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Budesonida inalatória em asma aguda - uma questão de tempo e espaço?
Emanuel Sarinho
Doutor. Professor adjunto. Coordenador do Centro de Pesquisas de Alergia e Imunologia em Pediatria, Hospital das Clínicas, Universidade Federal de Pernambuco
Endereço para correspondência Endereço para correspondência Emanuel Sarinho Av. Parnamirin, 278/12 CEP 52060-000 - Recife, PE Brazil E-mail: emanuelsarinho@uol.com.br
A terapia inalatória da asma surgiu com a síntese de produtos com máximo efeito tópico e mínima potência sistêmica. Esta característica apenas tornou-se possível com o desenvolvimento pela indústria dos agentes lipossolúveis de alta afinidade ao receptor e de rápida inativação hepática após absorção sistêmica, com redução do risco de efeitos colaterais.
Na asma aguda, co-existem bronco-espasmo, edema e hipersecreção, e nesse contexto, exacerbação do processo inflamatório pulmonar. De acordo com os vários consensos, entre eles o III Consenso Brasileiro no Manejo da Asma, os corticóides sistêmicos, na crise aguda, permitem maior recuperação funcional, reduzem as recaídas e devem ser iniciados precocemente na crise de asma1.
Revisão sistemática da Cochrane Library sobre o tratamento da crise asmática, obtida a partir de 12 estudos envolvendo 863 pacientes, demonstrou que o uso precoce de corticóide sistêmico resultou em redução significativa da taxa de internamento hospitalar, principalmente nos quadros mais graves, sendo verificado que a resposta ao corticóide por via oral foi particularmente efetiva em crianças2.
O mais importante efeito dos corticóides na asma parece ser a inativação de múltiplos genes inflamatórios, normalmente ativados nas vias aéreas desses pacientes. Contudo, ações biológicas importantes deste grupo de medicamentos na asma aguda são a inibição da síntese de citocinas Th2, como a IL-5, reduzindo, assim, a infiltração eosinofílica nas vias aéreas, a diminuição da exudação plasmática com a conseqüente secreção de muco e a redução de mediadores inflamatórios, como leucotrienos e prostaglandinas3.
Os esteróides inalados apresentam maior potência anti-asmática e poder antiinflamatório que os esteróides orais, podendo apresentar efeito precoce na crise, pois atuam diretamente nos pulmões. Assim sendo, tem surgido a seguinte questão de pesquisa: "Será que o esteróide inalado pode ser indicado na asma aguda?"4.
Nesse caminho, e escolhendo como pergunta: "Há diferença na eficácia da prednisona oral em relação à budesonida inalatória no tratamento da crise asmática?", Milani et al. planejaram um ensaio clínico intitulado "Budesonida inalatória em crianças com asma aguda", que é de grande relevância para a prática diária, pois mimetiza aquela recomendação de usar esteróide nos episódios agudos moderados quando existe resposta incompleta ou recaída de sintomas após a utilização de b2-agonista inalatório5.
O desenho de estudo com o duplo-placebo possibilita a existência de três grupos de comparação: a conduta a ser testada (budesonida inalatória), a conduta padrão (corticóide oral) e a ausência de tratamento com esteróide (grupo com duplo-placebo). Eticamente, poderia ser questionada a real necessidade deste último grupo, já que a prednisona oral encontra-se bem estabelecida na crise de asma, mas o fundamental é que os asmáticos graves foram excluídos. Contudo, metodologicamente, a presença do duplo-placebo torna a pesquisa mais elegante, ao rever de maneira indireta se o corticóide oral, tratamento padrão na asma aguda, foi efetivo nestes pacientes.
A escolha do tempo de sibilância, que parece não seguir uma distribuição normal, com duração maior que 6 horas como um dos critérios de inclusão na pesquisa, permitiu uma classificação confiável da asma. Uma maior precocidade poderia categorizar de forma estanque uma crise em franco estágio evolutivo. Por outro lado, talvez fosse importante a exclusão dos sibilantes com mais de 24 horas de evolução, pois sabe-se que além desse período de crise asmática há maior dificuldade de resposta terapêutica, em especial a uma simples dose de esteróide, o que poderia funcionar como fator confundidor, mas parece que esse fato ocorreu em poucos pacientes e, provavelmente, não compromete o estudo.
Importante ainda ressaltar que a operacionalização da pesquisa em questão foi refinada com inclusão dos pacientes apenas após uso de uma inalação com b2-agonista e exclusão daqueles mais graves. O uso de escore clínico e saturometria com resultados sob a forma de gráficos também confere importante validade científica ao trabalho.
Apesar do desfecho final da pesquisa demonstrar que a melhora do escore clínico de asma aguda foi semelhante nos três grupos (prednisona oral x budesonida inalada x placebo), fica a dúvida se esse fato indica um resultado negativo ou inconclusivo, uma vez que a amostra pode ter sido subestimada. Contudo, um dado interessante é que um entre os 15 pacientes com asma moderada do grupo placebo chegou a necessitar de internamento e foi excluído da análise, quando esse dado, conjuntamente com o retardo de mais de 24 horas para melhora significativa na saturometria dos pacientes desse grupo, pode indicar superioridade dos grupos de prednisona oral e de budesonida inalatória, o que estaria de acordo com a lógica biológica.
Em outro ângulo de visão, pode-se inferir que a dose única de budesonida é eficaz de forma semelhante ao tratamento convencional. E essa pode ter sido a opinião dos autores ao afirmar que "a budesonida inalatória não é superior ao tratamento com prednisona oral na crise de asma". A Budesonida é um corticosteróide não halogenado que pode ser usado em solução para nebulização, quando parece apresentar maior eficácia nas crises por melhor fixação ao receptor lipofílico intracelular que as formas sprays. Efeito antiinflamatório imediato foi sugerido pela redução de eosinófilos no escarro após uma única dose de 2,4 mg. Ainda tem sido demonstrado que, em crianças, a nebulização com 2 mg desta droga diminuiu a excreção de óxido nítrico e reduziu os sintomas de asma avaliados 6-12 horas após6. Contudo, revisão sistemática afirma não existir evidência científica suficiente que recomende o uso de esteróides inalados como eficazes no tratamento de urgência da crise de asma aguda7, mas, mesmo assim, vêm surgindo trabalhos, inclusive em crianças, demonstrando que o medicamento por via inalatória pode ser melhor que placebo8.
A saturometria, considerada o quinto sinal vital, é de extrema sensibilidade na avaliação da asma aguda para indicar necessidade de cuidados médicos, gravidade de crise e risco de óbito. Analisando-se a pesquisa sob esse prisma, o fato da melhora na saturação de oxigênio em relação ao valor basal já ter sido significativa após duas horas de tratamento no grupo da prednisona oral pode indicar superioridade terapêutica. Pode ser que esta melhor resposta da prednisona oral seja decorrente de dose elevada, mas isso parece não ser verdade, já que foi usado 1 mg/kg deste corticóide contra 2 mg de budesonida. Estudo clássico realizado por Toogood et al. em 1989, em pacientes com asma, verificou que a budesonida apresentou potência antiasmática 58 vezes maior que a prednisona e potência sistêmica apenas nove vezes inferior9. Assim sendo, o esperado seria que o corticóide inalado funcionasse melhor, já que deposita-se rapidamente no local de ação9.
Será então prednisona oral uma droga mágica? Afinal de contas, após passar por todo um processo de absorção intestinal, passagem hepática e distribuição tecidual até atuar em nível pulmonar, como explicar a melhora na saturometria em apenas 2 horas, enquanto a budesonida apresenta efeito retardado? Há três hipóteses explicativas:
- pode ser que a disponibilidade pulmonar da droga inalada na crise seja bem menor comparativamente à fornecida por via oral;
- existe a possibilidade de que a budesonida inalatória na asma aguda possa apresentar resposta imediata de menor amplitude pelo comprometimento das pequenas vias aéreas e pelo excesso de muco aprisionado;
- e ainda é possível que, na crise asmática aguda, uma ação sistêmica efetiva do corticóide oral seja necessária para uma pronta melhora clínica.
Talvez os corticóides sistêmicos dominem de imediato a reação inflamatória do ataque agudo de asma, enquanto os esteróides inalados sejam mais débeis para esse objetivo. Em pacientes com quadro de asma aguda após administração de corticóide oral, aparecem efeitos bioquímicos vantajosos, como redução dos níveis séricos de interleucina 5, do receptor da interleucina-2(CD25) e da proteína eosinofílica catiônica3.
Os estudos com corticóide inalado em exacerbação de asma apresentam resultados conflitantes, em decorrência de medicamentos e doses variadas, bem como de diferentes desenhos e de desfechos utilizados, o que impede uma adequada comparação. Abordagem interessante é a que sugere que a budesonida pode ser efetiva como adjunto da prednisona na asma aguda em lactentes10, mas como aumenta custos, precisa ter o real benefício bem melhor avaliado.
Finalizando, o manejo farmacológico da asma aguda apresenta inúmeros aspectos controversos. Contudo, de acordo com evidência científica atual, a prednisona oral é efetiva, sendo de baixo custo e de fácil administração, mas isto não é fixo nem dogmático, já que a ciência evolui no tempo e no espaço1,11.
REFERÊNCIAS
1. III Consenso Brasileiro no Manejo da Asma. J. Pneumol. 2002;28 Supl 1:1-28.
2. Rowe BH, Spooner C, Ducharme FM, Bretzlaff JA, Bota GW. Early emergency department treatment of acute asthma with systemic corticosteroids (Cochrane Review). In: The Cochrane Library, Issue 1, 2004. Chichester, UK: John Wiley & Sons Ltd.; 2004.
3. Sahid El-Radhi A, Hogg CL, Bungre JK, Bush A, Corrigan CJ. Effect of oral glucocorticoid treatment on serum inflammatory markers in acute asthma. Arch Dis Child. 2000;83:158-62.
4. De Blic J, Delacourt C, Le Bourgeois M, Mahut B, Ostinelli J, Caswell C, et al. Efficacy of nebulized budesonide in treatment of severe infantile asthma: a double-blind study. J Allergy Clin Immunol. 1996;98:14-20.
5. Milani GKM, Rosário Filho NA, Riedi CA, Figueiredo BC. Budesonida inalatória em crianças com asma aguda. J Pediatr (Rio J). 2004;80:106-12.
6. Tsai Y-G, Lee M-Y, Yang KD, Chu D-M, Yuh SY, Hung C-H. A single dose of nebulized budesonide decreases exhaled nitric oxide in children with acute asthma. J Pediatr. 2001;139:433-7.
7. Edmonds ML, Camargo CA Jr, Pollack CV Jr, Rowe BH. Early use of inhaled corticosteroids in the emergency department treatment of acute asthma (Cochrane Review). In: The Cochrane Library, Issue 1, 2004. Chichester, UK: John Wiley & Sons Ltd.; 2004.
8. Volovitz B, Nussinovitch M, Finkelstein Y, Harel L, Varsano I. Effectiveness of inhaled corticosteroids in controlling acute asthma exacerbations in children at home. Clin Pediatr (Phil). 2001;40:79-86.
9. Toogood JH, Baskerville J, Jennings B, Lefcoe NM, Johansson SA. Bioequivalent doses of budesonide and prednisone in moderate and severe asthma. J Allergy Clin Immunol. 1989;84 Pt 1:688-700.
10. Sung L, Osmond MH, Klassen TP. Randomized controlled trial of inhaled budesonide as an adjunct to oral prednisone in acute asthma. Acad Emerg Med. 1998;5:209-13.
11. Amantéa SL, Sanchez I, Piva JP, Garcia PCR. Controvérsias no manejo farmacológico da asma aguda infantil. J Pediatr (Rio J). 2002;78 Supl 2:151-60.
Endereço para correspondência
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
24 Jun 2004 -
Data do Fascículo
Abr 2004