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Realidade ou utopia: erradicação da epidemia de AIDS em Guiné-Bissau até 2030

RESUMO

Objetivos:

refletir sobre a implementação de uma estratégia integrada de erradicação da epidemia de Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) na Guiné-Bissau até o ano de 2030.

Métodos:

estudo reflexivo.

Reflexão:

Guiné-Bissau é um país de língua oficial portuguesa, localizado na África Subsaariana, em constante instabilidade política e econômica. Dentre suas características, estão a diversidade sociocultural e altas taxas de morbimortalidade por causas relacionadas à infecção pelo Vírus da Imunodeficiência Humana. Na busca pela erradicação da epidemia de AIDS até 2030, instituída especialmente pela Organização das Nações Unidas, nota-se que fatores políticos e socioculturais transformaram a erradicação da epidemia de AIDS até 2030 em utopia.

Considerações Finais:

considera-se que as estratégias internacionais, apesar de ambiciosas, representam oportunidades para que os países possam propor e construir políticas públicas capazes de mudar a realidade existente.

Descritores:
Guiné-Bissau; Síndrome da Imunodeficiência Adquirida; Nações Unidas; Determinantes Sociais da Saúde; Enfermagem em Saúde Pública

ABSTRACT

Objectives:

to reflect on the implementation of an integrated strategy to eradicate the Acquired Immunodeficiency Syndrome (AIDS) epidemic in Guinea-Bissau by 2030.

Methods:

a reflective study.

Reflection:

Guinea-Bissau is a Portuguese-speaking country located in Sub-Saharan Africa, in constant political and economic instability. Among its characteristics are sociocultural diversity and high rates of morbidity and mortality from causes related to infection by the Human Immunodeficiency Virus. In the quest to eradicate the AIDS epidemic by 2030, instituted especially by the United Nations, it is noted that political and socio-cultural factors transformed eradication of the AIDS epidemic by 2030 into a utopia.

Final Considerations:

international strategies, although ambitious, are considered opportunities for countries to propose and build public policies capable of changing the existing reality.

Descriptors:
Guinea-Bissau; Acquired Immunodeficiency Syndrome; United Nations; Social Determinants of Health; Public Health Nursing

RESUMEN

Objetivos:

reflexionar sobre la implementación de una estrategia integrada para erradicar la epidemia del Síndrome de Inmunodeficiencia Adquirida (SIDA) en Guinea-Bissau para el año 2030.

Métodos:

estudio reflexivo.

Reflexión:

el Guinea-Bissau es un país de habla portuguesa, ubicado en África subsahariana, en constante inestabilidad política y económica. Entre sus características se encuentran la diversidad sociocultural y las altas tasas de morbilidad y mortalidad por causas relacionadas con la infección por el Virus de Inmunodeficiencia Humana. En la búsqueda de erradicar la epidemia de SIDA para 2030, instituida especialmente por las Naciones Unidas, se observa que los factores políticos y socioculturales transformaron la erradicación de la epidemia de SIDA en 2030 en una utopía.

Consideraciones Finales:

se considera que las estrategias internacionales, aunque ambiciosas, representan oportunidades para que los países propongan y desarrollen políticas públicas capaces de cambiar la realidad existente.

Descriptores:
Guinea-Bissau; Síndrome de Inmunodeficiencia Adquirida; Naciones Unidas; Determinantes Sociales de la Salud; Enfermería en Salud Pública

INTRODUÇÃO

A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos, e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar(11 Galeano E. Las palabras andantes. 5ª Ed. Buenos Aires: Catálogos [Internet]. 2001 [cited 2018 Dec 10]. p.230 p.234. Available from: https://static.telesurtv.net/filesOnRFS/news/2015/04/13/laspalabrasandantes.pdf
https://static.telesurtv.net/filesOnRFS/...
).

Ao longo da existência da epidemia de Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS), diferentes estratégias foram lançadas pelas organizações internacionais, em especial pela Organização das Nações Unidas (ONU), com vistas ao controle da doença em todos os países. Entre elas, destacam-se os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODM), lançados em 2000 para os 196 países membros. Dos oito ODM, o sexto visava combater o Vírus da Imunodeficiência Humana/Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (VIH/AIDS), a malária e outras doenças. Para o cumprimento deste objetivo, foram traçadas três metas, duas delas relacionadas ao VIH/AIDS: reduzir a incidência e transmissão do VIH até o ano de 2015 e universalizar o acesso à terapia antirretroviral até 2010(22 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Objetivos de Desenvolvimento do Milênio: Relatório Nacional de Acompanhamento / Coordenação: Brasília: Ipea, Mp, Spi [Internet]. 2014 [cited 2020 Aug 5]. 208 p. Available from: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/140523_relatorioodm.pdf
http://www.ipea.gov.br/portal/images/sto...
). Após 15 anos do lançamento dos ODM e ainda sem atingir completamente as metas, a ONU lançou a Agenda 30, que inclui os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) compilados em 169 metas, além do detalhamento de ações para atingir o desenvolvimento nos âmbitos sociais, ambientais e econômicos até o ano de 2030. O terceiro ODS busca assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todas as pessoas, em todas as idades, apresentando como uma de suas metas o fim da epidemia de AIDS no mundo até 2030(33 United Nations. United Nations Millennium Declaration. General Assembly. 8th plenary meeting [Internet]. 2000 [cited 2020 Aug 5]. Available from: https://www.un.org/en/development/desa/population/migration/generalassembly/docs/globalcompact/A_RES_55_2.pdf
https://www.un.org/en/development/desa/p...
-44 United Nations. Transforming our World: The 2030 Agenda For Sustainable Development. New York: UN [Internet]. 2015 [cited 2020 Aug 5]. Available from: https://sustainabledevelopment.un.org/content/documents/21252030%20Agenda%20for%20Sustainable%20Development%20web.pdf
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).

Pari passu, o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre VIH/AIDS (UNAIDS), divulgou e chamou diferentes atores políticos para o alcance da infecção zero pelo VIH, discriminação zero e morte zero relacionada à AIDS, convergindo com a Agenda 2030 no que se refere ao fim da epidemia. Entre os esforços da UNAIDS, destaca-se a meta 90-90-90, pensada no ano de 2013, para início em 2015 e alcance até 2030. De caráter ambicioso e com tendência definitiva, essa meta busca que 90% das pessoas que vivem com VIH saibam o seu diagnóstico; 90% das pessoas diagnosticadas com VIH recebam o tratamento antirretroviral sem interrupção; e 90% das pessoas em tratamento antirretroviral obtenham a supressão viral(55 United Nations. The Millennium Development Goals Report 2015. New York: UN [Internet]. 2015 [cited 2020 Aug 5]. Available from: https://www.un.org/millenniumgoals/2015_MDG_Report/pdf/MDG%202015%20rev%20(July%201).pdf
https://www.un.org/millenniumgoals/2015_...
-66 Joint United Nations Programme on HIV/AIDS (UNAIDS). 90-90-90. An ambitious treatment target to help end the AIDS epidemic. ONU [Internet]. 2014 [cited 2018 Jul 15]. Available from: http://www.unaids.org/en/resources/documents/2017/90-90-90
http://www.unaids.org/en/resources/docum...
).

Frente às metas internacionais destacadas, tornou-se relevante refletir em relação à situação de alguns países, especialmente os africanos. Sabe-se que desde o início da epidemia de AIDS, no início da década de 1980, o continente africano foi o mais afetado, principalmente na região Subsaariana. A Guiné-Bissau situa-se nessa região e pertence à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), criada em 1996 para ampliar os vínculos entre os países membros que têm o português como língua oficial (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé, Timor-Leste e Guiné-Equatorial). Localizada na África Ocidental e com extensão de 36.125 km2, configura-se como uma ex-colônia portuguesa que se tornou independente no ano de 1973. É caracterizada pela diversidade religiosa, linguística e étnica, apresentando entre 27 e 40 grupos étnicos distribuídos em todo o território, sendo que cada grupo possui uma região de predominância, hábitos, costumes e dialetos diferentes(77 Benzinho J, Rosa M. Guia Turístico: à descoberta da Guiné-Bissau. 2ª ed. Coimbra: Ediliber, [Internet]. 2018 [cited 2018 Jul 15]. Available from: https://docplayer.com.br/17698226-Guia-turistico-a-descoberta-da-guine-bissau-joana-benzinho-marta-rosa.html
https://docplayer.com.br/17698226-Guia-t...
).

Em 2015 sua população era de aproximadamente 1.844.000 habitantes e 60,4% viviam em regiões rurais. É um país com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,420; a expectativa de vida encontra-se em 48,6 anos; a taxa de escolaridade é de 50,5% entre meninas e 70,4% entre meninos; a taxa de mortalidade infantil é de 54,5 por 1.000 habitantes; cerca de 40% da população da Guiné-Bissau apresenta idade inferior a 15 anos e as mulheres representam 51,6% da população. É considerado um país de baixa renda e baixo nível de desenvolvimento humano. Em 2013 apresentou seu Produto Interno Bruto (PIB) em dólares americanos (USD) de 1.090 per capita e sua classificação no Índice de Desenvolvimento Humano ficou em 177º entre 187 países(88 UNAIDS. Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS; CPLP. Comunidade de Países de Língua Portuguesa. Epidemia de VIH nos países de língua oficial portuguesa. 4ª edição [Internet]. 2018 [cited 2020 Jan 28]. Available from: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2018/epidemia-de-vih-nos-paises-de-lingua-oficial-portuguesa
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).

Quando analisada a epidemia de AIDS em Guiné-Bissau, observou-se um total de 36 mil pessoas infectadas e a prevalência de 3,3% na população geral, sendo de 3% o acometimento em áreas urbanas. Entre as pessoas infectadas, 12 mil encontravam-se em tratamento antirretroviral. Além disso, o país vive o evento da feminização da doença, pois a prevalência entre as mulheres é de 5%, chegando a 6,9% em mulheres entre 15 e 49 anos e 5% entre as gestantes(55 United Nations. The Millennium Development Goals Report 2015. New York: UN [Internet]. 2015 [cited 2020 Aug 5]. Available from: https://www.un.org/millenniumgoals/2015_MDG_Report/pdf/MDG%202015%20rev%20(July%201).pdf
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). Assim, a epidemia na Guiné-Bissau apresenta caráter generalizado, ou seja, a infecção pelo VIH está presente em diversos segmentos populacionais. O caso difere do conceito de epidemia concentrada, que apresenta a prevalência elevada em populações específicas com uma diferença considerável da população geral(99 Aguilar G, Kawabata A, Samudio T, Rios-Gonzalez CM. Comportamiento epidemiológico del VIH en Paraguay, 2017. Rev Salud Publica Parag[Internet]. 2018 [cited 2020 May 14];8(2): 9-14. doi: 10.18004/rspp.2018.diciembre.9-14
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).

Após breve caracterização do cenário (VIH/AIDS) em Guiné-Bissau e apresentação dos objetivos e metas internacionais para o fim da epidemia de AIDS no mundo questiona-se: a Guiné-Bissau conseguirá erradicar a epidemia de AIDS no seu território até o ano de 2030? Que fatores poderiam influenciar no alcance desta meta? Qual a importância para o país da meta em pauta? Diante das perguntas lançadas, tem-se como objetivo refletir sobre a implementação de uma estratégia integrada de erradicação da epidemia de AIDS na Guiné-Bissau até o ano de 2030.

MÉTODOS

Para a construção deste estudo, foi realizada uma abordagem teórico-reflexiva. As temáticas norteadoras para as leituras e análises foram as metas estabelecidas nos ODM, ODS, meta 90-90-90, condicionantes e Determinantes Sociais de Saúde (DSS).

REFLEXÃO

É possível observar iniciativas de construção de alianças como a CPLP e/ou cooperações com outros países, como no caso do Brasil, que fornece os antirretrovirais (ARV) para o governo guineense com o intuito de contribuir para o controle desta epidemia e, consequentemente, para o alcance da meta 90-90-90. Contudo, percebe-se que erradicar a epidemia de AIDS na Guiné-Bissau até 2030 depende de múltiplos fatores que, em sua maioria, são de cunho interno (nacional) e pertencem ao campo político, social e cultural.

Observa-se que, nas últimas décadas, a Guiné-Bissau foi atravessada por uma constante instabilidade política e econômica, favorecendo a impunidade e a corrupção. Isso refletiu na impossibilidade de definição e implementação das políticas a longo prazo, o que refletiu no combate à AIDS no país, sendo exemplificado pela dificuldade em garantir uma contínua disponibilidade dos ARVs na rede pública. De acordo com a emissora alemã Deutsche Welle (DW), houve ruptura no fornecimento de ARVs aos infetados por mais de quatro meses devido à falta de recursos financeiros do governo guineense em transportar ARVs do Brasil para Guiné-Bissau(1010 DEUTSCHE WELLE. Há quatro meses que faltam antirretrovirais na Guiné-Bissau [Internet]. Notícias, DW, 9 de novembro de 2018[cited 2020 Jan 28]. Available from: https://www.dw.com/pt-002/há-quatro-meses-que-faltam-antirretrovirais-na-guiné-bissau/a-46230301
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). Essa situação, que parece ser recorrente nos últimos anos, compromete o segundo eixo da cascata 90-90-90 (90% das pessoas diagnosticadas com VIH recebem o tratamento antirretroviral sem interrupção) e favorece a reprodução do vírus, a sua resistência aos ARVs e a evolução para o quadro da AIDS.

No que tange à realização de teste para VIH e o cuidado às pessoas vivendo com o vírus, os serviços são disponíveis na rede pública. Entretanto, o país possui alta taxa de pagamento direto por serviços de saúde, com destaque ao ano de 2016 entre os países da África Ocidental(1111 UNIOGBIS. Gabinete Integrado das Nações Unidas para a Consolidação da Paz na Guiné-Bissau. Relatório sobre o Direito à Saúde na Guiné-Bissau. [Internet]. Julho de 2017. [cited 2020 Mar 10]. Available from: https://uniogbis.unmissions.org/sites/default/files/report_on_the_right_to_health_-guinea-bissau_portuguese_.pdf
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), o que impossibilitou que a maioria das pessoas infectadas e familiares acessassem os serviços de saúde formais. A busca por cuidados no setor popular, onde o pagamento é de baixo custo e ocorre por meio de outros bens, não necessariamente o dinheiro é frequentemente utilizado pela população. O acesso facilitado aos cuidados de saúde no setor popular e aspectos culturais de crença dificultam a prática de realização do teste de rastreamento do VIH, contribuindo para o diagnóstico tardio da doença.

No estudo realizado por Hønge et al. (2016), com pessoas em tratamento de VIH/AIDS em um dos hospitais de maior referência em Guiné-Bissau, foi constatado que a maioria das pessoas infectada pelo VIH obteve conhecimento tardio do seu status sorológico. Dentre elas, a maioria apresentava doença avançada e teve uma mortalidade quase quatro vezes maior(1212 Hønge BL, Jespersen S, Aunsborg J, Mendes DV, Medina C, Té DS, et al. High prevalence and excess mortality of late presenters among HIV-1, HIV-2 and HIV-1/2 dually infected patients in Guinea-Bissau - a cohort study from West Africa. Pan Afr Med J. 2016;25:40. doi: 10.11604/pamj.2016.25.40.8329
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).

Dentre os fatores socioculturais, destaca-se a prática da Mutilação Genital Feminina (MGF) e Circuncisão Masculina (CM) como uma das grandes responsáveis pela disseminação do vírus. A prática de MGF pertence a determinados grupos muçulmanos e povos rurais de alguns países africanos e é considerada atentatória aos direitos humanos, havendo diversos movimentos mundiais em prol de sua erradicação(1313 Palhares D, Squinca F. Os desafios éticos da mutilação genital feminina e da circuncisão masculina. Rev Bioét [Internet]. 2013 [cited 2020 Aug 5];21(3):432-7. Available from: https://www.scielo.br/pdf/bioet/v21n3/a07v21n3.pdf
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). Na Guiné-Bissau, a prática da MGF é muito baixa e criminalizada, porém a CM não é. Estudo realizado no país apontou que a CM é prevalente no país e age como fator de proteção contra o VIH. No entanto, os autores chamam a atenção que, quando realizada em rituais religiosos, sem condições adequadas de higiene e segurança, há risco de infecção pelo VIH(1414 Rasmussen DN, Wejse C, Larsen O, Da Silva Z, Aaby P, Sodemann M. The when and how of male circumcision and the risk of HIV: a retrospective cross-sectional analysis of two HIV surveys from Guinea-Bissau. Pan Afr Med J. 2016; 23:21. doi: 10.11604/pamj.2016.23.21.7797
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). Sob esta ótica, destaca-se a necessidade de modificação de tais práticas culturais, assim como (re)formulações e execução de políticas e ações que consideram outros fatores agravantes no combate à epidemia de AIDS na Guiné-Bissau. Entre eles estão a falta da cultura do uso dos preservativos, a existência da poligamia, o machismo, o patriarcado, as desigualdades que acometem as mulheres, a submissão feminina, a violência baseada em gênero, a incapacidade das mulheres negociarem o sexo seguro, a crença de que o VIH pode ser transmitido por meio da feitiçaria e/ou formas sobrenaturais, a resistências ao tratamento, por acreditar mais na cura tradicional do que na cura convencional, entre outros fatores que também contribuem para o cenário.

Torna-se oportuno dialogar com os DSS para refletir sobre o contexto geral do país e entender os múltiplos fatores que mantém a epidemia de AIDS. Os DSS são compreendidos como os fatores econômicos, sociais, culturais, étnico-raciais, psicológicos, comportamentais, políticos e ambientais, que se relacionam com as condições de saúde dos indivíduos e das populações, podendo contribuir para a compreensão das barreiras no alcance das metas em pauta e para a superação dos grandes desafios da saúde pública.

Os DSS podem ser classificados em macro e micro determinantes. O contexto de nível macro é influenciado pelas tendências e eventos globais, nomeadamente as alterações climáticas globais e as crises financeiras. Mais genericamente, há preocupações sobre a globalização, a desindustrialização, a imigração e a desigualdade. As respostas nacionais e locais a essas influências de nível macro afetam as condições em que as pessoas vivem e, portanto, influenciam os efeitos da saúde(1515 Ruth B. Institute of Health Equity. Psychosocial pathways and health outcomes: informing action on health inequalities. Psychosocial pathways and determinants of health. [Internet]. 2017 [cited 2018 Jul 15]; p. 17-32. Available from: http://www.instituteofhealthequity.org/resources-reports/psychosocial-pathways-and-health-outcomes-informing-action-on-health-inequalities
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). Neste caso, toma-se como exemplo a dificuldade que a Guiné-Bissau teve no combate à AIDS devido à crise financeira de 2008, que influenciou diretamente a capacidade dos países parceiros em fornecer insumos para as ações no país.

Em relação ao nível micro, os DSS envolvem a estrutura econômica, social, cultural, ambiental de uma sociedade, além daqueles determinantes ligados à condição de vida e trabalho (o cotidiano das pessoas): ambiente de trabalho, acesso aos serviços de saúde, educação, alimentação, habitação e transporte. São considerados também os aspetos individuais, que estão relacionados com o livre arbítrio das pessoas, como a forma de levar a vida, dieta, exercício físico, uso de álcool, entre outros que, de certa forma, são influenciados pela cultura/sociedade onde a pessoa vive.

É importante destacar que a saúde não se limita a um fato biológico-natural e ao emprego de esquemas epidemiológicos, ela faz parte da convivência do indivíduo na sociedade e do acesso às redes socioeconômicas e aos serviços essenciais. O contexto social e a história de vida individual e da coletividade influenciaram positiva ou negativamente na saúde, o que é um fenômeno eminentemente humano(1515 Ruth B. Institute of Health Equity. Psychosocial pathways and health outcomes: informing action on health inequalities. Psychosocial pathways and determinants of health. [Internet]. 2017 [cited 2018 Jul 15]; p. 17-32. Available from: http://www.instituteofhealthequity.org/resources-reports/psychosocial-pathways-and-health-outcomes-informing-action-on-health-inequalities
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). Seria necessário sanar os problemas já identificados e promover mecanismos para redução das iniquidades sociais. As próprias instituições internacionais reconhecem a existência desses problemas e sugerem parcerias, públicas e/ou privadas de caráter nacional e global, sustentadas pelo espírito da solidariedade, aos mais pobres e às pessoas em situações vulneráveis.

Ao trazer esse debate, mesmo de forma sucinta, atrelado a alguns conceitos provocadores e relevantes para a construção de políticas públicas de saúde, pensa-se que a proposta de erradicar a epidemia de AIDS até 2030 tornou-se uma utopia. Entretanto, surgem estímulos a pensar que as organizações internacionais, ao proporem metas ambiciosas como as expostas neste texto, provocam as nações a manterem este objetivo em suas agendas de forma permanente. Dessa forma, independente das barreiras atualmente encontradas, em algum momento a erradicação da AIDS poderá ser realidade.

Para que a erradicação seja alcançada, será fundamental o compromisso dos atores políticos e dos profissionais da área da saúde, em particular da enfermagem, por ser uma categoria indispensável ao combate da epidemia de VIH/AIDS e para a possível erradicação da AIDS, atuando como gestor de cuidado nas diversas esferas de saúde e contribuindo na elaboração de políticas e ações por meio da prática assistencial, seja para promoção da saúde, prevenção das doenças ou reabilitação dos enfermos. Portanto, acredita-se que a sua prática deva incorporar o debate acima, com vistas a participar do processo de enfrentamento da AIDS, com atenção à inclusão dos condicionantes e determinantes de saúde.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao pensar na erradicação da epidemia de AIDS até 2030, principalmente em países como Guiné-Bissau, torna-se imperativo conhecer e considerar a especificidade da população e os DSS presentes no interior dessa sociedade. Os fatores, como a instabilidade política e econômica, falta de definição e implementação das políticas públicas de saúde a longo prazo, taxa de pagamento direto por serviços de saúde, maior acesso aos cuidados do setor popular que formal, realização do teste de VIH tardiamente, crença de que o VIH pode ser transmitido por meio da feitiçaria e/ou formas sobrenaturais, dificuldades em garantir uma contínua disponibilidade dos ARVs na rede pública, falta da cultura do uso dos preservativos, violência baseada em gênero, MGF, CM, entre outros fatores, contribuíram para que a proposta de erradicar a epidemia de AIDS até 2030 se tornasse uma utopia. Entretanto, é importante destacar e considerar que todas as estratégias (sejam elas locais, nacionais ou internacionais), ainda que possam parecer ambiciosas, representam oportunidades para que os países possam propor e construir políticas públicas capazes de mudar a realidade existente e, de preferência, diminuir alguns dos males que afligem suas populações.

Ressalta-se que esta reflexão não buscou levantar fórmulas ou propostas de viabilização do cumprimento das metas internacionais, mas destacar os desafios para o alcance e os possíveis fatores catalisadores da epidemia de VIH/AIDS na Guiné-Bissau. Assim, busca-se despertar e promover debates para o encontro de soluções viáveis capazes de transformar os muros que, por vezes, parecem ser intransponíveis, em pontes seguras, para, talvez, não apenas erradicar a epidemia de AIDS nesse país, mas ao menos trazer mais cidadania, dignidade e qualidade de vida para essa população.

AGRADECIMENTO

Gostaríamos de agradecer à CAPES pelo custeio da bolsa de estudo durante o mestrado em enfermagem do primeiro autor.

REFERENCES

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Set 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    26 Fev 2019
  • Aceito
    11 Maio 2020
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