Resumos
The article offers an empirically guided discussion of the organizational model which Whitley has proposed for analyzing scientific fields. The central, empirically tested dimensions of the model refer to a consensus-forming process. It is proposed that the model be expanded to include other dimensions related to consensus-formation in different fields: that is, the use of technologies and the division of labor.
scientific organizations; sociology of organizations; sociology of science; scientists
Cet article a pour but d’établir un débat axé empiriquement sur le modèle organisationnel que Whitley propose pour analyser des disciplines du domaine scientifique. On argumente ici que les dimensions centrales, empiriquement testées, du modèle se rapportent à un processus de formation de consensus. Ce qui amène à la proposition élargie du modèle, de façon à incorporer d’autres dimensions relatives à la formation de consensus dans différents domaines disciplinaires, tels que l’utilisation de technologies et la division du travail.
sociétés scientifiques; sociologie des organisations; sociologie de la science; science; chercheurs scientifiques
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"Hard Sciences"e "Social Sciences" : Um Enfoque Organizacional* * Agradeço aos membros do Grupo de Trabalho de Ciência e Tecnologia do XX Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais ¾ Anpocs, especialmente aos professores Antonio Botelho e Renan Springer pelos valiosos comentários a uma versão anterior deste artigo. A responsabilidade final, como de praxe, é inteiramente minha. Este trabalho não teria sido possível sem o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico ¾ CNPq.
Claudio C. Beato F.
INTRODUÇÃO
Os estudos de sociologia da ciência podem ser divididos em duas gerações: a primeira, de inspiração mertoniana, é fortemente marcada por ser uma sociologia de instituições científicas e de cientistas (Mulkay, 1980); a segunda, de orientação pós-kuhniana, preocupa-se com uma reavaliação do status epistemológico da ciência (Pickering, 1992). Essa primeira geração da sociologia da ciência é, na verdade, uma sociologia dos cientistas mais que do conhecimento científico. Trata-se de uma perspectiva institucional voltada para o estudo de variáveis tais como o papel dos cientistas nos diferentes países, tamanho e estrutura das organizações científicas, e diferentes aspectos da economia, sistema político, religião e ideologia.
Nos últimos vinte anos, temos assistido à emergência de estudos que enfatizam em diferentes graus o caráter "social" do conhecimento científico (Bloor, 1976). Não são apenas os cientistas e suas instituições que são submetidos ao escrutínio sociológico, mas o próprio conteúdo do conhecimento científico: matérias de natureza técnico-científica e social passam a equivaler-se do ponto de vista dos interesses envolvidos; a facticidade do conhecimento é produto de uma complexa atividade interpretativa, e não mais a sua causa (Latour e Woolgar, 1979). A sociologia tradicional tende a relegar os aspectos falsos, irracionais ou falhas para serem estudados pela sociologia, ao passo que a verdade, racionalidade e sucesso pela epistemologia. Ao contrário dos estudos da primeira geração, que dirigem o foco de atenção sociológico para o erro e para a irracionalidade, os da segunda voltam-se tanto para as crenças falsas como para as verdadeiras como objeto de estudo. As teses da imparcialidade e da simetria de Bloor (1976) recomendam explicitamente que tanto a verdade como a falsidade, racionalidade ou irracionalidade, sucesso ou falha, sejam dicotomias requerendo explicações.
Esses estudos não tratam mais apenas dos aspectos institucionais, tais como relações entre ciência e política (Shapin e Shaffer, 1985) e do modo como organizações de pesquisa produzem conhecimento (Knorr-Cetina, 1981), mas da identidade hermenêutica entre as hard sciences e as ciências "moles". Isso conduziu a uma agenda de pesquisas empíricas que requeria dos investigadores uma certa familiaridade com o conhecimento estudado1apudUma das críticas à sociologia do conhecimento era a "ingenuidade" dos resultados obtidos, considerando-se que freqüentemente os pesquisadores não eram sociólogos profissionais (Ben-David, 1981 Shapin, 1995). . Seu problema central era interpretar o relacionamento entre a situação local na qual o conhecimento científico foi produzido e a eficiência que ele havia logrado (Shapin, 1995). Assim, o programa estruturou-se em torno de questões tais como: o que é racionalidade? O que significa comportar-se logicamente? O que é fato? O que é evidência?
Em termos da difusão de uma cultura acadêmica, a sociologia do conhecimento científico expandiu-se ao longo das últimas duas décadas, não obstante as críticas a respeito de sua excessiva diversidade de orientações2A sociologia do conhecimento científico engloba estudos que destacam o caráter construtivista na produção dos fatos científicos (Knorr-Cetina, 1981), a natureza reflexiva da atividade científica (Woolgar, 1988) ou a dimensão retórica da ciência (Gilbert e Mulkay, 1984)., do relativismo que parece orientar seus estudos3 3 . Embora muitas críticas partam de uma certa confusão entre relativismo e anarquia metodológica: "For an analyst to say that the credibility of two different beliefs about the world should be interpreted using the same methods is, thus, not necessarily the same thing as saying that they are equally true or that world(s) to which they refere is (are) multiple. Almost all SSK relativists set aside ontological questions and treat truth-judgements as topic rather than as resource. So far as morality is concerned, the dominant tendency here is not to celebrate moral anarchy but to interpret how locally varying moral standards acquire their obligatory character" (Shapin, 1995:292, nota 6). , e da construção de uma sociologia que prescinde do conceito de natureza (Murphy, 1994). Para efeitos do presente trabalho, a crítica a ser ressaltada é a de que a sociologia do conhecimento científico, ao destacar a "identidade hermenêutica" entre as disciplinas e o caráter local e construtivo dos fenômenos científicos, tornou impossível estabelecer qualquer diferenciação entre os diversos campos de conhecimento.
Paralelamente, e em uma tentativa de incorporar elementos de natureza organizacional ao estudo da atividade científica, temos a emergência de uma sociologia com o objetivo de estudar a ciência como um tipo particular de organização, cuja característica é a orientação para a produção de novidades, o que confere um alto grau de incerteza a seus resultados (Whitley, 1985; Fuchs, 1992). É desse modelo teórico de "médio alcance" que este artigo tratará, no suposto de que um modelo dessa estatura permite comparar os elementos de uma "sociologia da ciência", bem como os de uma "sociologia do conhecimento científico". Uma das vantagens de estudarmos as organizações é que elas se constituem em arenas de ação que se encarregam da mediação entre indivíduos e instituições sociais: compõem-se, pois, de instâncias nas quais seus membros reconstituem seus cursos de ação tendo em vista propósitos de natureza organizacional. A literatura teórica para o ingresso nesse campo, portanto, é variada e abrange orientações que vão desde a etnometodologia até o funcionalismo parsoniano.
METODOLOGIA
Este texto está dividido em duas partes. Na primeira, farei uma análise de dados de um survey realizado com 148 cientistas de cinco departamentos da UFMG ¾ Física, Química, Demografia, Economia, Ciência Política/Sociologia ¾ , utilizando-me do modelo organizacional dos campos intelectuais desenvolvido por Whitley, operacionalizado por intermédio de alguns indicadores. Existe um duplo propósito aqui: o primeiro, de natureza metodológica, busca organizar os dados coletados através do survey para delinear um perfil teoricamente informado dos pesquisadores da UFMG. Este material empírico inicial propiciará uma discussão a respeito da consistência interna do modelo; o segundo, de natureza teórica, decorrerá da análise da consistência do modelo em face dos dados empíricos coletados, no intuito de estabelecer uma base para a discussão de abordagens de natureza cognitiva versus abordagens institucionais no estudo da ciência ("sociologia do conhecimento científico" e "sociologia dos cientistas").
Na segunda parte, buscarei interpretar o modelo, incorporando dados qualitativos coletados a partir de entrevistas com físicos, e de observações e gravações feitas em vídeo no Laboratório de Ótica do Departamento de Física da UFMG. Conforme veremos, o modelo anteriormente discutido será refeito, incorporando dimensões de natureza organizacional, tais como a utilização de "tecnologias de pesquisa" e do trabalho em grupo.
O MODELO ORGANIZACIONAL DOS CAMPOS INTELECTUAIS DE WHITLEY
Whitley, em The Intellectual and Social Organization of the Sciences (1985), sugere-nos uma concepção da pesquisa científica como um tipo particular de organização do trabalho que estrutura a produção e a avaliação de conhecimento em contextos institucionais mais amplos. Esse contexto mais amplo, determinado política e historicamente, não será alvo de atenção neste artigo; meu objetivo aqui é mais modesto, e será pautado pela discussão dos aspectos de natureza organizacional da atividade científica. A razão de circunscrever dessa maneira a abrangência da discussão é que Whitley desenvolve um modelo para a análise dos campos intelectuais no suposto de que muitas das diferenças entre as disciplinas, assim como a forma como articulam sua base cognitiva, se deve a fatores de natureza organizacional. Naturalmente, isto não implica conceber organizações em um vácuo histórico e político, mas, justamente, o contrário, reconhecer como a articulação entre organizações e instituições sociais é mutuamente incrementada.
A literatura etnográfica sobre laboratórios demonstra fartamente como o conhecimento na ciência se relaciona com seus ambientes mais imediatos de produção (Latour e Woolgar, 1979; Knorr-Cetina, 1981; Pickering, 1984). Estudos sobre o cotidiano da pesquisa demonstram que as hard sciences assim como as ciências "moles" são permeadas por mecanismos interpretativos expressos em conceitos tais como reflexividade, indexicalidade ou o aspecto retórico do discurso científico. O que é denominado genericamente "atividades de pesquisa", bem como suas concepções correlatas de "método", "epistemologia", "teoria e experimento", devem levar em conta os mecanismos de natureza cognitiva e organizacional acerca de como distintos "campos intelectuais" produzem e controlam conhecimento. Concepções ingênuas, que reivindicam status especial ao conhecimento nas áreas humanas e exatas, ou adotam a física e a química como modelos de atividade científica, não encontram mais amparo empírico: trata-se de um equívoco resultante de uma concepção alicerçada em uma filosofia positiva do século XIX.
O ponto relevante é que o campo intelectual de cada uma dessas organizações do trabalho ¾ cujo denominador é o alto grau de incerteza resultante da produção de novidades, e fortes mecanismos de controle através de sistemas de reputação ¾ se estrutura distintamente (Whitley, 1985; Fuchs, 1992). As diversidades observadas entre os campos não são resultado de questões de natureza epistemológica, mas organizacionais.
No modelo de Whitley (1985), duas dimensões são centrais: (I) o grau de dependência mútua, produto de um sistema de reputações que se encarregará do controle dos resultados produzidos, bem como das tarefas realizadas pelos cientistas; e (II) o grau de incerteza dessas tarefas, marcados pela inovação e ineditismo de propósitos. Ambas são os pilares do modelo, e desdobram-se em quatro aspectos analíticos associados a fatores de natureza empírica. Assim, o grau de dependência mútua subdivide-se em a dependência funcional e a dependência estratégica. Da mesma forma, o grau de incerteza de tarefas desdobra-se em incerteza técnica e incerteza estratégica. A articulação entre dimensões, aspectos analíticos e fatores associados está esboçada no Quadro I:
A primeira dimensão, "dependência mútua", tem como aspectos analíticos o "grau de dependência funcional" e o "grau de dependência estratégica". A dependência funcional está associada: (1) à definição de fronteiras e identidades profissionais, cuja característica empírica é o maior ou o menor grau de independência em relação aos leigos, decorrente do grau de padronização no treinamento dos cientistas; (2) à divisão de tarefas e habilidades, marcada pelo maior ou menor grau de padronização na avaliação de competência; (3) à abrangência de problemas traduzidos em um maior ou menor grau de padronização dos procedimentos de pesquisa e temas a serem pesquisados; (4) à especificidade dos resultados das tarefas traduzidos no grau de universalismo na avaliação dos padrões de competência e; (5) à padronização dos procedimentos de trabalho e habilidades expressos em uma estrutura de comunicações científicas tais como publicações em revistas especializadas e participação em congressos e seminários. O segundo aspecto é o grau de dependência estratégica que se associa: (1) à intensidade da competição entre cientistas e; (2) a implicações teóricas gerais dos resultados em termos da centralidade dos problemas e abordagens.
A segunda dimensão diz respeito ao "grau de incerteza de tarefas" e subdivide-se em "incerteza técnica" e "incerteza estratégica": a primeira associa-se à visibilidade, uniformidade e estabilidade dos resultados das tarefas, ao passo que a segunda se refere à uniformidade, estabilidade e integração de estratégias de pesquisa e objetivos.
Todas as dimensões do modelo, assim como seus aspectos e fatores associados, encontram-se inter-relacionados conforme indicam as setas duplas no quadro citado. Assim, a delimitação clara de fronteiras e identidades profissionais corresponde a um sistema de treinamento padronizado, que resultará na uniformização nas avaliações das competências dos cientistas. Esses fatores se associam a uma definição clara (em maior ou menor grau) de um conjunto de problemas centrais, bem como de procedimentos para a realização das metas perseguidas. Isto tem implicações na comunicação de resultados de pesquisa e no grau de consenso a respeito dessas contribuições, que se refletem em um ranking de veículos de divulgação de resultados e no padrão para a avaliação destes últimos. Todos esses fatores se associam ao grau de competição entre grupos de pesquisa em torno de uma temática, e às implicações teóricas dos resultados obtidos, e assim por diante.
A associação de fatores caracterizará distintamente os campos intelectuais em termos de sistemas de controle dos resultados de pesquisa tornados públicos e efetuados pelos próprios pares. Uma das características centrais do modelo de Whitley a respeito dos campos intelectuais é que, dado o alto grau de incerteza sobre o que é feito pelos cientistas (incerteza estratégica) e como é feito (incerteza técnica), o controle organizacional de suas atividades dar-se-á por intermédio de sistemas de reputação. Na ausência de um sistema burocrático administrativo organizado hierarquicamente, o sistema de reputações cumpre a função de controle das atividades científicas.
A configuração desses fatores se articula em seis tipos de organização dos campos intelectuais: (a) adhocracias fragmentadas; (b) oligarquias policêntricas; (c) burocracias partidas; (d) adhocracias profissionais; (e) profissões policêntricas; (f) burocracias tecnologicamente integradas (cf. Whitley, 1985:158). A localização em cada um destes campos implica uma certa estruturação da pesquisa, uma certa caracterização do conhecimento.
A OPERACIONALIZAÇÃO DO MODELO
Como já afirmado, a dependência mútua articula-se em dois aspectos: o grau de dependência funcional e o grau de dependência estratégica. Detenhamo-nos, por ora, no grau de dependência funcional e seus fatores associados, que dizem respeito à "extent to which researchers have to use specific results, ideas and procedures of fellow specialists in order to construct knowledge claims which are regarded as competent and useful contributions" (idem:86). Trata-se, portanto, de uma forma de coordenar resultados de pesquisa de forma cumulativa, além de inculcar adesão a padrões de competência comuns ao campo. O exemplo, utilizado por Whitley, é o da física e da química como áreas com alto grau de dependência funcional, na medida em que compreendem atividades altamente especializadas, nas quais procedimentos, temas e resultados têm como referência um conjunto de normas bastante claro sobre o que é ciência, como deve ser feita, e quais as interconexões que se estabelecem entre os objetivos teóricos dessas disciplinas4 4 . No pólo oposto da dependência funcional estaria, a título de exemplo arrolado dentre outros possíveis, a sociologia anglo-saxônica pós-40. .
Entretanto, uma primeira dificuldade surge quando se trata de definir a unidade de análise para o modelo. No decorrer do texto, Whitley refere-se aos "campos intelectuais" como unidades organizacionalmente distintas, o que nos sugere a possibilidade de no interior da física, da química ou da sociologia termos linhas de pesquisa com distintos graus de dependência mútua e de incerteza de tarefas. Autores como Collins (1975) já haviam levantado a questão de como determinadas áreas temáticas no interior de uma disciplina como a sociologia, p. ex., possuem graus variados de dependência funcional e incerteza estratégica. Assim, áreas como sociologia das organizações e estratificação social teriam uma maior cumulatividade, padronização de procedimentos, temas etc. O problema surge é nas discussões substantivas de Whitley, em que ele arrola como exemplos não os campos intelectuais, mas as disciplinas. Quando quer exemplificar distintos graus de dependência mútua e incerteza de tarefas, lança mão das disciplinas: a Física, a Sociologia anglo-saxônica, a química etc5 5 . O que, de resto, conforme já havia notado Fuchs (1993), é um problema de muitas das vertentes em sociologia da ciência. A lista de unidades de análise inclui "comunidades", "especialidades", "campos intelectuais", " networks", "disciplinas" e "sistemas técnicos". .
Para efeitos deste artigo utilizarei como unidade de análise os campos disciplinares mais genéricos traduzidos pelos professores de cada departamento.
O Problema das Identidades entre Cientistas Profissionais
A formação básica à qual são submetidos os pesquisadores é um dos indicadores adotados para a análise da padronização de habilidades e de procedimentos de trabalho. Se a padronização no treinamento de habilidades e desenvolvimento temático é um reflexo do grau de integração do campo intelectual, isto irá traduzir-se no debate acerca de cursos e programas a serem adotados pelos professores dos diferentes departamentos analisados. Vejamos a reação dos pesquisadores diante da questão da "existência ou não de uma unidade no conteúdo das disciplinas que compõem a formação básica em um curso de graduação"6 6 . A questão proposta a eles era aberta e tinha a seguinte formulação: "Nas disciplinas básicas (ou de formação geral) dos cursos de graduação, os conteúdos a serem ministrados são sempre os mesmos, independentemente dos docentes encarregados delas?". A resposta, portanto, envolvia uma afirmativa positiva ou negativa, seguida de diferentes qualificações. A opção, para efeitos da análise neste momento, foi abandonar as qualificações e ater-se apenas à concordância ou não com a existência de um núcleo temático nas disciplinas consideradas como básicas na formação de profissionais para tornar a tabela mais simplificada. :
A discrepância entre as respostas dadas pelos físicos e químicos e aquelas emitidas pelos outros departamentos é visível na Tabela 1: os economistas (66,7%), bem como os pesquisadores do departamento de sociologia (60%), percebem majoritariamente uma formação padronizada em suas respectivas disciplinas, ao contrário dos pesquisadores de ciência política, em que apenas 16,7% acreditam na unidade de conteúdos. Essa concordância, por contraste, é bastante alta entre físicos (88%) e químicos (92,5%)7 7 . Se há alguma surpresa aqui, ela não se refere à concordância dos físicos, mas à posição majoritária entre economistas e sociólogos em contraste com os cientistas políticos. Este parece ser um caso em que os fatores contextuais podem explicar alguma coisa, desde que consideremos como contexto discussões a respeito de currículos e do perfil ideológico e cultural dos professores de cada departamento. .
Tabela 1
Concordância em Relação à Existência ou Não de Conteúdos Básicos
Ensinados na Graduação por Departamento (%)
Fonte: Veiga, Paixão e Beato (1994).
Outra questão, diretamente relacionada à anterior, refere-se à existência "clara do tipo de treinamento experimental ou de pesquisa mínima a que um estudante de graduação deva estar exposto":
Tabela 2
Existência de uma Definição Clara de Treinamento de Pesquisa por Departamento (%)
Fonte: Veiga, Paixão e Beato (1994).
Essa é uma questão pouco definida para cientistas políticos e sociólogos: 75% dos professores do Departamento de Ciência Política ¾ DCP e 78,9% dos de sociologia negam haver uma definição clara a respeito do treinamento de pesquisa ao qual os alunos devam estar expostos. Economistas (40%) e demógrafos (33,3%) estão em um patamar semelhante de concordância a respeito do teor de formação experimental. Físicos (70,2%) e químicos (57,9%), pelo contrário, detectam mais claramente uma formação básica à qual seus alunos devam ser submetidos.
O contraste entre as áreas torna-se mais acentuado se considerarmos as respostas à questão sobre a existência ou não de "manuais ou livros-texto onde estão organizados os conteúdos fundamentais e os exercícios a serem trabalhados em curso de graduação". Este é um bom indicador de padronização de treinamento, pois o consenso em torno dos textos básicos que devem ser objeto da formação profissional resulta em uma linguagem comum entre profissionais, o que contribui para a demarcação de fronteiras e o desenvolvimento de identidades que são o objeto desta seção.
Tabela 3
Utilização de Manuais ou Livros-Texto em Cursos de Graduação (%)
Fonte: Veiga, Paixão e Beato (1994).
Aqui, é nítida a fronteira entre as áreas: físicos (100%), químicos (97,5%) e, em um patamar um pouco inferior, economistas (86,7%), são praticamente unânimes na concordância a adotar livros de textos fundamentais na área; já sociólogos e cientistas políticos quase não os adotam (86,7% e 75%, respectivamente). Os demógrafos encontram-se divididos (50%), embora o número de missings seja muito alto para qualquer afirmação mais conclusiva a respeito.
Assim, se tomarmos os três indicadores acima citados e computá-los em torno de um índice de padronização de treinamento, teremos medianas variando entre 0 e 1 no seguinte boxplot:
Gráfico 1
Boxplot do Índice de Identidade por Departamento
Fonte: Veiga, Paixão e Beato (1994).
De acordo com o Gráfico 1, podemos visualizar claramente a posição de cada disciplina no que diz respeito ao índice de identidade. Físicos e químicos têm a mesma distribuição por percentis, mas os físicos ocupam a posição superior, com mediana igual a 1, com químicos situando-se logo abaixo, com mediana 0,87. Os economistas têm índice elevado de 0,688 8 . Os economistas empreenderam um grande esforço no final da década de 60 e durante os anos 70 e 80 no sentido de padronizar seu treinamento e procedimentos de pesquisa. Sem dúvida nenhuma, este índice reflete esse esforço (Diniz, 1995). . Em um patamar inferior temos os sociólogos, com 0,32, cientistas políticos, 0,18 e demógrafos, 0,0. Deve-se ponderar, entretanto, que os demógrafos têm um número elevado de missings.
Os indicadores adotados apontam no sentido de corroborar a hipótese de graus diferenciados de identidades por disciplina. Outros indicadores, levantados a partir de técnicas de análise distintas, poderiam remeter-nos à idéia de que identidades profissionais não se relacionam necessariamente com o conteúdo de disciplinas e/ou com o treinamento técnico experimental (Becker et alii, 1968), mas com interações mantidas por estudantes e professores que irão criar um sentido simbólico a essa identidade em torno de valores. De qualquer maneira, para efeitos da presente análise, o grau de padronização de treinamento dos cientistas é um dos fatores associados à dependência funcional, em uma forma que não é distinta da que ocorre com outros grupos profissionais, tais como médicos, advogados ou engenheiros. Estes, como os cientistas, também têm no treinamento os elementos centrais para a definição de suas identidades ocupacionais. A característica mais peculiar da atividade científica começa a surgir nos fatores a serem analisados logo a seguir.
A Padronização na Avaliação de Competência e Habilidades e a Dependência Estratégica acerca da Centralidade de Problemas e Abordagens
O desenvolvimento de padrões de competência é um componente da dependência funcional, que surge como decorrência de um programa de treinamento comum que irá refletir-se no desenvolvimento de padrões formais de avaliação: "Thus scientists develop sharp distinctions between competent researchers and outsiders, between real physics, economics, or whatever and trivial, uninteresting, and insignificant research" (Whitley, 1985:96). Mediante seleção, recrutamento e treinamento, temos na universidade uma primeira etapa a partir da qual se desenvolverá um sistema reputacional que regulará oportunidades de emprego e acesso às facilidades de pesquisa.
O elemento central dos sistemas de reputação é o desenvolvimento de padrões de avaliação que controlarão resultados de pesquisas através de publicações, congressos e seminários, além de outras formas de avaliação efetuadas por pares reputados. Esse componente da dependência funcional se relaciona diretamente com a dependência estratégica, de forma tal que o desenvolvimento desse padrão em comum tornará possível o convencimento de outros cientistas acerca da importância dos resultados obtidos:
"The importance of convincing a particular group of the centrality of ones contributions to their goals means that researchers cannot simply pursue separate strategies and topics without being much concerned about their connections and relevance for others work. Instead they have to demonstrate the theoretical relevance of their strategies and how their problems contribute to the central issues of the field" (Whitley, 1985:102).
Essa preocupação com a conexão teórica e metodológica está ilustrada na Tabela 4 em que os pesquisadores foram convidados a responder sobre "quais são os principais critérios utilizados para julgar os resultados empíricos ou experimentais obtidos na pesquisa". Estes compreendem quatro categorias: (1) publicações em revistas, cujos referees irão avaliar a qualidade e originalidade dos artigos, e participação em congressos e seminários, onde os resultados serão expostos à avaliação de outros participantes; (2) discussão de aspectos teóricos e metodológicos, que vão desde técnicas utilizadas à possibilidade de reprodução de experiências e checagem dos modelos teóricos existentes, técnicas estatísticas utilizadas e coerência dos resultados com a literatura existente; (3) a intersubjetividade, abrangendo desde o julgamento efetuado por pares de outros grupos, bem como avaliações de membros de comitês de agências financiadoras e; (4) crença na ausência pura e simples de critérios possíveis de avaliação, seja porque os tipos de pesquisa são muito variados, porque critérios não são simplesmente observados, ou por dependerem exclusivamente do prestígio dos autores. Esta última categoria, portanto, é indicativa de um grau de dependência estratégica extremamente baixo. Um grau de dependência estratégica elevado está presente no restante das categorias, posto que publicações e participações em seminários e congressos, discussões a respeito de conexões de natureza teórica e metodológica e avaliações efetuadas pelos próprios pares significam uma exposição mais acentuada ao julgamento de membros bem situados nos sistemas de reputação. Vejamos a seguinte tabela, referente aos critérios adotados pelos pesquisadores dos departamentos para avaliação de resultados:
Tabela 4
Critérios Utilizados para Avaliação de Resultados por Departamento (%)
Fonte: Veiga, Paixão e Beato (1994).
Os físicos acreditam que essa avaliação é feita fundamentalmente através das publicações (61,7%), bem como das implicações de natureza teórico-metodológica dos resultados. Os químicos dividem-se entre os que crêem em critérios definidos pelos trabalhos publicados e pela participação em congressos e seminários (43,2%) e por discussões teórico-metodológicas (48,6%). Dentre eles, existem ainda os que abonam a avaliação interpares (5,4%), ou simplesmente não afiançam a existência de padrões de avaliação (2,7%). Demógrafos repartem-se entre a categoria "publicações, congressos e seminários" (50,0%) e "discussões de aspectos teórico-metodológicos" (50,0%) como critérios utilizados. Economistas estão dispersos nos itens 1 e 2 (36,4% e 45,5%). Os pesquisadores ativos do Departamento de Ciência Política não acreditam muito na importância das publicações e da intersubjetividade como fatores de avaliação (9,1%), mas na discussão de aspectos teórico-metodológicos (63,6%). Pelos menos dois pesquisadores (o que resulta percentualmente em um índice elevado de 9,1%) não acreditam em nenhuma forma de avaliação. Os sociólogos conferem uma importância bem maior às publicações (40,0%) e às discussões de aspectos teórico-metodológicos (46,7%), mas há os que descrêem totalmente de qualquer forma de avaliação (13,3%).
Conforme vimos, os físicos são os pesquisadores que atribuem maior importância ao sistema de publicações. Esta precedência em relação à avaliação efetuada por pares anônimos do sistema de reputações parece indicar um grau menor de dependência estratégica dos físicos, ao passo que outras áreas, devido justamente ao maior grau de dependência estratégica, estão mais concentradas em discussões de natureza teórico-metodológica. A centralidade que as publicações têm para os físicos resulta de sua menor necessidade de convencer seus pares acerca dos procedimentos e temas de pesquisa, ao passo que essa é a ênfase característica das outras áreas.
O feedback entre dependência estratégica e padrões de avaliação termina por traduzir-se em um maior ou menor grau de problemas e procedimentos que são centrais dentro de cada área, conforme veremos a seguir.
O Escopo dos Problemas: Padronização de Procedimentos e Temas de Pesquisa
Em A Tensão Essencial, Kuhn mostra como a mensuração e utilização da matemática na ciência possibilitou o avanço da "ciência normal" de forma pouco traumática, dado que a base para a solução de controvérsias era estável e consensual. Ele estava se referindo ao que Whitley chama de padronização de procedimentos e, concomitantemente, à identificação de um núcleo comum de problemas e temas de pesquisa: quaisquer controvérsias devem ser resolvidas mediante o recurso a um padrão de procedimentos compartilhado pelos cientistas e apreendido através do sistema educacional. Esta padronização em torno de problemas pode ser ilustrada na Tabela 5, criada a partir das respostas dos pesquisadores à seguinte questão: "Na sua área temática de pesquisa, os especialistas identificam o conjunto central dos problemas que devam merecer a atenção dos pesquisadores?"
Tabela 5
Identificação de um Conjunto Central de Problemas por Departamento (%)
Fonte: Veiga, Paixão e Beato (1994).
A resposta positiva significa que os pesquisadores reagiram afirmativamente à questão, procurando resguardar, entretanto, a liberdade para a escolha de temáticas específicas em um conjunto central de problemas. A não identificação de um conjunto central de problemas nas disciplinas deveu-se, segundo os pesquisadores, à adesão a "modismos" internacionais e até mesmo à ausência de definições no plano político departamental. A física e a química são os únicos departamentos com pesquisadores que identificaram esse núcleo (27,1% dos físicos e 32,5% dos químicos). Os outros são unânimes no não-reconhecimento desse núcleo central, embora não deixe de ser curioso que a maioria dos físicos e químicos também não fosse capaz de identificá-los.
Tarefas Particulares e Avaliações Universais
Seria lícito supor que, baseado na hipótese de que o grau de dependência funcional é variável entre distintas disciplinas, as relações de natureza pessoal na realização de pesquisas também tivessem uma importância variável, especialmente no que diz respeito à avaliação de padrões de competência. Um grau de dependência funcional baixo reflete-se em padrões de competência avaliados informal e difusamente entre diferentes grupos, com coordenação de resultados distintos em diferentes locais e por temas de pesquisa. Daí que as relações pessoais se sobreponham à centralidade de um sistema de reputações universalmente estabelecido. Esse aspecto, entretanto, não é perceptível na análise dos dados relativos aos pesquisadores dos departamentos estudados. Quando estimulados a avaliarem o grau de importância que "relações pessoais no comitê de seleção" possa ter tido para a "aprovação de seu projeto mais importante", assim responderam:
Gráfico 2
Grau de Importância Atribuído às Relações Pessoais na Aprovação de Projetos
Fonte: Veiga, Paixão e Beato (1994).
É interessante mostrar graficamente esse dado porque é notável o alto grau de similaridade observado nas curvas das respostas entre físicos, químicos, economistas e sociólogos. A maioria tende a considerar as relações pessoais irrelevantes (entre 50% e 65% em todos os departamentos) e, se elas apresentam alguma importância, é pouca: menos de 10% dos pesquisadores de todos os departamentos.
Uma objeção de natureza metodológica às respostas apresentadas seria que elas representam mais uma opinião tornada pública através do questionário do que propriamente uma avaliação realista acerca da importância de relações pessoais na aprovação de projetos de pesquisa. O alto grau de correlação entre as curvas, entretanto, explicita de forma muito clara a identidade de valores entre pesquisadores de distintas áreas. Se esses valores traduzem uma adesão a padrões universalistas de avaliação no julgamento de projetos ou avaliações decorrentes da inserção em networks locais e particularistas, isto não aparece diferentemente nas disciplinas. Pelo contrário, o que temos é um padrão bastante similar entre elas.
A Estrutura de Comunicações
A alma do modelo organizacional está nas formas de comunicação, servindo para que resultados sejam conhecidos, avaliados e utilizados por outros pesquisadores. A pesquisa científica que não é publicada não existe: seus resultados não são controlados, sua contribuição não é conhecida, seus autores nada precisam provar, ninguém a convencer e nada a aprender. Publicações constituem-se a tradução mais conspícua do caráter público da ciência, bem como a garantia mais fundamental de sua autonomia técnica e estratégica. Dado o caráter inovador e criativo da atividade científica, que a torna um tipo de organização extremamente recalcitrante a mecanismos de controle burocráticos ¾ realizado no próprio local de trabalho e hierarquicamente implementado ¾ , os sistemas de publicação exercerão o controle sobre o que é feito pelos cientistas, e como é feito:
"To be recognized as contributions to knowledge, in a society where science monopolizes the production and validation of knowledge, research results must follow current priorities and use accepted work procedures to be accepted for publication. Innovation and novelty is thus tempered by the exigencies of the control system" (Whitley, 1985:19).
O Gráfico 3 refere-se ao número de trabalhos escritos que tiveram o intuito de divulgar resultados de pesquisas entre os anos de 1991 e 1993, abrangendo: relatórios de pesquisa enviados a agências financiadoras; trabalhos escritos apresentados em congressos nacionais e internacionais; artigos publicados em revistas nacionais e internacionais; teses e/ou dissertações; e livros e/ou capítulos de livros9 9 . Medir produtividade acadêmica é tarefa complexa, mas um dos indicadores adotados seria, sem dúvida nenhuma, o número de publicações e, mesmo assim, com algumas restrições. Conforme veremos adiante, o número de trabalhos escritos está distribuído em tipos que significam coisas distintas em termos do sentido que Whitley atribui ao sistema de comunicações: relatórios técnicos têm um propósito e um alcance distinto dos livros publicados, da mesma maneira que publicações em revistas nacionais e internacionais. De qualquer forma, são todos, igualmente, veículos de divulgação científica. O segundo problema é mais complicado, e diz respeito à qualidade das publicações: o número de publicações nada nos diz sobre o impacto qualitativo que elas têm. Isto é difícil de se avaliar, mas não impossível se, em uma etapa futura, investigarmos onde essas publicações são feitas. Um outro indicador seria o Índice de Citações. Se utilizarmos o critério de pesquisadores que tiveram mais de duzentas citações em veículos de divulgação internacional, tal como o fez a Folha de S. Paulo recentemente, apenas dois dos professores do Departamento de Física estariam incluídos. A longa discussão que se sucedeu após a divulgação desse índice, entretanto, mostra algumas de suas deficiências, tais como o número de pesquisadores em determinadas áreas temáticas. Finalmente, ao tomarmos o total de trabalhos apresentados, certamente, um fenômeno de duplicação pode estar ocorrendo: relatórios de pesquisa que se tornam trabalhos para serem apresentados em congressos, que posteriormente são publicados e, finalmente, passam a integrar uma coletânea reunida em livro. Mas, quanto a isso, não há nada a fazer, pois significaria entrar na questão da originalidade desses trabalhos, o que não é o objetivo do texto. Aqui, busco tão-somente avaliar o potencial de divulgação de resultados de pesquisa na comunidade científica, o que é basicamente o sentido do sistema de publicações ao qual Whitley se refere. .
Gráfico 3
Boxplot do Índice de Produtividade Global por Departamento
Fonte: Veiga, Paixão e Beato (1994).
Podemos verificar no Gráfico 3 que, à exceção de alguns físicos e químicos superprodutivos que constituem os outliers, existe uma similaridade muito grande nos resultados de produtividade nos distintos departamentos: a mediana situa-se em torno de 5 a 10 resultados de pesquisa. Apenas um percentual mínimo de pesquisadores em cada departamento não apresentou nenhum resultado de pesquisa ao longo dos três anos investigados.
Entretanto, tomar o número global de resultados de pesquisa produzido nada nos diz a respeito da dependência estratégica de cada área em termos da centralidade dos problemas abordados. Para tal, considerarei o número de artigos publicados em revistas internacionais como um indicador de centralidade apenas pela razão de tratar-se de uma exposição extralocal para, logo a seguir, discutir as publicações em revistas nacionais e sua importância estratégica para áreas como economia, sociologia ou ciência política.
Conforme podemos observar na Tabela 6, 90% dos sociólogos, 75% dos cientistas políticos e 86,7% dos economistas não publicaram nenhum artigo em revistas internacionais. Entre os demógrafos e os químicos, 44,4% e 40%, respectivamente, também não o fizeram, enquanto entre os físicos isso ocorreu apenas entre 7,8% deles. Dos físicos restantes, 19,6% publicaram de um a dois artigos; 58,8% entre dois e dez e 13,7% mais de dez artigos no período de três anos. Os outros departamentos ¾ à exceção do de química que teve 35% no nível baixo, 20% no médio e 5% no alto ¾ possuem um nível baixo de publicações internacionais: 55,6% dos demógrafos, 13,3% dos economistas, 25% dos cientistas políticos e 10% dos sociólogos.
Tabela 6
Artigos Publicados em Revistas Internacionais por Departamento (%)
Fonte: Veiga, Paixão e Beato (1994).
A situação altera-se quando se verifica o número de artigos publicados em revistas nacionais na Tabela 7.
Tabela 7
Artigos Publicados em Revistas Nacionais por Departamento (%)
Fonte: Veiga, Paixão e Beato (1994).
A questão é: será possível que, fora da física e da química, tenhamos um conjunto de problemas centrais na disciplina caracterizando um baixo grau de dependência estratégica? Em termos teóricos e metodológicos, não obstante alguns heróicos esforços do passado, certamente não seria cabível o desenvolvimento de uma sociologia ou economia do Terceiro Mundo. Temas de pesquisa, entretanto, surgem inevitavelmente de problemas regionais como a violência, processos democráticos, taxas de natalidade, fecundidade ou mortalidade ou processos de industrialização no plano local. O raciocínio inverso, de se conceber um estudo de propriedades ópticas e hiperfinas de impurezas e estrutura eletrônica de átomos e moléculas em cristais brasileiros, é que seria estranho, ao passo que estudar o processo de transição democrática no Brasil não.
Trata-se de um problema complexo, e, certamente, contém algum componente tal como um cenário internacional hostil a contribuições de natureza mais teórica oriundas de países acadêmicos periféricos, quer seja por preconceito puro e simples quer seja por restrições de ordem cognitiva: já se disse que o modelo brasileiro de produção de teses em sociologia, por exemplo, é excessivamente jornalístico e avesso a discussões mais teóricas. Isto em parte se deve ao tipo de formação que é oferecido aos alunos em cursos de pós-graduação, compondo um quadro um tanto provinciano da profissão (Reis, 1991). Por outro lado, comprovando a hipótese de um grau de dependência estratégica maior, certamente está a timidez de pesquisadores de algumas áreas em submeter seus artigos a revistas internacionais, seja porque estão mais voltados para públicos locais, seja porque não têm nada de novo a dizer no plano internacional, mas muito no nacional.
A discussão sobre as publicações internacionais remete-nos à centralidade que o debate internacional parece ter nas distintas áreas, o que, em outras palavras, indica algo a respeito do grau de dependência estratégica nos campos intelectuais.
Dependência Estratégica: A Centralidade dos Problemas e a Competição entre Grupos
Dependência estratégica, na literatura organizacional, refere-se às atividades rotineiras e conjuntos de técnicas que propiciam a produção de resultados uniformes e estáveis por uma organização (Perrow, 1979). É relacionada diretamente ao fator "padronização de procedimentos e temas", bem como ao debate sobre a importância dos problemas e abordagens. Constitui-se no segundo aspecto da dependência mútua e refere-se à maneira que os pesquisadores têm de persuadir seus próprios pares da importância e relevância de seu trabalho (Whitley, 1985:88). Trata-se de um aspecto analítico de natureza política, pois envolve a definição de uma agenda de pesquisas em torno de interesses prioritários e de natureza econômica, na medida em que isso afeta a alocação de recursos e reputações profissionais:
"This can be called the degree of strategic dependence for it covers the necessity of co-ordinating research strategies and convinving colleagues of the centrality of particular concerns to collective goals [...]. Co-ordinating thus is not just a technical matter of integrating specialist contribution to common goals but involves the organization of programmes and projects in terms of particular priorities and interests. It is a political activity which sets research agenda, determines the allocation of resources, and affects careers in reputational organizations and employment organizations" (idem:88-89).
Não se trata mais de esforços conjuntos que se tornaram possíveis mediante a articulação de tarefas com base em um conhecimento técnico em comum e padronizado, mas sim de atuar no sentido de metas e objetivos globais no interior de uma disciplina. Essa dimensão se traduz em uma estrutura hierárquica de reputações bastante definida entre os pesquisadores e entre as diversas subáreas de pesquisa.
Uma forma de se visualizar essa dimensão é através de seus efeitos, i. e., em que medida ocorre efetivamente competição dos grupos de pesquisa por recursos escassos. É realmente necessário uma espécie de movimento de natureza política em torno de prioridades e interesses de natureza cognitiva? Quais os resultados desse movimento para as carreiras profissionais? Essas considerações pressupõem que a competição entre pesquisadores exista, e seja mais ou menos acirrada nas distintas disciplinas. Vejamos o Gráfico 4, que relaciona os pedidos de verbas para pesquisa solicitados e aqueles efetivamente recebidos pelos grupos de pesquisadores dos departamentos:
Gráfico 4
Relação entre Projetos Solicitados e Projetos Aprovados
Fonte: Veiga, Paixão e Beato (1994).
Conforme se pode ver, os dados apresentados vão no sentido contrário de uma percepção já consolidada no senso comum da comunidade universitária de que faltam verbas e apoio para os projetos de pesquisa. Existe um alto grau de correlação entre o número de projetos solicitados pelos docentes e os projetos aprovados: quem pede um leva um, quem pede dez leva quase dez. Além de ser um dado até certo ponto surpreendente para quem acompanha os debates a respeito da suposta escassez de verbas para pesquisa, para os propósitos da discussão do modelo trata-se de uma informação que vem corroborar a percepção reiteradamente expressa por vários cientistas a respeito da "ausência de massa crítica" ou "pobreza de debate". A inexistência de competição atesta parcialmente o baixo grau de dependência estratégica nas disciplinas.
Outra forma de medirmos a existência de uma estrutura de reputações visível aos membros das distintas áreas de pesquisa seria vermos a centralidade dos pesquisadores prestigiados na avaliação de projetos de pesquisa. A ausência dessa estrutura de reputações indicaria, pelo contrário, o maior grau de influência de "igrejas locais" e o caráter difuso e particularista no aval conferido a grupos e projetos de pesquisa. Assim, em oposição à avaliação permeada pelo personalismo discutido anteriormente, poderíamos adotar a recomendação de um pesquisador prestigiado na área como indicador de um padrão de avaliação e competência altamente compartilhado pelos pesquisadores que irão realizar a pesquisa.
Gráfico 5
Avaliação dos Pesquisadores de cada Departamento sobre a Importância da Recomendação de Pesquisador Prestigiado na Área para a Aprovação de Projetos
Fonte: Veiga, Paixão e Beato (1994).
Nenhum dos pesquisadores da área de economia e de sociologia tende a considerar uma indicação de especialista prestigiado na área como sendo o motivo mais importante para a aprovação de seu projeto, ao passo que 27,5% dos físicos e 12,5% dos químicos a consideram decisiva. Inversamente, mas com menos discrepância, 45,0% dos pesquisadores do Departamento de Sociologia e 53,3% dos pesquisadores do de Economia acham esse tipo de indicação totalmente irrelevante, contra um número menor de 35,3% dos de Física e 37,5% dos de Química. O que os dados parecem indicar, no caso dos físicos e químicos, é um sistema de reputações bem estabelecido, cujos expoentes exercem uma influência importante e legítima, em um reconhecimento de sua centralidade na área. Os dados sobre sociólogos e economistas, pelo contrário, apontam para a existência não de reputações na área, mas para as lideranças locais, cuja influência é limitada a âmbitos restritos.
Um sistema de reputações bem estabelecido, conforme vimos anteriormente, é causa e conseqüência de um sistema padronizado tanto de avaliação de competências como de abrangência de problemas e procedimentos bem delimitados e claros. Quando esse núcleo de problemas e procedimentos é fragmentado e heterogêneo, discordâncias tendem a ocorrer em torno de problemas teóricos e metodológicos; quando o núcleo é homogêneo e coeso, tais divergências inexistem, restando a recusa ou a aprovação de projetos de acordo com outros tipos de fatores contextuais, tais como a disponibilidade de recursos financeiros diante da amplitude do projeto, ou até mesmo perseguições de natureza política. Essa identidade entre sistema de reputações e centralidade de problemas e abordagens é indicada nos dados a seguir (Gráfico 6), em que está ilustrado graficamente o percentual de pesquisadores em cada departamento que atribuiu a divergências de natureza teórico-metodológica o motivo principal da recusa de projetos.
Gráfico 6
Pesquisadores em cada Departamento que Atribuíram como Principal Motivo para a Recusa do seu Projeto as Divergências Teórico-Metodológicas (%)
Fonte: Veiga, Paixão e Beato (1994).
Apenas 2,0% dos físicos conferem a tais divergências a razão principal para uma não-aprovação de seus projetos de pesquisa. Nos outros departamentos, esse percentual cresce: 12,5% no de Química; 13,4% no de Economia; 16,4% no de Ciência Política; 20,0% no de Sociologia; e 22,0% no de Demografia.
INCERTEZA DE TAREFAS
A incerteza de tarefas relaciona-se com o que Kuhn chamava de "solução de quebra-cabeças", que marca a atividade de cientistas quando paradigmas se rotinizam. Se existe clareza acerca dos resultados alcançados, temos um baixo grau de incerteza técnica. Inversamente, quando não se tem muito claro as implicações e importância que um determinado resultado tem para a área, estamos com alto grau de incerteza de tarefas. Se a incerteza técnica se relaciona aos resultados práticos alcançados, a incerteza estratégica, por sua vez, vincula-se às implicações de natureza teórica da pesquisa. Além disso, a incerteza técnica resulta do grau de interferência que leigos têm sobre a atividade científica, constituindo-se em um aspecto integral da profissionalização da atividade científica. A incerteza estratégica diz respeito à variedade de grupos de influência que controlam recursos escassos e agências de financiamento.
Sem dúvida nenhuma, a dimensão referente ao grau de incerteza de tarefas é a mais difusa no modelo, pois tende a confundir-se com vários aspectos da dependência mútua. Em parte, isto se deve à tradução imediata do modelo organizacional à atividade científica: uma coisa é tratarmos de organizações industriais, onde materiais brutos e produtos ofertados são bastante claros, outra coisa é tratarmos de organizações científicas em que produtos e suas aplicações não são visíveis nem tão evidentes. Aliás, essa ausência de padronização de produtos é característica marcante de organizações que, conforme o próprio Whitley ressaltou, são orientadas para a produção de novidades. Além disso, o potencial de "confundimento" que a introdução dessas variáveis poderia acarretar tornam-nas difíceis de serem operacionalizadas. Não obstante a dificuldade de operacionalização empírica, a relevância da incerteza de tarefas reside no plano analítico: ela é importante para a elaboração taxonômica dos campos intelectuais propostos.
A utilização do modelo organizacional proposto por Whitley tem algumas vantagens claras em relação ao emprego de conceitos como o "paradigma" de Kuhn ou os "campos intelectuais" de Bourdieu, na medida em que permite uma operacionalização mais clara dos campos científicos. No entanto, existe a desconcertante possibilidade de uma configuração de fatores resultar em formas organizacionais distintas do tipo ideal em virtude da atuação de "fatores contextuais". O problema aqui é o universo de variáveis que adentra o modelo, abrindo-se uma possibilidade infinita de configuração de fatores. Elementos tais como o perfil dos docentes de cada departamento, ou a história institucional das disciplinas, envolvendo desde discussões sobre currículos até a influência do Estado, mesclam-se a fatores internos do modelo de forma tal a inviabilizá-lo logicamente. Fatores externos poderiam permanentemente associar-se a fatores internos ora no sentido de possibilitar um maior grau de identidade em torno de valores, ora atuando como fator de indução a um grau baixo de identidade. De uma perspectiva estritamente lógica, é possível ter, em contextos específicos, disciplinas como a física que sejam totalmente desarticuladas em relação a problemas e soluções de problemas, assim como uma ciência política absolutamente coesa em torno de uma definição clara de fronteiras e identidades profissionais. Do ponto de vista empírico, a verificação das conexões estabelecidas entre fatores torna-se extremamente difícil.
No tocante à consistência interna do modelo, parece-me que se a dimensão dependência mútua, especialmente no que diz respeito à dependência funcional, está razoavelmente articulada internamente, o mesmo não ocorre com a dimensão incerteza de tarefas, que é muito difusa, na qual vários dos fatores associados estão diretamente relacionados à dependência mútua, o que torna difícil sua operacionalização. Observemos a seguinte matriz de correlação para ilustrarmos esse ponto:
Coeficientes de Correlação de Pearson ¾ Bivariado
Conforme podemos verificar, diferenças entre os campos disciplinares correlacionam-se mais fortemente com o índice de identidade dos pesquisadores (0,66) e com a inserção em uma estrutura de publicações no plano internacional (0,51). Estão também associadas mais fracamente à definição de critérios de avaliação (0,32) e à identificação de um núcleo central de problemas (0,32). Isto nos sugere que o fator central do modelo é a identidade profissional que, na verdade, é indicadora do grau de consenso existente nas disciplinas a respeito de procedimentos e temas, bem como da inserção internacional destes, traduzidos em uma estrutura de divulgação mais "universalista". Portanto, para efeitos de análise do universo estudado, o modelo organizacional de Whitley restringe-se à explicação de variação dos campos através dessas duas dimensões.
Além disso, dois fatores cruciais estão ausentes do modelo: (1) a utilização das tecnologias de pesquisa e as implicações dessa utilização na articulação dos campos intelectuais e; (2) a divisão de trabalho estabelecida entre os cientistas.
INCORPORANDO OUTRAS DIMENSÕES ORGANIZACIONAIS:
TECNOLOGIAS DE PESQUISA E CONSENSO
Toda a discussão precedente aponta na direção de incorporarmos dimensões organizacionais que não se encontram presentes no modelo discutido, especialmente as que dizem respeito à utilização de tecnologias de pesquisa e sua vinculação a processos de formação de consenso. Embora a dimensão tecnológica seja utilizada nos modelos organizacionais como sinônimo de técnicas e tarefas para a realização de objetivos e processamento do material bruto com que trabalham (Perrow, 1979:160-172), estarei lançando mão da noção no sentido sugerido por Collins (1994), i.e, a de "equipamentos de pesquisa". Nas páginas seguintes, a importância destes ficará mais evidente.
Conforme vimos acima, a maior variabilidade entre as disciplinas explica-se pela padronização de procedimentos e temas de pesquisa. Em outras palavras, o que o modelo indica é a importância do plano "intermediário", organizacional, de análise institucional da ciência, que encontra no conceito kuhniano de paradigma a fonte de formulação de hipóteses significativas para a análise comparativa de especialidades científicas. Especialidades mais desenvolvidas paradigmaticamente (ciências físicas e naturais) apresentam graus mais elevados de consenso sobre políticas de ensino e pesquisa do que campos acadêmicos menos integrados como as ciências sociais (Lodahl e Gordon, 1972). A dimensão dependência mútua dos campos científicos apresenta importantes desdobramentos do ponto de vista da análise empírica da organização social da ciência: quanto maior o grau de integração paradigmática do campo, maior o controle do network profissional sobre os padrões de legitimidade epistemológica, distribuição de prestígio acadêmico e de acesso aos meios de produção intelectual (Fuchs e Turner, 1986).
Falar sobre o grau de consenso existente entre as disciplinas significa discutir as condições para a racionalidade científica. De uma perspectiva mais ortodoxa, o alto grau de consenso observado nas ciências naturais seria o resultado de uma série de critérios epistemológicos bastante objetivos que balizaria o mérito das teorias em confronto10 10 . Para uma discussão do empirismo lógico, segundo o qual todos os confrontos que envolvem avaliações sobre teoria e fatos podem ser resolvidos mediante o recurso a regras de evidência adequadas, ver Laudan (1984) e Collins (1992). . De um ponto de vista mertoniano a ênfase recai sobre a necessidade funcional de dimensões normativas, tais como desinteresse, comunalismo, universalismo e ceticismo organizado, na formulação do consenso na atividade científica (Merton, 1968). Para Kuhn (1982), o consenso é condição para a ciência normal, e eventuais dissensos deverão acumular-se na forma de peças não utilizadas para a resolução do quebra-cabeças até o momento de uma revolução paradigmática.
Recentemente, as discussões sobre consenso têm enfatizado a idéia de que processos de formação de consenso se efetuam mediante artefatos lingüísticos e, como tais, eles podem ser desconstruídos (Fuller, 1993; Gilbert e Mulkay, 1984; Yearley, 1981; Gusfield, 1976). Fuller (1993) distingue entre a formação de um "consenso acidental", que é instável e sujeito a regras independentes de interpretação, e o "consenso essencial", efetivado através de uma exposição de razões mediante padrões de evidência habitualmente aceitos. A adesão a uma teoria, no primeiro caso, pode-se dar por razões completamente distintas pelos membros, ao passo que, quando há um consenso essencial, a adesão se dá por razões de ordem lógica compartilhadas pelos membros. O caso tratado por Fuller das "múltiplas descobertas", em que diferentes pessoas em distintos lugares chegam mais ou menos às mesmas conclusões, seria indicativo da objetividade das ciências no plano essencial. Entretanto, conforme sugestão de Fuller ao discutir a descoberta do princípio de conservação feita simultânea e independentemente por Carnot, Joule, Helmholtz, Mayer e Rumford, a adesão à teoria explicativa deu-se por razões e interpretações diversas. Ao tomarem as teorias e proposições científicas o mais abstratamente possível, os historiadores da ciência tendem a aceitar a formação acidental de consenso como típica, embora acreditem no contrário:
"Just as public opinion pollsters can fabricate consensus by phrasing their questions sufficiently vaguely or abstractely, or by preselecting the group of elegible respondents, so too historians of science can construct a convergence of opinions on a particular point. In both cases, once a finer-grained questions is asked, disagreement arises" (Fuller, 1988: 210).
A distinção entre consenso acidental e consenso essencial termina por iluminar outra questão empírica interessante: não seria o consenso acidental resultado dos tipos de formação a que são submetidos cientistas e pesquisadores, conforme sugere o depoimento de um físico, a seguir:
"A verdade é que, em geral, no processo de formação de um físico, nós procuramos desviar nossos alunos dessas questões fundamentais, que são difíceis e permanecem mais ao campo da filosofia do que da própria física. Do nosso ponto de vista, ensinar a física a partir de uma reflexão sobre seus fundamentos seria o mesmo que ensinar pintura a partir da semiologia ou história da arte, ou alguma coisa dessa natureza" (Gazzinelli, 1994).
As ciências humanas, via de regra, orientam seus alunos já nos períodos iniciais de formação para discussões epistemológicas que, conforme sugestão de Whitley (1985), são funcionais para a consolidação de interesses particularistas. Os físicos, pelo contrário, orientam-se pela formação metodológica através do uso de técnicas e teorias. A formação de um consenso essencial, conforme demonstra o vasto número de etnografias de laboratórios, é tão rara na física como na sociologia. Entretanto, querelas de ordem epistemológica não fazem parte do processo de formação básica dos cientistas :
"Os físicos não fazem cursos de metodologia científica, e sequer discutem o assunto. Quando questionados sobre a metodologia de uma determinada pesquisa o que respondem, em geral, é quais técnicas experimentais ou teóricas foram utilizadas, o que é uma resposta muito mais estreita do que a que daria um cientista social ou um biólogo" (Gazzinelli, 1994:4).
INCORPORANDO AS TECNOLOGIAS DE PESQUISA EM UM MODELO ORGANIZACIONAL PARA A ANÁLISE DOS CAMPOS CIENTÍFICOS
Dois tipos de críticas emergem na avaliação de discussões de formação de consenso nas perspectivas construtivistas. A primeira é a sua incapacidade de diferenciar especialidades científicas: todas são atividades locais, igualmente contextualizadas e marcadas por uma intensa atividade interpretativa, tornando-se "hermeneuticamente equivalentes". Assim, essas abordagens, se têm o mérito de descartar distinções feitas com bases puramente cognitivas, terminam por acentuar a equivalência total entre todas as disciplinas. Em parte, isto resulta da tradição de pesquisa etnográfica e da ausência de estudos comparativos que marca a área, o que termina por sublinhar excessivamente a natureza "local" e "contextual" da atividade científica (Fuchs, 1993; Collins, 1994). Trata-se de uma ênfase tão equivocada como a que retrata a ciência como resultado de uma lógica universal, seletiva e puramente racional. Existem diferenças marcantes em termos de prestígio social, fontes de financiamento, padrões de recrutamento, tecnologias de pesquisa utilizadas e formas de divisão de trabalho em atividades de pesquisa.
O segundo ponto é que trabalhos experimentais envolvem ponderações de natureza teórica para a interpretação de dados. Aparentemente, para qualquer série de observações seria possível, em princípio, a escolha de múltiplas teorias que dessem conta dos resultados de tal maneira que a formação de consenso se daria de forma acidental. Pickering (1984), dentre outros, sugere que os resultados experimentais não levariam cientistas à escolha de uma teoria. Normas e valores da atividade científica teriam pouco, ou quase nenhum, sentido para a atividade científica na medida em que para uma mesma série de observações existiria uma série de teorias intercambiáveis entre si. Trata-se de uma versão excessivamente "social", relativista e cética da atividade científica, pois não haveria nenhuma espécie de constrangimento de ordem epistêmica. Ela negligencia o ponto de que relatos científicos sofrem embaraços de ordem cognitiva dados pela inserção da descrição científica em normas e valores de conteúdo essencialmente epistêmico (Henderson, 1990).
É a essa ordem de preocupações que a literatura mais recente sobre a formação de consenso se tem dirigido. Kim (1996), ao avaliar criticamente essa literatura, destaca três fatores cruciais para compreendermos como narrativas científicas se articulam: (1) o caráter avaliatório na reconstrução das crenças dos cientistas; (2) a natureza hierárquica da formação do consenso científico; (3) o problema da associação e a importância da dimensão temporal na formação de consenso. O primeiro fator assemelha-se a alguns resultados alcançados pela literatura etnográfica de que, não obstante a multiplicidade de versões possíveis sobre um dado conjunto de evidências, algumas delas são mais autorizadas do que outras em virtude de sua "significância explanatória" (Shapin, 1984). Controvérsias não se dão entre versões alternativas absolutamente equivalentes, mas algumas teorias e proposições têm centralidade maior do que outras em virtude de seu poder explicativo. Por outro lado, a formação de consenso ocorre em vários níveis. Há consensos que se dão em torno de questões fundamentais como o "problema da correlação em geologia" (Rudwick, 1985)11 11 . Por volta de 1820, os geólogos estavam preocupados em resolver o "problema da correlação", i.e., da combinação de seqüências específicas de formação geológica encontrada em diferentes áreas. Subjacente à controvérsia estava o suposto de que "havia realmente uma seqüência universal a ser encontrada" (Rudwick, 1985). , e outros que envolvem uma discussão mais "fina" e detalhada de como resolver o problema das evidências12 12 . Embora houvesse um consenso sobre a seqüência de estratos geológicos na formação de rochas no terciário e no secundário, a controvérsia sobre o problema da correlação em geologia estruturava-se em torno da discussão acerca do papel de alguns tipos de rochas intercaladas no secundário e no primário que eram conhecidas como "Greywacke" (ou rochas transicionais). . Finalmente, conforme discutido anteriormente, existe o problema da inclusão e da exclusão de membros em um debate, formando um gradiente de "competências atribuídas" através do qual seus participantes têm peso e influências diferenciados. Esse debate pode ser centralizado em torno de pessoas mais "confiáveis" para dele participar em virtude de sua inserção em uma determinada "ordem cognitiva" (Shapin, 1994)13 13 . O livro recente de Shapin, A Social History of Truth, discute o íntimo parentesco existente entre ordem cognitiva e ordem moral resultante de processos de atribuição de "confiança". O surgimento da ciência moderna está vinculado à confiança depositada em algumas pessoas em detrimento de outras. Isso explica parcialmente o instigante fato de que raramente resultados experimentais sejam contestados. Torna inteligível também a legitimidade alcançada pelos sistemas reputacionais. "Knowledge is a collective good. In securing our knowledge we rely upon others, and we cannot dispense with such reliance. That means that the relations in which we have and hold our knowledge have a moral character, and the word I use to indicate that moral relation is trust" (Shapin, 1994:xxv). .
A avaliação crítica de algumas vertentes excessivamente céticas e relativistas do construtivismo não deve incorrer no erro de, conforme reza o célebre e surrado refrão, "jogar a criança fora junto com a água do banho". Existem elementos importantes a serem incorporados à abordagem organizacional. Para Knorr-Cetina (1995), consenso é o resultado de complexa atividade interpretativa no qual se deve distinguir o grau de variação nas formas e nos contextos em que ocorrem concordâncias, conformidades e estabilidades. Ao levarmos esse ponto em consideração, torna-se complicado falarmos de um modelo e de um vocabulário apenas de formação de consenso, pois existem vários. Knorr-Cetina (idem), através de estudos sobre experiências em física de alta energia, agrega à forma clássica de formação de consenso mediante a refutabilidade, pelo menos duas outras formas: (a) "concordância instantânea", que se refere à aceitação imediata de novas peças de pesquisa; e (b) o "consenso genealógico", que resulta de um processo de seleção de reconfigurações14 14 . Reconfigurações são "processos através dos quais entidades e seus relacionamentos são continuamente definidos e fixados dentro de formas de ordem que diferem, e tiram proveito de outras formas de ordem". Referem-se, portanto, a uma realocação de papéis em um domínio ontológico, entre os tipos de entidades e as formas de ordem com as quais essas entidades se relacionam umas com as outras. organizado em seqüências sobrepostas. Esta última forma de consenso, portanto, se refere ao desenvolvimento, ao longo do tempo, de uma série de experiências e realizações que, ao seu final, desembocarão em um grau de consenso sobre fenômenos analisados.
Essa tese aponta para duas direções: (a) a primeira vai de encontro à idéia de que formação de consenso "deve ser vista mais em termos do uso feito dos resultados científicos na criação de experimentos, em oposição ao processo de formação de opinião isolado nos valores dos resultados científicos"; e (b) a segunda sugere que "formas de formação de consenso podem ser dependentes da ontologia social do domínio no qual elas se aplicam" (idem:128-129). De um lado, o processo de formação de consenso é variado, em virtude da ontologia criada em um dado domínio de experiências. A prática científica, portanto, é a dimensão na qual se realiza a formação de consenso. Por outro lado, nesse processo é fundamental a consideração das colaborações e projetos de equipamentos que se dão nos estágios iniciais de formação de uma linha de pesquisa. O elemento a ser resgatado da discussão acima, para efeitos do argumento ora em desenvolvimento, é que consenso surge em decorrência da ontologia criada através de experiências e equipamentos envolvidos para a sua realização, e que esse processo envolve um grande número de pessoas que não interagem necessariamente em relações face a face.
Um dos equívocos na abordagem institucional da ciência é tratar organizações científicas como instituições fixas no espaço e no tempo: ciência é aquilo que se faz no laboratório X, na universidade Y. Este equívoco resulta do desconhecimento de que atividades científicas são realizadas por instituições "frouxamente articuladas", i.e., podem ser realizadas simultaneamente por grupos de pesquisa que, embora estejam tratando de um mesmo tema, não o fazem em uma estrutura burocrática e institucional fisicamente estabelecida. Pelo contrário, a colaboração se dá no interior de networks de pesquisadores durante um largo período de tempo, e é difusa, espalhando-se em uma infinidade de instituições de pesquisa. Knorr-Cetina (idem) utiliza a analogia do "superorganismo" para ilustrar essa rede desarticulada de contribuições em torno de um mesmo tema. A analogia é pertinente por destacar o caráter colaborativo de "corporações móveis e semi-isoladas", atuando no sentido de uma "cooperação difusa", i.e., "é uma forma de hipersociabilidade que sobrevive e expande os mecanismos estruturais e interacionais usuais que governam as instituições sociais" (idem:124). Além disso, essas colaborações se articulam em torno de "objetos centralizadores", na forma de equipamentos tais como aceleradores de partículas, supercomputadores ou quaisquer outras tecnologias de pesquisa. A centralidade das tecnologias de pesquisa na física é de tal ordem que a reputação, importância e prestígio dos cientistas estão diretamente relacionados ao equipamento com o qual eles trabalham.
Uma característica notável nos processos de construção institucional no Brasil é a vinculação de linhas de pesquisa a uma rede de relacionamentos de natureza pessoal sob o patrocínio do Estado para que se insiram na dinâmica do superorganismo. Via de regra, essa dinâmica acopla a formação de pesquisadores, vinculando-os a grupos e redes de pesquisa no exterior. Qualquer narrativa sobre a institucionalização das ciências explicitará as peculiaridades e vicissitudes na área: o imprescindível patrocínio do Estado; criação de linhas de pesquisa simultaneamente à formação de pesquisadores; e a baixa competitividade entre grupos (Schwartzman, 1979). Sua inserção na dinâmica internacional, quando ocorre, se dá de forma periférica devido às deficiências de pessoal e equipamentos.
Processos de formação de consenso, portanto, devem ser compreendidos mediante a referência aos superorganismos e à sua dinâmica, o que envolve uma presença maciça de discurso e demonstração de resultados através de relatos lingüísticos. Nesse espaço discursivo, decisões são tomadas com base em demonstrações de características de objetos técnicos, de seus traços ocultos e de comportamentos "extravagantes" (Knorr-Cetina, 1994). Equipamentos e fluxos lingüísticos em networks difusos são centrais para compreendermos a dinâmica dos superorganismos; eles definem uma ontologia constituída através de classificações:
"They codify something that lies at the heart of the working of these environments. They codify who, within the walls of the institution and independent of external definitions, is an organism and who is a machine, who are agents with powers and disposition to react, who is alive and who is not, who is a human and who is a non-human being. In other words, they catch up the ontologies instituted in local settings and the social relations which flow from these ontologies, and which include relations to non-human participants" (idem:13, ênfases no original).
A IMPORTÂNCIA DAS TECNOLOGIAS DE PESQUISA NA FORMAÇÃO DE CONSENSO
A referência explícita feita por Knorr-Cetina aos equipamentos na formação de consenso permite-nos retomar uma dimensão que é de natureza organizacional: as tecnologias de pesquisa. Esta dimensão, virtualmente inexistente nos modelos organizacionais que lidam com instituições científicas, é de suma importância para compreendermos a dinâmica no interior de cada disciplina. Ao discutir o problema das diferenças disciplinares entre as hard sciences e as social sciences, é possível fazê-lo destacando aspectos de natureza organizacional da atividade científica, em detrimento das discussões de ordem ideológica e filosófica que freqüentemente marcam os debates na área:
"Epistemology is not a good basis for understanding why such differences exist and how they have come about over the past few centuries. A more fruitful approach is to ask, what is distinctive about the social organization of the disciplines that we now take as natural science, and do the social disciplines have (or can acquire) the conditions that make possible that kind of organization?" (Collins, 1994:156).
Formas de organização científica no período moderno exibem duas características marcantes: o alto consenso sobre o que deve ser concebido como conhecimento, e rápidas descobertas de uma série de novos resultados (idem). É interessante notar como o alto grau de consenso das ciências naturais contrasta com a tradição das disciplinas humanistas, marcadas pelo dissenso e conflito entre teorias e concepções de mundo. Outra característica é a rápida difusão de inovações como padrão da atividade científica. Este traço não estava presente na ciência anterior ao século XVII, marcada pela permanência durante largos períodos de tempo das mesmas teorias e fatos. Em nossos dias, pelo contrário, estudos indicam que a obsolescência da literatura de pesquisa é alcançada, em algumas áreas, em um período de mais ou menos cinco anos.
Na verdade, esse consenso não está sempre presente nas ciências naturais. Conforme Latour (1987) discute, a ciência tem dois aspectos cognitivos: na pesquisa de ponta, que ele chama de "ciência-sendo-feita" ("science-in-making"), há muita discordância e dissenso entre posições rivais, tal como ocorre nas humanidades. Após algum tempo, essa pesquisa passa para uma área de consenso que Latour chama de "ciência-já-feita" ("science-already-made"), em que os resultados anteriormente discutidos são elevados ao status de fatos objetivos. O que torna possível que novas descobertas sejam concebidas como tais é, justamente, o consenso existente em torno de sua novidade e de sua localização em um corpo de conhecimentos estabelecido:
"Rapid discovery and consensus are part of the same complex: what makes something regarded as a discovery rather than as a phenomenon subject to multiple interpretations is that it soon passes into the realm of consensus, and that depends upon the social motivation to move onward to fresh phenomenon" (Collins, 1994:161).
Mas o que explicaria o ritmo crescentemente vertiginoso de descobertas científicas na era moderna? Segundo Collins, não é o empiricismo, pois existiam muitas observações empíricas antes de 1600 e, no entanto, elas não foram suficientes para que se lograssem altos graus de consenso ou rápidos movimentos de pesquisas de ponta; tampouco seria a ênfase crescente na mensuração e formulações matemáticas, que já existiam na Grécia antiga e na China, sem que sua existência tivesse levado às características do conhecimento científico moderno. Da mesma maneira, os filósofos positivistas ressaltaram a importância do método científico de desenhos experimentais como epítome da ciência moderna, desconhecendo que muitas pesquisas científicas não foram experimentais e comparativas, tal como as observações de telescópio empreendidas por Galileu ou a fisiologia do século XIX. Por outro lado, algo similar à lógica indutiva de Mills foi utilizado pelas ciências grega e chinesa.
Mas qual seria o fator explicativo de maior alcance para Collins? A ciência moderna adquire sua feição no modo como os cientistas se organizam em torno de tecnologias de pesquisa. A grande novidade introduzida por Galileu, que traduz a passagem para a ciência moderna, não foram suas concepções e tampouco os telescópios (que ele adaptou dos óculos que já existiam desde 1200), pêndulos e planos inclinados, mas o fato de os instrumentos virem a ocupar uma posição central nas pesquisas de ponta desde então. As tecnologias de pesquisa e, conforme veremos a seguir, o laboratório, passam a ser o centro em torno do qual gravitarão os elementos cruciais para a formação de consenso na ciência moderna.
TEORIA E EXPERIMENTOS: O LABORATÓRIO COMO ARENA DE FORMAÇÃO DE CONSENSO
Os equipamentos que compõem um laboratório são elementos cruciais para compreendermos a natureza dos experimentos na ciência moderna. Daí, as indagações iniciais de Shapin e Shaffer (1985:3) em seu Leviathan and the Air Pump: "o que é um experimento? Como ele é realizado? Quais os meios pelos quais os experimentadores dizem produzir fatos (matter of facts) e qual o relacionamento entre fatos e constructos explanatórios? Como é identificado um experimento bem-sucedido em oposição a um malsucedido?". Em um horizonte mais amplo, trata-se de responder por que usamos os experimentos para chegar a verdades científicas.
A história da bomba de vácuo e da polêmica que envolveu Hobbes e Boyle em torno dos resultados experimentais é ilustrativa devido, justamente, ao seu caráter paradigmático. A bomba de vácuo é considerada um dos primeiros engenhos a possibilitar o desenvolvimento da ciência experimental nos moldes modernos. Boyle inaugurou uma tradição de pensamento em que o conhecimento filosófico sobre a natureza deveria ser gerado através de experimentos, e a base desse conhecimento eram fatos experimentalmente gerados que poderiam ser estabelecidos pela agregação de crenças individuais, cujo resultado, entretanto, não se dava através de uma crença pessoal, mas de testemunhos individuais. Assim, o fato era tanto uma categoria epistemológica, como uma categoria social, pois dependia desses testemunhos. Isso implicou o desenvolvimento de três tecnologias: uma material, envolvendo a construção e operação da bomba de vácuo; outra literária, na qual aqueles que não tivessem testemunhado diretamente a experiência pudessem reproduzi-la; e uma tecnologia social, que incorporava as convenções necessárias para que outros filósofos pudessem lidar com os resultados. Do ponto de vista material, a bomba de vácuo era um artefato caro e raro. Pela primeira vez, uma máquina é utilizada na filosofia natural não como uma metáfora (Rossi, 1989), mas como um meio de produção intelectual.
A bomba de vácuo, ao lado de outros artefatos como o microscópio ou o telescópio, inaugura uma versão incipiente do laboratório moderno, cuja característica consiste em aumentar nossa percepção e constituir novos objetos. Heisenberg (1980) credita ao surgimento dessas tecnologias de pesquisa a origem de uma nova relação dos homens com a natureza: coisas anteriormente imperceptíveis, como os anéis de Saturno ou a estrutura mosaica dos olhos das moscas, além de outras essencialmente invisíveis, como a pressão do ar, podem manifestar-se visualmente. O surgimento desses engenhos serve não apenas para descortinar um mundo invisível, mas também como alerta para a falibilidade de nossas percepções. Assim como a razão disciplina nossos sentidos, e é disciplinada por eles, as novas máquinas também disciplinarão o acesso ao mundo sensorial.
Além disso, o espaço em que essas máquinas atuam é um espaço público, mas restrito a um público específico: "O laboratório foi, portanto, um espaço disciplinado onde as práticas discursivas, experimentais e sociais eram coletivamente controladas por membros competentes" (Shapin e Shaffer, 1985:39). Essa restrição cognitiva a membros competentes será uma das discordâncias de Hobbes em relação a Boyle. Outras surgem em decorrência de sua filosofia natural. A teoria do vácuo que Hobbes atacava, por exemplo, era considerada perigosa por estar associada a recursos culturais que tornariam ilegítima a autoridade do Estado. Do ponto de vista ontológico, uma das noções mais importantes que Hobbes se encarrega de combater no Leviatã era a de "substância incorpórea". Esta noção, além de constituir-se em um absurdo de linguagem, era também a fonte dos recursos ideológicos utilizada pela Igreja e que, ao lado de outros absurdos escolásticos, tais como "formas substanciais", "essências abstratas" e "essências separadas", poderiam solapar a autoridade do Estado mediante a separação entre corpo e alma e as utilizações escatológicas dessas noções. Era interessante para os padres a difusão de tais idéias porque elas ajudavam a reafirmar a soberania moral independente da Igreja. Noções como esta estavam na base da divisão das autoridades espiritual e temporal, entre Igreja e Estado ou justiça e fé. Assim, sua recomendação de um monismo materialista assegurava um princípio de ordem social.
Hobbes condenava qualquer dualismo e espiritualismo porque eles poderiam subverter a ordem. Do ponto de vista epistemológico, Hobbes debatia-se por uma correta definição das palavras, a fim de que tais absurdos não fossem possíveis. Em sua psicologia da vida social não havia espaço para noções tais como uma alma incorpórea. Era isto que possibilitava assegurar a paz social. Nessa epistemologia, a geometria era o modelo de ciência: quaisquer erros poderiam ser corrigidos posteriormente através da razão (right reason). Para ele, o status conferido ao conhecimento factual era fundamentalmente individual e deveria distinguir a ciência do conhecimento filosófico. O fato era essencialmente do domínio da história. O julgamento privado era uma ameaça à ordem social, e um convite à guerra civil. Para Hobbes, portanto, havia duas fontes de conhecimento impróprio: o religioso e o conhecimento privado. Sua perspectiva era expurgar a religião e o conhecimento privado da filosofia natural, e sua estratégia era controlar comportamentos através da autoridade do Estado, e não de um controle moral interno, que no final das contas era um compromisso individual. O comportamento deveria ser subordinado à razão pública (Shapin e Shaffer, 1985).
É justamente a controvérsia em torno de argumentos desse tipo que torna possível a criação, por Boyle, de um espaço em que o dissenso e a controvérsia pudessem existir: o laboratório. O conhecimento causal foi removido do domínio moral, evidenciando-se assim a divisão marcante hoje existente entre ciência e ideologia.
TECNOLOGIA E CONSENSO
A partir dos instrumentos inicialmente utilizados, desenvolve-se uma genealogia de tecnologias de pesquisa que marca de forma profunda a produção crescente de novas descobertas e de elevado grau de consenso. A razão disso é que tecnologias utilizadas em pesquisa permitem a criação de fenômenos novos:
"Genealogies of research technologies can be regarded as the core of the rapid discovery revolution because they produce the fast-moving research forefront as well as the tendencies to consensus and imputed objectivity of results. What Galileo and his followers hit upon was not so much the value of any particular technique, as the practical sense that manipulating the technologies that were already available would result in previously unobserved phenomena. Such a stream of new observables in turn gave rich materials for interpretation in scientific theories. What was discovered was a method of discovery; confidence soon built up that techniques could be recombined endlessly, with new discoveries guaranteed continually along the way. And the research technologies gave a strong sense of the objectivity of the phenomena, since they were physically demonstrable. The practical activity of perfecting each technique consisted in modifying it until it would reliable repeat the phenomena at will. The theory of the phenomenon, and the research technology that produces the phenomenon, became socially objectified simultaneously, when enough practical manipulation had been built into the machinery so that its effects were routinized" (Collins, 1994:163).
Collins não está reduzindo os cientistas a criadores, mas apenas ressaltando as implicações de sua utilização na descoberta de novos fenômenos e no desenvolvimento de um elevado grau de consenso.
A utilização das tecnologias de pesquisa é condição da atividade científica, conforme é ilustrado na entrevista a seguir, na qual um pesquisador mostra a importância da oficina para as atividades do laboratório onde trabalha:
"Tudo o que fazemos aqui tem uma boa dose de oficina. Aqui você já viu a mesa, os pés... bom, o próprio laboratório, um bocado dele foi feito aqui. Em cada experiência específica, como o que a gente faz é sempre estar lidando com o novo, estamos sempre precisando de alguma coisa para adaptar a uma outra coisa. A oficina é para construir suportes e adaptadores e às vezes coisas mais sofisticadas como veremos. Temos um sistema para ter um movimento de um motor num movimento harmônico de oscilação. Nós fizemos esse sistema. [...]
Todos esses suportes aqui a gente bolou. Essas hastes aqui são hastes que são ocas por dentro [...] são hastes de aço inoxidável com um pé de latão. Aqui podemos ver a aplicação dos furos na mesa: eles servem para fixar essas hastes do jeito que for interessante. Isso tudo é feito aqui. Derretemos chumbo aqui dentro para amortecer as vibrações e não serem sensíveis às vibrações. Então, aqui nessa mesa você vai ver um monte de hastes dessas. Eu estou vendo uma dúzia aqui.
Isso aqui por exemplo, é um suporte para um creostato. Esse creostato não está sendo utilizado. Ele foi comprado e o rapaz que trabalha nesse laboratório mandou fazer este suporte, em que você pode controlar sua posição através de um parafuso de rosca. Numa montagem, isso aqui vai no lugar dessa fotomultiplicadora.
Aqui, você tem suportes mais complicados. Isso tudo foi feito na oficina. Este rabo de andorinha simples que foi feito na oficina também. Temos um suporte para o laser, com um parafuso de ajuste para altura que foi feito aqui na oficina. E tem um monte de coisas que são compradas e adaptadas através desses montes de suportes. Então você tem desde essa iluminação aqui nesse microscópio. Em geral fazemos na oficina as coisas mais simples. A gente não faz as coisas muito sofisticadas aqui porque não tem muito sentido.
[...]
Vou te mostrar mais um equipamento desmontado. Esse daqui também é a parte básica de um equipamento para o estudo de espumas. No caso a gente está interessado em saber uma coisa que não tem na literatura sobre como as espumas aparecem, e como são feitas, isto é, qual a estrutura de uma espuma recém-formada. Isto também depende do método de como é produzida a espuma. Você tem uma série de estudos de como a espuma cai e desaparece. Então isto aqui é uma peça construída na oficina que basicamente vai fazer o seguinte: coloca-se um tubo de ensaio num carrinho móvel, e este carrinho vai ser acionado por um motor. Neste motor a gente controla a velocidade e podemos controlar o curso do carrinho porque ele tem uma série de posições alternativas. Então, isto aqui é um agitador, só que é um agitador bem controlado. A gente vai produzir espumas em condições bem controladas. Ou seja teremos uma energia cinética que a gente vai conhecer bem ¾ a energia cinética que é usada na confecção." (Entrevista concedida ao autor em maio de 1996)
A atividade de pesquisa, conforme sugerido pelo depoimento acima, requer o desenvolvimento de equipamentos que se prestem à produção de evidências em acordo com propósitos de natureza teórica. Daí que às habilidades requeridas para as atividades científicas possam vir a ser acrescidas habilidades manuais não diretamente relacionadas àquelas desenvolvidas no período de formação universitária:
"Então, não é estranho na minha vida posterior o fato de que eu tive uma experiência de lidar com coisas. E, posteriormente, tive que reaprender tudo isso na Universidade. Quer dizer, o secundário e parte da universidade me fez esquecer isso. O ensino primário e o secundário, inteiramente teóricos, longe da prática, me fizeram esquecer essas coisas, com exceção que, posteriormente, eu passava férias em Pirapora, com meu avô, um cidadão que começou a navegação no Rio São Francisco. Então, eu embarcava naqueles navios, e o atrativo daquelas belas caldeiras, máquinas, caldeiras que quebram, navios que param, me deram um certo interesse pelo lado mecânico. E, um pouco de Química, também, porque a família era dona da chamada Companhia e Indústria Viação de Pirapora, que era uma boa escola. Tinha navegação, era dona da eletricidade da cidade, tinha uma indústria de óleos e, depois, de tecidos. Então, havia uma gama curiosa de possibilidade de meter a mão nessas coisas, de muito cedo ter visto um laboratório, uma oficina mecânica, etc. Isto teve uma boa influência na minha formação."15 15 . José Israel Vargas. Depoimento, 1977. Rio de Janeiro, FGV/Cpdoc ¾ História Oral, 1985 (História da Ciência ¾ Convênio Finep/Cpdoc).
Essa "dupla vida", necessária à atividade científica, termina por acentuar a centralidade das tecnologias de pesquisa em relação ao desenvolvimento teórico: "research scientists lead a double life: as intellectuals in the game of argument for theorethical positions and as possessors of a genealogy of machines" (Collins, 1994:164). A posse das genealogias de máquinas consiste na idéia de que instrumentos constituem uma estirpe tecnológica, com antepassados e descendentes, com os quais os cientistas se tornam íntimos:
"Just as the intellectual community consists in networks that pass ideas, problems and social validation along from one person to another, research technologies comprise a parallel set of networks. One machine gives rise to another in a genealogical succession by modifying the past machine, or by cloning it from another in the same laboratory, or by a kind of sexual reproduction recombining parts from several existing pieces of equipment. Human and machine networks develop symbiotically; machine embodies the results of the human activity that went into making it work in a particular way, while these human skills are tipically tacit [...] and cannot be conveyed to another person except by hands-on experience at the machine" (ibidem).
O domínio de uma tecnologia de pesquisa de uma estirpe é mais fácil quando os cientistas que a utilizaram foram treinados e socializados nos instrumentos que compõem a linhagem. Essa interação homem/máquina é descrita por Shapin e Shaffer (1985) ao mostrarem que o domínio da bomba de vácuo era restrita ao network de pesquisadores que já haviam conhecido e usado uma delas (idem: 229-230, 281).
Esse conhecimento da estrutura genealógica por parte de cientistas pesquisadores tem duas conseqüências de extrema importância para se compreender a centralidade que as ciências naturais lograram. De um lado, ela concentra socialmente a tecnologia de ponta em determinadas áreas, limitando assim a competição, em uma característica freqüentemente assinalada por pesquisadores que não têm acesso a ela. A importância do domínio de tais tecnologias transparece claramente nos seguintes depoimentos de pesquisadores, destacando a relevância da formação de estudantes no exterior:
"Nós podemos perfeitamente construir equipamentos feitos por pessoas que aprenderam ciência e tecnologia fora daqui mas que conhecem as características da estrutura brasileira. Essas pessoas já viram como são feitas as coisas, as dificuldades de determinado tipo de problema e situação. Até hoje não temos nenhuma característica própria. Então, cada indivíduo que volta, volta com idéias próprias, pensando fazer isso ou aquilo porque acha que vai dar certo. Ele chega e não encontra o que pensava, e, evidentemente, começa a funcionar da maneira que acha melhor."16 16 . Sergio Rezende. Depoimento, 1977. Rio de Janeiro, FGV/Cpdoc ¾ História Oral, 1985 (História da Ciência ¾ Convênio Finep/Cpdoc).
Por outro lado, esses equipamentos e técnicas utilizados podem ser "exportados" dos laboratórios, passando a constituir-se em ciência aplicada. Conforme salienta Collins, muitas coisas percebidas por leigos como a aplicação de teorias científicas nada mais são do que atividades práticas desenvolvidas no laboratório17 17 . Não é objetivo deste trabalho uma discussão mais aprofundada sobre ciência e tecnologia. O que se está ressaltando é como essa suposta aplicação da ciência pura age como um sinal para rememorar às pessoas as teorias científicas associadas a elas. Um exemplo interessante é fornecido por Latour (1988) ao mostrar como o processo de pasteurização transformou as leiterias em ambientes similares a laboratórios médicos. . A conseqüência desse quase equívoco para a legitimação da atividade científica no Brasil foi extremamente importante:
"Cerca de um ou dois meses após minha volta, o professor Pompéia e eu fomos consultados pelo Ministério da Marinha sobre a possibilidade de estudarmos equipamentos para detecção e localização de submarinos. [...]
Ora, a Marinha tinha um problema crucial nessa ocasião. Havíamos perdido um número considerável de navios, torpedeados por submarinos alemães e alguns italianos. Não dispúnhamos de nenhum equipamento para localização e detecção de submarinos. E muito mais sério ¾ isso apesar de estarmos fazendo a guerra ao lado dos aliados ¾ , os segredos que envolviam o uso do sonar e do radar que detecta submarinos no tempo da guerra eram de tal ordem que, não somente esses equipamentos não eram cedidos aos países aliados, como o Brasil, mas nem o acesso de brasileiros era permitido junto às instalações. Então recebemos uma incumbência de, como físicos, estudar o problema, para ver se era possível resolver-se este dilema. [...]
Bem, começamos a estudar o problema. Os primeiros detectores que fizemos eram baseados na técnica de simplesmente se procurar ouvir o ruído da hélice do submarino. Construímos vários detectores. Eram microfones totalmente diversos dos microfones normais, porque o microfone normal, que trabalha no ar, é sensível à amplitude da vibração, que no ar é relativamente grande, porque o som se propaga num gás, e no líquido a amplitude é extremamente pequena mas a pressão é tremenda. Então, tínhamos que conseguir microfones de pressão. [...]
Antes disso, no entanto, havíamos tido contato com um grupo de oficiais do exército que tinham um problema também importante. É que não era mais possível importar nem balas de canhão nem pólvora do exterior. As balas passaram a ser feitas aqui, com pólvora nacional. Então, para se utilizar as tabelas de tiro era necessário determinar-se a velocidade da bala. Era preciso um método especial para esta determinação. Essa foi a primeira incumbência que recebemos, e este foi um trabalho que foi resolvido de maneira inédita pelo professor Pompéia, que em pouco tempo construiu um aparelho que media esta velocidade com uma precisão inacreditável. [...]
Fomos também solicitados para um estudo de equipamentos portáteis, transmissores e receptores, que deveriam ser instalados em jipes ou automóveis comuns, em postos de fiscalização a serem instalados na praia para fornecer qualquer informação para os centros de comando. Estudamos vários tipos de transmissores portáteis. Era um problema curioso porque, no Brasil, a importação de válvulas era totalmente impossível durante a guerra. Então, nosso problema era projetar transmissores que fossem eficientes, que fossem os mais econômicos possíveis em corrente elétrica, porque teriam de ser alimentados a acumuladores, e usando para transmissão as válvulas que eram disponíveis ainda no mercado para receptores de rádio. Este problema foi resolvido a contento, mas logo depois nos desligamos desta linha para dar nossa atenção à Marinha, que tinha problemas mais urgentes"18 18 . Marcelo Damy. Depoimento, 1977. Rio de Janeiro, FGV/Cpdoc ¾ História Oral, 1985 (História da Ciência ¾ Convênio Finep/Cpdoc). .
O interessante a ser ressaltado no depoimento acima é que a conseqüência mais importante da aplicação de conhecimentos físicos para a detecção de submarinos não foi nenhuma alteração que, porventura, isso possa ter significado nos rumos da Segunda Guerra, mas a contribuição dessa experiência para a legitimação da pesquisa científica ainda incipiente no Brasil.
O IMPACTO DAS TECNOLOGIAS DE PESQUISA NA FORMAÇÃO DAS DISCIPLINAS CIENTÍFICAS
Toda a discussão precedente aponta para outra maneira de encarar debates clássicos no terreno das ciências sociais acerca de sua especificidade e "eterna juventude", da pouca propriedade da utilização do método científico (Reis, 1991) e dos métodos qualitativos versus quantitativos (King et alii, 1994). Ela nos sugere que boa parte das diferenças reside nos formatos organizacionais da atividade científica.
O Gráfico 7 mostra o grau de importância atribuído pelos pesquisadores dos departamentos, em uma escala de 1 a 5, aos diversos tipos de equipamentos e suportes para a realização de pesquisa, tais como máquinas, utilização de laboratório, pessoal técnico e administrativo mais especializado para manuseio e manutenção, e necessidade de utilização de redes de comunicação. Na verdade, trata-se de um "índice de necessidades tecnológicas" composto pelas avaliações de cada um desses itens separadamente.
Fonte: Veiga, Paixão e Beato (1994).
Como é possível observar, é bastante clara a composição de dois grupos em torno da necessidade de tecnologia: o primeiro, composto pelos físicos, químicos e demógrafos cujas medianas situam-se em torno de uma avaliação de alta necessidade; o segundo, que aponta para necessidades menos importantes de laboratórios e equipamentos é composto pelos economistas, cientistas políticos e sociólogos. O caso dos demógrafos certamente refere-se às suas necessidades de equipamentos de informática diante da orientação quantitativa prevalecente na área em virtude da grande massa de dados com que lidam.
No entanto, a discussão precedente acerca da importância das tecnologias de pesquisa para a configuração organizacional das disciplinas não deve obscurecer o fato de que sua utilização não se dá "cumulativamente". O domínio da tecnologia guarda ainda as marcas do caráter local do conhecimento na forma de conhecimentos tácitos acerca do funcionamento dos equipamentos. A referência ao "conhecimento tácito" para a realização da ciência tem uma longa tradição na literatura sobre ciência (Polanyi, 1958; Collins, 1975; Knorr-Cetina, 1991) e define-se pela oposição ao "conhecimento explícito", composto por instruções e informações que podem ser formuladas através de palavras e símbolos e transferidas por meios impessoais tais como documentos escritos e arquivos de computador. O conhecimento tácito, em contraste, não pode ser formulado explicitamente e muito menos transferido ou armazenado por meios impessoais, pois é propriedade de pessoas. MacKenzie e Spinardi (1995) mostram como mesmo em áreas em que a transmissão do conhecimento tecnológico é vital até mesmo por questões de segurança, tal como ocorre na fabricação de armas nucleares, existe um componente artesanal e não transmissível pelos manuais, fórmulas ou diagramas. Como experiências nucleares são experimentos raros de serem produzidos, e como não há como se avaliar a adequação dos complexos modelos matemáticos utilizados, boa parte da avaliação é realizada mediante "julgamentos" dos cientistas mais experientes:
"Judgement is the feel that experienced designers have for what will work and what wont, for which aspects of the codes can be trusted and which cant, for the impact on the performance of a weapon of a host of contingencies, such as ambient temperature, aging of the weapon, and the vagaries of production processes" (idem:62).
Além disso, o processo de transformação de um projeto em artefato consiste em traduzir teorias e gráficos computadorizados que operam com abstrações geométricas em cilindros e esferas reais, de tal forma que o mesmo projeto pode resultar em protótipos diferentes. A perda desse conhecimento, que é posse de pessoas como projetistas e técnicos de manutenção, significaria, em muitos casos, que a tecnologia teria de ser reinventada, e não apenas remontada19 19 . Daí que a montagem de armas atômicas, grupos terroristas, traficantes ou nações belicosas não seja algo tão simples. De um ponto de vista mais pessimista, entretanto, isso significa que o domínio desse tipo de armamento repousa em boa medida no domínio de um tipo de conhecimento que não está sujeito aos controles tradicionais da comunidade científica. . É nesse sentido que Collins anteriormente se referiu à importância da "transmissão de genealogias de tecnologias".
CONCLUSÃO
O modelo organizacional de campos científicos de Whitley procura expor as conexões entre ambiente organizacional, contexto e organização dos campos científicos, tendo a vantagem de explorar implicações de natureza sociológica para a demarcação entre as disciplinas científicas, e não apenas os componentes cognitivos e prescritivos acerca da organização da atividade científica.
Quando aplicado empiricamente, entretanto, procurei mostrar como o modelo de Whitley explica mais a produção de consenso no interior de cada disciplina, e de como essa produção está relacionada a outros fatores organizacionais não presentes no modelo original. Em parte, essa deficiência deriva do tratamento da ciência moderna a partir dos sistemas reputacionais, o que o conduz indiretamente a tratar mais da questão do controle exercido pelos pares e das bases desse controle, e menos dos elementos relativos à organização de trabalho entre os pares e o grau de tecnologia envolvido na produção da ciência.
A utilização de tecnologias de pesquisa e o grau de divisão de trabalho existente ampliam consideravelmente a abrangência explicativa de modelos organizacionais, na medida em que incorporam dimensões imediatamente relevantes para a produção de consenso cognitivo no interior de cada campo científico.
(Recebido para publicação em julho de 1997)
NOTAS:
1.
2.
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ABSTRACT
"Hard Sciences" and "Social Sciences": An Organizational Approach
The article offers an empirically guided discussion of the organizational model which Whitley has proposed for analyzing scientific fields. The central, empirically tested dimensions of the model refer to a consensus-forming process. It is proposed that the model be expanded to include other dimensions related to consensus-formation in different fields: that is, the use of technologies and the division of labor.
Keywords: scientific organizations; sociology of organizations; sociology of science; scientists
RÉSUMÉ
"Hard Sciences" et "Social Sciences": Une Approche Organisationnelle
Cet article a pour but détablir un débat axé empiriquement sur le modèle organisationnel que Whitley propose pour analyser des disciplines du domaine scientifique. On argumente ici que les dimensions centrales, empiriquement testées, du modèle se rapportent à un processus de formation de consensus. Ce qui amène à la proposition élargie du modèle, de façon à incorporer dautres dimensions relatives à la formation de consensus dans différents domaines disciplinaires, tels que lutilisation de technologies et la division du travail.
Mots-clé: sociétés scientifiques; sociologie des organisations; sociologie de la science; science; chercheurs scientifiques
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apud
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
04 Fev 1999 -
Data do Fascículo
1998
Histórico
-
Recebido
Jul 1997