RESUMO
Este trabalho examina um aspecto importante na obra de Celso Furtado: a crítica às disfunções da ideologia liberal em situação de subdesenvolvimento em economias primário-exportadoras. Partindo da recusa dos automatismos de mercado, Furtado indica uma função para a ação política do Estado, dotado de maior protagonismo e capacidade de intervenção. O antiliberalismo de suas teses não se inclina à tradição autoritária, ao contrário, produzindo uma inédita percepção de necessidades democráticas para o projeto desenvolvimentista.
PALAVRAS-CHAVE:
Celso Furtado; antiliberalismo; desenvolvimento democrático
ABSTRACT
This work aims to examine an important aspect of Celso Furtado’s work: the criticism of the disfunctions of liberal ideology under the circumstances of undervelopment in primary-export type economies. Starting from the rejection of the market automatisms, Furtado defines a function to the State’s political action, posessing more protagonism and intervention capabilities. The anti-liberalism of its theses do not condone to the authoritarian tradition, but instead, produce an unprecedented perception of the democratic needs for the developmentis project.
KEYWORDS:
Celso Furtado; anti-liberalism; democratic developmentism
Inegavelmente foram inúmeras as contribuições deixadas por Celso Furtado (1920-2004) ao debate econômico e político brasileiro ao longo da sua vida, quer na ordem da produção teórica, quer na intervenção prática na realidade complexa de um país em processo de modernização acelerada. Dessa ampla gama de contributos, neste artigo procuramos capturar um aspecto fundamental da obra de Furtado, seminal em suas teses e em sua intervenção política prática: a indigitação dos custos da aplicação da ideologia liberal no processo de construção do subdesenvolvimento brasileiro e o gravíssimo erro de sua manutenção quando do projeto de aceleração do desenvolvimento. Entendemos que essa análise explica o amplo processo de circulação e aceitação das ideias do autor e de onde nasce, originalmente, a gama de inovações que torna seu pensamento um clássico.
Para dar conta desse propósito concentraremos o esforço na investigação do que denominamos de “período áureo” da teorização e ação furtadianas - iniciando com textos geralmente pouco conhecidos sobre a democracia (FURTADO, 1944FURTADO, Celso. A feição funcional da democracia moderna. Cultura Política. Rio de Janeiro, ano IV, 36, 1944, p. 55-58.; 1946) até a publicação de Teoria e política do desenvolvimento econômico (1967). Em termos de contexto histórico, este recorte justifica-se pelo momento de brecha histórica para o salto desenvolvimentista (em especial nas décadas de 1950 e 1960). Em termos teóricos, pelo percurso analítico desenvolvido por Celso Furtado, que vai da compreensão da inequívoca importância do planejamento em consonância com as exigências da evolução política moderna (textos da década de 1940), passando pela compreensão fina sobre a trajetória de construção do subdesenvolvimento brasileiro (presente na obra-prima Formação econômica do Brasil, de 1959) e terminando com a reflexão sobre as vias e estratégias para consecução do arranjo desenvolvimentista.
Controvérsias da ideologia liberal em contexto subdesenvolvido
Neste trabalho usamos propositadamente a expressão ideologia liberal e não liberalismo, como é comum na maior parte da literatura que trata do problema do subdesenvolvimento ou da obra furtadiana, por afinidade com a robusta crítica keynesiana presente em “O fim do laissez-faire” ([1926] 1978). Nesse brilhante texto, Keynes apontou como a transformação de três postulados (a associação entre interesses privados e a consecução de benefícios públicos, o cálculo racional individual como ratio da dinâmica social moderna e a defesa do mercado autorregulado como fonte do progresso) em leis gerou um potente mito, imune, inclusive, à demonstração e mesmo evidência de seu fracasso como tese. A explicação da teoria econômica liberal, nascida intelectualmente como corolário do exitoso esforço de superação da sociedade medieval, acabou se tornando uma representação absolutizada da modernidade mesmo diante de sua crescente perda da capacidade explicativa e normativa. O liberalismo tornou-se uma forma ideológica mais do que um produto da ciência ou da análise racional, porém retirando sua força do ocultamento dessa condição.
Seguindo a linha argumentativa aberta em “O fim do laissez-faire”, a conversão da ideologia liberal em proxy do mundo moderno, em ortodoxia, apoiou-se em uma conjunção de fortuna histórica a partir de três eventos combinados: o primeiro, pela original elaboração do arcabouço da filosofia moral pautada no individualismo e no progresso; o segundo, pela produção de um modelo político conformador de uma nova gama de direitos e poderes pessoalizados (incluindo a propriedade) e de uma inédita forma de Estado; por último, a teoria liberal econômica explicaria a emergente forma de organização da produção, com divisão do trabalho, tecnologia e capacidade de elevação constante da produtividade e da riqueza.
Nessa combinação histórica, a filosofia liberal (incluindo visão de homem, de sociedade, de economia e de Estado) tornou-se sinônimo de mundo moderno. Mesmo com os insucessos que se acumularam especialmente entre os séculos XIX e XX - a produção de novas formas de miséria, o aprisionamento dos ganhos científicos na cadeia produtiva e no lucro privado, a combinação entre alienação, massas e irracionalismo -, a ideologia liberal manteve-se e mantém-se como modelo de liberdade, direito, controles da sociedade sobre o Estado, progresso e riqueza econômica.
Erigido o monólito da ideologia liberal, as visões de mundo que dele se afastem ou destoem aparecem (e não apenas no senso comum) como exceção, ruptura, risco, autoritarismo, totalitarismo, opressão. Essa simplificação é extremamente perigosa e apresenta sequelas graves por impedir tanto a aceitação do liberalismo enquanto teoria e projeto à disposição das sociedades (como projeto econômico e político) quanto a discussão racional sobre seus limites e o exame da validade e eficácia de outros projetos concorrentes. E se é necessário reconhecer que em alguns momentos históricos a recusa liberal recaiu em formas graves de autoritarismo e de exceção, nem toda teoria que se afaste da defesa do laissez-faire e que proponha uma outra direção e coordenação coletiva da vida social torna-se totalitarismo, exceção, ruína. De outro ângulo, não podemos esconder que a adoção inconteste do programa intelectual, político e prático propugnado pela ideologia liberal produz inúmeras e gravíssimas disfunções sociais que vão da produção da miséria (e o termo é esse mesmo: de consequência, de efeito) à própria convulsão econômica e ao enfraquecimento das instituições democráticas e da capacidade de resposta ao desafio da vida coletivamente organizada.
Sintetizando, a entronização da ideologia liberal permite o abandono do exame honesto sobre seus efeitos reais, bem como inibe a avaliação objetiva de alternativas racionais de organização da vida social com presença da regulação/ação do Estado, críticas às virtudes do autointeresse, como o keynesianismo, o modelo social-democrata clássico, o planejamento democrático mannheimiano e o desenvolvimentismo latino-americano.
Conforme veremos no exame do período recortado para análise neste texto, a ideologia liberal teve forte presença no debate brasileiro, bem como foram distintos os movimentos de sua recusa, pautados em interpretações e alternativas variadas. Constitui um debate em movimento, uma agenda temática engatada no problema nacional que lhe é anterior e para a qual Furtado orquestrou uma resposta robusta e original.
De maneira resumida apontamos a presença da ideologia liberal no Brasil em contextos epocais distintos, orquestrados a partir do ajuste entre o liberalismo econômico e o liberalismo político - que nunca foram, em nosso percurso, necessariamente coincidentes. Até o período que examinamos neste artigo (décadas de 1950 e 1960), o caso brasileiro seria marcado pela tensão existente entre a lógica econômica - a defesa da vocação agrária enquanto papel natural da economia colonial como fornecedora de produtos agrícolas (teoria das vantagens comparativas) - e, de outro lado, pelo projeto político esperado de defesa das instituições do Estado moderno (identificado, pelo menos na tese, pelo contratualismo republicano, pela soberania popular, pela marcha dos direitos, pelo Estado sub leges e pela divisão dos poderes). A partir dessa dupla face da presença da ideologia liberal entre nós, foi possível adotar a linguagem do liberalismo econômico e esquecer-se do liberalismo político.
Olhando em retrospectiva até o quadro dos anos de 1950-1960, observa-se um admirável esforço contorcionista na trajetória nacional: a absoluta divergência entre o argumento liberal econômico e o argumento liberal político na fase colonial; a relação contraditória da fase do Brasil independente, com preservação da lógica econômica liberal (permanência do modelo primário-exportador) e maquiagem brutal nos aspectos políticos (uma aparência de Estado moderno convivendo com a escravidão, a monarquia e o poder moderador). Somente na fase republicana, cum grano salis, ao lado do intocado argumento das vantagens ricardianas (RICARDO, 1982RICARDO, D. Princípios de economia política e tributação. São Paulo: Victor Civita, 1982.) surgia o projeto de liberalismo político, com suas características sui generis e fragilidades, mas de feição republicana. Assim, não é fácil e nem confortável falar sobre a presença da ideologia liberal no Brasil, condição que deu azo à tese do mimetismo e transplante artificial das “ideias fora de lugar”, mas que, como bem observado por inúmeros autores, funcionava perfeitamente para as necessidades de acomodação da docilidade periférica ao sistema de produção e acumulação vigente3 3 A esse respeito consultar Franco (1976), Schwarz (1977), Santos (1978), Cardoso (1980) e Bosi (1992). .
Mas há outra maneira de lidar com a recepção da ideologia liberal no Brasil: uma longa presença hegemônica ancorada no argumento da vocação natural (i) e o período de surgimento do projeto concorrente, a linhagem nacional desenvolvimentista (ii), gerando uma inédita situação de disputa pelo projeto político e econômico nacional e introduzindo na pauta os efeitos da industrialização ocorrida a partir do começo do século XX no país. A primeira fase, da inexistência de correntes contra-hegemônicas, foi tratada por Furtado quando da investigação sobre a formação do subdesenvolvimento. Furtado tratou desse momento em A economia brasileira (1954) e em Formação econômica do Brasil ([1959] 2009b), enunciando como a opção pelo modelo primário-exportador configurou toda uma dinâmica histórica e social truncada, caracterizada pelos ciclos econômicos, pela constância de crises sucessivas de crescimento/regressão, pela condição reflexa de economia dependente, pelo impedimento estrutural ao avanço da estrutura capitalista e pelo risco de esfacelamento de um projeto nacional. O primeiro confronto intelectual sólido de Furtado com o liberalismo surge na tarefa de compreensão do subdesenvolvimento como construção particular e não um momento do desenvolvimento capitalista. Nessa direção Furtado dará passos importantes ao refutar, através do escrutínio factual da economia periférica, as inexoráveis leis pretendidas pelo automatismo do mercado, ao mesmo tempo que apontava para a perversão de uma teoria que, calcada no mito do progresso, impedia, estruturalmente, a sua realização no âmbito das economias condenadas à condição primário-exportadora.
O segundo momento, o da disputa entre projetos concorrentes, emerge no entorno da revolução de 1930 e posterior guinada em direção à centralização política e ao protagonismo estatal. Nessa fase a ideologia liberal enfrentou no contexto brasileiro dois problemas. De um lado, nas fímbrias do modelo primário-exportador surgiram como adversários reais a atividade industrial e o robustecimento do mercado interno, processos acelerados pelo contexto da Primeira Guerra Mundial, das crises cíclicas e do crash de 1929. Os novos dados alteravam o problema econômico, e não seria possível falar apenas em vocação agrária, embora esta fosse entendida, por larguíssimo tempo, como a propensão natural e eficaz da economia brasileira. O projeto industrial se fortalecia, e quanto a isso o liberalismo econômico precisava se posicionar, incluindo dar respostas liberais à industrialização em curso. Afinal, a indústria aparecia como espinha dorsal do liberalismo em termos teóricos e na experiência dos países desenvolvidos, mas, ao mesmo tempo, a ideologia liberal não podia abandonar o discurso ricardiano aplicado à periferia e nem permitir a mudança de posição desses países no desenho da lógica internacional.
De outro ângulo, processava-se no Brasil, como em outras partes do mundo e em especial do continente latino-americano, a ascensão de uma nova forma de pensar a dinâmica do desenvolvimento - pautada no planejamento e na coordenação do Estado, protegida pelo corolário de projeto de soberania nacional. As transformações na ossatura do Estado e em suas funções, desenhadas na Era Vargas (DRAIBE, 1985DRAIBE, S. Rumos e metamorfoses. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.; BIELSCHOWSKY, 2004BIELSCHOWSKY, R. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004.; FONSECA, 1987FONSECA, P. C. D. Vargas: o capitalismo em construção - 1906-1954. São Paulo: Brasiliense, 1987.), apresentavam os contornos de uma nova teoria e uma nova engenharia econômica e política. Surge assim um novo ambiente de disputa. Se a ideologia liberal tivera já que enfrentar o conservadorismo, o projeto comunista, as alternativas fascistas e o nazismo, naquele momento ela encontrava um novo adversário - o nacional-desenvolvimentismo, embrionário na geração de intelectuais dos anos 1930 e adiante formulado com maestria pelo estruturalismo cepalino e pela tese furtadiana.
Assim, a ideologia liberal iria se repaginar ao introduzir o tema da industrialização e do planejamento como forma de superação do subdesenvolvimento, mas mantendo no fundo do cenário o sobrepeso da vantagem agrária e a constante crítica sobre a natureza autoritária de estratégias fora do laissez-faire. Nessa fase surgem as célebres diatribes intelectuais envolvendo intelectuais e state makers liberais e desenvolvimentistas, iniciadas pela controvérsia Roberto Simonsen e Eugênio Gudin (2010SIMONSEN, R.; GUDIN, E. A controvérsia do planejamento na economia brasileira. 3. ed. Brasília: Ipea, 2010.), exatamente sobre o planejamento no âmbito do Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial - CNPIC (1944) e posteriormente no Conselho de Planejamento Econômico - CPE (1945).
Os defensores da ideologia liberal no contexto brasileiro (1950 e 1960) são indigitados por Furtado como opositores ao estruturalismo cepalino. Bielschowsky (2004BIELSCHOWSKY, R. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004.) identifica como líderes dessa corrente os intelectuais neoliberais Eugênio Gudin e Octávio G. de Bulhões, sendo que o prefixo neo adviria da situação na qual os liberais brasileiros passaram “a admitir, na nova realidade pós-1930, a necessidade de alguma intervenção estatal saneadora de imperfeições de mercado, que, segundo reconheciam, afetavam economias subdesenvolvidas como a brasileira” (BIELSCHOWSKY, 2004BIELSCHOWSKY, R. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004., p. 37). Dado interessante é o uso do prefixo neo já em 1959, convencionado por Furtado (2019, p. 166) como identificação desse grupo, com protagonismo para Roberto Campos: “Juscelino, Campos e Corbisier representam três facetas de uma mesma realidade histórica na qual cada dia me sinto mais intimamente envolvido” (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 165), representando Corbisier o nacionalismo4 4 Juscelino não foi analisado por Furtado nessa passagem. , e Campos, o neoliberalismo, uma vez que este intelectual liberal incorporou, ao menos em parte, as estratégias de desenvolvimento econômico e, “imbuído de ideias de desenvolvimento econômico”, não firmou propriamente “uma teoria autêntica do desenvolvimento, ou melhor, do subdesenvolvimento” (FURTADO, 2019, p. 165).
O momento histórico específico que Furtado escreve ([1959] 2019b) é o dos acordos com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e dos impactos do Programa de Estabilização Monetária (PEM), de Roberto Campos e Lucas Lopes (ministro da Fazenda), que levou ao rompimento das negociações de Juscelino com o FMI (VILLELA, 2011VILLELA, A. Dos “anos dourados” de JK à crise não resolvida (1956-1963). In: GIAMBIAGI, Fabio et al. Economia brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p. 25-48., p. 38-39). A tendência neoliberal que Furtado identifica se ancora na proposta de reforma cambial defendida por Campos nos acordos com o FMI e de estabilização com combate inflacionário, o que representaria para Furtado um regresso de Campos à ortodoxia (liberal)5 5 Apesar de Furtado e Bielschowsky utilizarem uma definição aproximada para esses neoliberais, Bielschowsky não enquadra Roberto Campos como signatário do campo neoliberal, mas sim como um pensamento do “setor público” de “desenvolvimentismo não nacionalista”. Bielschowsky (2004, p. 117) afirma que antes de 1964 Campos não teria sido um “economista monetarista, no sentido teórico básico do termo”. , em direção a uma atitude conservadora que não diferenciaria Campos de Eugênio Gudin6 6 Interessante é a oposição de Furtado ao neoliberalismo de Campos, agora evidente nos Diários intermitentes, e ao grupo identificado como Gudin-Bulhões, em torno da Fundação Getúlio Vargas. Em outros momentos essa oposição entre liberais e estruturalistas desenvolvimentistas se tornou pública através de debates, como Gudin-Prebisch (1952-1953) e Bulhões-Furtado (1953). .
Mas o que há de comum, e de novo, nesse debate posterior aos anos 1930 e agudizado nos anos 1950 é a nova performance necessária à ação liberal: a de enfrentar a corrente desenvolvimentista e ajustar-se ao quadro efetivamente em curso de estratégia planejadora. Aqui a crítica ao liberalismo, elaborada por Furtado, não diz respeito à construção do subdesenvolvimento como efeito do liberalismo primário-exportador, mas sim à recusa das adaptações e inovações da ideologia liberal frente ao poder de fogo do nacional-desenvolvimentismo, quer pelas propostas no neoliberalismo nacional, quer pela nova fundamentação teórica da teoria da modernização de W.W. Rostow.
Como nota sobre o contorcionismo resultante da tensão liberalismo econômico versus liberalismo político no Brasil, lembramos que é desse debate que surge o terceiro arranjo da ideologia liberal no Brasil: a guinada do projeto de modernização capitaneado pelo Estado, iniciado pelo planejamento desenvolvimentista com democracia (regime aberto de 1946-1964), mas que termina no abraço ao desenvolvimentismo autoritário do golpe militar (1964-1984). Como voltaremos a abordar adiante, a ideologia liberal já tivera que incorporar o planejamento em alguma medida quando o assunto se remetia à condição de subdesenvolvimento. Prova disso são os posicionamentos dos neoliberais no Brasil durante o ciclo desenvolvimentista e, em termos internacionais, a edificação da teoria da modernização e o Programa da Aliança para o Progresso. Trágica é, no caso brasileiro e também latino-americano, a passagem dessa configuração, com ampla utilização dos termos democracia e desenvolvimento, para o apoio e defesa das guinadas autoritárias (defendidas, logo na sequência, por Samuel Huntington em A ordem política nas sociedades em mudança, de 1975HUNTINGTON, Samuel P. A ordem política nas sociedades em mudança. Tradução de Pinheiro de Lemos. Revisão técnica de Renato Raul Boschi. Rio de Janeiro: Forense Universitária: São Paulo: Edusp, 1975.). Esse foi um momento no qual a ideologia liberal aplicada à periferia não apenas secundarizou ou ignorou as pautas liberais na política, como delas de apartou radicalmente, aninhando-se no colo da ditadura. Para impedir a continuidade do avanço do nacional-desenvolvimentismo democrático e garantir uma pauta baseada na modernização das formas de dependência em etapa industrial, a ideologia sacrificou sua retórica das liberdades como moeda de troca (elemento demonstrativo do quanto a crítica de Keynes ao liberalismo se mostrava correta).
A gênese do desenvolvimentismo brasileiro - gerações e robustecimento de uma agenda
A construção da ideologia nacional-desenvolvimentista oscilou entre esses dois momentos diferentes - autoritário e democrático - a partir da presença de três pontos de contato: o reconhecimento de obstáculos estruturais à completude da sociedade brasileira, a desconfiança sobre a repetição em contexto nacional das condições de modernização clássicas - do centro, em especial Europa e Estados Unidos, que seguiram a via liberal de mudanças primeiro pelo mercado e depois pela reformulação do Estado (MOORE, 1983) - e a inclinação para o modelo de modernização pelo alto, definida como “amor ao Estado” (OLIVEIRA, 2003OLIVEIRA, F. de. Viagem ao olho do furacão. In: OLIVEIRA, Francisco de. A navegação venturosa: ensaios sobre Celso Furtado. São Paulo: Boitempo, 2003, p. 59-82.). Nesse amplo complexo movimentaram-se ondas distintas de intelectuais dentro de uma mesma linhagem, denominada por Brandão (2007BRANDÃO, G. M. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Hucitec, 2007.) de “idealismo orgânico”, nem sempre defensora do mesmo projeto político e social.
A primeira onda ou geração (no sentido dado por Mannheim (s.d.) a esse importante conceito) que lidou com o problema da ação do Estado na transformação das estruturas sociais foi composta de pensadores como Oliveira Vianna, Francisco Campos, Azevedo Amaral, Plínio Salgado, Miguel Reale, Alceu Amoroso Lima - críticos da ideologia liberal por sua inadequação cultural às condições nacionais, pelo artificialismo e idealismo constitucional, pela desorganização das bases da vida nacional, pela promoção de elites disruptivas e transformação da política em um mercado e lógica patrimonial, pelo excessivo materialismo e pelo efeito de um gravíssimo tipo de hedonismo argentário burguês. Esse grupo falava primeiro a linguagem da sociologia histórica, da filosofia social e da política e dos conflitos de classe para, secundariamente, avançar de forma mais consistente sobre a questão econômica e sua dinâmica.
Para essa corrente, denominada como ideologia autoritária (por ser estatista) por Lamounier (1985LAMOUNIER, Bolívar. Formação de um pensamento político autoritário na Primeira República. In: FAUSTO, B. (org.). História geral da civilização brasileira. t. III, v. 2. São Paulo: Difel, 1985, p. 343-374.), o papel protagonista atribuído ao Estado bebia nas fontes do corporativismo ou da doutrina do Estado integral. De um lado esses autores questionavam o difícil e deslocado liberalismo praticado no Brasil como esforço mimético e distante do espírito nacional e, ao mesmo tempo, como impedimento de superação dos déficits nacionais e construção da nação. Como corolário, é possível apontar que esses diferentes autores e teses comungavam a descoberta de que a formação dos estados nacionais e a construção de uma ordem moderna não precisariam (em muitos casos não poderiam) repetir o percurso de outras nações. Comungavam também a desconfiança da ideologia liberal, em crise no mundo e no Brasil (mas aqui por motivos diferentes). Como observação a esse ponto, podemos pensar que na periferia a crise do liberalismo assumia e conjugava duas crises: a do centro (de economias e sociedades avançadas que adernavam em momentos de irracionalismo, em crises cíclicas e estruturais da economia, no eclipse da representação) e a da borda (onde nem sequer se atingiram formas maduras da economia liberal, mas que experimentaram outras formas corrosivas de liberalismo e de seu colapso). A crise na periferia era, portanto, mais grave e mais dramática. E talvez não seja fortuito o fato de que teses organicistas, nacionalistas e revolucionárias tenham encontrado tanta facilidade de circulação no Brasil nas décadas de 1920 e 1930.
A segunda onda dessa linhagem compartilha a visão de uma situação de travamento ou incompletude social, mas a percebe como advinda da formação econômica nacional. A incompletude se constituíra pela via da organização produtiva e fora coroada por instituições políticas e sociais a ela ajustadas. Esse grupo fala a linguagem da economia, avaliando de forma crítica e dura os efeitos da adoção dos postulados liberais na trajetória brasileira - tanto na etapa colonial, quanto, e principalmente, no período após a Independência. Associa-se a impossibilidade da autonomia nacional com as bases materiais atrasadas ou dependentes, avançando sobre a ideia (veiculada de maneira claríssima por Furtado) de que na periferia o subdesenvolvimento fora resultado da adoção do projeto liberal.
Essa nova onda intelectual congrega as contribuições de pensadores como Simonsen, Caio Prado Jr., o isebiano Ignácio Rangel e o maior representante cepalino no Brasil: Celso Furtado. Sua novidade foi ter analisado o atraso sob o ângulo dos efeitos nocivos da adoção das regras do liberalismo econômico, em especial a tese das vantagens comparativas de David Ricardo e a defesa do laissez-faire em situação colonial e periférica. Aqui a ruptura foi profunda e drástica, pois a assimilação da energia do mercantilismo, ao invés de, por externalidade7 7 Como defendido por Rostow (1960). , promover o ingresso e posterior aceleração da modernização das estruturas produtivas e sociais, geraria exatamente o seu contrário: a perpetuação de uma modernização capitalista limitada, resultado da própria acomodação da economia brasileira ao padrão primário-exportador e definitivamente impossibilitada de superar esse estágio por dentro da lógica propugnada pelos postulados liberais econômicos.
Essa percepção e fundamentação teórica é aberta por Simonsen nos textos do início da década de 1930SIMONSEN, R. As crises no Brasil. São Paulo: São Paulo Editora, 1930. (As crises no Brasil, 1930; As finanças e a indústria, 1931; Ordem econômica, padrão de vida e algumas realidades brasileiras, 1934), aprofundada pela lapidar tese do sentido da colonização de Caio Prado Jr. (Formação do Brasil contemporâneo, 1942), tratada em sua heterogeneidade por Rangel (A dualidade básica da economia brasileira, 1957RANGEL, I. A dualidade básica da economia brasileira. Rio de Janeiro: Iseb, 1957.; Introdução ao desenvolvimento econômico brasileiro, 1954) e ganhando densidade e musculatura definitiva na obra de Celso Furtado (Formação econômica do Brasil, 1959; Desenvolvimento e subdesenvolvimento, 1961; A pré-revolução brasileira, 1962; Dialética do desenvolvimento, 1964).
Este artigo teve até aqui a intenção de desnudar a associação fácil e perigosa entre a crítica ao liberalismo e uma natural inclinação autoritária, problema que afeta o âmago do projeto desenvolvimentista de Furtado, que, afastando-se drasticamente do liberalismo econômico (via concepção do subdesenvolvimento e pelas estratégias desenvolvimentistas), ao mesmo tempo defendeu tanto as instituições democráticas quanto as transformou em ferramentas condicionais da superação do subdesenvolvimento. Furtado é, assim, um intelectual antiliberal, mas a léguas de distância do posicionamento autoritário.
Esse desenvolvimentismo democrático origina-se nos “novos ares do mundo”, em um campo intelectual e político que apresentava alternativas econômicas e políticas à ideologia liberal, pautado em racionalização social, regulacionismo, reformismo com justiça social e equilíbrio geopolítico. São fortes seus vínculos com Keynes, na economia, e com Mannheim, na racionalização do social. No plano nacional, Furtado fez parte - e protagonizou - o movimento de “retirada do Estado da boca da direita” (CEPÊDA, 1998CEPÊDA, V. A. Raízes do pensamento político de Celso Furtado: desenvolvimento, nacionalidade e Estado democrático. 254f. Dissertação (Mestrado em Ciência Política). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 1998.; 2001).
O antiliberalismo furtadiano - os ares do mundo
O movimento antiliberal e a percepção sobre as tarefas da democracia surgem cedo na produção furtadiana, presentes em “A feição funcional da democracia moderna” (1944), seguido de “Trajetória da democracia na América” (1946). Nesses trabalhos, ainda no ambiente de sua formação intelectual, Furtado tratou de dois interessantes problemas: o da evolução (e o termo seria esse mesmo) do interesse individual para o interesse coletivo nas transformações do Estado Moderno (FURTADO, 1944FURTADO, Celso. A feição funcional da democracia moderna. Cultura Política. Rio de Janeiro, ano IV, 36, 1944, p. 55-58.) e o da inclinação natural para o esgotamento das energias utópicas do individualismo e do self-government na mais robusta experiência liberal de seu tempo - os Estados Unidos (FURTADO, 1946).
Na reflexão de 1944, Furtado indica como evolução da feição democrática a passagem da ordem de valores do contratualismo original, pautado na proteção da esfera privada (como lugar da liberdade) e que preconizaria o estabelecimento de controles sobre a ordem estatal e sua gradual substituição pela ideia de que somente a coordenação política e social permitiria o alcance de uma ordem social coletiva, promotora de progresso e de paz social. Assim, se no início as instituições políticas e democráticas modernas colocariam o interesse público como anteposta ao governo (como na máxima de Thomas Jefferson de que “o melhor governo é o que governa menos”), o contexto contemporâneo remodelaria essa visão, atribuindo ao Estado democrático moderno não só as tarefas de garantir a ordem interna e a segurança externa, mas também a função de garantir o bem estar-social, funcionando como “força ativa e propulsora do desenvolvimento dos elementos potenciais do agrupamento humano - ao contrário do Estado democrático clássico de feição estática” (FURTADO, 1944FURTADO, Celso. A feição funcional da democracia moderna. Cultura Política. Rio de Janeiro, ano IV, 36, 1944, p. 55-58., p. 58).
Essa requalificação da função democrática estava em curso no contexto real vivido pelo autor, fruto do susto causado pela irrupção do nazifascismo e do stalinismo, entendidos como emanados, em boa medida, da falência de um tipo de contrato social incapaz de evitar a erosão da vida pública e conter o manancial da crise econômica e moral que se alastrava sob o manto do liberalismo econômico e político europeu. A busca de um conteúdo social e coletivo para a democracia perpassa a obra de importantes intelectuais que atuaram no período do entreguerras, como John Maynard Keynes e Karl Mannheim.
Já o segundo texto, de 1946, revela uma outra dimensão, menos disruptiva e mais inexorável, em direção à coordenação da vida econômica e social, distante da condição primordial e prometeica do individualismo radical. Nesse trabalho, ganhador do Prêmio Roosevelt, Furtado analisa as virtudes e a fortuna na edificação da sociedade norte-americana como sendo baseadas no ethos individual do trabalho, na auto-organização social e política, no primado da livre competição enquanto bases da formação dos EUA como potência. No entanto, subjacente a essa diretriz inicial, outra se formava, acelerada pelos efeitos da Segunda Revolução Industrial: a da passagem da pequena produção para a situação das grandes plantas produtivas, do incremento da tecnologia, da padronização dos processos produtivos e do imperativo da produção em grande escala, massificada e quase militarizada em sua hierarquia e procedimentos. Ou seja, como expressão da própria dinâmica do desenvolvimento capitalista industrial se enfraqueciam as virtudes fundadoras - individualismo, laissez-faire, autogoverno, a propriedade de si e dos frutos legítimos do trabalho na forma da propriedade privada - e se forjava a tendência à coordenação e planificação produtiva, com efeitos sociais e políticos.
Assim, quer pela via das crises disruptivas, quer como imanente ao desenvolvimento capitalista, a tendência que se mostrava era a da superação prática da ideologia liberal. Nesse momento a busca da racionalização da ação econômica e política, bem como a estruturação da vida social ganhavam peso via o regulacionismo keynesiano e o planejamento democrático de Mannheim. Ambas as teorias foram recepcionadas por Furtado e reposicionadas em um desenho inaudito.
A influência da crítica keynesiana circula mundialmente pela capacidade de questionar nuclearmente o liberalismo no seu centro vital, a Inglaterra. Historicamente, essa nação foi o berço da ideologia liberal enquanto processo político concreto (Revolução Gloriosa) e enquanto inovação econômica (Primeira Revolução Industrial). Não é à toa que a ideologia liberal é inglesa de sete costados, sendo, como apontou Keynes, muito coerente em seu momento original e tornando-se retórica condicionante nos momentos subsequentes. O eixo da crítica keynesiana ao liberalismo origina-se na falácia de suas leis gerais: o farol dos preços, a mão invisível do mercado, o primado da competição e a tomada de decisão privada dos empresários como motores do progresso e ordenadores da melhor forma da dinâmica social. Keynes, mais próximo de um reformista fabiano e menos de um revolucionário8 8 Segundo Fonseca (2010, p. 426), Keynes “criticava as experiências como a da Rússia soviética e suas referências a Marx quase sempre foram em tom crítico” e ao mesmo tempo recusava o nazifascismo e o corporativismo, “responsáveis por empolgar boa parte de seus contemporâneos, também com uma retórica antiliberal e com forte apelo estatista”. Entre esses dois extremos, Keynes inclinava-se aos postulados centrais da Sociedade Fabiana - de construção de um equilíbrio social por dentro da democracia. , apontava em seu vigoroso texto de 1926 a dimensão metafísica dos principais axiomas liberais econômicos:
Não é verdade que os indivíduos possuem uma “liberdade natural” prescritiva em suas atividades econômicas. Não existe um contrato que confira direitos perpétuos aos que os têm ou aos que os adquirem. O mundo não é governado do alto de forma que o interesse particular e o social sempre coincidam. Não é administrado aqui embaixo para que na prática eles coincidam. Não constitui uma dedução correta dos princípios da Economia que o autointeresse esclarecido sempre atua a favor do interesse público. Nem é verdade que o autointeresse seja geralmente esclarecido; mais frequentemente, os indivíduos que agem separadamente na promoção de seus próprios objetivos são excessivamente ignorantes ou fracos até para atingi-los. A experiência não mostra que os indivíduos, quando integram um grupo social, são sempre menos esclarecidos do que quando agem separadamente. (KEYNES, [1926] 1978, p. 120).
A revolução keynesiana inicia apontando os limites da monologia do sistema de preços e sua baixa eficiência sobre as condições do desenvolvimento capitalista9 9 Como nos indica Silva (1977, p. 71), é certo que o sistema de preços seja um poderoso e útil mecanismo, capaz de impor regras de comportamento nos agentes econômicos e de alocar recursos escassos de qualquer sociedade, mas daí a inferir na unicidade do sistema de preços como “a única forma de organização social capaz de harmonizar, de eliminar os conflitos entre interesses individuais e sociais, vai uma grande distância”. , avança sobre o tema do rentismo e do entesouramento, dos óbices de uma economia centrada na oferta e não na demanda, no papel do emprego e da renda dos salários na dinâmica econômica, concluindo, por fim, que a racionalidade privatista e de curto prazo dos empresários (irracional, no limite) colocaria em risco todo o sistema econômico, acentuando a emergência das crises e criando o risco de colapso sistêmico. Keynes gira a lógica econômica liberal para seu oposto: é a liberdade decisória sob o princípio do laissez-faire o maior perigo na manutenção do sistema econômico capitalista. Entraria em cena uma rotação do papel do Estado, acionado como barreira protetiva e salvaguarda em situações de crise.
Concretamente, na primeira metade do século XX outra ordem de elementos ajuda a compreender a aceitação da técnica do planejamento, de um ângulo fortalecida por experimentações bem-sucedidas - os resultados da aceleração da economia alemã (via prussiana) e japonesa (Revolução Meiji), bem como o boom de crescimento, potencializados pela coordenação econômica dos esforços de guerra. A planificação, demônio da tese liberal, rondava o mundo com boa dose de sucesso, enquanto, de outro lado, as estratégias liberais foram apontadas como falidas, esgotadas e promotoras de dramáticas desordens políticas (os totalitarismos) e das guerras.
A soma dessas tendências na primeira metade do século XX possibilitaria a defesa de uma ação coletiva e racional para impedir o retorno ao padrão de crises econômicas e políticas (i), para impedimento do surgimento de projetos autoritários/totalitários (ii) entronizando a compreensão de que o retorno à pauta liberal não seria parte dessa solução (iii). Advém daí a força do keynesianismo, do projeto social-democrata e do planejamento democrático mannheimiano. Consolidava-se uma responsabilidade social, uma visão de ordem social coletiva que chegou com força na formação intelectual de Furtado e que exigia a qualificação do conhecimento como ferramenta e a vontade política como diretriz. Em A fantasia organizada, Celso Furtado afirma que o livro Liberdade, poder e planificação democrática (1972), de Mannheim, teria orientado sua visão de como deveria ser o mundo reconstituído a partir da Segunda Guerra Mundial: “como estudioso de Mannheim, estava convencido de que um amplo esforço de reconstrução institucional tornara-se indispensável, se o objetivo era preservar a liberdade do homem” (FURTADO, 2014FURTADO, Celso. A fantasia organizada. In: FURTADO, Celso. Obra autobiográfica. Edição definitiva. Coordenação de Rosa Freire D’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 17-202., p. 18). Da mesma maneira, a crítica keynesiana à ideologia liberal e a proposição de uma técnica de rearranjo das atividades econômicas juntando racionalidade, função social e ação estatal impactaram a formação intelectual de Furtado e desabrochariam na etapa cepalina10 10 “Na sociedade estratificada e parada do tempo em que eu vivia, a ideia de que as formas sociais são históricas, portanto, podem ser superadas, permitia ver o mundo com outros olhos. Essa ideia, ligada à do conhecimento como arma do progresso, que vinha do positivismo, compôs no meu espírito uma certa visão do homem em face da história. Essa ideia permitia superar o círculo fechado do fatalismo e do absurdo, e ao mesmo tempo desembocava numa responsabilidade moral” (FURTADO, 2013, p. 40) .
Dessa recepção, inconteste (mas não excludente quanto a outros diálogos travados por Furtado), surgiria a grande contribuição do autor, originada na seguinte reflexão: o diagnóstico efetuado no centro, nas economias desenvolvidas, seria válido para a periferia do capitalismo? A crítica à ideologia liberal seria a mesma? E as ferramentas de superação poderiam ser transplantadas?
Desajustes liberais na periferia
É desse “mas” que brotaria a energia para a produção de uma teoria autóctone, ajustada ao processo diferencial da trajetória brasileira e que antecede Furtado em duas gerações enquanto suspeita. Na busca por uma resposta, Furtado produzirá uma formulação intelectual apta a conferir outro estatuto à crítica à ideologia liberal, observada na perspectiva da periferia subdesenvolvida. O passo inicial dessa nova percepção surge no âmbito da recém-criada Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) em seu primeiro texto público - o “Manifesto dos periféricos”, publicado em 1949, reflexão fundante do método histórico-estruturalista. A inicial e original abordagem de Raúl Prebisch (2011PREBISCH, R. Problemas teóricos e práticos do crescimento econômico. In: GURRIERI, Adolfo (org.) O Manifesto Latino-Americano e outros ensaios. Rio de Janeiro: Contraponto/Cicef, 2011, p. 95-151.)11 11 O estruturalismo cepalino foi o principal meio de circulação intelectual no Brasil e na América Latina do pensamento keynesiano, principalmente através de Raúl Prebisch (CARVALHO, 2008). Bielschowsky (2004) afirma que Furtado realizara uma pioneira análise keynesiana aplicada ao caso brasileiro em Formação econômica do Brasil - uma espécie de “keynesianismo atípico”, um “keynesianismo pela negativa” (elementos também apontados por Bresser-Pereira, 2001). sobre a assimetria dos termos de trocas entre as economias primário-exportadoras e o centro das economias industriais colocaria o liberalismo econômico em um novo flanco de ataque: sob o manto das vantagens comparativas e da divisão internacional do comércio, constituía-se uma lógica perversa de espoliação e empobrecimento reiterativo das economias periféricas, ocultadas pela inevitabilidade de leis econômicas (as mesmas denunciadas como mito por Keynes) e como etapa de avanço em direção ao progresso.
Partindo desse contexto, Furtado produziria um poderosíssimo estudo, se não o melhor, aplicado sobre o caso brasileiro - Formação econômica do Brasil. Sua tese central é a dos efeitos perversos da associação entre colonialismo e mercantilismo na formação das estruturas sociais brasileiras, conformadoras da paisagem social e da ocupação territorial sob a batuta dos ciclos primário-exportadores. Há algo na história nacional que não repete a lógica da formação dos estados nacionais modernos a partir de um passado pré-moderno, terratenente. Um deslocamento que corresponde à produção de um outro tipo de lugar, de segunda ordem, atrelado e subsumido aos interesses metropolitanos, mas impedido de avançar segundo as regras gerais do sistema capitalista.
Diferentemente da geração das décadas de 1920-1930, que se constituíra sob a crítica do transplante das ideias e das instituições como geradoras da inorganicidade interna e de uma nacionalidade fraca, a leitura das bases materiais da colonização dava outra feição ao atraso: ele era parte de um modelo moderno, maximizador de ganhos em seu centro e disseminador de prejuízos em sua borda. As mazelas nacionais tornavam-se assim parte do mundial, como efeito e não como causa naturais ou sui generis de condições locais.
Na leitura proposta por Furtado há uma sutil, porém grave, mudança na maneira como se avalia a conexão estabelecida entre a colônia e as energias da modernização mundial contidas na expansão ultramarina e nos interesses mercantilistas sobre os novos territórios: a face positiva do contato, da assimilação e da aceleração das energias do moderno (tão valorizadas na teoria das etapas de Rostow como deflagradoras do primo móbile da mudança nas sociedades tradicionais e retardatárias) torna-se uma corrente de ferro, uma lógica que uma vez instaurada e respeitada jogará essas nações em um caso anômalo de moderno (híbrido, inconcluso, incompleto). Esse é o resultado alcançado pela lógica do liberalismo, privilegiadamente o econômico, aplicado à boa parte das nações do Novo Mundo12 12 Aquelas onde havia condições instaladas ou potenciais para exploração econômica. Furtado (1967) separa esses tipos de colonização como sendo de subdesenvolvimento de grau superior, subdesenvolvimento de grau inferior e sociedades pobres. Somente as primeiras podem sonhar com a superação do subdesenvolvimento (e estariam na categoria de arranque de Rostow). .
Por essa concepção entendemos que a produção intelectual de Furtado (1944FURTADO, Celso. A feição funcional da democracia moderna. Cultura Política. Rio de Janeiro, ano IV, 36, 1944, p. 55-58.-1967) contém, embora de forma dispersa e muitas vezes exigindo a tarefa de junção de teses e de pontos distintos pelo leitor/analista, a mais dura crítica feita à ideologia liberal no debate brasileiro. E, mesmo assim, Furtado não resvala, a nosso ver, um centímetro em direção ao autoritarismo. As duas afirmações são graves, então vamos tentar sua demonstração.
Começamos por enunciar as duas teses que são construídas por Furtado no período recortado: a teoria do subdesenvolvimento e o projeto desenvolvimentista. Elas são produções intelectuais distintas e operam diferentes configurações entre, por exemplo, a dimensão da economia e a da política. A teoria do subdesenvolvimento analisa como o processo de descoberta e ocupação no Brasil colônia (tema central em Formação econômica do Brasil) foi condicionado por uma dinâmica externa - o mercantilismo, face avançada do capitalismo europeu - que moldou a principal estrutura formativa da sociedade brasileira - o modelo primário-exportador. Em sua implementação foram constituídas a dinâmica e as formas do agrário, definidas as formas de trabalho, configuradas as elites dos setores modernos (e, por extensão, definidos seus interesses, sua tendência à manutenção de laços externos e as dificuldades de construção de um projeto nacional e independente), produzidos os vazios do hinterland, gestado o dualismo estrutural e sedimentados os pressupostos da vocação agrária.
É da posição ocupada pela colônia na divisão do comércio internacional, como produtora de bens primários e consumidora de bens manufaturados e depois industrializados, que surge uma dependência estrutural e uma incapacidade para reter no sistema econômico nacional a renda e os ganhos das atividades realizadas. Impede-se, pela condição do exclusivismo e monopolismo das atividades agrárias, a diversificação produtiva e o efeito multiplicador de uma atividade econômica-chave sobre o sistema geral, o surgimento de um mercado consumidor nacional vigoroso, a modernização de segmentos produtivos, a renovação das elites e a expansão da riqueza geral - via salário e rendas - que alimentariam o ciclo da inovação, do investimento, da reprodução ampliada do capital e a conformação de uma sociedade do trabalho e de cidadãos.
Esses itens, que comporiam o ciclo virtuoso descrito magistralmente por Rostow (1960ROSTOW, Walt W. The stages of economic growth: a non-communist manifesto. Cambridge: Cambridge University Press, 1960.) como resultados esperados após a estabilização do arranque e evolução do novo modelo, não podem ocorrer de fato em sociedades com o perfil do Brasil ou de outros países latino-americanos. Mesmo havendo um impulso modernizador externo capaz de sacudir a inércia de sociedades tradicionais, a opção aparentemente “eficiente” pregada pela teoria liberal das vantagens comparativas como energia de arranque será neutralizada por dois mecanismos (nenhum deles presentes na obra de Rostow): pela deterioração dos termos de troca (valor agregado diferencial em produtos in natura versus produtos manufaturados e industrializados) e pela incapacidade de distribuição no sistema nacional dos apertados ganhos da atividade central primário-exportadora (que muitas vezes se tornou adversária de outros setores econômicos, como foi o caso da vocação agrária no Brasil da Primeira República). Assim, na experiência brasileira houve o contato e um protoarranque cuja dependência externa e disfunções estruturais internas (do modelo econômico e não das formas sociais) impediram a evolução para os próximos degraus do etapismo rostowniano. E não por condições internas ou ligadas ao passado pré-moderno, mas pela forma sui generis de sua modernidade limitada (a condição subdesenvolvida). Para coroar esse raciocínio, um dos pontos fundamentais da tese de Rostow passava pela política e não mais pela economia, com a formação de uma coalização de atores imbuídos do espírito e do interesse da modernização e do investimento no desenvolvimento. Aqui surge um elemento normalmente descurado na tese da modernização: o peso dos interesses das economias centrais em manter a periferia como fornecedora de insumos de baixo custo, com industrialização limitada e sendo reserva de mercado consumidor. Tanto essa questão é real, que a reiterada cobrança pela não existência de um Plano Marshall para a América Latina (no esforço de reconstrução e modernização das sociedades e economias do bloco ocidental), iniciada por Simonsen ao final da Segunda Guerra Mundial, implicava na consciência dos países periféricos de que o interesse da autonomia e desenvolvimento dos países latino-americanos esbarrava nos interesses econômicos dos EUA e países mais bem colocados no ranking do desenvolvimento, esperançosos da reversão da periferia latino-americana para a condição primário-exportadora.
Contrária aos velhos postulados do liberalismo clássico e à moderna teoria de Rostow, a teoria do desenvolvimento formulada por Furtado afirmou a existência de um tipo socioeconômico diferente do padrão idealizado de modernidade (urbano, com diferenciação produtiva, importância do trabalho assalariado e da inovação tecnológica), mas também distinto do modelo de sociedade tradicional ou sociedade da pobreza, conforme analisado por Galbraith (1979GALBRAITH, J. K. A sociedade da pobreza. Lisboa: Publicações Dom Quixote,1979.).
Esse padrão híbrido é uma forma social e econômica moderna, mas não cabe nem na tipologia keynesiana (que não incorporou o problema do subdesenvolvimento em sua agenda de pesquisa) e muito menos na proposição rostowiana. Na periferia de extração colonial, tardia e periférica, a ideologia liberal não repete (e esgota) as virtudes que a engendraram como revolucionárias, como destruidoras da ordem medieval e agilizadoras do progresso, da emancipação individual e de formas políticas sofisticadas. Ao contrário, na trajetória brasileira - tomada como um dos tipos da formação latino-americana - a adoção da ideologia liberal seria o impeditivo central para qualquer forma de emancipação nacional real e autossustentada. Teria se constituído como interesse exógeno e sua aplicação teria corrompido as estruturas normais de evolução e modernização - tanto econômicas quanto políticas.
No contexto que possibilita a crítica keynesiana, o liberalismo fora parte do processo de construção da modernidade, tendo-se mostrado limitado ou limitante de sua continuidade, quiçá convertendo-se em energia disruptiva. No esquadro do subdesenvolvimento brasileiro a ideologia liberal constituíra, historicamente, o grande problema da modernização nacional. Para Rostow, ao contrário, o contato com as energias do mercantilismo liberal e a adoção do modelo primário-exportador poderiam ser entendidos como disparadores da dinâmica da transição - porém, o problema detectado pela teoria do subdesenvolvimento, cepalina e muito especialmente a furtadiana, os entraves à modernização não vinham de uma “possível dinâmica pré-moderna” e sim do hibridismo engendrado pela condição primário-exportadora. O contato com a economia externa não modificaria o problema, mas seria, ela mesma, a raiz do problema.
O segundo aspecto que rotaciona fortemente a ideologia liberal na periferia é o projeto desenvolvimentista, que não pode ser confundido e nem subsumido à teoria do subdesenvolvimento, embora nasça dela. As metas do desenvolvimentismo são traçadas ao longo da produção teórica de Furtado na última parte do Formação econômica do Brasil (2009bFURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil: edição comemorativa - 50 anos. São Paulo: Organização de Rosa Freire d’Aguiar. Companhia das Letras, 2009b.) e em textos como Perspectivas da economia brasileira (1958), Desenvolvimento e subdesenvolvimento (2009a), A pré-revolução brasileira (1962) e Dialética do desenvolvimento (1964), mas também na sua ação no comando da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e nos objetivos do Plano Trienal. O projeto desenvolvimentista constitui-se como uma derivação lógica e de uma opção política: a superação da estrutura do subdesenvolvimento. Mas na periferia o problema não consistia em resolver uma crise ou regular as disfunções da moeda, do crédito e do emprego para a retomada da dinâmica em patamares mais estáveis. Ao contrário, na periferia a superação do subdesenvolvimento exigiria a alteração da condição de economia reflexa (orientada pela demanda externa) e a internalização dos centros de decisão.
Nesse processo o tamanho das funções atribuídas ao Estado seria enorme, pois incidiriam: a) na produção de um diagnóstico geral da estrutura produtiva, na detecção de seus gargalos e disfunções; b) na geração de um plano de transformação (e não de recuperação) estrutural do sistema produtivo, com forte investida em direção à aceleração da industrialização e seu ajuste, ou aproximação, do padrão internacional de produção e competição; c) na utilização de instrumentos macroeconômicos de desestímulo a atividades e práticas geradoras de ganhos extraordinários, de propensão ao gasto suntuoso, de investimentos de curto prazo em setores de pouco peso no padrão de modificação produtiva, de utilização do exército de mão de obra ocioso para redução de salários e consequentemente diminuição do tamanho do mercado interno e redução da dinâmica econômica etc.; d) na utilização de instrumentos macroeconômicos de investimento e incentivo à atividades de infraestrutura, inovação e diversificação produtiva.
A ideologia liberal seria o maior impeditivo para a superação do subdesenvolvimento, quer por suas amarras ao primado das vantagens comparativas (reafirmadoras da condição agrária), quer por sua incapacidade teórica de compreender a dinâmica do subdesenvolvimento (impossível de ser apreendida no esquadro e lógica das teorias econômicas liberais puras) e, por último, pela recusa de qualquer estratégia que escape dos automatismos de mercado. A inadequação da ideologia liberal ao contexto brasileiro ocorria exatamente por sua condição de artífice da situação de subdesenvolvimento e, em etapa possível de superação dessa condição, por representar uma força contrária e destruidora das estratégias do (necessário) planejamento e regulação estatal.
Lugar e funções para a democracia
Enquanto a trajetória da ideologia liberal brasileira aproximava-se das respostas autoritárias, Furtado incorporava a democracia de forma absolutamente inédita - como parte interna da dinâmica do projeto desenvolvimentista. O ineditismo aparece por conta da transformação da democracia de resultado a ser alcançado, na fase final da transformação social racionalmente orientada (uma razão substantiva em termos mannheimianos) ou de valor perseguido em elemento operativo interno das estratégias do planejamento.
A democracia teria então três funções. A primeira função seria a de superar a tendência do capitalismo brasileiro de enveredar pela estratégia de maximização de lucros pela via da redução de salários, dada a existência do exército industrial de reserva. Essa tendência, racional no curto prazo e apropriada por um agente privado, seria fatal para a aceleração e o amadurecimento de uma economia subdesenvolvida em situação de transição. Por um lado, a facilidade apresentada pela possível redução de salários impactaria negativamente no processo de incorporação e de desenvolvimento de inovações tecnológicas autóctones - problema angustiante no quadro das limitações estruturais do subdesenvolvimento. De outro ângulo, o efeito seria a consequente diminuição do tamanho do mercado interno e da renda disponível para o consumo, enfraquecendo a própria dinâmica interna de autossustentação do impulso industrial. Fora da moldura democrática que possibilitaria a organização social, em especial do crucial segmento sindical, e das crescentes reivindicações pela melhoria das condições de vida que permeiam os processos eleitorais, o desempenho do capitalismo nacional tenderia a manter-se letárgico e incapaz de se beneficiar no plano interno dos estímulos gerados pela elevação da renda do trabalho (processo clássico de expansão e sustentação das economias centrais) e da elevação da produtividade (pela via do estímulo - quiçá imperativo - de avançar sobre o problema da inovação tecnológica).
A segunda função seria a de permitir, sem desvios, o projeto do planejamento do desenvolvimento, contrário aos interesses de robustos segmentos da sociedade brasileira: o setor primário-exportador, os setores atrelados à dinâmica do comércio internacional, as elites sobreviventes da regressão dos ciclos econômicos (em geral enfraquecidas em termos de poder econômico, mas experientes e treinadas na captura e uso do poder político). De quebra, contrariando também os interesses do capitalismo mundial, pouco interessado na geração de concorrentes em territórios próximos e resistente à remodelação da posição primário-exportadora em especial da América Latina. Nesse ângulo, o regime democrático permitiria a atuação de mecanismos de pressão e a disputa no campo da opinião pública sobre o destino dos recursos e telos do planejamento. É bom lembrar que, quando falamos de desenvolvimentismo, os capitais que são invocados em sua sustentação são da ordem da política - Estado, burocracia pública, planejamento via definição de políticas públicas, investimentos estatais (via tributação ou contração de dívida pública), acrescidos do compromisso e amálgama social de projeto nacional. A democracia, sob o conjunto de fatores que disputavam ou procuram impedir a consecução do desenvolvimentismo, seria a única condição de garantir o rumo da ação estatal.
A soma das duas funções convergiria para uma proposição particular de desenvolvimento em Furtado: pautada na defesa dos interesses da nação e não do mercado; visando à distribuição do progresso socialmente produzido e não na sua apropriação privada extrema ou seu repasse para setores externos; garantidora das pré-condições da autonomia nacional via um modelo autossustentado e soberano e não a perpetuação de uma situação política reflexa e subalterna. Assim, a terceira função da democracia é ser o meio essencial para consecução do desenvolvimento, estratégia e ferramenta capaz da superação subdesenvolvimento. Sem a presença das instituições democráticas que permitiriam a formação de uma opinião pública atuante e sem correias de transmissão entre os interesses sociais e a ação estatal, tal projeto teria dificuldade de resistir à massa de constrangimentos que o cercava. Não nos parece acidental que o movimento de ajuste da ideologia liberal, obrigada a incorporar e a responder em sua lógica de atuação nas economias latino-americanas nos anos 50 e 60 do século passado tanto a tese do subdesenvolvimento como a linguagem do desenvolvimentismo, passasse rapidamente do polo que afirmava o binômio democracia-desenvolvimento (Rostow e Aliança para o Progresso) para seu oposto - a adoção do autoritarismo como resultado das instabilidades geradas em situação acelerada de mudança social.
Bem-sucedida, embora em situação aporética em termos de sua coerência teórica, a guinada da ideologia liberal em direção ao autoritarismo do regime militar bloqueou as energias profundas do desenvolvimentismo, em especial aquele de lavra furtadiana, capturando-as em prol de um projeto que reduziu o desenvolvimento à modernização industrial e que gerou, com fundos públicos e bases de um pretenso nacionalismo, a conversão do atraso em brutal desigualdade e em manutenção/agravamento dos óbices estruturais. Comprova-se, dessa maneira, a incapacidade da ideologia liberal de resolver os dilemas da sociedade brasileira - na fase colonial, na brecha desenvolvimentista e, ainda hoje, no colapso social em curso desde o golpe de 2016. Seu desajuste brota da incapacidade de reconhecer a natureza do subdesenvolvimento e, simultaneamente, de compreender a necessidade de instrumentos de coordenação coletiva, pautada na ação do Estado e em políticas públicas ordenadas pela máxima da elevação das condições de vida. A rígida linguagem do mercado, pronta a escapar das amarras democráticas, opõe-se ao propósito da construção nacional - e essa é a lição original que nos foi deixada por Celso Furtado.
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- SANTOS, W. G. dos. A praxis liberal no Brasil: propostas para reflexão e pesquisa. In: SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Ordem burguesa e liberalismo político. São Paulo: Duas Cidades, 1978, p. 65-117.
- SCHWARZ, R. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1977.
- SILVA, A. M. da. O fim do laissez-faire. Revista Brasileira de Economia, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, 1977, p. 65-75.
- SIMONSEN, R. As crises no Brasil. São Paulo: São Paulo Editora, 1930.
- SIMONSEN, R. Ordem econômica, padrão de vida e algumas realidades brasileiras. São Paulo: São Paulo Editora, 1934.
- SIMONSEN, R.; GUDIN, E. A controvérsia do planejamento na economia brasileira. 3. ed. Brasília: Ipea, 2010.
- VILLELA, A. Dos “anos dourados” de JK à crise não resolvida (1956-1963). In: GIAMBIAGI, Fabio et al. Economia brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p. 25-48.
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A esse respeito consultar Franco (1976), Schwarz (1977), Santos (1978), Cardoso (1980) e Bosi (1992).
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Juscelino não foi analisado por Furtado nessa passagem.
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Apesar de Furtado e Bielschowsky utilizarem uma definição aproximada para esses neoliberais, Bielschowsky não enquadra Roberto Campos como signatário do campo neoliberal, mas sim como um pensamento do “setor público” de “desenvolvimentismo não nacionalista”. Bielschowsky (2004, p. 117) afirma que antes de 1964 Campos não teria sido um “economista monetarista, no sentido teórico básico do termo”.
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Interessante é a oposição de Furtado ao neoliberalismo de Campos, agora evidente nos Diários intermitentes, e ao grupo identificado como Gudin-Bulhões, em torno da Fundação Getúlio Vargas. Em outros momentos essa oposição entre liberais e estruturalistas desenvolvimentistas se tornou pública através de debates, como Gudin-Prebisch (1952-1953) e Bulhões-Furtado (1953).
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Como defendido por Rostow (1960).
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Segundo Fonseca (2010, p. 426), Keynes “criticava as experiências como a da Rússia soviética e suas referências a Marx quase sempre foram em tom crítico” e ao mesmo tempo recusava o nazifascismo e o corporativismo, “responsáveis por empolgar boa parte de seus contemporâneos, também com uma retórica antiliberal e com forte apelo estatista”. Entre esses dois extremos, Keynes inclinava-se aos postulados centrais da Sociedade Fabiana - de construção de um equilíbrio social por dentro da democracia.
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Como nos indica Silva (1977, p. 71), é certo que o sistema de preços seja um poderoso e útil mecanismo, capaz de impor regras de comportamento nos agentes econômicos e de alocar recursos escassos de qualquer sociedade, mas daí a inferir na unicidade do sistema de preços como “a única forma de organização social capaz de harmonizar, de eliminar os conflitos entre interesses individuais e sociais, vai uma grande distância”.
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“Na sociedade estratificada e parada do tempo em que eu vivia, a ideia de que as formas sociais são históricas, portanto, podem ser superadas, permitia ver o mundo com outros olhos. Essa ideia, ligada à do conhecimento como arma do progresso, que vinha do positivismo, compôs no meu espírito uma certa visão do homem em face da história. Essa ideia permitia superar o círculo fechado do fatalismo e do absurdo, e ao mesmo tempo desembocava numa responsabilidade moral” (FURTADO, 2013, p. 40)
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O estruturalismo cepalino foi o principal meio de circulação intelectual no Brasil e na América Latina do pensamento keynesiano, principalmente através de Raúl Prebisch (CARVALHO, 2008). Bielschowsky (2004) afirma que Furtado realizara uma pioneira análise keynesiana aplicada ao caso brasileiro em Formação econômica do Brasil - uma espécie de “keynesianismo atípico”, um “keynesianismo pela negativa” (elementos também apontados por Bresser-Pereira, 2001).
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Aquelas onde havia condições instaladas ou potenciais para exploração econômica. Furtado (1967) separa esses tipos de colonização como sendo de subdesenvolvimento de grau superior, subdesenvolvimento de grau inferior e sociedades pobres. Somente as primeiras podem sonhar com a superação do subdesenvolvimento (e estariam na categoria de arranque de Rostow).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
03 Maio 2021 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2021
Histórico
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Recebido
01 Set 2020 -
Aceito
02 Fev 2021