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Esquistossomose medular: análise de 80 casos

Schistosomiasis of the spinal cord: analysis of 80 cases

Resumos

O objetivo deste estudo é analisar dados clínicos e laboratoriais de 80 casos de esquistossomose medular (EM) que possam contribuir para melhorar o diagnóstico e tratamento dessa doença. Em 59 pacientes o estudo foi de maneira prospectiva, em 79 pacientes o diagnóstico foi catalogado como altamente provável, presuntivo, baseado em critérios clínico e laboratoriais. Em um paciente houve confirmação anatomo-patológica. Houve predominância do sexo masculino (63,7%), faixa etária entre 21 e 40 anos (63,7%), procedência nordestina (85%), trabalhador em construção civil (31,2%), esforço abdominal prévio (57,5%), início subagudo (61,2%), forma clínica mielorradiculítica e lesão no cone medular e cauda equina (72,5%). O estudo do líquido cefaloraquidiano mostrou pleocitose e taxas elevadas de proteínas em 100% dos casos, da gamaglobulina em 76.5%, positividade de reações imunológicas específicas (imunofluorescência e/ou ELISA) em 100% dos casos (titulo médio de 1/16 e 61u/dl, respectivamente). Costicosteróides e drogas esquistossomicidas foram administrados em todos os pacientes com evolução satisfatória em 80% dos casos.

mielite; mielorradiculite; Schistosoma mansoni


To outline through cinical-laboratorial analysis a profile of schistosomiasis of the spinal cord (SSC) that contributes to the diagnosis and treatment of this disease. 80 patients were studied (59 prospectively), and epidemiological, clinical,laboratorial, treatment and outcome data extracted. In 79 patients the diagnosis was presumptive and obeyed rigorous criteria. There was a predominance of male sex (68.7%), age group from 21 to 40 years (63.7%), Northeasterners (85%), building construction workers (31.2%), previous abdominal effort (57.5%), subacute beginning (61.2%), myeloradiculitis form and lesion in conus and cauda equina (72.5%). Cerebral spinal fluid showed lymphomononuclear pleocytosis and protein increase in 100% of the cases as well as gamma globulin in 76.5%, positiveness of immunofluorescence reaction and/or ELISA for schistosomiasis in 100% of the cases with average titles of 1/16 and 61 u/dl, respectively. Corticosteroids and antischistosomal drugs were given to all patients with a satisfactory outcome in 80% of the cases. We emphasize the importance of a precocious treatment to avoid irreversible deficits such as paraplegia or sexual impotence.

myelitis; myeloradiculitis; Schistosoma mansoni


Análise de 80 casos

Alberto Jorge Pereira Peregrino11Divisão de Neurologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC/FMUSP), São Paulo SP, Brasil:Médico Colaborador; 2Ex-Residente em Neurologia; 3Professor Assistente; 4Chefe da Unidade de Neurologia do Instituto da Criança do HC/FMUSP, 5Professor Titular. , Paula Marzorat Kuntz Puglia21Divisão de Neurologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC/FMUSP), São Paulo SP, Brasil:Médico Colaborador; 2Ex-Residente em Neurologia; 3Professor Assistente; 4Chefe da Unidade de Neurologia do Instituto da Criança do HC/FMUSP, 5Professor Titular. , José Paulo Smith Nóbrega31Divisão de Neurologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC/FMUSP), São Paulo SP, Brasil:Médico Colaborador; 2Ex-Residente em Neurologia; 3Professor Assistente; 4Chefe da Unidade de Neurologia do Instituto da Criança do HC/FMUSP, 5Professor Titular. , José Antonio Livramento31Divisão de Neurologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC/FMUSP), São Paulo SP, Brasil:Médico Colaborador; 2Ex-Residente em Neurologia; 3Professor Assistente; 4Chefe da Unidade de Neurologia do Instituto da Criança do HC/FMUSP, 5Professor Titular. , Maria Joaquina Marques-Dias41Divisão de Neurologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC/FMUSP), São Paulo SP, Brasil:Médico Colaborador; 2Ex-Residente em Neurologia; 3Professor Assistente; 4Chefe da Unidade de Neurologia do Instituto da Criança do HC/FMUSP, 5Professor Titular. , Milberto Scaff51Divisão de Neurologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC/FMUSP), São Paulo SP, Brasil:Médico Colaborador; 2Ex-Residente em Neurologia; 3Professor Assistente; 4Chefe da Unidade de Neurologia do Instituto da Criança do HC/FMUSP, 5Professor Titular.

RESUMO - O objetivo deste estudo é analisar dados clínicos e laboratoriais de 80 casos de esquistossomose medular (EM) que possam contribuir para melhorar o diagnóstico e tratamento dessa doença. Em 59 pacientes o estudo foi de maneira prospectiva, em 79 pacientes o diagnóstico foi catalogado como altamente provável, presuntivo, baseado em critérios clínico e laboratoriais. Em um paciente houve confirmação anatomo-patológica. Houve predominância do sexo masculino (63,7%), faixa etária entre 21 e 40 anos (63,7%), procedência nordestina (85%), trabalhador em construção civil (31,2%), esforço abdominal prévio (57,5%), início subagudo (61,2%), forma clínica mielorradiculítica e lesão no cone medular e cauda equina (72,5%). O estudo do líquido cefaloraquidiano mostrou pleocitose e taxas elevadas de proteínas em 100% dos casos, da gamaglobulina em 76.5%, positividade de reações imunológicas específicas (imunofluorescência e/ou ELISA) em 100% dos casos (titulo médio de 1/16 e 61u/dl, respectivamente). Costicosteróides e drogas esquistossomicidas foram administrados em todos os pacientes com evolução satisfatória em 80% dos casos.

PALAVRAS-CHAVE: mielite, mielorradiculite, Schistosoma mansoni.

Schistosomiasis of the spinal cord: analysis of 80 cases

ABSTRACT - To outline through cinical-laboratorial analysis a profile of schistosomiasis of the spinal cord (SSC) that contributes to the diagnosis and treatment of this disease. 80 patients were studied (59 prospectively), and epidemiological, clinical,laboratorial, treatment and outcome data extracted. In 79 patients the diagnosis was presumptive and obeyed rigorous criteria. There was a predominance of male sex (68.7%), age group from 21 to 40 years (63.7%), Northeasterners (85%), building construction workers (31.2%), previous abdominal effort (57.5%), subacute beginning (61.2%), myeloradiculitis form and lesion in conus and cauda equina (72.5%). Cerebral spinal fluid showed lymphomononuclear pleocytosis and protein increase in 100% of the cases as well as gamma globulin in 76.5%, positiveness of immunofluorescence reaction and/or ELISA for schistosomiasis in 100% of the cases with average titles of 1/16 and 61 u/dl, respectively. Corticosteroids and antischistosomal drugs were given to all patients with a satisfactory outcome in 80% of the cases. We emphasize the importance of a precocious treatment to avoid irreversible deficits such as paraplegia or sexual impotence.

KEY WORDS: myelitis, myeloradiculitis, Schistosoma mansoni.

A esquistossomose, endêmica em 74 países, é uma das mais importantes infecções parasitárias humanas do ponto de vista de saúde pública. São cerca de 200 milhões de pessoas infectadas pelas espécies mansoni, haematobium, japonicum, intercalatum ou mekongi. O Brasil, com população estimada em 160 milhões de pessoas, endêmico para a esquistossomose mansônica, possui cerca de 10 milhões de pessoas infectadas e outros 30 milhões expostas à infecção1.

As facilidades para viagens (turísticas e de cunho cultural) as migrações internas e externas,vêm aumentando com o progresso e crescimento das nações e com elas o número de registro de casos de esquistossomose em regiões e/ou países não endêmicos. Assim, nos Estados Unidos da América, havia em 1985 cerca de 400 mil pessoas infectadas2. Nesse país são publicados casos de esquistossomose medular (EM) com relativa freqüência3-9.

A EM forma ectópica mais importante desta parasitose, parece ter baixa prevalência. Apesar disso, ela é considerada a causa mais frequente entre as mielopatias não traumáticas e é, provavelmente, subdiagnosticada nas regiões endêmicas pela sua não inclusão no diagnóstico diferencial ou por deficiência de recursos técnicos para o seu diagnóstico10-14.

Até a década de 70, a maioria dos casos de EM publicada na literatura teve diagnóstico definido por estudo histopatológico através de necrópsias ou laminectomias exploradoras. Porém, nos ultimos 20 anos, avanços na área da neuroimunologia e imagem têm contribuído para melhor compreensão da doença quanto à sua fisiopatogenia, patologia, aspectos clínicos, diagnóstico, evolução natural e prognóstico. A tendência atual é tentar valorizar cada vez mais o diagnóstico presuntivo altamente provável e considerar a EM doença de tratamento eminentemente clínico, de prognóstico altamente favorável se diagnosticada e tratada precocemente3-10,13-33.

Apresentamos no presente estudo a análise de 80 casos de EM por Schistosoma mansoni.

MÉTODO

Oitenta pacientes foram diagnosticados e tratados como EM por Schistosoma mansoni: 40 pacientes no Hospital da Santa Casa de Misericórdia da cidade de Itabuna - BA, durante o período de janeiro de 1987 a dezembro de 1992 e 40 pacientes na Divisão de Neurologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, durante o período de janeiro de 1984 a dezembro de 1995. Foram estudados de maneira prospectiva 59 casos (73,7%) e 21 de forma retrospectiva (análise de prontuários). O diagnóstico de 79 casos foi catalogado como altamente provável, presuntivo, sem comprovação histopatológica, baseado em dados epidemiológicos, clínicos, laboratoriais, de acordo com rígidos critérios diagnósticos que estão apresentados no Apêndice Apêndice , já aplicados anteriormente13.

Apenas um caso foi catalogado como diagnóstico definido, comprovado através de exame anatomo-patológico.

Outros 46 pacientes diagnosticados e tratados como EM durante o mesmo período foram excluídos deste trabalho por não preencherem integralmente os critérios exigidos para este trabalho. Esses casos foram catalogados como diagnóstico possível de EM.

Foram analisados dados epidemiológicos e clínicos, como faixa etária, sexo, procedência, profissão, esforço abdominal prévio, modo de instalação da doença, sintomas iniciais, quadro neurológico, formas clínicas, nível da lesão, relação entre início do tratamento e tempo de doença, tratamento, evolução e sequelas. Também foram avaliados dados laboratoriais como eosinofilia, parasitológico de fezes, biópsia retal, líquido cefalorraquidiano (LCR), imagem pela ressonância magnética (RM), tomografia computadorizada (TC) e eletroneuromiografia.

Todos os pacientes foram submetidos a hemograma completo, parasitológico de fezes e/ou biópsia retal, RX do tórax, RX da coluna tóraco-lombar. O estudo do LCR incluiu reações imunológicas específicas para esquistossomose (ELISA, imunofluorescência hemaglutinação), cisticercose, sífilis e fungos. Outros exames foram realizados de acordo com o diagnóstico diferencial para cada caso (reações para mononucleose, por exemplo). RM da coluna tóraco-lombar foi realizada em 18 pacientes, TC em 14 e eletroneuromiografia em 24. Todos os pacientes foram tratados com corticosteróides e drogas esquistossomicidas: prednisona (60-120 mg/dia) ou dexametasona (16 mg/dia); oxamniquine (20-30 mg/kg-dose única) ou praziquantel (60 mg/kg/dia-3 dias). Fisioterapia motora foi realizada em todos os pacientes desde os primeiros dias de internação. Os dados de evolução foram baseados no exame neurológico no dia da alta e classificados em: recuperação total, recuperação parcial satisfatória (deambulação sem apoio), recuperação parcial não satisfatória (deambulação com ajuda de muletas ou bengala, alguma dificuldade urinária) e ausência de recuperação (paraplegia, retenção ou incontinência urinária). As sequelas foram analisadas no período de 3 e 6 meses após a alta. O tempo de tratamento variou de acordo com a necessidade de cada caso. O critério da alta hospitalar foi a normalização do exame de LCR e as condições clínicas do paciente.

RESULTADOS

Os dados epidemiológicos, clínicos, laboratoriais, de evolução e sequelas estão resumidos nas Tabelas 1, 2, 3 e 4, respectivamente. Sobre eles adicionamos algumas considerações:

Idade ¾ Chamou atenção o registro de 11 crianças entre 5 e 12 anos.

Procedência ¾ 68 pacientes (85%) são de origem nordestina, 8 pacientes (10%) do Estado de Minas Gerais e 4 pacientes (5%) do Estado de São Paulo.

Profissão e esforço abdominal frequente ¾ 62,4% dos pacientes exerciam profissão que exige constante esforço abdominal com provável aumento da pressão intrabdominal: 25 pacientes (31,2%) trabalhavam em construção civil, 15 pacientes (18,7%) em atividade doméstica braçal e 10 eram trabalhadores rurais (12,5%).

Eosinofilia ¾ Esteve presente em 82,3% dos pacientes (6 % - 22%).

Reações Imunológicas específicas para esquistossomose positivas no LCR ¾ A reação de imunofluorescência foi realizada em 61 pacientes, com titulação média de 1/16; a ELISA foi realizada em 63 pacientes, com titulação média de 6 u/dl.

TC da coluna tóraco-lombar ¾ Foi realizada em 14 pacientes com resultado normal em 12 (85,7%) e mostrando alargamento do cone em 2 (14,7%).

RM da coluna tóraco-lombar - Realizada em 18 pacientes, apresentou anormalidades em 16 (88,8%) e foi normal em 2 pacientes (11,1%). As alterações mais frequentes foram: hipossinal em T1, hipersinal em T2, realce heterogêneo pós-contraste gadolínico e alargamento do diâmetro medular e/ou cone.

Eletroneuromiografia - Foi realizada em 24 pacientes. Mostrou multirradiculopatia em 23 pacientes (95,8%) e foi normal em 1 (4,1%). A multirradiculopatia estava presente,inclusive nos pacientes que apresentavam a forma clínica de mielite transversa.

Tratamento ¾ A prednisona foi usada em 48 pacientes, a dexametasona em 32. O oxamniquine foi usado em 58 pacientes e praziquantel em 22.

Relação inicio do tratamento/tempo de doença - 64 pacientes (80%) iniciaram o tratamento antes do 30º dia de doença e 45 pacientes (56,2%) o fizeram antes do 15º dia de doença.

Tempo de tratamento - variou entre 14 dias e 126 dias, com tempo médio de 31,2 dias.

DISCUSSÃO

A EM é doença de caráter inflamatório, de baixa prevalência, mas considerada importante por estar associada a mielopatia. Provoca, na maioria dos casos, reação de hipersensibilidade tardia tipo 4 granulomatosa e necessita da presença de células T para a sua mediação.

Estas, reagindo à presença de antígenos (vermes, ovos) liberam diversos tipos de citocinas (interleucinas 1 e 2), assim como ativadores de macrófagos e eosinófilos, entre outros.

Esta cascata de eventos leva, por fim, a uma reação imunoalérgica periovular, com formação de granulomas que, se estiverem em tecido nervoso, provocarão sérias repercussões não só sobre meninges, mielina, axônio, neurônio e glia, mas especialmente sobre estruturas vasculares (vênulas, arteríolas) circunjacentes34,35. Estas lesões vasculares parecem ter importância na instalação de lesões irreversíveis, principalmente em parênquima medular.

Vasculite necrotizante e fenômenos hemorrágicos são os achados mais frequentes18 sobre os quais devemos ter a máxima preocupação, se quisermos, de fato, evitar sequelas. O LCR é fiel sinalizador destas reações inflamatórias expressadas, entre outros sinais, pela eosinofilorraquia observada em 90% dos nossos casos e pela positividade das reações imunológicas específicas para esquistossomose podendo ser acompanhada de síntese intratecal de imunoglobulina G13,29,30,31,33,36.

A EM atinge as camadas mais pobres das populações que vivem sob precárias condições de higiene, habitação e educação e expostas ao hospedeiro em regiões endêmicas. Os mais expostos são homens em plena fase produtiva da vida; porém crianças e mulheres expostas podem ser igualmente vitimadas. O aumento da pressão intrabdominal em episódios frequentes ou por períodos prolongados, relacionado com certas profissões, pode exercer papel facilitador na fisiopatogenia da EM. O grau de imunidade natural e adquirida, assim com o grau de infestação, podem explicar a baixa incidência da EM em comparação à população de esquistossomóticos existentes em nosso país, como também a multiplicidade de formas clínicas, diferentes tipos de evolução e de respostas ao tratamento9,13,14, 21.

A forma clínica mais encontrada em nossos casos foi a mielorradiculítica (72,5%). Chamou nossa atenção o fato de a eletroneuromiografia ter demonstrado multirradiculite em 95,8% dos casos em que foi realizada, inclusive em quatro pacientes com quadro clínico de mielite transversa (sinais piramidais de liberação e hipoestesia com nível segmentar) como se as lesões centrais pudessem estar mascarando as lesões periféricas na semiologia neurológica, sugerindo que essas mielites fossem, na realidade, mielorradiculites.

O diagnóstico da EM é clínico-laboratorial. Obedecendo a critérios rigorosos, foi possível estabelecer um diagnóstico altamente provável, presuntivo, de maneira confiável e segura.

Além das evidências epidemiológicas, clínicas e da presença de ovos de S. mansoni, a caracterização da síndrome liquórica completa da EM é imprescindível. Os casos em que estes critérios não são obedecidos in totum devem ser rotulados como casos possíveis ou pouco prováveis de EM, de acordo com o número de elementos positivos. A comprovação anátomo-patológica em material de biópsia continua sendo o exame padrão-ouro para o diagnóstico da EM. Porém, é procedimento invasivo que não contribui para melhor evolução clínica e que estaria indicado, ao nosso ver, apenas em casos duvidosos.

A eletroneuromiografia e sobretudo a RM demonstraram ser exames úteis no diagnóstico da EM. Embora sem nenhuma especificidade, apresentaram, na maioria dos casos, anormalidades que se repetiram sob padrões determinados. A contribuição desses dois exames no diagnóstico da EM foi motivo para um estudo específico37.

A ação do corticosteróide no tratamento da EM é essencial e insubstituível no que se refere à melhora clínico-laboratorial, à prevenção de vasculite necrotizante e de lesões irreversíveis. Sua ação anti -inflamatória é conhecida38 e útil no bloqueio rápido e eficaz dos fenômenos imunológicos que ocorrem na EM devendo ser usados o mais precocemente possível. Esta opinião é baseada na nossa vivência clínica e após análise dos resultados de 80 casos tratados com costicosteróides e esquistossomicidas. Estes últimos foram prescritos apenas após normalização do quadro neurológico, o que nos leva a concluir que tenha sido a primeira droga a responsável pela melhora.

Em 64 pacientes (80,0%) houve recuperação clínica total (38,7%) ou satisfatória (41,2%) e foi observado que a melhora neurológica nem sempre correspondeu à normalização do segundo LCR realizado, que ao contrário, muitas vezes acusava uma exacerbação do processo inflamatório. Este fato nos leva a recomendar a suspensão dos corticosteróides somente após completa normalização dos sinalizadores inflamatórios do LCR, com o objetivo de se evitar recidivas clínicas inesperadas com a sua retirada precoce.

Não foi registrada, até o momento, comprovação de que as drogas esquistossomicidas tenham também a capacidade de destruir os ovos, principal fonte de antígenos39.

Também não há consenso na literatura de que elas interfiram no processo imunoalérgico e que possam ser responsáveis diretas pela reversão do quadro clínico, laboratorial e patológico na neuroesquistossomose40,41. Apesar de alguns autores defenderem este ponto de vista referindo-se a casos de melhora apenas com o uso do prazinquantel9,14 ou oxamniquine9, acreditamos não haver comprovação definitiva. Nos estudos publicados que enfatizam o tratamento apenas com drogas esquistossomicidas foram realizadas também laminectomias descompressivas ou usados corticosteróides associadamente9,14,23, prejudicando qualquer conclusão a respeito.

Desde que o oxamniquine e praziquantel não são ovicidas nem antinflamatórios, a base para o seu uso no tratamento da EM é a destruição dos vermes fêmeas adultos que impedirá oviposição sobre estruturas nervosas, o início das reações imunoalérgicas, recidivas e novos surtos de mielorradiculite. Tudo leva a crer que estas duas drogas interfiram de maneira diferente na patogenia e evolução da EM, que ambas são importantes e suas ações se completam. Como estudo controlado que comparasse a ação isolada de cada uma delas é inviável por motivos legais, éticos e até mesmo clínicos, só nos resta ter o bom senso nas nossas decisões e condutas.

A relação início do tratamento / tempo de doença é um parâmetro importante na análise da evolução e prognóstico dos casos tratados para EM. Na casuística aqui apresentada, 80% dos pacientes obtiveram recuperação entre total e satisfatória. Oitenta por cento destes pacientes iniciaram o tratamento antes do 30º dia de doença e 56,2% o fizeram antes do 15º dia de doença.

Destes dados concluímos ser de fundamental importância um trabalho de informação sobre a doença junto a médicos de pronto-socorros, urologistas, ortopedistas, clínicos gerais e fisioterapeutas. Estes profissionais atendem pacientes no início da sintomatologia, muitas vezes com exame neurológico ainda normal, apenas com a tríade clinica prodrômica de dor lombar, parestesias e dificuldade urinária13,42. Também, a aplicação de protocolos de investigação, sobretudo em regiões endêmicas, conduzirá certamente ao diagnóstico e tratamento precoces, tão importantes na prevenção de paraplegias e impotência sexual em pacientes jovens e produtivos13,14.

Recebido 11 Junho 2001, recebido na forma final 22 Fevereiro 2002. Aceito 28 Fevereiro 2002.

Dr. Alberto J.P. Peregrino - Rua Olegário Maciel 373/121 - 38400-084 Uberlândia MG - Brasil. E-mail: peregrino@nanet.com.br

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Apêndice

  • 1
    Divisão de Neurologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC/FMUSP), São Paulo SP, Brasil:
    Médico Colaborador;
    2
    Ex-Residente em Neurologia;
    3
    Professor Assistente;
    4
    Chefe da Unidade de Neurologia do Instituto da Criança do HC/FMUSP,
    5
    Professor Titular.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Set 2002
    • Data do Fascículo
      Set 2002

    Histórico

    • Recebido
      11 Jun 2001
    • Aceito
      28 Fev 2002
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