RESUMO
O texto apresenta o livro O realismo na literatura juvenil: Odette de Barros Mott e a denúncia social,de Lenice Bueno, atento à elaboração que a pesquisadora realiza na identificação e articulação das principais linhas de força da literatura contemporânea para crianças e jovens no Brasil.
PALAVRAS-CHAVE Literatura infantojuvenil; Odette de Barros Mott; realismo
ABSTRACT
The text presents the book O realismo na literatura juvenil: Odette de Barros Mott e a denúncia social, by Lenice Bueno, focused on the elaboration that the researcher carries out in identifying and articulating the main constitutive lines of the contemporary Brazilian literature for children and young adults.
KEYWORDS Children’s and youth literature; Odette de Barros Mott; realism
O realismo na literatura juvenil: Odette de Barros Mott e a denúncia social elabora problemas centrais para compreender a produção para crianças e jovens contemporânea. Ao investigar Odette de Barros Mott, autora pouco conhecida até por especialistas da área, Lenice Bueno consegue estabelecer a, talvez, visão mais complexa que temos das linhas de força que constituem o campo contemporâneo da literatura para crianças e jovens no país. Suas análises se desdobram por meio das relações entre editoras, autores, instituições, leitores, escolas, leis, bibliotecas, aspectos socioculturais, econômicos e políticos,articulações internacionais desse campo e muitos outros aspectos. O livro é fruto de uma pesquisa no Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP) realizada no Fundo Odette de Barros Mott, que resultou em uma dissertação de mestrado no programa Culturas e Identidades Brasileiras, com orientação do professor Marcos Antonio de Moraes.
Lenice Bueno começa apresentando ao leitor uma escritora que, como é destacado logo de saída,vendeu uma quantidade de livros assombrosa até considerando os padrões atuais. A investigação cuidadosa promove uma reconstrução histórica do campo (ou dos campos na verdade) que envolve(m) a literatura para crianças e jovens. A pesquisadora organizou esses diferentes planos de análise em três movimentos principais: a primeira parte, “Uma longa amizade, um final infeliz”, recupera, por meio das cartas que estão no acervo de Odette de Barros Mott no IEB, a relação entre a escritora e seu editor, Caio Graco Prado, filho do conhecido historiador marxista Caio Prado Júnior. Ainda nessa parte,procurou, também,levantar os possíveis motivos para o esquecimento de uma autora que foi muito popular. A segunda parte, “Odette de Barros Mott, a escritora”, investiga a inserção da escritora no meio editorial e reconstrói a transformação do campo por meio da curva de consagração de Odette Mott, e da caracterização do seu esquecimento nessa dinâmica. A terceira, “Análise de obras de Odette de Barros Mott”, por fim, investiga alguns livros da autora dentro dessas chaves de leitura construídas nas duas partes anteriores.
As cartas, e outros documentos consultados, permitem que Lenice Bueno elabore, ao mesmo tempo, uma história da Editora Brasiliense e das transformações nos meios de produção e comercialização dos livros com um foco maior do final dos anos 1960 até a segunda metade da década de 1980. De saída, a pesquisadora apresenta a importância vital de Odette de Barros Mott para a saúde financeira da Brasiliense. Essa explicação, considerando aquele contexto específico,acaba por iluminar de forma ampla as transformações no meio editorial no país, pois traz para análise as alterações no campo educacional na virada da década de 1970 para a seguinte, quem são esses novos jovens leitores e as novas dinâmicas de compra e venda de livros. Esses fatos serão decisivos, como veremos, para a reconstrução histórica que a pesquisa realiza.
Considerando os documentos, geralmente em tom celebratório, que procuram estabelecer a história da Editora Brasiliense nos anos 1980, Lenice percebe que Odette Mott assume um papel bastante lateral, ou, de fato, existe um “apagamento” de alguém que teve, como dito, importância vital para a empresa. Ao recontar a história dessa relação da autora com a editora, outros personagens e instituições decisivos aparecem além de Caio Graco, o que força a mobilização de alguns planos de análise. Com consistência,a pesquisadora investiga as vendas, o prestígio, as escolas, os livros paradidáticos, as compras governamentais, os contratos de trabalho, a Coleção Jovens do Mundo Todo e outros aspectos.Esses elementos são articulados aos processos históricos dessas décadas considerando as crises econômicas, as dinâmicas políticas, as leis, as transformações comportamentais ela mudança na qualidade da produção editorial, para melhor ou para pior, dependendo do contexto específico em foco.
Um breve exemplo que o livro apresenta: a Brasiliense perde progressivamente espaço no mercado que Odette Mott disputava, como uma das principais autoras,para outras editoras2 que se especializaram na elaboração de vendas casadas de livros didáticos e “paradidáticos”, gênero que em boa medida é “inventado”, ou aperfeiçoado, um pouco antes da perda de prestígio da escritora no meio literário. Lenice Bueno caracteriza a forma bastante especializada de produção e venda de livros, que tem a escola como principal mercado.Essa forma se torna dominante com o aumento de alunos que ingressam nesse momento nas escolas e desloca a Brasiliense do papel central que teve, com a Odette Mott responsável pela maior parte das vendas, para uma participação lateral nesse mercado. Isso, articulado a outros fatores, faz a editora de Caio Graco e família mudar seu foco de ação para, simplificando,os jovens universitários nos anos 1980.
O cuidado analítico da pesquisadora é visto na forma como ela, para estabelecer essa história complexa, que irá ganhar novas camadas nas partes seguintes do livro, mobilizou a mudança nos preços dos materiais e dos trabalhos que envolvem a produção editorial no período estudado. Mostrar como o preço do papel e as formas de comércio e estocagem dele e dos livros influenciaram nessa dinâmica revela a imaginação histórica que a pesquisadora mobiliza de maneira ao mesmo tempo bastante efetiva e discreta. Um clássico da história na área, O aparecimento do livro, de Lucien Febvre e Henry-Jean Martin (2019), lançado no final dos anos 1950, começa justamente reconstruindo a história da produção do papel e de outros materiais que constituem os livros e as redes comerciais criadas,com as gráficas em torno, para estabelecer as dinâmicas editoriais e os contextos que cercam a produção de livros desde o final da Idade Média.
Claro que a ambição em O realismo na literatura juvenil é mais modesta, e o período histórico, mais recente, delimitado e acessível a essas reconstituições, mas a curva de consagração de Odette Mott e a qualidade dessa consagração, que ganha um desenho mais claro na segunda parte da pesquisa, cobram outros elementos necessários para a história recente da literatura e dos livros para crianças e jovens no Brasil. A pesquisadora, então, articula a essa rede de análise, junto com a história da autora, instituições, decisivas até hoje, que surgiram em torno do livro para crianças e jovens. A gênese do “esquecimento”, para citar aproximadamente o nome de um dos capítulos do livro, está profundamente vinculada às transformações institucionais que acontecem ao longo da década de 1970, como a pesquisadora apresenta de forma convincente.
Odette de Barros Mott, depois de já apresentada por meio das cartas com seu editor Caio Graco na primeira parte, ganha um contorno mais efetivo, dentro de uma relação mais ampla com o meio editorial, na segunda. Após mais de 100 páginas de uma análise densa da relação dela com seu editor, temos a informação de que ela nasceu em 1913 no interior de São Paulo,
[...] em uma família de classe média interiorana relativamente abastada, uma entre oito filhos com idades bem variadas, e passou boa parte de sua primeira infância mudando de cidade em cidade, à medida que o pai ascendia em sua carreira de tabelião até a conquista de um cartório no bairro de Santana, em São Paulo. (p. 97).
Conseguiu, ao que parece com a influência do pai, dirigente do PRP Partido Republicano Paulista (PRP), ter uma boa educação: cursou o primário na Escola Modelo Caetano de Campos. Quando começou de fato a se dedicar à literatura3, provavelmente depois de cuidar dos oito filhos que teve, ela estava com aproximadamente 55 anos. Em relato biográfico ela afirma, antes de virar escritora, ter feito um intenso trabalho de militância de base filiada à Juventude Operária Católica (JOC), construindo bibliotecas, alfabetizando, dando cursos, ajudando na interpretação dos direitos trabalhistas etc.
Esse espírito militante migra em alguma medida para a sua produção literária, com os pesos e contrapesos que a pesquisadora considera na sua análise. Odette Mott faz parte, segundo a boa hipótese de Lenice Bueno, de uma renovação na literatura para crianças e jovens que ficou na, digamos assim, metade do caminho em relação a outra transformação que ocorreu simultaneamente. Essa outra tinha como centro, simplificando bastante, a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), instituição que ganhou um peso decisivo no campo principalmente a partir da segunda metade dos anos 1970. Em 1971, momento de ascensão do prestígio da escritora, Odette Mott marca sua posição como renovadora do gênero, ou ensaia sua ruptura ao mesmo tempo com uma literatura específica4 e com um país predominantemente rural das primeiras décadas do século XX:
Chega de histórias saudosistas e de fazendas. É preciso que a juventude de hoje tome contato efetivo com o que se passa no Brasil. [...] Eu mesma já escrevi alguns livros sobre aventuras. Mas esse tempo já passou. Agora é dar aos adolescentes uma visão real do país. (p. 13).
O realismo da autora e da literatura para jovens, que o livro propõe investigar, ganha contornos mais claros principalmente por meio da apresentação de como essa militância bastante específica se manifesta nos livros e nos embates da autora com a “nova crítica” e a “nova literatura” - o “nova”, claro, marca fortemente essa disputa de campo. O principal contraste em relação a Odette Mott explorado pela pesquisadora acontece por meio dessa “nova literatura” que surge e que, como dito, também procura se estabelecer como renovadora, ou como responsável pelas transformações em processo. Essa outra renovação - na verdade essa literatura está imersa em todo um contexto de transformações em diferentes níveis5 - é apresentada na segunda parte do livro por meio do papel que a FNLIJ assumiu nesse processo.
Com a FNLIJ ocupando um papel central no campo, chancelada pelo International Board on Books for Young People (IBBY)6, a “renovação” de Odette Mott ficou, como dito, no meio do caminho. A principal instituição relacionada à literatura para crianças e jovens, que ganha centralidade no campo ao longo da década de 1970, contribui em diferentes níveis para a consagração de uma “nova literatura”. Não é tarefa simples escapar das fontes celebratórias, ainda mais quando muitos das personagens apresentadas nessas disputas continuam vivas. Mas a forma como Lenice Bueno realizou um trabalho apurado com fontes primárias, principalmente por meio das cartas, e o fato de o foco da pesquisa ser alguém que “perdeu”7 esse confronto, de fato, ajudam a promover uma iluminação rara na constituição desse campo da literatura para crianças e jovens.
A estratégia mobilizada para entender as transformações nesse meio, ainda na segunda parte do livro, foi acompanhar, além da inserção de Odette Mott no campo editorial, a sua ação à frente do Centro de Estudos da Literatura Infantil e Juvenil (Celiju). Essa quase instituição - a hipótese da pesquisadora é que o Celiju não conseguiu elaborar uma estratégia de funcionamento propriamente institucional8 - colaborou em um primeiro momento com a FNLIJ e, progressivamente, foi entrando em atrito com ela acompanhando, em certa medida, a perda de prestígio de Odette Mott. A escritora procurou construir pontes com a FNLIJ e o IBBY em busca do “pequeno Nobel”, o maior prêmio da literatura para crianças e jovens, o Hans Christian Andersen. Essas tentativas, como mostra a pesquisadora, esbarraram em certos pré-requisitos para a submissão ao prêmio, pré-requisitos que em boa medida foram ignorados para Lygia Bojunga9, principal representante da “nova literatura”, que adquiriu seu prestígio paralelamente à ascensão da FNLIJ.
Outro aspecto bastante interessante do livro é o estudo da recepção crítica dos livros de Odette Mott acompanhando o estabelecimento da “nova crítica”. Um ponto-chave se dá na tentativa dessa crítica de se descolar de um caráter muito imediatamente pedagógico, ou de certo catecismo militante presente nos livros da escritora. O ponto máximo desse descolamento acontece em 1985, quando Fanny Abramovich, “nome profundamente associado à nova literatura” (p. 156), foi bastante dura com o livro que seria originalmente chamado “Garotas Clube” (posteriormente, Nosso clube) em um texto escrito para a Folha de S. Paulo. O artigo aponta esse catecismo da escritora e uma representação das personagens femininas que se tornava, no argumento da crítica, inadmissível naquele momento - essa representação era em boa medida normalizada nos primeiros anos da década de 1970 por pesquisadoras do feminismo no Brasil, como Lenice Bueno mostra10.
Essa mudança marca - muito mais do que o momento em que Odette perde, nesse novo contexto do campo, a maior parte do seu prestígio - a sedimentação de transformações nas representações de gênero nessas esferas de circulação do livro para jovens e crianças que perduram até hoje. Walter Benjamin (2007, p. 62), quando considera alguns livros para crianças de meados do século XIX,comenta surpreso que “o observador mais perspicaz encontra exatamente nas camadas inferiores da criação literária e artística - como nos livros infantis - aqueles elementos que ele procura em vão nos documentos reconhecidos da cultura”. O estudo de Lenice Bueno consegue, sem ter essa pretensão, mapear nessas esferas de circulação algumas transformações dos personagens femininos, e das representações de gênero, do final da década de 1960 até o final dos anos 1980.
Na terceira e última parte, a pesquisadora escolheu um pequeno, mas efetivo, corpus para testar esse realismo da escritora por meio, principalmente, de uma investigação do narrador e da compreensão de como Odette Mott se situa em relação às diferentes vertentes realistas que se estabeleceram no país. A análise elabora a forma como ela transfigura essas tradições em outro momento histórico e com outros propósitos. Como a própria pesquisadora enuncia, essa investigação das obras propriamente é uma contribuição ainda bastante recortada que precisará de um esforço coletivo para ganhar uma consistência mais efetiva.
A literatura para jovens, como é sabido, é um espaço desprestigiado dentro de um campo, ainda marginal em muitos aspectos, que privilegiou nas últimas décadas a literatura para crianças. Um estudo como o de Lenice Bueno mostra como pode ser interessante um olhar agudo e generoso para esses pontos quase cegos da constituição da nossa contemporaneidade. Ou, como ela mesma diz, “estudar nossa literatura destinada a crianças e jovens é também uma maneira de desvendar os meandros da realidade brasileira, essa realidade difícil de entender e de explicar” (p. 120).
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2
Entre outras, Ática, FTD, Ibep, Moderna.
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3
Nas décadas anteriores ela escreveu alguns livros para crianças.
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4
Odette Mott considera o que foi produzido antes como passadista, e se coloca como a renovação, que em alguma medida ela foi, nessa disputa de campo. O livro vai qualificar essa renovação.
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5
Para ficar em um rápido exemplo, a televisão ganhou espaço em relação ao rádio ao longo da década de 1960 e se tornou central. Existiu todo um contexto de transformação no funcionamento cultural, nos comportamentos, na demografia e em muitos outros aspectos. Entre muitos autores, Renato Ortiz, em A moderna tradição brasileira (1988), ilumina muitos aspectos dessa complexa transformação.
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6
A FNLIJ é, de fato, uma seção brasileira do IBBY.
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7
Os dados levantados pela pesquisadora mostram que esse perder ou ganhar é bastante relativo, já que Odette Mott foi uma das escritoras para jovens que mais vendeu no país no seu tempo de auge e um pouco depois. Mas o fato é que o gosto FNLIJ, com ares internacionais, se tornou hegemônico em toda uma reconfiguração do campo por meio do estabelecimento de prêmios, de uma “nova crítica”, de apoio aos “novos” autores, de uma ação contínua na imprensa, promovendo cursos, interferindo nos currículos universitários, dando consultorias, atuando em decisões governamentais etc.
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8
Não fiquei completamente convencido com esse argumento, mas ele é muito bem elaborado. O problema,acredito, é que ele é construído no contraste muito imediato com a FNLIJ, que, de fato, se institucionalizou em chave bem mais complexa, em uma rede internacional e “permanente”, enquanto a Celiju desapareceu. A dificuldade, não pequena, me parece, é compreender uma instituição como a FNLIJ que teve um papel decisivo na determinação do que é (e do que não é) uma boa literatura para crianças e jovens depois da segunda metade da década de 1970. Mas isso seria outra pesquisa.
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9
Lenice Bueno apresenta no detalhe como a FNLIJ contribuiu diretamente para as estratégias de consagração internacional de Lygia Bojunga até a conquista do Hans Christian Andersen em 1982.
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10
Em poucos anos, ainda na década de 1970, isso mudaria.
Referências
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
21 Jun 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
01 Mar 2024 -
Aceito
11 Mar 2024