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Encefalopatia necrotizante aguda: paciente com evolução recidivante e letal

Acute necrotizing encephalopathy: patient with a relapsing and lethal evolution

Resumos

A encefalopatia necrotizante aguda foi descrita inicialmente em crianças japonesas e se caracteriza por rápida evolução e lesões simétricas no tronco encefálico, cerebelo e especialmente nos tálamos. Avaliamos uma menina de 7 meses de idade, que apresentou dois episódios de depressão da consciência de rápida instalação e paresias, sem alterações metabólicas. Houve uma rápida melhora na primeira crise, porém o segundo episódio foi fulminante, tendo evoluído para estado de morte encefálica em dois dias. Os estudos de ressonância magnética mostraram lesões simétricas nos tálamos e acometimento também do tronco encefálico e cerebelo.

aguda; necrotizante; encefalopatia; recidivante


Acute necrotizing encephalopathy was initially reported in Japanese children. The rapid evolution and symmetrical brain lesions seen in the brainstem, cerebellum and specially in the thalamus characterize the disease. We studied a 7-month-old-girl, who presented with two episodes of rapid loss of consciousness and paresis without metabolic disturbances. At the first time she had a rapid improvement, but at the second episode the course was fulminant and in two days she lapsed into a clinical state of brain death. The magnetic resonance studies showed symmetrical lesions in the thalamus and additional lesions involving the brainstem and the cerebellum.

acute; necrotizing; encephalopathy; relapsing


Encefalopatia necrotizante aguda: paciente com evolução recidivante e letal

Acute necrotizing encephalopathy: patient with a relapsing and lethal evolution

Erasmo B. CasellaI; Victor NudelmanII; Marcelo M. FelixIII; Edson Amaro Jr.IV; Benjamin HandfasV; João Radvany JV; Adalberto StapeII; Eduardo TrosterVI

INeurologista Infantil do Hospital Israelita Albert Einstein e Médico Assistente da Unidade de Neuropediatria do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), São Paulo SP, Brasil, Doutor em Neurologia pela FMUSP

IIPediatra do Hospital Israelita Albert Einstein e do Instituto da Criança do HC/FMUSP, São Paulo SP, Brasil

IIIRadiologista do Hospital Israelita Albert Einstein e do Instituto de Radiologia do HCFMUSP, São Paulo SP, Brasil

IVRadiologista do Hospital Israelita Albert Einstein, Doutor em Radiologia pela FMUSP e docente do Departamento de Radiologia da FMUSP, São Paulo SP, Brasil

VRadiologista do Hospital Israelita Albert Einstein, São Paulo SP, Brasil

VICoordenador das CTI do Hospital Israelita Albert Einstein e do Instituto da Criança HCFMUSP e Doutor em Pediatria pela FMUSP, São Paulo SP, Brasil

RESUMO

A encefalopatia necrotizante aguda foi descrita inicialmente em crianças japonesas e se caracteriza por rápida evolução e lesões simétricas no tronco encefálico, cerebelo e especialmente nos tálamos. Avaliamos uma menina de 7 meses de idade, que apresentou dois episódios de depressão da consciência de rápida instalação e paresias, sem alterações metabólicas. Houve uma rápida melhora na primeira crise, porém o segundo episódio foi fulminante, tendo evoluído para estado de morte encefálica em dois dias. Os estudos de ressonância magnética mostraram lesões simétricas nos tálamos e acometimento também do tronco encefálico e cerebelo.

Palavras-chave: aguda, necrotizante, encefalopatia, recidivante.

ABSTRACT

Acute necrotizing encephalopathy was initially reported in Japanese children. The rapid evolution and symmetrical brain lesions seen in the brainstem, cerebellum and specially in the thalamus characterize the disease. We studied a 7-month-old-girl, who presented with two episodes of rapid loss of consciousness and paresis without metabolic disturbances. At the first time she had a rapid improvement, but at the second episode the course was fulminant and in two days she lapsed into a clinical state of brain death. The magnetic resonance studies showed symmetrical lesions in the thalamus and additional lesions involving the brainstem and the cerebellum.

Key words: acute, necrotizing, encephalopathy, relapsing.

A encefalopatia necrotizante aguda (ENA) foi descrita inicialmente por Mizuguchi et col. em 19951 e caracteriza-se por depressão aguda da consciência, 1-3 dias após o início de uma doença febril banal1,2. Coma, crises epilépticas e paralisias de nervos cranianos são os sinais iniciais. O quadro é fatal em alguns pacientes e comumente ocorrem sequelas no sobreviventes2,3. Casos recidivantes têm sido relatados mais esporadicamente4. O exame de ressonância magnética (RM) na fase aguda mostra múltiplas áreas com restrição à difusão e hipersinal em T2, acometendo principalmente os tálamos, a substância branca periventricular e região superior do tronco encefálico e cerebelo2-8.

Este estudo foi aprovado pela comissão de Ética e Pesquisa do Hospital Israelita Albert Einstein e também pelos pais da criança, que assinaram o consentimento informado.

CASO

Lactente do sexo feminino nascida a termo, sem intercorrências perinatais ou de desenvolvimento. Primeira internação aos 4 meses de idade com história de vômitos, prostração e inapetência há 4 dias. Os dados antropométricos na ocasião eram os seguintes: peso 6200 g (percentil 25-50), estatura 59 cm (percentil 25-50), perímetro craniano 39 cm (percentil 25-50). No momento da internação a pressão arterial era 85/50 mmHg e a freqüência cárdiaca 120 batimentos/minuto. Havia sido vacinada há 7 dias com a segunda dose das vacina conjunta para difteria, tétano, pertussis acelular, H. influenzae, pólio inativada e da vacina pneumocóccia conjugada,evoluindo nos dois primeiros dias com febre, dor e e tumoração importante no local da aplicação da vacina conjunta. O exame clínico na ocasião, além da depressão da consciência com hipoatividade mostrava hipotonia global, com reflexos profundos hipoativos e estrabismo parético à esquerda. Os exames que avaliam o meio interno estavam normais, seja no momento da internação ou nos dias subseqüentes (Tabela). Observou-se no exame de líquido cefalorraquidiano (LCR) pleocitose discreta (15 células/mm3), predomínio linfomononuclear, lactato 12 mg/dL sem outras alterações. Não há relato de casos semelhantes na família ou de consangüinidade e a alimentação consistia de leite materno exclusivo.

A RM mostrou múltiplas pequenas áreas de restrição à difusão, comprometendo bulbo, cerebelo, mesencéfalo, hipocampo esquerdo, tálamos e região núcleo-capsular direita, com correspondente alteração em T2 (Fig 1). Foi introduzido aciclovir, mantido por 9 dias (até resultado negativo de PCR para herpes) e a seguir efetuado pulsoterapia com corticosteróide, com melhora evidente da paciente. Um segundo exame de RM de crânio realizado após três dias do primeiro, evidenciou discreta melhora com redução da intensidade de sinal na sequência de difusão, não havendo evidência de novas lesões (Fig 2). A criança evoluiu bem por 3 meses, apresentando regressão praticamente de todas as alterações clínicas, com exceção do estrabismo. Não teve qualquer problema de intolerância alimentar, seja à frutas, leite ou sopas, que já vinha ingerindo habitualmente.



Aos 7 meses de idade foi internada com história de febre há 12 horas, hipoatividade, depressão da consciência progressiva, reflexos profundos hipoativos e estrabismo convergente parético bilateral. Como no evento anterior, os exames séricos, que avaliam o meio interno, na internação e na evolução foram novamente normais (Tabela), assim como o exame de LCR, incluindo o lactato. O paciente evoluiu para quadro compatível com o diagnóstico de morte encefálica em menos de 24 horas. Dados antropométricos na segunda internação: peso 7450 g (percentil 25-50), estatura 63 cm (percentil 25-50), perímetro craniano 42 cm (percentil 25-50). Pressão arterial 90/50 mmHg e freqüência cardíaca 110 batimentos/minuto. A RM nesta ocasião demonstrou múltiplas lesões com restrição à difusão, esparsas e comprometendo principalmente os tálamos de forma simétrica, com correspondente alteração de sinal em T2 e ausência de impregnação pelo contraste (Fig 3). As reações sorológicas influenza A, arbovirus, echovirus, virus Epstein-Barr, poliovírus, Coxsackie B, citomegalovirus, bem como as culturas para bactérias em sangue e LCR não permitiram determinar algum agente desencadeante e a pesquisa de ácidos orgânicos urinários não demonstrou a presença de alterações.


DISCUSSÃO

A ENA foi descrita inicialmente em crianças japonesas sem alterações clínicas prévias, que apresentavam deterioração rápida da consciência após uma infecção banal leve, sendo posteriormente detectada também em outros países do mundo ocidental1,2,9-11. Observa-se predomínio no acometimento de lactentes, na idade entre 6-18 meses, sendo característica a presença de lesões relativamente simétricas nos tálamos, região superior do tronco encefálico e cerebelo, poupando caudado e putamen4-8. O exame de RM em nossa paciente sugeriu o diagnóstico apenas no segundo episódio, que se manifestou de modo muito mais grave, com evolução fulminante. A literatura relata a incidência de óbitos em 16-28% dos casos9, sendo que 65% dos pacientes morrem ou evoluem com muitas seqüelas5.

Os estudos post-morten têm demonstrado a presença nas áreas afetadas de necrose celular, gliose, dilatação, proliferação capilar e hemorragia, o que não foi possível de ser avaliado em nosso paciente10,11. A ausência de estudo anatomo-patológico não invalida o diagnóstico de ENA, já que os critérios diagnósticos utilizados pelo primeiro autor a relatar esta entidade, não incluiu estudos patológicos5. Além disto, a maioria dos artigos publicados na literatura atual não têm efetuado estudos histológicos comprobatórios5,7,8. A fisiopatologia da ENA é desconhecida, porém a maioria dos autores acredita no papel da imunomediação, havendo uma infecção viral como desencadeante6,9.

O vírus mais freqüentemente associado como gatilho ao aparecimento da ENA é o influenza A, que predomina no Japão e Taiwan; outros agentes também têm sido relacionados como: influenza B, herpes 6 e 7; varicela, herpes simplex, rubeola, M. pneumoniae, adenovírus, porém na maioria das vezes não se identifica o agente1,4,6,11-17.

As formas recidivantes ENA, como a que ocorreu em nossa paciente, são relatadas de modo mais esporádico4,11. Os dois episódios observados em nosso paciente apresentaram várias características semelhantes como: desencadeamento pós quadro infeccioso, rápida progressão dos sintomas neurológicos; depressão de consciência, hipoatividade e ausência de alterações metabólicas. Todavia a segunda crise ocorreu de modo muito mais intenso, provocando maior gravidade clínica e das alterações neuroradiológicas, que determinaram rápida evolução para o óbito. Estas formas recidivantes sugerem um papel da genética como predisposição para o desencadeamento da ENA e Neilson et al. mapearam a doença no cromosssomo 2q12.1-2q13, avaliando vários pacientes acometidos11. As lesões necrotizantes em regiões talâmicas, tronco encefálico e cerebelo, características da ENA devem ser diferenciadas de outras situações que acometem de modo predominante o striatum como alguns erros inatos do metabolismo ou intoxicações por monóxido de carbono ou manganês. Nos últimos anos vários erros inatos, que cursam com episódios de descompensação aguda, têm sido identificados com maior freqüência, como algumas organoacidopatias (acidúria glutárica tipo 1, acidemia metilmalônica, proiônica, isovalérica, leucinose) e algumas mitocondriopatias que cursam como a síndrome de Leigh. Todavia estas doenças podem ser consideradas e identificadas na presença de elevação do ácido láctico sérico e/ou liquórico, acidose ou alterações dos ácidos orgânicos urinários.

A ausência de alterações do meio interno em nossa paciente e ainda a normalidade do exame de ácidos orgânicos urinários, durante o momento de descompensação, além das particularidades das imagens encontradas, afastam estas possibilidades6,18. Outras doenças de caráter repetitivo, que podem acometer o parênquima encefálico como formas recidivantes da encefalomielite aguda disseminada ou mesmo a esclerose múltipla, que poderiam ser consideradas, não se enquadram no paciente em questão, pelo predomínio de lesão na substância cinzenta, além da simetria do acometimento talâmico.

Salientamos a importância do conhecimento do diagnóstico da ENA, que deve ser considerado em pacientes que apresentem alterações neurológicas desencadeadas por quadros infecciosos inespecíficos, sem alterações do meio interno, quando o exame de imagem demonstrar a presença de lesões relativamente simétricas, que acometam o tronco encefálico, cerebelo e principalmente os tálamos. Além disso, devemos estar cientes do potencial de recidiva e gravidade desta doença.

Recebido 9 Maio 2006, recebido na forma final 25 Outubro 2006. Aceito 11 Dezembro 2006.

Dr. Erasmo Barbante Casella - Rua Oscar Freire 1827 - 05409-011 São Paulo SP - Brasil. E-mail: erasmobc@icr.hcnet.usp.br

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Maio 2010
  • Data do Fascículo
    Jun 2007

Histórico

  • Revisado
    25 Out 2006
  • Recebido
    09 Maio 2006
  • Aceito
    11 Dez 2006
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