Open-access Epidemiologia de parada cardíaca e de mortalidade perioperatória no Brasil: revisão sistemática

Resumo

Justificativa e objetivos:  As incidências de parada cardíaca (PC) e de mortalidade perioperatória no Brasil, um país em desenvolvimento, são mais elevadas em relação às dos países desenvolvidos. A hipótese desta revisão é que o conhecimento da epidemiologia de PC e de mortalidade perioperatória no Brasil possibilita sua comparação com a dos países desenvolvidos. A revisão sistemática teve como objetivo verificar, em estudos realizados no Brasil, a epidemiologia de PC e de mortalidade perioperatória.

Conteúdo:  Realizou-se estratégia de busca em diferentes bases de dados (PubMed, EMBASE, SciELO e LILACS) para a identificação de estudos observacionais que reportaram PC e/ou mortalidade perioperatória até 48 horas pós-operatório no Brasil. Os desfechos primários foram dados de epidemiologia de PC e de mortalidade perioperatória. Em 8 estudos nacionais, identificou- se maior ocorrência de PC e de mortalidade perioperatória no sexo masculino, em extremos de idade, em pacientes em pior estado físico segundo a American Society of Anesthesiologists (ASA), em cirurgias de emergência, em anestesia geral, e em cirurgias cardíaca, torácica, vascular, abdominal e neurológica. A doença/condição do paciente foi o principal fator desencadeante, tendo como causas principais a sepse e o trauma.

Conclusões:  Nos estudos nacionais, a epidemiologia dos eventos tanto de PC como de mortalidade perioperatória não apresenta diferenças importantes, e de maneira geral, é semelhante à de estudos de países desenvolvidos. Entretanto, a sepse, nos estudos nacionais, representa uma das principais causas de PC e de mortalidade perioperatória, diferenciando-se dos estudos de países desenvolvidos nos quais a sepse é causa secundária.

PALAVRAS-CHAVE Anestesia; Parada cardíaca; Mortalidade; Período perioperatório; Revisão sistemática

Abstract

Background and objectives:  The perioperative cardiac arrest (CA) and mortality rates in Brazil, a developing country, are higher than in developed countries. The hypothesis of this review was that knowledge of the epidemiology of perioperative CA and mortality in Brazil enables the comparison with developed countries. The systematic review aimed to verify, in studies conducted in Brazil, the epidemiology of perioperative CA and mortality.

Method and results:  A search strategy was carried out on different databases (PubMed, EMBASE, SciELO and LILACS) to identify observational studies that reported perioperative CA and/or mortality up to 48 hours postoperatively in Brazil. The primary outcomes were data on epidemiology of perioperative CA and mortality. In 8 Brazilian studies, there was a higher occurrence of perioperative CA and mortality in males; in extremes of age; in patients in worse physical status according to the American Society of Anesthesiologists (ASA); in emergency surgeries; in general anesthesia; and in cardiac, thoracic, vascular, abdominal and neurological surgeries. The patient's disease/condition was the main triggering factor, with sepsis and trauma as the main causes.

Conclusions:  The epidemiology of both perioperative CA and mortality events reported in Brazilian studies does not show important differences and, in general, is similar to studies in developed countries. However, sepsis represents one of the major causes of perioperative CA and mortality in Brazilian studies, contrasting with studies in developed countries in which sepsis is a secondary cause.

KEYWORDS Anesthesia; Cardiac arrest; Mortality; Perioperative period; Systematic review

Introdução

Entre as complicações do paciente cirúrgico, a Parada Cardíaca (PC) é um dos piores desfechos, pois pode determinar sequelas, perda de função e, no pior dos cenários, o óbito.

O Brasil é um país em desenvolvimento que, ao longo dos anos, tem encontrado grande dificuldade no oferecimento à sua população, de forma universal, de atendimento adequado e de qualidade em saúde. Revisão dos estudos desenvolvidos no Brasil concluiu que houve redução na incidência de PC perioperatória ao longo dos últimos 25 anos, acompanhando a tendência mundial.1

Os estudos nacionais têm mostrado que o pior estado físico dos pacientes prévio a cirurgia é um dos fatores mais importantes para a ocorrência de PC2,3 e de mortalidade2,4-7 perioperatória, sendo a sepse a principal causa de PC2 e de mortalidade2,7 perioperatória, enquanto estudos em país desenvolvido (Estados Unidos) verificaram que a sepse representa causa secundária desses eventos.8,9 Assim, o manejo pré-anestésico das comorbidades desempenha papel importante na minimização de complicações perioperatórias.

Considerando a grande diferença no atendimento pré-hospitalar e intra-hospitalar entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento e a maior incidência de PC e de mortalidade perioperatória nos países em desenvolvimento com relação à dos países desenvolvidos,10,11 a hipótese desta revisão é que o conhecimento da epidemiologia de PC e de mortalidade perioperatória no Brasil possibilite sua comparação com a dos países desenvolvidos.

A revisão sistemática teve como objetivo verificar, em estudos realizados no Brasil, a epidemiologia (fatores de risco, fatores desencadeantes e causas) de PC e de mortalidade perioperatória.

Método

O presente estudo não necessitou de aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa por se tratar de revisão sistemática da literatura.

Estratégia de busca e seleção de estudos

A revisão foi preparada de acordo com as instruções do EQUATOR e com o checklist metodológico para redação de trabalhos reportando revisões sistemáticas de estudos observacionais, denominado Meta-analysis Of Observational Studies in Epidemiology (MOOSE).12 As bases de dados foram pesquisadas utilizando estratégia de pesquisa abrangente para a identificação de estudos de PC e de mortalidade perioperatória, utilizando descritores obtidos no MeSH (MEDLINE), inclusive uma lista completa de sinônimos referente aos termos abordados no estudo: an(a)esthesia and cardiac arrest or mortality (anestesia e parada cardíaca ou mortalidade). A estratégia de busca foi adaptada para cada base de dados a fim de alcançar maior sensibilidade e identificação de estudos relevantes.

Os dados foram obtidos a partir das seguintes bases de dados: US National Library of Medicine (MEDLINE via PubMed), Excerpta Medica Database (EMBASE), Scientific Electronics Library on Line (SCIELO) e Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS) para a identificação de artigos que reportaram PC ou mortalidade perioperatória no Brasil. A data da última busca foi 18 de dezembro de 2018.

Três revisores (LGB, RS e ACM) fizeram a seleção inicial dos títulos e resumos dos estudos independentemente. Os estudos considerados relevantes foram obtidos na íntegra e revisados por dois revisores independentes (LGB e ACM). Divergências nos resultados foram resolvidas por discussão. Quando houve mais de um estudo publicado sobre o mesmo grupo de população, foram extraídos os dados do artigo mais recente e/ou completo.

Os critérios de inclusão dos artigos foram estudos observacionais que reportaram a epidemiologia de PC e/ou de mortalidade até 48 horas pós-operatórias no Brasil, em publicações completas. Foram excluídos os artigos com populações específicas (p.ex. crianças, idosos), cirurgias específicas (p.ex. cirurgia cardíaca), um único tipo de anestesia (p.ex. anestesia regional), um determinado tipo de estado físico (p.ex. American Society of Anesthesiologists [ASA] I) e relatos de casos.

Extração de dados e definição dos desfechos

Dois dos autores (LGB e ACM), independentemente, identificaram os estudos a serem incluídos na revisão de acordo com os critérios de inclusão previamente especificados. Formulários padrão foram utilizados para a extração de dados relevantes relativos à epidemiologia de PC ou de mortalidade perioperatória: fatores de risco (sexo, idade, classificação do estado físico dos pacientes de acordo com a classificação ASA, tipo de atendimento cirúrgico, especialidade cirúrgica e tipo de anestesia), fatores desencadeantes e suas causas (doença/condição do paciente, cirurgia ou anestesia), além de sobrevida após PC. Discrepâncias foram resolvidas depois de discussão com um terceiro revisor (JRCB). Após a definição dos estudos que seriam incluídos na revisão sistemática, foram extraídos os dados.

Os desfechos primários avaliados foram os dados de epidemiologia dos eventos de PC e de mortalidade perioperatória.

Resultados

Seleção dos estudos

Foram identificadas 14.132 citações nas bases de dados e 3 citações por meio de referências. Após a revisão de títulos e resumos, excluímos 5.387 estudos duplicados e 8.734 estudos por ausência de relevância. Identificaram-se 14 artigos potencialmente relevantes para avaliação mais detalhada. Destes, oito foram selecionados de acordo com os critérios de inclusão, sendo quatro estudos de PC perioperatória e oito estudos de mortalidade perioperatória (fig. 1). O primeiro estudo incluído foi publicado em 1986, e o mais recente, em 2018. A descrição dos estudos de PC e de mortalidade perioperatória incluídos na revisão é mostrada, respectivamente, nas tabelas 1 e 2.

Figura 1
Fluxograma para a seleção dos artigos. PC, Parada Cardíaca; *Alguns estudos foram utilizados em mais de uma categoria.

Tabela 1
Descrição dos estudos de parada cardíaca perioperatória
Tabela 2
Descrição dos estudos de mortalidade perioperatória

Fatores de risco de PC e de mortalidade perioperatória

Sexo

Estudo nacional mostrou não haver diferença significante da incidência de PC perioperatória quanto ao sexo em pacientes ≤ 17 anos; porém, houve incidência significante maior de PC perioperatória em pacientes do sexo masculino ≥ 18 anos em relação ao feminino; dois outros estudos também obtiveram maior proporção de PC perioperatória em pacientes do sexo masculino.3,13

Quanto à mortalidade perioperatória, os estudos mostraram maior proporção de eventos no sexo masculino,3,4,13,14 mas no único estudo em que foi realizada análise estatística, não se encontrou diferença significante da incidência entre os sexos.5

Idade

A incidência de PC e de mortalidade perioperatória foi significantemente maior nos extremos de idade, em relação ao adulto jovem (18-35 anos), nas seguintes proporções: neonatos (0-30 dias), 9,7 e 9,1 vezes, respectivamente; crianças de 31 dias a < 1 ano, 3 e 9,3 vezes, respectivamente; e idosos ≥ 65 anos, 4 e 5,9 vezes, respectivamente.2,5

Classificação do estado físico

Os pacientes em piores estados físicos (ASA III-V) apresentaram maior incidência de PC2,3 e de mortalidade4-7 perioperatória comparados aos de ASA I-II. Estudos mostraram incidência 360 vezes maior de PC2 e 2.296 vezes maior de mortalidade5 perioperatória em pacientes com estado físico ASA III-V em relação aos de ASA I-II.

Tipo de atendimento

Os estudos nacionais, de forma unânime, verificaram maior incidência de PC2,14 e de mortalidade4-7 perioperatória durante cirurgias de emergência em comparação com cirurgias de rotina ou de urgência. Estudos mostraram incidências de PC2 e de mortalidade5 perioperatória, em cirurgias de emergência, 11 e 19 vezes mais elevadas, respectivamente, se comparadas àquelas em cirurgia de rotina.

Especialidade cirúrgica

Os estudos nacionais mostraram maior ocorrência de PC2,14 e de mortalidade perioperatória4-6 em cirurgia cardíaca, seguida por cirurgias vascular, torácica, abdominal, neurológica e ortopédica.

Tipo de anestesia

Os artigos relataram maior ocorrência de PC2,3 e de mortalidade4,5,7 perioperatória em procedimentos cirúrgicos realizados com anestesia geral em relação ao bloqueio anestésico do neuroeixo, em proporções 82 e 195 vezes maiores, respectivamente.

Fatores desencadeantes de PC e de mortalidade perioperatória

Na década de 1980, o primeiro estudo nacional de incidência de PC perioperatória mostrou que a cirurgia foi o fator desencadeante principal (49,3%), seguido da anestesia (36,1%) e, por último, da doença/condição do paciente (14,1%), sendo que em uma PC (0,5%) não foi possível determinar o fator desencadeante; quanto à mortalidade, a cirurgia foi o fator principal (77,7%), agora seguido pela doença/condição do paciente (13,2%) e, por último, da anestesia (9,1%).13

Estudos nacionais mais recentes mostraram que as incidências de PC2,3 e de mortalidade2,3,5,7 perioperatória foram menores por fator anestésico, enquanto a doença/condição do paciente foi o principal fator, seguido da cirurgia tanto para PC2,3 como para mortalidade2,3,5 perioperatória. Assim, um estudo2 verificou proporções respectivas de PC e de mortalidade perioperatória por fator doença/condição do paciente de 66% e 68%, por fator cirúrgico de 25% e 27%, e por fator anestésico de 9% e 5%. Apenas em um estudo nacional não houve mortalidade por fator anestésico.5

Causas de PC e de mortalidade perioperatória

Fatores doença/condição do paciente e/ou cirurgia

As maiores causas de PC6 e de mortalidade2,7 perioperatória pelos fatores doença/condição do paciente e/ou cirurgia foram: sepse, trauma, hemorragia em cirurgias associadas com a doença primária (câncer), cirurgia cardíaca e ruptura de aneurisma aórtico. A proporção de sepse em relação às outras causas de PC2 e de mortalidade7 perioperatória foram, respectivamente, de 25% e 35%, enquanto a do trauma foi de 18,4% e de 24%.2

Fator anestésico

Na PC por fator anestésico, a medicação foi responsabilizada como causa principal, seguida pelas complicações respiratórias e de vias aéreas no primeiro estudo nacional realizado na década de 1980.13 Nos estudos nacionais mais recentes, as complicações respiratórias e de vias aéreas tornaram-se a principal causa de PC por fator anestésico, seguidas pelas complicações cardiovasculares.2,3

Em relação à mortalidade, um estudo mostrou como causa principal as complicações respiratórias e de vias aéreas,5 enquanto outro mostrou como causa principal as complicações cardiovasculares.7

Entre os principais problemas pulmonares e de vias aéreas, destacaram-se a ocorrência de hipoxemia por perda da via aérea, intubação difícil, obstrução do tubo orotraqueal, aspiração pulmonar e complicações associadas à introdução de tubos de duplo lúmen; em relação às complicações cardiovasculares, foram representadas principalmente por overdose de agentes indutores, bloqueio simpático alto em anestesias do neuroeixo, bradicardia, disritmias cardíacas e choque anafilático.2,5,7

Sobrevida de PC perioperatória

Estudos nacionais mostraram proporções de retorno espontâneo da circulação, após a PC perioperatória, de 32,6% a 69%.2,3,13,14 Um estudo mostrou sobrevida após PC de 69% no intraoperatório, 38% até 24 horas de pós-operatório e 25% até 30 dias de pós-operatório, sendo que 46% dos pacientes sobreviventes (25%) apresentaram escala de Glasgow ≥ 14.14 Neste mesmo estudo, os autores verificaram relação significante entre o pior estado físico (ASA IV-V), no qual não houve sobrevida, e o melhor estado físico (ASA I-III), no qual houve sobrevida de 40% dos pacientes até 30 dias de pós-operatório.

Discussão

Trata-se da primeira revisão sistemática dos estudos nacionais relacionados a epidemiologia da PC e da mortalidade no período perioperatório. Os resultados mostraram maior ocorrência de PC e de mortalidade perioperatória em: sexo masculino, extremos de idade, pacientes em pior estado físico (ASA III-V), cirurgia de emergência, anestesia geral; e cirurgias cardíaca, torácica, vascular, abdominal e neurológica. A doença/condição do paciente foi o principal fator desencadeante de PC e de mortalidade perioperatória, tendo como causas principais a sepse e o trauma.

Esses resultados não são diferentes dos obtidos na literatura internacional. O homem, com relação à mulher, é mais predisposto a trauma, violência15 e doenças vasculares;2 consequentemente, estudos de países em desenvolvimento16,17 e de países desenvolvidos18-23 também relataram maior ocorrência de PC17-20,22 e de mortalidade16,21,23 perioperatória no sexo masculino.

De maneira similar aos resultados nacionais, estudos recentes realizados em país desenvolvido (Estados Unidos) mostraram incidência significante maior de PC19,22 e de mortalidade22 perioperatória em crianças abaixo de um ano e em idosos ≥ 65 anos. Assim, os extremos de idade permanecem como as faixas etárias de maior risco para eventos de PC e de mortalidade perioperatória e devem merecer maior atenção e cuidados do anestesiologista. A imaturidade, doenças congênitas cardíacas e neurológicas e outras alterações congênitas em crianças, bem como o envelhecimento com as doenças associadas, influenciaram no maior risco em relação ao adulto jovem.2,5,24-27

Estudo realizado em país desenvolvido mostrou maior incidência de PC e de mortalidade perioperatória em pacientes de estado físico ASA III-V, de 38 e de 374 vezes, respectivamente, em relação aos pacientes de estado físico ASA I-II.22 Em estudos nacionais, as diferenças das incidências de PC2 e de mortalidade2,5 perioperatória em pacientes de estado físico ASA III-V em relação aos de ASA I-II foram 61 e 2295 vezes maiores, respectivamente. Estudo nacional evidenciou que muitos pacientes idosos chegaram à sala de operação sem otimização de suas comorbidades, aumentando a possibilidade de complicações anestésico-cirúrgicas.27

Maior risco de eventos críticos, como a PC e o óbito na cirurgia de emergência, em relação à cirurgia de rotina, foi evidenciado em estudos nacionais2,4-7,14 e internacionais.18,19,23 Na de emergência, a impossibilidade de otimização ideal das condições fisiopatológicas dos pacientes aumenta a ocorrência de instabilidade hemodinâmica, complicações cirúrgicas, como sangramentos profusos, infecções e sepse com disfunção de múltiplos órgãos além de fenômenos tromboembólicos.17

Os estudos nacionais2-5,7 e de países desenvolvidos, como Alemanha19 e Estados Unidos,22,23 relataram maior incidência de PC e de mortalidade perioperatória durante a anestesia geral em relação ao bloqueio anestésico do neuroeixo. A adequação da técnica anestésica ao estado físico, às comorbidades e ao tipo de cirurgia propiciam condições para que a anestesia geral seja a técnica de escolha para os pacientes em estado crítico e para cirurgias de maior risco, como cardíaca, torácica e neurocirurgia. Adicionalmente, a introdução de novos anestésicos locais com menor toxicidade cardíaca e do sistema nervoso central, em conjunção com a introdução da ultrassonografia na anestesiologia, possibilitaram a realização de bloqueios anestésicos com maior precisão, com menor possibilidade de falhas de bloqueio e de toxicidade sistêmica.28

Em alguns tipos de cirurgia, como torácica, neurológica, vascular, mas principalmente na cardíaca, os autores nacionais2,4,5 e internacionais29,30 evidenciaram maior incidência de PC e de mortalidade perioperatória.

O trauma foi relatado como importante causa de PC e de mortalidade perioperatória, tanto em estudos nacionais2,5,14,31 como de outros países em desenvolvimento,32 e também em países desenvolvidos.8,9 Atualmente, em nosso país, a mortalidade em decorrência do trauma ocupa a terceira posição como causa de óbito, menor apenas do que aquelas por doenças cardiovasculares e pelo câncer; nos grupos etários de 1 a 49 anos, entretanto, o trauma por causas externas representa a principal causa, principalmente no homem jovem.33 No Brasil, as principais causas de PC perioperatória no trauma foram os veículos motorizados (62,7%) e a violência (29,4%).15

A proporção elevada de sepse em relação às outras causas de PC,2 de 25%, e de mortalidade perioperatória,7 de 35%, nos estudos nacionais é maior do que a de outros países em desenvolvimento16 (13,6%) e contrasta com um estudo realizado nos Estados Unidos8 que demonstrou que esse fator causal representou apenas 4,9% e 7,1% dos casos de PC e de mortalidade perioperatória, respectivamente. Deve-se destacar que o Brasil tem uma das mais altas taxas mundiais de mortalidade na sepse.34 O comportamento diferenciado das causas de PC e de mortalidade perioperatória entre países em desenvolvimento e desenvolvidos demonstra a grande diferença existente em relação ao atendimento à saúde nos diferentes países, a começar pelo precário atendimento primário e secundário que se estende ao atendimento terciário dos pacientes nos países em desenvolvimento, como o Brasil, associado ao número insuficiente de leitos - tanto hospitalares como em unidades de recuperação anestésica e de terapia intensiva - contribuindo para a manutenção de elevada incidência de PC e de mortalidade perioperatória.10,11,35,36

Diferentemente dos estudos nacionais,2,3 um estudo recente originário de país desenvolvido (Alemanha) demonstrou que as complicações cardiovasculares superaram as complicações pulmonares e de vias aéreas como as causas mais importantes de eventos de PC por fator anestésico.19

Estudos mais recentes de países desenvolvidos obtiveram sobrevida após PC perioperatória em proporções similares às obtidas nos estudos nacionais, de 42% a 62%.19,22,37,38

A PC perioperatória tem características distintas da PC em outros setores hospitalares por ser usualmente presenciada pela equipe médica e, muitas vezes, antecipada devido os fatores causais serem, na maioria das vezes, já conhecidos.39 Adicionalmente, os pacientes estão monitorizados, com acesso venoso, e o equipamento de ressuscitação é rapidamente disponível. Esses fatores fazem com que a ressuscitação possa ocorrer rapidamente, focada e com possibilidades de reversão da PC.

Deve-se destacar que nos estudos nacionais existem algumas importantes limitações. Em relação aos eventos de PC e de mortalidade perioperatória, como ainda não há definição objetiva do período de tempo que deve ser considerado, alguns estudos nacionais consideraram apenas os eventos que ocorreram no centro cirúrgico (sala de operação ou salas de operação e de recuperação pós-anestésica),2,3,5,13,14 e outros consideraram o período no centro cirúrgico em conjunto com o período pós-operatório, variando desde as primeiras 24 horas4,6 ou até 48 horas de pós-operatório.7 Considerando que a PC e o óbito são eventos muito raros no perioperatório, o número de pacientes cirúrgicos incluídos nos estudos torna-se muito importante para melhores análises. O número de pacientes incluídos nos estudos nacionais é relativamente baixo, sempre com menos de 100 mil pacientes, enquanto em muitos estudos de países desenvolvidos esse número ultrapassa 1 milhão de pacientes.22,40,41 Os estudos nacionais foram realizados apenas em instituições universitárias públicas de atendimento terciário, não existindo ainda um estudo multicêntrico. Outra limitação é que alguns estudos excluíram certos tipos de cirurgia que, geralmente, têm elevada incidência de eventos críticos, como a cirurgia cardíaca.6,13,14 Assim, são necessários mais trabalhos para validar os resultados desta revisão e para seguimento das eventuais mudanças na epidemiologia de PC e de mortalidade perioperatória no paciente no Brasil.

Conclusão

Nos estudos nacionais, a epidemiologia dos eventos tanto de PC como de mortalidade perioperatória não apresenta diferenças importantes e, de maneira geral, é semelhante à de estudos de países desenvolvidos. Os principais fatores de risco para a ocorrência de eventos de PC e de mortalidade foram: neonatos, crianças abaixo de um ano de idade, idosos, indivíduos do sexo masculino, estado físico ASA ≥ III, cirurgia de emergência e anestesia geral em cirurgias cardíaca, torácica, vascular, abdominal e neurológica. A condição do paciente é o principal fator desencadeante seguido da cirurgia e, por último, da anestesia para a ocorrência de PC e de mortalidade perioperatória. A sepse, nos estudos nacionais, representa uma das principais causas de PC e de mortalidade perioperatória, diferenciando-se das causas dos estudos de países desenvolvidos.

Agradecimentos

Rafael Sanchez e Mariana Pacchioni receberam bolsa de iniciação científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq: 125054/2016-5 e 148523/2018-8, respectivamente).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    Mar-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    12 Jul 2019
  • Aceito
    8 Fev 2020
  • Publicado
    28 Abr 2020
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