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Novo Coronavírus: (re)pensando o processo de cuidado na Atenção Primária à Saúde e a Enfermagem

RESUMO

Objetivo:

refletir sobre desafios e potências do processo de cuidado de enfermagem na Atenção Primária à Saúde diante do Novo Coronavírus, COVID-19, no contexto brasileiro.

Método:

estudo reflexivo, fundamentado na formulação discursiva no contexto da COVID-19 na Atenção Primária à Saúde, com base em fundamentos teóricos e efeitos práticos da política neoliberal, do processo de cuidado e da Enfermagem.

Resultados e Discussão:

a COVID-19, no Brasil, tem imposto os desafios do fortalecimento da atenção primária em face à política neoliberal, mas apresenta como potência o diálogo com as comunidades e a (re)criação do processo de cuidado de enfermagem por meio das redes colaborativas solidárias.

Considerações finais:

refletir sobre o processo de cuidado de enfermagem na atenção primária restabelece a força presente na cooperação entre equipes de saúde e redes solidárias comunitárias para mudar situações sociais e de saúde, a despeito do desafio imposto pelo subfinanciamento agravado pelo neoliberalismo.

Descritores:
Coronavírus; Atenção Primária à Saúde; Cuidados de Enfermagem; Enfermagem; Pandemias

ABSTRACT

Objective:

to reflect on the challenges and power of the nursing care process in Primary Health Care in the face of the New Coronavirus, COVID-19, in the Brazilian scenario.

Method:

reflective study, based on the discursive formulation in the context of COVID-19 in Primary Health Care, based on theoretical foundations and practical effects of neoliberal policy, the care process, and Nursing.

Results:

in Brazil, COVID-19, has caused the need for challenges for strengthening primary care in the face of neoliberal policy, but it presents the potential of dialogue with communities and the (re)creation of the nursing care process through solidary collaborative networks.

Final considerations:

reflecting on the nursing care process in primary care restores the strength present in the cooperation between health teams and community solidarity networks to change social and health circumstances, despite the challenge imposed by underfunding aggravated by neoliberalism.

Descriptors:
Coronavirus; Primary Health Care; Nursing Care; Nursing; Pandemics

RESUMEN

Objetivo:

Hacer una reflexión sobre los desafíos y potencias del proceso de cuidado de Enfermería en la Atención Primaria de Salud frente al nuevo Coronavirus, COVID-19, en el escenario brasileño.

Método:

Estudio reflexivo, fundamentado en la formulación discursiva de la COVID-19 en la Atención Primaria de Salud, con base en fundamentos teóricos y efectos prácticos de la política neoliberal sobre el proceso de cuidado de Enfermería.

Resultados:

La COVID-19 en Brasil ha impuesto desafíos para la Atención Primaria en razón de la política neoliberal, pero trae como potencia un mayor diálogo con las comunidades y la (re)creación del proceso de cuidado de Enfermería, a través de redes colaborativas solidarias.

Consideraciones Finales:

Esta reflexión fortalece la cooperación entre equipos de salud y redes solidarias comunitarias, en la búsqueda de mejorías en lo social y en la salud, ante los desafíos impuestos por la política neoliberal.

Descriptores:
Coronavirus; Atención Primaria de Salud; Cuidados de Enfermería; Enfermería; Pandemias

INTRODUÇÃO

“Eu sou aquele navio, num mar sem rumo e sem dono; Tenho a miragem do porto, pra reconfortar meu sono; E flutuar sobre as águas da maré do abandono ...” Miragem do Porto, Lenine.

As estreitas relações entre globalização e saúde chamam a atenção de forma crescente no contexto mundial e têm vindo acompanhadas de novos termos, novos conceitos e novos problemas sanitários que exigem relevância política, cooperação internacional e governança global e local. Para Fidder citado por Almeida(11 Almeida C. Saúde, política externa e cooperação Sul-Sul. In: BUSS PM. (org) Diplomacia em saúde e saúde global: perspectivas latino-americanas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017. 654p.), no entanto,

[...] na maior parte do século XX, a saúde foi uma questão marginal e negligenciada pelos decisores na área de política externa. Na última década do século, porém, o tema retorna às agendas e estratégias internacionais dos países desenvolvidos. No nível do discurso, as intenções são louváveis, mas na prática o esforço é complexo, pleno de ambiguidades e incertezas.

Nesse contexto, o acometimento da pandemia da COVID-19 coloca a sociedade frente a um espelho onde se refletem as fragilidades do mundo global, que até então parecia imune a essas situações em virtude de suas conquistas tecnológicas, velocidade para reagir perante qualquer circunstância e rápida resolutividade em razão da volatilidade financeira e dos mercados em praticamente todas as escalas territoriais.

Atualmente, muito mais do que em décadas anteriores, são palpáveis as fragilidades da vida global. Eventos têm dimensão loco-global, o que significa que situações outrora vivenciadas em determinado espaço-tempo, agora, com as conexões estabelecidas por meios de transporte e de comunicação tecnológicas, geram efeitos concretos e/ou simbólicos em quase todos os lugares e tempos. Nesse sentido, a COVID-19 leva os sistemas de saúde a experienciarem um tempo novo e não previsto no processo de cuidado cotidiano, com a exigência da criação de uma nova rotina que atenda às necessidades do momento, mas sem perder de vista as barreiras impostas pelo capitalismo, que reduz a concepção de saúde e prioriza a economia em detrimento dos sujeitos.

Assim, novas aprendizagens estão em curso. Entretanto, a capacidade de contágio do vírus parece ser superior à nossa própria capacidade de enfrentá-lo, e entende-se, então, que não será o mercado, nem a ideologia neoliberal, quem conseguirá superar essa situação, e sim a possibilidade de reflexão e atuação de forma solidária sobre a (re)estruturação de um novo modelo de sociedade, mais sustentável e justa. Neste novo modelo, a saúde, em seu sentido mais amplo, precisa ser o principal elemento de acumulação do capital social.

No Brasil, a política econômica neoliberal tem levado à agudização do subfinanciamento histórico da Seguridade Social, cujo orçamento nunca se materializou e, consequentemente, da política pública de saúde, expressa concretamente no Sistema Único de Saúde (SUS)(22 Giovanella L, Mendoza-Ruiz A, Pilar ACA, Rosa MC, Martins GB, Santos IS, et al. Universal health system and universal health coverage: assumptions and strategies. Cien Saude Colet. 2018;23(6):1763-76. doi: 10.1590/1413-81232018236.05562018
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). Hoje, o atendimento às pessoas com sintomas da COVID-19 se mistura às ações voltadas para o cuidado longitudinal aos sujeitos com condições crônicas não transmissíveis e transmissíveis; às condições agudas; e às estratégias de promoção de saúde e de prevenção de doenças e agravos(33 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS). Manejo clínico do coronavírus (COVID-19) na Atenção Primária à Saúde. Versão 9[Internet]. Brasília -DF. Abril de 2020[cited 2020 Jun 4];1-41. Available from: http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/documentos/20200504_ProtocoloManejo_ver09.pdf
http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab...
). Este cuidado tem como protagonistas as Equipes de Saúde da Família (ESF) e as equipes que atuam na Atenção Primária, capazes de agir nos mais diversos territórios, contextos e vulnerabilidades.

Somando-se o histórico de intenso sucateamento à chegada da pandemia ao Brasil, nota-se uma significativa ampliação dos diferentes obstáculos enfrentados pelas ESF no cuidado aos sujeitos. Entretanto, por constituírem atributos fundamentais como o trabalho em equipe, a interdisciplinaridade, a integralidade, a orientação familiar e comunitária e a competência cultural viabiliza a reinvenção diária na atenção à saúde e nas formas de criar e recriar vínculos com os coletivos, o que possibilita a efetivação prática, de forma singular, do processo de cuidado(44 Giovanella L, Franco CM, Alemida PF. National Primary Health Care Policy: where are we headed to?. Cien Saude Colet. 2020; 25(4):1475-1481. doi: 10.1590/1413-81232020254.01842020
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).

É com base nesse cenário de incertezas presente na realidade da saúde brasileira que os desafios e a potência do processo de cuidado de enfermagem devem ser refletidos e legitimados quanto à sua inserção em um sistema sanitário complexo. Trata-se de um olhar para a Atenção Primária à Saúde (APS), a qual é compreendida como a principal porta de entrada da Rede de Atenção à Saúde no Brasil, primeiro contato dos usuários com o SUS e coordenadora do cuidado também para o enfrentamento da COVID-19.

Essa reflexão teve início com as seguintes questões: como a APS poderá enfrentar os desafios originados pelo Novo Coronavírus? Como esse enfrentamento impactará o processo de cuidado de enfermagem na APS?

OBJETIVO

Refletir sobre os desafios e a potência do processo de cuidado de enfermagem na Atenção Primária à Saúde diante do Novo Coronavírus, COVID-19, no contexto brasileiro.

MÉTODOS

Trata-se de estudo reflexivo, fundamentado na formulação discursiva no contexto da COVID-19 na APS, com base em fundamentos teóricos e efeitos práticos da política neoliberal, do processo de cuidado e da Enfermagem.

O texto está organizado nas seguintes seções: Atenção Primária e os desafios impostos pela Política Neoliberal no cenário da COVID-19: perspectivas teóricas e práticas; e (Re)criando o processo de cuidado em saúde pela Enfermagem na APS: as redes colaborativas comunitárias e a solidariedade Assim, a partir da pandemia do Novo Coronavírus e da centralidade da APS na Rede de Atenção à Saúde brasileira, abordou-se a temática no panorama da política neoliberal e dos desafios e potencialidades do processo de cuidado de enfermagem em face ao enfrentamento da COVID-19 associado às demais ações de saúde previstas para este campo de atenção.

A construção desta reflexão partiu da vivência prática e do diálogo entre enfermeiros atuantes no campo da APS e docentes de uma universidade federal, seguida de levantamento bibliográfico, seleção de publicações relacionadas ao tema e associação das evidências científicas com a COVID-19.

Destaca-se que o processo de cuidado se refere, nesta reflexão, à ação de vivenciar os contextos sociais e produzir cuidados voltados ao sujeito, família e comunidade, processo esse que é dinâmico e político, com atividades estruturadas de forma interprofissional e em redes vivas de cuidados. Diante deste contexto de pandemia, buscou-se associar os fundamentos teóricos às práticas que vêm sendo realizadas na APS, a partir da ênfase no resgate da vida por meio da criação e recriação de vínculos e do cuidar com os sujeitos, e não para os sujeitos.

ATENÇÃO PRIMÁRIA E OS DESAFIOS IMPOSTOS PELA POLÍTICA NEOLIBERAL NO CENÁRIO DA COVID-19: PERSPECTIVAS TEÓRICAS E PRÁTICAS

O Brasil, embora disponha do SUS, universal e financiado por impostos e contribuições sociais, se depara com um momento desafiador(22 Giovanella L, Mendoza-Ruiz A, Pilar ACA, Rosa MC, Martins GB, Santos IS, et al. Universal health system and universal health coverage: assumptions and strategies. Cien Saude Colet. 2018;23(6):1763-76. doi: 10.1590/1413-81232018236.05562018
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). Os agentes que produzem saberes e práticas em Saúde Coletiva estão imersos em uma política neoliberal, com disputa acentuada da relação público-privada, em que há distribuição desigual do arsenal tecnológico duro e, também, redução dos efeitos virtuosos da APS e, consequentemente, da Estratégia de Saúde da Família no acompanhamento longitudinal e acesso da população.

Ao chegar em um território de dimensões continentais e com gritantes desigualdades sociais que se expressam em perfis epidemiológicos e socioeconômicos que perpetuam altas incidências e prevalências de doenças próprias de condições precárias de vida, a COVID-19 ainda encontra, no Brasil, epidemias locais e regionais. Em nosso país, convivem com a endemia da Tuberculose doenças como a Dengue, a infecção pelos Zika Vírus e Chikungunya Vírus e o Sarampo, o que caracteriza um cenário bastante preocupante.

Partindo da saúde da família como a principal estratégia de reorganização da APS no Brasil, expressa na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) de 2006, destacam-se as práticas de planejamento e implementação de ações nos territórios no cuidado à saúde na perspectiva de garantir a atenção integral, o acesso à população e a compreensão das reais necessidades do território. São ações fundamentais, pois contribuem para a modificação dos determinantes sociais da saúde(44 Giovanella L, Franco CM, Alemida PF. National Primary Health Care Policy: where are we headed to?. Cien Saude Colet. 2020; 25(4):1475-1481. doi: 10.1590/1413-81232020254.01842020
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).

Neste contexto, a Epidemiologia deve ser entendida como uma importante ferramenta de aproximação à realidade de estudo, embora com limitações para garantir que o processo de cuidado, de fato, responda às necessidades singulares dos sujeitos no território. Essas limitações decorrem, sobretudo, de aspectos políticos e interesses econômicos, próprios da racionalidade neoliberal, que perpassam a vida cotidiana.

De acordo com Breilh(55 Breilh J. Epidemiology of the 21st century and cyberspace: rethinking power and the social determination of health. Rev Bras Epidemiol. 2015;18(4):927-82. doi: 10.1590/1980-5497201500040025.
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),

[...] a epidemiologia crítica rompe com o modelo linear da epidemiologia empírica e com o modelo biomédico e funcionalista que aprisiona o pensamento da velha saúde pública. Para fazê-lo, tem que recuperar a estreita relação existente entre os efeitos na saúde de distintas coletividades humanas e os processos gerados em torno de uma reprodução social subordinada à acumulação de capital [...] que opera destrutivamente sobre a natureza, desmantela a soberania dos povos, desmonta a relação solidária e gera um consumismo frenético.

Por isso, essa pandemia, embora devastadora, nos faz refletir não só em relação aos aspectos epidemiológicos como nos permite visualizar coletivos invisíveis e que vivem seu dia a dia submersos na vulnerabilidade em que o próprio Estado os coloca, produto da gritante desigualdade e injustiça social estruturada na sociedade brasileira. E isso nos faz fugir de padronizações no enfrentamento da COVID-19, na medida em que a eficácia das medidas a serem tomadas é diretamente proporcional à singularização das características e prioridades que emergem dos territórios.

Assim, com base nas díspares realidades locais e situações de saúde, diferentes formas de organização do cuidado nas unidades de atenção primária coexistem e, portanto, distintos modos de articular as práticas de cuidado nessa pandemia são esperados. As inovações no processo de cuidado das equipes constituem a potência da Estratégia Saúde da Família, porque já atuam fundamentadas tanto nas tecnologias leves, entendidas como tecnologias de relações, tais como acolhimento, vínculo e autonomização do sujeito, quanto nas tecnologias leve-duras, compreendidas como os saberes estruturados, a exemplo da Clínica Ampliada, da epidemiologia crítica e da integralidade do cuidado(66 Cecílio LCO. Uma sistematização e discussão de tecnologia leve de planejamento estratégico aplicada ao setor governamental. In: Merhy EE; Onocko R (Org.). Agir em saúde: um desafio para o público. Sao Paulo: HUCITEC, p.151-167, 1997.).

Tais tecnologias podem ser uma ferramenta na vigilância em saúde e no seguimento longitudinal, necessárias para o cuidado de sujeitos com condições crônicas e, também, de pessoas acometidas pela COVID-19 durante e após a fase de maior transmissão da doença em nosso país(33 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS). Manejo clínico do coronavírus (COVID-19) na Atenção Primária à Saúde. Versão 9[Internet]. Brasília -DF. Abril de 2020[cited 2020 Jun 4];1-41. Available from: http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/documentos/20200504_ProtocoloManejo_ver09.pdf
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). Entretanto, a Política Neoliberal limita o investimento nas tecnologias leves e leve-duras, uma vez que prioriza equipamentos técnicos para diagnósticos, presentes prioritariamente no ambiente hospitalar, impondo desafios suplementares ao processo de cuidado na APS(22 Giovanella L, Mendoza-Ruiz A, Pilar ACA, Rosa MC, Martins GB, Santos IS, et al. Universal health system and universal health coverage: assumptions and strategies. Cien Saude Colet. 2018;23(6):1763-76. doi: 10.1590/1413-81232018236.05562018
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).

Nas últimas décadas, as políticas neoliberais se intensificaram e mudanças dramáticas para a APS foram implementadas, validadas pela PNAB de 2017(22 Giovanella L, Mendoza-Ruiz A, Pilar ACA, Rosa MC, Martins GB, Santos IS, et al. Universal health system and universal health coverage: assumptions and strategies. Cien Saude Colet. 2018;23(6):1763-76. doi: 10.1590/1413-81232018236.05562018
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,44 Giovanella L, Franco CM, Alemida PF. National Primary Health Care Policy: where are we headed to?. Cien Saude Colet. 2020; 25(4):1475-1481. doi: 10.1590/1413-81232020254.01842020
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). A insuficiência orçamentária pública, acrescida da crise instituída pelo novo coronavírus, evidenciam a fragilidade da APS que, por sua atribuição como ordenadora do SUS e resolutividade nos processos de cuidado nos territórios, afeta, consequentemente, toda a Rede de Atenção à Saúde.

Além disso, os desafios impostos pela política neoliberal se traduzem pela priorização dos atendimentos às demandas agudas, em detrimento do cuidado longitudinal com abordagem comunitária e familiar. Especificamente para a Enfermagem, a sobreposição de ações de cuidado se agrava diante das condições de precariedade estruturais, materiais e de dimensionamento de profissionais aquém do número ideal(44 Giovanella L, Franco CM, Alemida PF. National Primary Health Care Policy: where are we headed to?. Cien Saude Colet. 2020; 25(4):1475-1481. doi: 10.1590/1413-81232020254.01842020
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,77 Biff D, Pires DEP, Forte ECN, Trindade LL, Machado RR, Amadigi FR, Scherer MDA, Soratto J. Nurses' workload: lights and shadows in the Family Health Strategy. Cien Saude Colet. 2020;25(1):147-58, 2020. doi: 10.1590/1413-81232020251.28622019
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). Assim, na perspectiva prática, a frágil e crítica situação que a APS atravessa, em especial pelo neoliberalismo, impõe imenso desafio para a efetivação dos processos relacionados à continuidade do cuidado e resolutividade das equipes(22 Giovanella L, Mendoza-Ruiz A, Pilar ACA, Rosa MC, Martins GB, Santos IS, et al. Universal health system and universal health coverage: assumptions and strategies. Cien Saude Colet. 2018;23(6):1763-76. doi: 10.1590/1413-81232018236.05562018
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) e, hoje, ao enfrentamento da pandemia em nível comunitário e familiar.

Precisamente no ano de 2020, definido pela OMS como o ‘Ano Internacional da Enfermagem’, essa categoria profissional destaca-se pelo quantitativo e abrangência de pessoal que representa, sobretudo no SUS. A Enfermagem, distribuída em praticamente todas as unidades de saúde, em diferentes pontos de cuidado (fixos) e organizada em rede (fluxos), responsabiliza-se por ações baseadas em evidências científicas assumidas nas várias dimensões da saúde(88 Silva MCN, Machado MH. Health and Work System: challenges for the Nursing in Brazil. Cien Saude Colet. 2020; 25(1):7-13. doi: 10.1590/1413-81232020251.27572019
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).

Situar o “Ano Internacional da Enfermagem” requer pensar como Davis(99 Davis M. Coronavírus e a luta de classes. Terra sem Amos: Brasil, 2020. p.12. 48p.) na análise recente e certeira no capítulo intitulado “A crise do coronavírus é um monstro alimentado pelo capitalismo”, em que a globalização capitalista parece agora biologicamente insustentável na ausência de uma verdadeira infraestrutura de saúde pública internacional. Todavia, tal infraestrutura nunca existirá enquanto os movimentos populares não quebrarem o poder da indústria dos cuidados de saúde com fins lucrativos ou enquanto houver a obrigação da escolha trazida pelo neoliberalismo entre saúde e economia, como se fossem aspectos dicotômicos.

Nesta perspectiva, a Enfermagem produz potência na atuação nos territórios de vida da população, recriando processos de cuidado voltados a mudanças sociais e de realidades de saúde, no contexto da epidemiologia crítica e na perspectiva da interprofissionalidade e intersetorialidade. São potências que consideram as relações solidárias com vistas ao rompimento do neoliberalismo, ao fortalecimento da APS e das redes colaborativas comunitárias e à superação da pandemia vivenciada atualmente.

(RE)CRIANDO O PROCESSO DE CUIDADO EM SAÚDE PELA ENFERMAGEM NA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE: AS REDES COLABORATIVAS COMUNITÁRIAS E A SOLIDARIEDADE

Ao se refletir sobre o atual cenário neoliberal em que a Enfermagem está inserida, no contexto brasileiro da APS, e projetar as necessidades que serão exigidas para enfrentamento da pandemia, observam-se adversidades importantes a serem superadas. As mais evidentes se referem à estrutura física dos estabelecimentos de saúde e à jornada exaustiva de trabalho que a pandemia começou a exigir após o aumento do número de casos e da busca por acolhimento e informações.

Na hipótese de que a maioria das pessoas acometidas pela COVID-19 se apresentarão como casos leves ou assintomáticos(33 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS). Manejo clínico do coronavírus (COVID-19) na Atenção Primária à Saúde. Versão 9[Internet]. Brasília -DF. Abril de 2020[cited 2020 Jun 4];1-41. Available from: http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/documentos/20200504_ProtocoloManejo_ver09.pdf
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) e que essas pessoas vivem em territórios com diversas características epidemiológicas e sociais, projeta-se que, neste momento, apesar do elevado número de pacientes que necessitam de leitos de internação especializados, a epidemia está centrada na APS, pois é no território da vida que as pessoas buscarão cuidado.

Projeções sobre casos e óbitos, medidas de mitigação da transmissão e avaliação sobre o impacto das ações implementadas se tornaram o foco do enfrentamento à pandemia no contexto brasileiro. Todavia, no cenário da COVID-19, pouco tem sido discutido sobre a consolidação da APS e sua competência ética, para inclusão dos sujeitos nos processos de cuidado.

Ações específicas da APS no enfrentamento à COVID-19 referem-se ao combate de sua transmissão, à divulgação e implementação de medidas de controle e de informações em saúde de qualidade, à reorganização dos fluxos internos das unidades de atenção primária e externos relacionados à referência aos demais pontos da rede e ao acompanhamento do isolamento dos usuários acometidos pela doença e de seus contatos próximos. Incluem ainda as novas estratégias tecnológicas de vigilância em saúde, tais como a utilização de aplicativos e monitoramento telefônico(33 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS). Manejo clínico do coronavírus (COVID-19) na Atenção Primária à Saúde. Versão 9[Internet]. Brasília -DF. Abril de 2020[cited 2020 Jun 4];1-41. Available from: http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/documentos/20200504_ProtocoloManejo_ver09.pdf
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).

Assim, torna-se imperativo o diálogo com as comunidades nos territórios de vida, acerca dos desafios impostos pelo neoliberalismo e da necessidade de (re)criação dos processos de cuidado para o enfrentamento da pandemia. Tais processos são associados ao acompanhamento longitudinal da população não acometida pela doença, porém exposta, em comunidades urbanas e rurais. As vidas seguem necessitando de cuidados, alguns constantes, como a crianças, gestantes, puérperas e pessoas com condições crônicas que requerem ações específicas no âmbito da APS. É neste nível de atenção que serão acolhidas e resolvidas essas demandas, apoiando o autocuidado e o acesso aos medicamentos de uso contínuo, tendo-se, ainda, a vacinação como eixo transversal.

Se essa sobreposição de atividades é vista, por um lado, como um desafio para o processo de cuidado de enfermagem na APS, por outro, o estudo de Biff et al(77 Biff D, Pires DEP, Forte ECN, Trindade LL, Machado RR, Amadigi FR, Scherer MDA, Soratto J. Nurses' workload: lights and shadows in the Family Health Strategy. Cien Saude Colet. 2020;25(1):147-58, 2020. doi: 10.1590/1413-81232020251.28622019
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) revela que o trabalho em equipe, o vínculo com usuários do sistema de saúde, o bom relacionamento interpessoal, o apoio da gerência e a resolutividade das ações constituem aspectos positivos desse nível de atenção(77 Biff D, Pires DEP, Forte ECN, Trindade LL, Machado RR, Amadigi FR, Scherer MDA, Soratto J. Nurses' workload: lights and shadows in the Family Health Strategy. Cien Saude Colet. 2020;25(1):147-58, 2020. doi: 10.1590/1413-81232020251.28622019
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). Tais características favorecem positivamente os processos de cuidado e podem, inclusive, contribuir para o enfrentamento da COVID-19.

Simultaneamente, considera-se urgente a implementação de ações voltadas para o enfrentamento das situações de elevada vulnerabilidade social e de pessoas vivendo em aglomerações, já presentes independentemente da pandemia, porém agravadas no contexto atual. O acesso aos recursos mínimos, como água potável com disponibilidade permanente, moradia, alimentos, trabalho, renda e educação, não tem sido garantido pelo Estado.

A reflexão sobre as situações de vida das pessoas e as condições sociais e sanitárias evidenciou a formação de redes solidárias comunitárias(1010 Leal COBS. Teixeira CFS. Solidarity: an innovative perspective in the management and organization of Sanitary Surveillance actions. Cienc Saude Colet. 2017;22(10):3161-72. doi: 10.1590/1413-812320172210.18022017
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), que se constituem como nova potência para mudar essas realidades de vida e, consequentemente, de saúde dos coletivos. Tais redes têm tornado as comunidades, antes esquecidas, visíveis, e foram, historicamente, motores que impulsionaram e possibilitaram a Reforma Sanitária. No contexto da pandemia, são os coletivos de periferias que estão agindo para garantir alimentos, higiene e orientações de saúde às comunidades e, com isso, reduzindo a curva de contaminação.

Assim, as ESF constituem o suporte de saberes científicos e técnicos no cuidado às pessoas atingidas pela pandemia, os quais se juntam aos saberes dos sujeitos, famílias e comunidades faveladas e periféricas, que conhecem o cotidiano dessas vidas e potencializam as possibilidades de enfrentamento dos adoecimentos e das mortes. Essa união de saberes e práticas, colaborativas e solidárias, produz a comunicação como prática dialógica, negociada e criativa e tem sido uma ferramenta importante no enfrentamento à COVID-19 nesses territórios.

Enfatiza-se que a garantia de financiamento adequado à APS é capaz de fomentar e fortalecer as redes solidárias comunitárias(1010 Leal COBS. Teixeira CFS. Solidarity: an innovative perspective in the management and organization of Sanitary Surveillance actions. Cienc Saude Colet. 2017;22(10):3161-72. doi: 10.1590/1413-812320172210.18022017
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). É inadiável, portanto, restabelecer os vínculos entre as equipes de saúde da família e a comunidade, apoiar e associar a saúde às iniciativas solidárias e reconstruir as ações intersetoriais para apoiar os territórios, enfrentar as diversas vulnerabilidades e superar o neoliberalismo.

É por meio do protagonismo comunitário, da abordagem familiar e das redes solidárias que os processos de cuidado de enfermagem e das ESF serão (re)criados, ampliando a possibilidade de superar a pandemia, reduzir as iniquidades sociais e garantir o acesso à saúde como direito. Para isso, é primordial haver o reconhecimento e a valorização da APS, com adequação dos espaços físicos e do dimensionamento das equipes multidisciplinares, manutenção do Núcleo de Apoio à Saúde da Família e financiamento adequado. Imprescindível também fortalecer toda a Rede de Atenção à Saúde onde a APS se insere e, nesse sentido, a COVID-19 explicita a importância de se escolher a saúde e a vida, rompendo-se com a lógica da política neoliberal.

A chegada, prevista, do Novo Coronavírus ao Brasil publicizou à sociedade a realidade social marcada pela desigualdade. Por um lado, vemos as comunidades enfrentando a ausência do Estado para a garantia de direitos e, por outro, as equipes de saúde na APS vivenciando a sobreposição de atividades nos processos de cuidado e as condições de precariedade estruturais e materiais aliadas ao desfinanciamento da saúde agravado pelo neoliberalismo. Apesar disso, os processos de cuidado podem ser (re)criados mediante o protagonismo comunitário e a atenção à saúde com os sujeitos, e não para os sujeitos.

Limitações do Estudo

O objetivo deste artigo não é esgotar a reflexão sobre a potência e os desafios da APS diante da COVID-19 no cenário brasileiro neoliberal, mas provocar reflexões acerca de inovações necessárias à (re)criação dos processos de cuidado de enfermagem para o fortalecimento da ação comunitária e das políticas públicas com vistas à garantia do direito à saúde e à (re)construção do campo da Atenção Primária no Brasil. Trata-se de uma reflexão fundamental, uma vez que tais políticas têm como consequências a valorização de todas as vidas da Sociedade Brasileira.

Contribuições para a Área

Esta reflexão, cuja temática é emergente e necessária, visa subsidiar o debate entre trabalhadores, sociedade, gestores e pesquisadores sobre o legado da COVID-19 no Brasil, situação e papel da APS no contexto atual da pandemia, no qual os processos de cuidado de enfermagem são entendidos como a linha de frente no enfrentamento. Almeja-se, ainda, que essa reflexão encoraje a discussão acerca das consequências da política neoliberal no campo da Saúde Coletiva e da urgente necessidade de investimentos na política pública de saúde, o que significa expansão e valorização da APS e reafirmação da garantia do direito à saúde a todos os usuários do SUS.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Refletir sobre o processo de cuidado de enfermagem diante do Novo Coronavírus na APS restabelece a força presente na cooperação entre equipes de saúde e redes solidárias comunitárias para mudar situações sociais e de saúde, a despeito do desafio imposto pelas consequências do subfinanciamento agravado pelo neoliberalismo.

Há que se reconhecer a importância de Rede de Atenção à Saúde e, por conseguinte, do investimento também nos demais níveis de atenção, porém sempre considerando a APS como principal porta de entrada desse sistema e capaz de ser altamente resolutiva para diferentes situações de saúde. No entanto, para que isso aconteça, devem ser garantidos e efetivados na prática seus atributos essenciais (acesso, primeiro contato, longitudinalidade e integralidade) e secundários (orientação familiar e comunitária, competência cultural), considerando as especificidades dos territórios

Assim, é fundamental que a APS seja reconhecida e receba financiamento adequado para (re)criar processos de cuidado tanto às pessoas acometidas pela COVID-19 como para o acompanhamento longitudinal de saúde nos territórios. Dessa forma, será possível (re)construir a saúde pública brasileira por meio do fortalecimento do SUS.

AGRADECIMENTO

Agradecemos às trabalhadoras e aos trabalhadores da Enfermagem, nossos parceiros, sem eles, não teríamos pensado e levantado questionamentos que agora ganharam expressão no nosso texto. Agradecemos também a todos os professores do Departamento de Enfermagem de Saúde Pública (DESP/UNIRIO) que contribuíram com as discussões dentro do Departamento e com a inspiração para a elaboração deste artigo de reflexão.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Dulce Barbosa
EDITOR ASSOCIADO: Hugo Fernandes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Set 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    09 Abr 2020
  • Aceito
    26 Jun 2020
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