Acessibilidade / Reportar erro

Fibrilação atrial crônica, AVC e anticoagulação: sub-uso de warfarina ?

Atrial fibrillation, stroke and anticoagulation: under-use of warfarin?

Resumos

OBJETIVO: Correlacionar acidente vascular cerebral (AVC) cardioembólico em portadores de fibrilação atrial (FA) crônica não valvular, potencialmente evitáveis, previamente acompanhados por cardiologistas, sem restrições ao uso da warfarina, com o grau de absorção das recomendações e limitações publicadas sobre anticoagulação e FA. MÉTODO: Registramos prospectivamente todos os casos de AVC internados em dois hospitais de Joinville.Na presença de FA, foi questionado aos pacientes se sabiam da existência da arritmia, freqüência de visitas a cardiologistas e uso prévio de warfarina. Posteriormente aplicamos um questionário transversal a 11 cardiologistas sobre o FA, anticoagulação e AVC. RESULTADOS: Entre 167 pacientes com AVC, 22 tinham FA prévia e AVC isquêmico. Destes, 15 tinham consultado previamente um cardiologista. Nove pacientes faleceram, sete tiveram alta anticoagulados e seis não receberam warfarina. O questionário evidenciou que 91% dos colegas conheciam as recomendações publicadas, mas somente 54 % deles consideravam-nas aplicáveis para pacientes do serviço público. CONCLUSÃO: A anticoagulação na FA reduz 68% o risco relativo para AVC/ano. Logo, 11 dos 22 pacientes poderiam ter evitado o evento. Extrapolando a incidência em 1997 e a população atual, podemos considerar que 4% de todos os AVC por ano em Joinville são potencialmente evitáveis.

anticoagulantes; fibrilação atrial; prevenção de acidente cérebro-vascular; warfarina


OBJECTIVE: To correlate the presence of non valvar atrial fibrillation (NVAF) and cardioembolic stroke in patients previously assisted by cardiologists and without restrictions to the use of warfarin, with the level of acceptance of the recommendations published about chronic AF among these professionals. METHOD: All strokes accepted in two hospitals of Joinville were prospectively recorded. The patients with AF were questioned about their previous knowledge about arrythmia, the frequency they had seen their cardiologists and the use of warfarin. Later, 11 cardiologists answered to questions about AF, anticoagulation and stroke. RESULTS: Among 167 patients with stroke, 22 were found with ischemic stroke and previous AF. Fifteen of them had previously seen by a cardiologist. Nine patients died, seven were discharged with warfarin and six did not have prescription of anticoagulant. The cardiologists answers presented that 91% of them knew these recommendations, although only 54 % found them applicable to public service's patients. CONCLUSION: Considering that anticoagulation in NVAF reduces the relative stroke risk in 68% per year, we can conclude that 11 in 22 patients could have avoided the event. Thus, considering the stroke incidence in 1997 and current population in Joinville, we may speculate that currently 4% of all stokes per year in Joinville are potentially avoidable.

anticoagulation; atrial fibrillation; stroke prevention; warfarina


Fibrilação atrial crônica, AVC e anticoagulação: sub-uso de warfarina ?

Atrial fibrillation, stroke and anticoagulation: under-use of warfarin?

Norberto L. CabralI; Dalton VolpatoII; Tatiana Rosa OgataII; Tenille RamirezII; Carla MoroIII; Sergio GouveiaIV

Univille - Universidade de Joinville, Joinville SC, Brasil

INeurologista, Mestre em Medicina Interna

IIEstudantes Medicina, Univille

IIINeurologista, Coordenadora Unidade de AVC - Hospital Municipal São José

IVCardiologista, Mestre em Medicina Interna, Hospital Dona Helena

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Dr. Norberto L. Cabral Clínica Neurológica de Joinville Rua Plácido O. Oliveira, 1244/47 89202-451 Joinville SC - Brasil E-mail: cabral@neurologica.com.br

RESUMO

OBJETIVO: Correlacionar acidente vascular cerebral (AVC) cardioembólico em portadores de fibrilação atrial (FA) crônica não valvular, potencialmente evitáveis, previamente acompanhados por cardiologistas, sem restrições ao uso da warfarina, com o grau de absorção das recomendações e limitações publicadas sobre anticoagulação e FA.

MÉTODO: Registramos prospectivamente todos os casos de AVC internados em dois hospitais de Joinville.Na presença de FA, foi questionado aos pacientes se sabiam da existência da arritmia, freqüência de visitas a cardiologistas e uso prévio de warfarina. Posteriormente aplicamos um questionário transversal a 11 cardiologistas sobre o FA, anticoagulação e AVC.

RESULTADOS: Entre 167 pacientes com AVC, 22 tinham FA prévia e AVC isquêmico. Destes, 15 tinham consultado previamente um cardiologista. Nove pacientes faleceram, sete tiveram alta anticoagulados e seis não receberam warfarina. O questionário evidenciou que 91% dos colegas conheciam as recomendações publicadas, mas somente 54 % deles consideravam-nas aplicáveis para pacientes do serviço público.

CONCLUSÃO: A anticoagulação na FA reduz 68% o risco relativo para AVC/ano. Logo, 11 dos 22 pacientes poderiam ter evitado o evento. Extrapolando a incidência em 1997 e a população atual, podemos considerar que 4% de todos os AVC por ano em Joinville são potencialmente evitáveis.

Palavras-chave: anticoagulantes, fibrilação atrial, prevenção de acidente cérebro-vascular, warfarina.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To correlate the presence of non valvar atrial fibrillation (NVAF) and cardioembolic stroke in patients previously assisted by cardiologists and without restrictions to the use of warfarin, with the level of acceptance of the recommendations published about chronic AF among these professionals.

METHOD: All strokes accepted in two hospitals of Joinville were prospectively recorded. The patients with AF were questioned about their previous knowledge about arrythmia, the frequency they had seen their cardiologists and the use of warfarin. Later, 11 cardiologists answered to questions about AF, anticoagulation and stroke.

RESULTS: Among 167 patients with stroke, 22 were found with ischemic stroke and previous AF. Fifteen of them had previously seen by a cardiologist. Nine patients died, seven were discharged with warfarin and six did not have prescription of anticoagulant. The cardiologists answers presented that 91% of them knew these recommendations, although only 54 % found them applicable to public service's patients.

CONCLUSION: Considering that anticoagulation in NVAF reduces the relative stroke risk in 68% per year, we can conclude that 11 in 22 patients could have avoided the event. Thus, considering the stroke incidence in 1997 and current population in Joinville, we may speculate that currently 4% of all stokes per year in Joinville are potentially avoidable.

Key words: anticoagulation, atrial fibrillation, stroke prevention, warfarina.

A relação de causa e efeito entre fibrilação atrial (FA) e acidente cerebrovascular (AVC) é estreita e representa um problema de saúde pública crescente1. Em 1951, Daley et al. descreveram a relação entre FA reumática e embolia sistêmica2. Atualmente, FA é a arritmia sustentada mais comum em adultos: mais de dois milhões de indivíduos nos EUA têm FA e 160000 novos casos são diagnosticados a cada ano3. No estudo de Framminghan, a prevalência de FA em indivíduos acima de 65 anos foi de 6%4. Em Joinville, um estudo epidemiológico populacional em 1997, com pacientes no primeiro evento de AVC, evidenciou 8,3% portadores de FA crônica5. Além de prevalente, FA não valvular e valvular elevam em cinco e quinze vezes o risco para AVC, respectivamente6,7. Numerosas séries randomizadas e controladas com warfarina têm demonstrado conclusivamente que a anticoagulação permanente pode reduzir AVC aproximadamente 68% ao ano em FA não valvular e muito mais em FA valvular6.

Apesar das evidências da eficácia da anticoagulação na prevenção de AVC em pacientes com FA, vários inquéritos comunitários têm evidenciado baixa absorção desta conduta e a FA persiste como principal causa de AVC cardio-embólico7-9. Em uma revisão de 32 anos no MEDLINE, somente 15% a 44% dos pacientes com FA sem contra-indicação receberam a prescrição de warfarina7. Inúmeras explicações são sugeridas para o sub-uso de warfarina: a relutância de clínicos gerais em iniciar e monitorar o tratamento8, as dificuldades práticas em anticoagular idosos restritos ao domicílio9-11, dúvidas sobre a real eficácia das grandes séries na prática clínica diária12.

Correlacionamos o número de pacientes com AVC isquêmico, portadores de FA crônica não valvular, previamente acompanhados por cardiologistas, sem contra indicação ao uso de warfarina com os resultados de um questionário sobre FA crônica, AVC e anticoagulação aplicado em uma amostra de médicos cardiologistas.

MÉTODO

Delineamento – Estudo prospectivo seguido de questionário transversal.

Ambiente do estudo – No período entre março a dezembro de 2000 foram protocolados 167 pacientes internados com AVC agudo recorrente ou não, na unidade de AVC do Hospital Municipal São José e Hospital Regional da cidade de Joinville, Santa Catarina.

População do estudo – Todos os pacientes foram avaliados por um neurologista (NLC) na fase aguda de internação. Foram incluídos dados demográficos, sócio-econômicos (alcoolismo, tabagismo, renda familiar, grau de escolaridade, uso de postos de saúde). Alcoolismo foi considerado presente quando os pacientes preenchiam todos os seguintes critérios: beber de manhã, faltar ao trabalho, beber sozinhos ou acima de 1 dose de destilado ou um copo médio de fermentado diariamente. A renda familiar foi estratificada em salários mínimos e a escolaridade entre analfabetos e níveis de educação formal (primeiro a terceiro grau). Foram considerados como fatores de risco para embolia em pacientes com fibrilação atrial não valvular (FANV): hipertensão arterial sistêmica, AVC prévio, insuficiência cardíaca congestiva, ataque isquêmico transitório, infarto agudo do miocárdio, câncer, diabetes e tabagismo. Aos pacientes e familiares portadores de FANV, foi questionado se estavam em uso de warfarina, se tinham conhecimento da arritmia, se estavam em acompanhamento prévio com cardiologista e a periodicidade das visitas .

Critérios de inclusão – AVC foi definido de acordo com os critérios do National Institute of Neurological Disoders and Stroke13. Para classificação dos subtipos de AVC isquêmico, utilizaram-se os critérios do estudo "TOAST"14. A classificação contempla os seguintes sub-tipos: aterotrombótico de grande artéria; oclusão de pequeno vaso (lacuna); cardioembólico; etiologia indeterminada (investigação incompleta, duas ou mais causas identificadas, investigação negativa); outra etiologia determinada. FANV crônica foi definida pela história clínica, padrão eletrocardiográfico e ecocardiográfico (átrio esquerdo maior de 2,5 cm/ m2, anormalidades focais no movimento da parede ventricular e presença de trombo intracavitário)15.

Critérios de exclusão – Foram excluídos da amostra os pacientes com AVC hemorrágico, hemorragia sub-aracnóide, hematomas sub ou extra-durais, com óbito nas primeiras 24 horas, fibrilação atrial aguda ou paroxística, estenose mitral, válvula cardíaca mecânica ou biológica. As contra-indicações ao uso de warfarina são qualquer uma das que se seguem: tendência à hemorragia ou discrasia sangüínea, sangramento recente (6 meses prévios), hemorragia intracraniana recente ou atual, cirurgia nos últimos 30 dias, trauma com sangramento interno, disfunção renal (creatinina > 3,0 mg/dl), disfunção hepática (TGP acima de três vezes o limite da normalidade), doença psiquiátrica severa, demência ou paciente não confiável, hipertensão severa não compensada (pressão diastólica maior que 110 mmHg apesar de tratamento), quedas repetidas predispondo a trauma craniano, epilepsia não controlada ou síncope recorrente, alcoolismo crônico,AVC prévio com dependência severa (índice de Rankin > 3), gravidez em curso ou aleitamento materno. Pacientes analfabetos sem apoio familiar para supervisionar o uso de medicações e/ou sem condições de transporte para monitoramento do TAP/INR também foram excluídos.

Rotina de investigação – O protocolo de investigação seguiu a rotina da unidade de AVC do HMSJ16.

Questionário de fibrilação atrial e uso de anticoagulantes – No mês de setembro de 2001, foi aplicado questionário, após explanação dos objetivos aos cardiologistas da cidade de Joinville no período de uma semana. Não foi aplicado termo de consentimento informado. O questionário continha dez perguntas objetivas que se seguem sobre FA e AVC - Qual acréscimo de risco para AVC entre pacientes com FA crônica e intermitente? - Qual prioridade terapêutica em pacientes com FA crônica na prevenção de eventos embólicos? - Entre pacientes sem contra-indicação para anticoagulação, qual razão principal evitaria o uso de warfarina? - Uso de anticoagulante em FA por faixa etária e fator de risco. - Alvo do INR - Conhecimento das recomendações da AHA (American Heart Association).17 - Estas recomendações são aplicáveis ao consultório privado e hospital público?

RESULTADOS

Em um período de 10 meses de estudo, 167 pacientes internaram com AVC isquêmico ou hemorrágico. Destes, 26 pacientes (15,7%) eram portadores de fibrilação atrial crônica não valvular (FANV). Foram excluídos da amostra 4 pacientes com hematoma intracerebral e FANV. Nenhum destes pacientes estava em uso de warfarina. A amostra final elegível foi de 22 pacientes. A maioria era do sexo masculino (60,8%) e a idade média foi 71,6 anos para os homens e 71,1 anos para as mulheres.

A Tabela 1 mostra o perfil sócio-econômico e os fatores de risco e dos pacientes. A maioria possuía renda familiar de 1-3 salários mínimos e eram no mínimo alfabetizados (65% com curso primário). Hipertensão arterial sistêmica foi o fator de risco mais prevalente, seguido por tabagismo e AVC prévio. Nenhum dos pacientes com AVC ou AIT prévios estavam em uso de warfarina antes da internação.

Entre os 21 pacientes com AVC isquêmico cardioembólico possível / provável, 15 (71,4%) estavam previamente em acompanhamento com cardiologista, a maioria tinha comparecido a pelo menos duas consultas antes do internamento por AVC. Entre estes pacientes com seguimento, metade já tinha conhecimento da arritmia (Tabela 2). Somente havia um paciente em uso prévio de warfarina; entretanto, sua atividade de protrombina (INR) estava abaixo do intervalo terapêutico. A Tabela 3 mostra o perfil do conhecimento e o acompanhamento cardiológico prévio à internação.

Entre os 22 pacientes da amostra, nove faleceram, sete tiveram alta em uso de warfarina e seis pacientes não foram considerados elegíveis para o uso de anticoagulantes: um paciente era portador de demência vascular; um portador de hipertensão arterial severa, um alcoólatra e três foram considerados pouco aderentes ao uso de warfarina pela condição sócio-econômica. Os pacientes que foram de alta em uso de warfarina, foram encaminhados ao ambulatório de anticoagulação do serviço de hematologia do HMSJ.

No período de estudo, 19 profissionais cardiologistas atuavam na cidade de Joinville. Foram entrevistados 11 colegas, 5 estavam fora da cidade e 3 não quiseram responder. Os resultados, mostrados na Tabela 4, evidenciaram que 91% conheciam as recomendações publicadas para o uso de anticoagulantes em pacientes portadores de FANV, mas somente 54% deles consideravam-nas aplicáveis para pacientes do serviço público.

DISCUSSÃO

As dificuldades para a prescrição de anticoagulantes podem ser potencialmente identificadas no médico, no paciente e no sistema de saúde7. Inúmeras pesquisas confrontando a conduta teórica e práticas a respeito do tema têm sido publicadas7,9,12,17,18. Em uma delas, Beyth e colaboradores, analisaram 189 prescrições consecutivas de pacientes com FA não reumática em dois hospitais de ensino e cinco hospitais comunitários. Os resultados evidenciaram que 52% dos médicos prescreveriam anticoagulante a seus pacientes, entretanto uma auditoria de suas práticas mostrou que somente 23% de seus pacientes haviam recebido warfarina18. Em nosso estudo, 91% dos colegas que responderam ao questionário conheciam as recomendações publicadas pela Associação Americana do Coração17. Entretanto, só 63% consideravam estes dados aplicáveis à realidade do consultório privado e 54% a um hospital público. Como a aplicação do questionário foi transversal, uma limitação do estudo foi a ausência de respostas de cinco colegas ausentes da cidade. Infelizmente, não podemos definir com precisão qual a influência teriam estas respostas adicionais no estudo

Quais barreiras justificam a atitude médica? Vários inquéritos sugerem que o principal determinante da decisão médica tem sido o peso do risco versus benefício em cada paciente individualmente7,9,19. Em uma avaliação, Chang e colaboradores, referem que cardiologistas, quando comparados com clínicos gerais, acreditavam que o risco de embolização em relação a hemorragias era menor e, assim, os cardiologistas teriam mais receio das complicações hemorrágicas e seriam menos inclinados a prescrever warfarina. Estes autores argumentam que a percepção médica do risco está em parte relacionada com os bons e maus resultados prévios no uso da droga20. Em um estudo não publicado, apresentado em 1997 como pôster, a incidência de complicações hemorrágicas em 54 pacientes anticoagulados após internação por AVC na U-AVC de Joinville, evidenciou uma taxa de 18% de sangramentos menores e 5,4% de sangramentos maiores, 1,8% fatais. Um estudo de coorte com 565 pacientes, mostrou que 12% dos pacientes tiveram hemorragias maiores e 2% fatais21. Em geral, a maioria das hemorragias ocorre quando o INR está acima de 322. No estudo AFFIRM, os pacientes que apresentaram hemorragia sistêmica tinham INR médio de 4,3± 4,9.22 Em nosso questionário, o receio de hemorragias foi o menor determinante (18%) na opção de não anticoagular um paciente sem contra-indicação.

O assunto tem gerado polêmica na literatura. Bellelli et al.23, criticam um artigo britânico15 reportando baixa taxa de complicações hemorrágicas em idosos anticoagulados em uma carta com um título criativo: "Retirando a roupa do rei: elegibilidade e não eficácia parece ser o principal problema da anticoagulação em idosos com FA", no qual sustentam que, entre clínicos gerais da comunidade, a avaliação da independência do paciente para caminhar é crítica na decisão de se iniciar anticoagulante. O receio de complicações hemorrágicas sobressai como um dos argumentos mais contundentes para se evitar o uso de warfarina7. Alguns autores reportam que o risco de hemorragia na prática clínica diária é 2 a 4 vezes maior do que nos ambientes das grandes séries clínicas15,18,19,24. Num recente estudo de coorte não controlado, com dois anos de seguimento, incluindo pacientes acima de 75 anos de hospitais comunitários, Kalra et al. mostraram que as taxas de AVC e hemorragias maiores após anticoagulação na prática clínica eram comparáveis às obtidas em ensaios clínicos randomizados15. Entretanto, a ausência de controle e a seleção dos pacientes suscitaram dúvidas sobre estes resultados19.

Vários estudos se referem à incerteza teórica como uma das causas mais comuns entre os médicos. Este aspecto tem sido interpretado com várias facetas que incluem a desatualização da literatura atual, conhecimento das recomendações publicadas na literatura associados à não concordância dos resultados ou à crença de situações clínicas específicas não são consideradas em ensaios clínicos randomizados7,19. Um outro aspecto pouco relatado e infreqüentemente investigado é medo de litígio pelo médico25. Em um inquérito, 79% dos médicos citaram a falta de confiabilidade no paciente como uma contra-indicação ao tratamento e mais de 90% do mesmo grupo não prescrevia a droga para pacientes alcoólatras20. Outras razões citadas são o risco de quedas (71% contra-indicam)12, dificuldade em manter o INR na faixa terapêutica12, a não aderência como motivo da dificuldade do monitoramento do tempo de protombina (17%)26. Entre os cardiologistas que responderam ao questionário, o principal fator limitante na prescrição de warfarina foi a limitação intelectual do paciente, seguida pelas dificuldades técnicas do serviço no controle do TAP.

Entretanto, a estratificação simples da escolaridade e renda, em nosso protocolo, evidenciou que a maioria dos pacientes da nossa série, internados com AVC e FA crônica eram no mínimo alfabetizados e possuíam renda superior a um salário mínimo. Outra justificativa citada por 36% dos colegas, foi a incapacidade institucional em controlar o tempo de protrombina e o receio de hemorragias. Porém, em pelo menos um dos dois hospitais públicos da amostra, existe um ambulatório de hematologia para controle de anticoagulação.

Apesar das recomendações publicadas, muitos médicos acreditam que seus resultados não são aplicáveis a seus pacientes12,24. Um interessante estudo sustenta esta impressão, ao comentar que os pacientes de um serviço público com FA, comparados aos de ambientes de grandes ensaios clínicos randomizados, apresentavam maior prevalência de co-morbidades (angina, diabetes e insuficiência cardíaca) além de maior dificuldade no controle do INR12. Este aspecto está implícito na última pergunta de nosso questionário, em que 54% dos cardiologistas citaram a não aplicabilidade dos resultados dos guidelines na realidade de um hospital público.

Na nossa casuística, na análise final entre os pacientes internados com AVC e FANV concomitante, obtivemos sete pacientes com alta sob anticoagulação e nove pacientes com óbito. Na alta hospitalar, seis pacientes não receberam anticoagulante em suas prescrições. Metades destes, foi por limitação sócio-econômica.

Considerando como 68% a redução do risco relativo para AVC ao ano com o uso de warfarina em pacientes com FA11 e, incluindo a intenção de tratamento entre os que faleceram, podemos concluir que aproximadamente 50% (11 casos) dos pacientes (71% deles previamente acompanhados por cardiologistas) poderiam ter evitado AVC. Extrapolando a taxa de incidência de FA no estudo populacional de Joinville em 1997 (8,3%) e a população atual (500000 hab27), podemos especular que atualmente 30 casos (4% de todos os AVC) por ano são potencialmente evitáveis em Joinville. Campanhas de educação a médicos e pacientes poderiam diminuir as taxas de AVC em pacientes com FA. Estudos de coorte populacionais em pacientes com FA crônica em Joinville, do sistema público e privado, poderão definir a real dimensão do uso de anticoagulantes em nosso meio.

Recebido 20 Janeiro 2004, recebido na forma final 3 Maio 2004. Aceito 1 Julho 2004.

  • 1. Feinberg WM, Blackshear JL, Laupacis A, Kronmal R, Hart RG. Prevalence, age distribution and gender of patients with atrial fibrillation: analysis and implications. Arch Intern Med 1995;155:469-473.
  • 2. Daley R,Mattlingly TW, Holt CL, et al. Systemic arterial embolism in rheumatic heart disease. Am Heart J 1951;42:566- 581.
  • 3. Akhtar M.Arritmias cardíacas de origem supraventricular.In Goldman L, Bennett JC,eds. Cecil Tratado de Medicina Interna, 21Şedição. Rio de Janeiro:Guanabara Koogan, 2001:262-270.
  • 4. Benjamin EJ, Wolf PA, D Agostino RB, Silbershatz H, Kannel WB, Levy D. Impact of atrial fibrillation on the risk of death: the Framingham Heart Study. Circulation 1998:98:946-952.
  • 5. Cabral NL,Longo ALL,Moro CHC,Amaral CH,Kiss HC.Epidemiologia dos acidentes cerebrovasculares em Joinville, Brasil. Arq Neuropsiquiatr 1997;55:357-363.
  • 6. Wolf PA, Abbott RD, Kannel WB. Atrial fibrillation: a major contributor of stroke in the elderly: the Framingham Study. Arch Intern Med 1987;147:1561-1564.
  • 7. Bungard TJ, Ghali WA, Teo KK, Maclister FA, Tsuyuki RT. Why do patients with atrial fibrillation not receive warfarin? Arch Intern Med 2000;160:41-46.
  • 8. Sudlow M, Thomson R, Thwaites B, Rodgers H,Kenny RA. Prevalence of atrial fibrillation and eligibility for anticoagulation in the community. Lancet 1998;352:1167-171.
  • 9. Connolly SW, Stuart J. Preventing stroke in atrial fibrillation: why are so many eligible patients not receiving anticoagulation therapy? CMAJ.1999;161:533-534.
  • 10. Roderick E, Cox J. Non-valvular atrial fibrillation. Br Gen Pract 1997;47:660-661.
  • 11. Thomson R, Mcelroy H, Sudlow M. Guidelines on anticoagulant treatment in atrial fibrillation in Great Britain: variation and implications for treatment. BMJ 1996;316:509-513.
  • 12. Gottlieb LK, Salem-Schatz S. Anticoagulation in atrial fibrillation: does efficacy in clinical trials translate into effectiveness in practice? Arch Intern Med 1994;154:1945-1953.
  • 13. National Institute of Neurological Disorders and Stroke ad Hoc Committee. Classification of cerebrovascular diseases III. Stroke 1990;21:637-676.
  • 14. Adams HP Jr, Bendixen BH, Kappelle LJ, et al, and the TOAST Investigators. Classification of subtype of acute ischemic stroke: definitions for use in a multicenter clinical trial. Stroke 1993;24:35-41.
  • 15. Kalra L, Yu G, Perez I, Lakhani A, Donaldson N. Prospective cohort study to determine if trial efficacy of anticoagulation for stroke prevention in atrial fibrillation translates into clinical effectiveness. BMJ 2000;320:1236-1239.
  • 16. Cabral NL, Moro C HC, Silva GR, Scola RH, Werneck LC. Unidade de AVC em Joinville: ensaio clínico randomizado. Arq Neuropsiatr 2003;61:188-193.
  • 17. Fuster V, Ryden LE, Asinger RW, et al. ACC/AHA/ESC guidelines for the management of patients with atrial fibrillation: executive summary. J Am Coll Cardiol 2001;38:1231-1266.
  • 18. Beyth RJ, Antani MR, Covinsky KE, et al. Why isn't warfarin prescribed to patients with nonrheumatic atrial fibrillation? J Gen Intern Med 1996;11:721-728.
  • 19. Fitzmaurice DA. It´s still not clear whether results in secondary care translate to primary care. In replly to: anticoagulation to prevent stroke atrial fibrilation BMJ 2000;321:1156.
  • 20. Chang HJ, Bell JR, Devoo KJW, Wasson JH. Physician variation in anticoagulation patients. Arch Intern Med, 1990;150:81-84.
  • 21. Landefeld CS, Goldman L. Major bleeding in outpatients treated with warfarin: Incidence and prediction by factors know at the start of outpatient therapy. The Am J Med, 1989;87:144-152.
  • 22. Wyse,DG, Waldo AL,DiMarco JP, et al. A comparison of rate control and rhythm control in patients with atrial fibrillation. N Engl J Med 2002;347:1825-1833.
  • 23. Belleli G, Bianchetti A, Trabucchi M. Let's strip the King: eligibility not safety is the problem of anticoagulation for stroke prevention in the elderly patients with atrial fibrillation. Arch Intern Med 2002;162:1067.
  • 24. Petty GW, Brown RD Jr, Whisnant JP, et al. Frequency of major complications of aspirin, warfarin and intravenous heparin for secondary stroke prevention: a population based study. Ann Intern Med 1999;5:130:14-22.
  • 25. Rodger H, Sudlow M, Dobson R, Kenny RA, Thonson RG. Warfarin anticoagulation in primary care: a regional survey of present practice and clinicians views Br J Gen Pract 1997:47:309-310.
  • 26. Kutner M, Nixon G, Silverstone F. Physicians' attitudes toward oral anticoagulants and antiplatelet agents for stroke prevention in elderly patients with atrial fibrillation. Arch Intern Med 1991;151:1950-1953.
  • 27. Secretaria Estadual de Saúde de Santa Catarina.Sem data. População estimada segundo idade e sexo.IBGE: Censo demográfico 2000.
  • Endereço para correspondência

    Dr. Norberto L. Cabral
    Clínica Neurológica de Joinville
    Rua Plácido O. Oliveira, 1244/47
    89202-451
    Joinville SC - Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Abr 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2004

    Histórico

    • Recebido
      20 Jan 2004
    • Revisado
      03 Maio 2004
    • Aceito
      01 Jul 2004
    Academia Brasileira de Neurologia - ABNEURO R. Vergueiro, 1353 sl.1404 - Ed. Top Towers Offices Torre Norte, 04101-000 São Paulo SP Brazil, Tel.: +55 11 5084-9463 | +55 11 5083-3876 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revista.arquivos@abneuro.org