Open-access Música, arte e sociabilidade no Brasil

O número 73 da Revista do Instituto de Estudos Brasileiros traz muita música. Começa com o dossiê “O musicar como trilha para a etnomusicologia”, organizado pela professora Flávia Camargo Toni e pelos pesquisadores Alice Villela, Lorena Avellar de Muniagurria e Vitor Grunvald. “Musicar” remete à música como prática e processo, mediante o engajamento das localidades, comunidades e identidades que se forjam por meio e a partir da música. O mundo artístico aparece, assim, nos artigos que o compõem, interagindo de maneira plena e diferenciada com as humanidades. Há espaço no dossiê para a sociedade de concertos em Portugal, em crescente interação com o universo musical brasileiro; a música carioca independente dos anos 1990; as rodas de choro no interior de São Paulo; a dança do ventre na capital paulista; os cânticos de penitência de Juazeiro do Norte, a terra das romarias e de “Padim Ciço”, e mais outras bossas.

O termo é apropriado, pois, no momento em que se encerrava este número, fomos surpreendidos com a partida de João Gilberto, grande mestre do musicar de vários locais, consubstanciado numa nova bossa que, sem deixar de ser “nacional”, já surgira “transnacional”. Uma bossa que “é samba e não é”, como nos conta Walter Garcia (2019), pois feita de uma multiplicidade (dissonante) de musicares.

O dossiê possui ainda cinco artigos de fluxo contínuo. Os dois primeiros abordam de maneira sistemática o mundo das artes no Brasil em contextos históricos distintos.

O primeiro, de Elaine Dias, “O retrato de Anna de La Grange como Norma, de Louis-Auguste Moreaux: a retratística teatral e a circulação de modelos no Brasil do século XIX”, revela como o pintor francês propiciou uma renovação da retratística teatral no Brasil oitocentista.

O segundo, escrito por Emerson Dionisio Gomes de Oliveira e Aguinaldo Caiado de Castro Aquino Coelho, intitulado “Entre o global e o regional: circulação da arte no Salão da Primavera nos anos de 1970”, analisa o Salão Global da Primavera, realizado em Brasília e Goiânia, focando na participação do Estado, da Rede Globo de Televisão e de artistas nacionais e regionais durante o regime militar.

O artigo seguinte - “O que é isso, companheiro?, 40 anos: entre a autobiografia, o testemunho, a entrevista e a confissão” -, de Rogério Silva Pereira e Maria Zilda Cury, empreende uma análise minuciosa sobre o gênero da obra escrita por Fernando Gabeira, que logo que lançada se tornou sucesso editorial. Procura desvendar o seu estilo eclético, quase em tom de entrevista, como quem procura se reconfigurar enquanto persona pública.

Os últimos dois textos da seção Artigos desenvolvem uma abordagem que permite destrinchar as relações produzidas entre a arte e a literatura, de um lado, e as relações sociais, de outro.

Pedro Lotti Carvalho Dias, em “O intelectual brasileiro e o argumento do cangaço na década de 1930”, discute como o cangaço, que figurava como problema relacionado ao banditismo nos anos 1920, foi ressignificado por segmentos da intelectualidade brasileira dos anos 1930, que passaram a encará-lo como fenômeno complexo e resultante da estrutura política e social do Nordeste.

Por sua vez, Vinicius dos Santos Xavier, em seu artigo “Um quê a mais: uma proposta interpretativa da subjetividade brasileira a partir da Dialética da malandragem, de Antonio Candido”, procura recuperar a atualidade da interpretação do mestre e crítico literário ao reivindicar as mediações histórico-sociais contidas tanto na “malandragem”, como na “dialética”, explorando-as por meio de um debate com Roberto Schwarz e Francisco de Oliveira (1933-2019). Ao Chico, que também recentemente nos deixou, mas nos legou uma dissecação profunda da nossa sociabilidade truncada, fica a pergunta: “Mestre, o que fazer?” - pois já não basta decifrar esse “Ornitorrinco” que nos devora.

Este número traz ainda uma inovação. Uma resenha a oito mãos; ou melhor, quatro resenhas como fragmentos de uma totalidade (im)possível, pois a partir de perspectivas diversas abordam as tessituras e os ritmos da narrativa de José Miguel Wisnik em Maquinação do mundo: Drummond e a mineração, publicado pela Companhia das Letras em 2018. A ideia surgiu logo após o debate realizado com o autor, no dia 18 de março de 2019, no âmbito dos “Seminários interdisciplinares” organizados pelo Laboratório Interdisciplinar do Instituto de Estudos Brasileiros (LabIEB). Nessa ocasião, os professores do IEB Alexandre de Freitas Barbosa, Fernando Paixão, Jaime Tadeu Oliva e Stelio Marras entabularam um debate com Wisnik, cada um a partir de seu campo de atuação (história econômica, literatura, geografia e antropologia) e em perspectiva interdisciplinar, como a obra convidava e exigia. As resenhas contêm os textos de três dos professores que debateram com o autor, além da contribuição do professor Marcos Antonio de Moraes, que se incumbiu do olhar literário sobre a obra.

Há música também na seção Documentação, com o artigo da pesquisadora Giovana Beraldi Faviano, que nos apresenta as múltiplas facetas dos documentos do Fundo Camargo Guarnieri, sob a guarda do IEB. A pesquisadora nos relata de maneira minuciosa a história da chegada do acervo ao IEB, as exposições realizadas e as obras publicadas, assim como a sua riqueza em termos arquivísticos. São 30 mil documentos - incluindo correspondência, recortes de jornais e matérias extraídas de periódicos, partituras, programas musicais, fotografias e contratos com editoras -, que permitem uma mirada interdisciplinar sobre o legado do compositor e suas redes de sociabilidade.

REFERÊNCIA

  • GARCIA, Walter. Batucada do samba cabia na mão de João Gilberto. Folha de S. Paulo, 22 de julho de 2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    15 Jul 2019
  • Aceito
    31 Jul 2019
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