, seeming to prove the experimental observation of somatosensorial crises originating in this area.
KEY WORDS: epileptic seizures, ipsilateral epileptic seizures.
A crise epiléptica focal homolateral (CEFH), definida como crise focal com manifestação no dimídio homolateral ao hemisfério com lesão, é evento extremamente raro, principalmente quando se trata de crises do tipo somatosensorial. Foram descritos apenas seis casos de CEFH somatosensorial. A CEFH apresenta grande interesse teórico por ser a única manifestação clínica da existência das áreas motora suplementar e somatosensorial secundárias.
O objetivo do presente estudo é relatar um caso de CEFH a tumor cerebral e rever a literatura.
CASO
Paciente do sexo feminino, de 45 anos de idade, que passou a apresentar, em julho de 1997, episódios paroxísticos de parestesia tipo formigamento na mão, pé e hemiface à esquerda, associadas a sensação de contrações da hemiface esquerda e dificuldade para articular as palavras. As crises tinham duração rápida (poucos segundos) e não estavam associadas a perda de consciência. Submeteu-se a tomografia computadorizada e ressonância magnética que evidenciaram lesão da porção inferior do lobo central esquerdo sugestiva de glioma de baixo grau (Fig 1). O eletrencefalograma evidenciava ondas lentas (delta) no hemisfério cerebral esquerdo. Foi tratada com anticonvulsivantes e submetida a exames de imagem a cada seis meses. Em agosto de 2000 apresentou piora das crises, apesar do uso de anticonvulsivante, e os exames de imagem evidenciaram crescimento da lesão. Não apresentava déficit neurológico.
Foi submetida em outubro de 2000 a tratamento cirúrgico com ressecção da lesão. O exame anatomopatológico mostrou tratar-se de oligodendroglioma grau III. Foi submetida a tratamento complementar com radioterapia e não suportou a quimioterapia por reações adversas. No pós-operatório persistiu em uso de anticonvulsivante. No último controle, um ano após o tratamento cirúrgico, apresentava-se sem crises e sem déficits, e a ressonância magnética evidenciou alterações pós-cirúrgicas da porção inferior do lobo central e ausência de lesão tumoral (Fig 2).
DISCUSSÃO
A crise focal motora simples manifesta-se por atividade motora clônica, tônica, postural ou fonatória e a focal somatosensorial simples principalmente por sintomas de formigamento, dormência e sensação de movimento. Os sintomas motores e somatosensoriais podem ser localizados ou ter marcha jacksoniana. Desde que Jackson1 deduziu que as crises epilépticas focais são determinadas por descarga ocasional e excessiva de determinada área do córtex cerebral e que os sintomas das crises dependem da área geradora da descarga, estas crises são consideradas sinais seguros de localização cerebral, sendo que as crises focais simples com manifestações motoras ou somestésicas ocorrem no lado oposto à lesão cerebral e correspondem a foco nos giros pré e pós-central, respectivamente.
A epilepsia focal ocorre em aproximadamente 60% dos pacientes com epilepsia e 10-21% destes apresentam crises parciais simples2. Em uma série de 1054 pacientes epilépticos, Wagner3 encontrou 17% com crises parciais simples. As crises somatosensoriais simples são de menor incidência que as motoras; representaram apenas 1,4% em uma série de 8938 pacientes epilépticos4.
As CEFH são excepcionais. Jackson1, que dedicou toda sua vida científico-profissional ao estudo da epilepsia focal e inaugurou a moderna epileptologia, não mencionou casos de epilepsia homolateral. Penfield5, que em longa atividade profissional estabeleceu as modernas bases da cirurgia da epilepsia, observou apenas um caso de CEFH.
A CEFH poderia ser considerada um falso sinal de localização. Entretanto, na análise dos falsos sinais de localização por Collier6, em 161 casos de tumores cerebrais, e por Gassel7 em 250 meningiomas intracranianos, não foi encontrado nenhum caso de CEFH. Da mesma forma, este tipo de crise não ocorreu na série de Cushing8 de 313 meningiomas. Mauguiere e Courjon4, em 127 casos de epilepsia somatosensorial não observaram nenhum caso de manifestação homolateral à lesão.
Em 10 publicações foram descritos 24 casos de CEFH5,9-17 (Tabela 1).
As crises somatosensoriais homolaterais à lesão são excepcionais, ocorrendo ainda menos frequentemente que as motoras. Em 127 casos de epilepsia focal com sintomas somatosensoriais simples todas as lesões encontravam-se no hemisfério contralateral às manifestações somestésicas, não ocorrendo nenhum caso de epilepsia homolateral4. Dos 24 casos de CEFH descritos apenas 6 eram somatosensoriais, sendo as 18 restantes motoras.
A primeira eventualidade a ser excluída na CEFH é a existência de outra lesão situada no hemisfério oposto à sede do tumor e responsável pela sintomatologia irritativa que se encaixa no modelo anatomofisiológico. No presente caso e nos descritos na literatura, os exames de imagem e o eletrencefalograma excluíram tal possibilidade pela ausência de alterações anatômicas e eletrencefalográficas no hemisfério contralateral à lesão.
As seguintes hipóteses foram postuladas para explicar as crises focais homolaterais: 1) ausência de decussação das vias sensitivo-motoras; 2) presença de foco em espelho: o foco epileptogênico primário enviaria impulsos para a área contralateral simétrica onde se desenvolveria um foco epileptogênico secundário; 3) edema ou alterações vasculares distais ao tumor; 4) comprometimento crônico do tronco encefálico; 5) compressão do córtex cerebral contra a tábua interna do crânio por tumor do hemisfério oposto que determinaria crises focais homolaterais ao tumor; 6) comprometimento da área somatosensorial secundária e da área motora suplementar15. A partir dos trabalhos de Penfield e Jasper18, o último mecanismo é aceito para explicar as CEFH.
Woolsey et al.19 descobriram que a superfície do corpo está representada numa área cortical secundária que existe em vários animais, inclusive no homem. Essa área somestésica secundária ocupa, nos primatas, o córtex parietal da porção superior da fissura silviana (sulco lateral) (Fig 3). Um aspecto distintivo da somestésica secundária em relação à primária é que tanto a metade contralateral quanto a homolateral são mapeadas nessa área formando uma imagem única e superposta da superfície do corpo, consistindo o campo receptivo de cada neurônio em pares de áreas corpóreas equivalentes e simétricas. Penfield e Rasmussen20,21 encontraram no homem uma área somatosensorial secundária no opérculo fronto-parietal (porção superior da metade anterior da fissura silviana), que quando estimulada produz sensações bilateral, contralateral ou homolateral (Fig 3).
O termo área motora suplementar foi introduzido para distinguir uma área da superfície medial do lobo frontal da clássica área motora primária da convexidade do hemisfério22. Foi definida por estimulação elétrica como localizando-se na face medial superior do lobo frontal, anterior à área motora primária do pé, limitada abaixo pelo sulco do giro do cíngulo, e estendendo-se até a convexidade superior do hemisfério cerebral (Fig 3). A estimulação da área motora suplementar determina movimentos bilaterais das extremidades, alterações de postura, inibição de movimentos, vocalização, sintomas sensitivos e alterações autonômicas. Woolsey et al.23 confirmaram em macacos a existência de uma segunda representação motora completa, localizada na superfície medial do hemisfério cerebral, na porção medial do giro frontal superior, imediatamente à frente do lóbulo paracentral23.
Baseado na proximidade anatômica das lesões com as áreas motora suplementar e somatosensorial secundária, o comprometimento das mesmas foi evocado para explicar crises homolaterais na maioria dos casos publicados de CEFH24. Assim, nos 18 casos de CEFH motora a lesão localizava-se na convexidade cerebral alta (parasagital), junto do lobo paracentral, ou seja, próxima da área motora suplementar. Nos seis casos de CEFH somatosensorial a lesão encontrava-se na convexidade cerebral baixa (perisilviana), próxima da área somatosensorial secundária, em cinco casos (Tabela 1). Em um caso a CEFH somatosensorial estava associada a meningioma parietal parasagital. Não existia evidência de extensão do tumor para o hemisfério oposto nem edema significativo e o eletrencefalograma não evidenciava anormalidades no hemisfério não comprometido. Como a lesão estava distante da córtex rolândico baixo, os autores do referido relato postularam uma difusão da excitação elétrica do córtex parietal para a área somatosensorial secundária determinando atividade epiléptica somatosensorial ipsilateral14. No caso aqui relatado, o tumor localizava-se imediatamente acima da fissura silviana, posterior ao sulco central, sendo, portanto, a CEFH explicada pelo comprometimento da área somatosensorial secundária.
O caso aqui apresentado aumenta a pequena casuística de seis casos de CEFH somatosensorial descritos e parece comprovar os achados experimentais de crises somatosensoriais originadas da área somatosensorial secundária.
Recebido 30 Novembro 2001, recebido na forma final 23 Janeiro 2002. Aceito 28 Janeiro 2002.
Dr. Sebastião Gusmão ¾ Rua Padre Rolim 921 / 21 ¾ 30130-090 Belo Horizonte MG ¾ Brasil. E-mail: gusmao@medicina.ufmg.br
- 1. Jackson JH. A study of convulsion. Tr St Andrews Med Grad Ass 3, 1, 1870. In Selected Writings of John Hughlings Jackson. Ed. J. Taylor, London: Hodder Stoughton, 1931:8-36.
- 2. Gastaut H, Gastaut JL, Gonçalves e Silva GE, Frenandez Sanchez GR. Relative frequency of different types of epilepsy: a study employing the classification of the International League Against Epilepsy. Epilepsia 1975; 16: 457-461.
- 3. Wagner AL. A clinical and epidemiological study of adult patients with epilepsy. Acta Neurol Scand 1983;94 (Suppl):63-72.
- 4. Mauguiere FR, Cojourn J. Somatosensory epilepsy: a review of 127 cases. Brain 1978;10:307-332.
- 5. Penfield WG, Kristiansen K. Epileptic seizure patterns. Springfield: Charles C Thomas, 1951:44.
- 6. Collier JS. The false localizing signs of intracranial tumors. Brain 1904; 27: 490-498.
- 7. Gassel M. False localizing signs: a review of the concept and analysis of the occurance en 250 cases of intracerebral meningiomas. Arch Neurol 1961; 4: 526-530.
- 8. Cushing H, Eisenbardt L. Meningiomas. New York: Hoffner 1963: 637.
- 9. Castaigne P, Held L. Epilepsie sensitive localisée due à une lésion pariétale ipsilatérale. Bull Mem Soc Méd Hôp Paris 1952;68:782.
- 10. Wolinetz E, Breton J. Deux cas d'épilepsie Bravais-Jacksonienne homolatérale a la lésion causale. Sem Hôp Paris 1961;370:1993-1995.
- 11. Pazzagli A, Campanella G. Su due osservazione di crisi epilettiche focali omolaterali ad una lesione tumorale. Riv Pat Nerv Ment 1965;86:656-668.
- 12. Kofman O, Tasker R. Ipsilateral and focal inhibitory seizures. Neurology 1967;17:1082-1086.
- 13. Nicolaidis S, Cambria S. Crises bravais-jacksoniennes sensitivo-motrices homolatérales dans un cas d'anévrysme artério-veineux cérébral. Neurochirurgie 1968;14:835-841.
- 14. Herskowitz A, Swerdlow M. Focal seizures: a false lateralizing sign. Dis Nerv Syst 1972;33:523-525.
- 15. Arseni C, Maretsis M. Focal epileptic seizures ipsilateral to the tumor. Acta Neurochir 1979;49:47-60.
- 16. Ahuja GK, Tharakan J. Ipsilateral seizures. Epilepsia 1982;23:555-561.
- 17. Pratap Chand R. Ipsilateral motor seizures. Aust N Z J Med 1986;16:234-235.
- 18. Penfield W, Jasper H. Epilepsy and the funcional anatomy of the brain. Boston: Little Brown, 1954:373-377.
- 19. Woolsey CN, Fairman D. Contralateral, ipsilateral and bilateral representation of cutaneous receptors in somatic areas I and II of the cerebral cortex of pigs, sheep and other mammals. Surgery 1946;19:684-701.
- 20. Penfiel W, Rasmussen T. The cerebral cortex of man; New York: Macmillan, 1950: 109-134.
- 21. Rasmussen TB, Penfield WG. Further studies of sensory and motor cerebral cortex of man. Federation Proc 1947;6:452-460.
- 22. Penfield W. The supplementary motor area in the cerebral cortex of man. Arch Psychiat 1950; 185:670-674.
- 23. Woolsey CN. Patterns of localization in precentral and "supple mentary" motor areas and their relation to the concept of a premotor area. Res Publ Res Assoc Nerv Ment Dis 1950;30:238.
- 24. So NK. Supplementary motor area epilepsy: the clinical syndrome. In Wolf P (ed). Epipeptic seizures and syndromes. London: John Libbey, 1994:299-317.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
11 Jul 2002 -
Data do Fascículo
Jun 2002
Histórico
-
Recebido
30 Nov 2001 -
Revisado
23 Jan 2002 -
Aceito
28 Jan 2002