Open-access Presença de anemia em pacientes com úlcera da perna: testes laboratoriais

RESUMO

Objetivo:  Avaliar a presença de anemia em pacientes com úlceras crônicas de membros inferiores a partir do perfil e dos índices hematimétricos.

Método:  Estudo seccional realizado em um hospital universitário do Rio de Janeiro. Amostra composta por 64 participantes com úlceras de membros inferiores e tempo de evolução maior que 12 semanas. Dados coletados entre maio/2016 e dezembro/2017, a partir de análises hematológicas, registros nos prontuários e em formulário de avaliação da ferida.

Resultados:   36 (56,2%) eram do sexo masculino; 38 (59,4%) entre 60 e 80 anos; 56 (87,5%) com doenças crônicas e 52 (81,2%) com úlceras venosas. Média de 6 anos de úlcera ativa. Detectou-se anemia em 36 (56,2%), sendo 27 (75%) normocrômica e normocítica; 14 (38,8%) apresentavam anemia carencial registrada em prontuário.

Conclusão:  A baixa concentração de hemoglobina é recorrente entre os participantes, caracterizando um quadro de anemia cujo perfil revela congruência ao da anemia da doença crônica.

Descritores: Anemia; Índices de Eritrócitos; Testes Laboratoriais; Úlcera da Perna; Avaliação em Enfermagem

ABSTRACT

Objective:  To evaluate the presence of anemia in patients with chronic lower limb ulcers based on profile and hematometric indices.

Method:  This is a cross-sectional study carried out in a university hospital in Rio de Janeiro. The sample was composed of 64 participants with lower limb ulcers and evolution time greater than 12 weeks. Data was collected between May/2016 and December/2017 from hematological analyses, records from medical records, and wound assessment form.

Results:   36 (56.2%) were male; 38 (59.4%) between 60 and 80 years old; 56 (87.5%) with chronic diseases and 52 (81.2%) with venous ulcers. 6 years mean of active ulceration. Anemia was detected in 36 (56.2%), 27 (75%) of which were normochromic and normocytic; 14 (38.8%) had deficiency anemia recorded in their medical chart.

Conclusion:  The low hemoglobin concentration is recurrent among the participants characterizing an anemia condition, whose profile reveals congruence to the anemia of chronic disease.

Descriptors: Anemia; Erythrocyte Indices; Lab Tests; Leg Ulcer; Nursing Assessment

RESUMEN

Objetivo:  Evaluar la presencia de anemia en pacientes con úlceras crónicas de miembros inferiores desde el perfil e índices hematimétricos

Método:  Este estudio seccional transcurrió en un hospital universitario de Río de Janeiro, con una muestra de 64 participantes con úlceras en los miembros inferiores y tiempo de evolución superior a 12 semanas. Los datos se recopilaron entre mayo/2016 y diciembre/2017 investigando los análisis hematológicos, registros en las historias clínicas y formularios de evaluación de la herida.

Resultados:   36 (56,2%) eran hombres; 38 (59,4%) tenían entre 60 y 80 años; 56 (87,5%) padecían de enfermedades crónicas y 52 (81,2%), de úlceras venosas. El promedio era de 6 años de úlcera activa. Se detectó anemia en 36 (56,2%), siendo que en 27 (75%) era normocrómica/normocítica; 14 (38,8%) presentaban anemia carencial registrada en la historia clínica.

Conclusión:  La baja concentración de hemoglobina es recurrente entre los participantes caracterizando un cuadro de anemia que coincide con el de anemia de enfermedad crónica.

Descriptores: Anemia; Índices de Eritrocitos; Pruebas de Laboratorio; Úlcera de la Pierna; Evaluación de Enfermería

INTRODUÇÃO

A síndrome anêmica pode ser acarretada por diferentes mecanismos, dentre os quais se destacam os caracterizados por distúrbios na homeostasia do ferro, que ocasionam a síntese deficiente de hemoglobina (Hb)1. Em geral, nesses casos, a concentração de hemoglobina no sangue encontra-se abaixo do limite preconizado como normal2. Ainda que a concentração de hemoglobina corresponda ao parâmetro laboratorial universalmente utilizado para diagnosticar anemia2, outros parâmetros como contagem de eritrócitos e do hematócrito geralmente também estão diminuídos e podem auxiliar no diagnóstico2.

Os valores de referência típicos da Hb para a definição de anemia no sangue variam de acordo com sexo e idade do indivíduo, considerando os níveis desse analito num grupo de indivíduos representativos de uma população4. Assim, laboratorialmente os anêmicos serão definidos pelo limite do nível de Hb abaixo de 13,0 g/dL em homens adultos e menor que 12,0 g/dL em mulheres adultas3-4.

Embora a anemia provocada pela deficiência de ferro seja a mais prevalente, variando a proporção de acordo com as condições locais da população analisada5-6, neste artigo aborda-se um tipo de anemia denominada como anemia da doença crônica (ADC). Trata-se de uma síndrome clínica muito comum, em que sua incidência total é superada apenas pela anemia ferropriva, sendo mais prevalente entre indivíduos idosos1-2,7.

A anemia pode ser classificada de acordo com o tamanho e a concentração de Hb nas células vermelhas, através dos dados oferecidos pelos índices hematimétricos. Quanto ao volume celular, dividem-se em microcítica, normocítica ou macrocítica. Já de acordo com o conteúdo celular, podem ser do tipo hipocrômica ou normocrômica3.

O interesse por essa temática deu-se a partir de um Ensaio Clínico Randomizado (ECR) realizado pelos pesquisadores autores deste estudo, que teve como objetivo analisar a efetividade do uso de derivados de plasma rico em plaquetas (PRP) no tratamento de úlceras venosas. Durante a fase de seleção do ECR, a recorrência na baixa concentração de hemoglobina entre os pacientes recrutados fez com que os pesquisadores estendessem a verificação dos níveis de hemoglobina aos demais pacientes com feridas crônicas em tratamento no ambulatório.

Nesse caso, a baixa concentração da hemoglobina poderia estar associada às comorbidades comuns aos pacientes com úlceras crônicas, uma vez que frequentemente as doenças infecciosas, inflamatórias, traumáticas ou neoplásicas que persistem por mais de um ou dois meses são acompanhadas por uma anemia leve a moderada, descrita na literatura como anemia da inflamação, infecção ou ainda como anemia de doença crônica2,8-10. Nesse contexto, um estudo evidenciou associação entre a gravidade da ulceração do pé diabético e o declínio da hemoglobina11.

Frequentemente, a literatura refere concomitância das úlceras de membros inferiores, a doença falciforme e as talassemias. Nessa situação, as hemoglobinopatias já estão bem descritas na literatura por apresentarem as úlceras de membros inferiores com quadros severos e com difícil resolução. Porém, ainda existe uma lacuna na literatura na associação das anemias por distúrbios da homeostase do ferro e as úlceras crônicas, justificando a necessidade de mais estudos para avaliar a presença da ADC em pacientes com ulceração de perna, como é o caso deste estudo.

OBJETIVO

Este estudo objetiva avaliar a presença de anemia em pacientes com úlceras crônicas de membros inferiores a partir do perfil e dos índices hematimétricos.

MÉTODOS

Aspectos éticos

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense. Os princípios estabelecidos na Resolução n° 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), do Ministério da Saúde, e na Declaração de Helsinque foram respeitados e todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Desenho, período e local do estudo

Trata-se de estudo seccional, norteado pela ferramenta STROBE, desenvolvido no ambulatório de um Hospital Universitário, no estado do Rio de Janeiro, Brasil. A coleta de dados foi realizada de maio 2016 a dezembro de 2017.

População ou amostra: critérios de inclusão e exclusão

A amostragem por conveniência foi composta por 64 participantes em acompanhamento ambulatorial para tratamento das úlceras crônicas de membros inferiores (UCMI).

Os critérios de inclusão deste estudo foram os seguintes: apresentar idade igual ou superior a 18 anos, sem distinção de sexo, apresentar úlcera crônica de membros inferiores, com tempo de evolução maior que 12 semanas. Para os critérios de exclusão, foram estabelecidos: condição de gravidez, suspeita de malignidade da úlcera ou ter recebido transfusão nos últimos 3 meses.

Protocolo do estudo

Os dados foram obtidos a partir das análises hematológicas, para pesquisa geral das anemias e das hemogobinopatias. Além disso, foram considerados os registros contidos nos prontuários dos pacientes e no formulário de avaliação de ferida crônica já utilizado no ambulatório.

A análise dos registros nos prontuários teve como finalidade avaliar o histórico de anemias carenciais dos 36 participantes identificados neste estudo com anemia. Os parâmetros bioquímicos verificados foram dosagem de ferro sérico, ferritina sérica, capacidade total de ligação do ferro (TIBC), saturação de transferrina, vitamina B12 e ácido fólico.

As variáveis contempladas foram referentes aos dados sociodemográficos e clínicos do paciente (sexo, idade, tempo de evolução da úlcera, doenças de base e dados laboratoriais).

Exames hematológicos

Foi realizada coleta de sangue total em um tubo a vácuo com volume de 4 mL, contendo o anticoagulante ácido etilenodiamino tetra-acético (EDTA). Os hemogramas de cada paciente foram feitos no aparelho Coulter LH 750 (Beckman Coulter, EUA). A análise dos parâmetros hematológicos obtidos através do hemograma permitiu a identificação da presença ou ausência do quadro anêmico no paciente. Dentre os parâmetros analisados, têm-se a dosagem de hemoglobina, o nível do hematócrito, a quantificação das hemácias e os índices hematimétricos (VCM - volume corpuscular médio, HCM - hemoglobina corpuscular média e CHCM - concentração da hemoglobina corpuscular média). Na Tabela 1, são apresentados os valores de referência desses parâmetros para indivíduos adultos dos sexos feminino e masculino.

Tabela 1
Valores de referência da série vermelha, Rio de Janeiro, Brasil

A preparação da extensão sanguínea (filme sanguíneo) foi feita pelo método manual, através da confecção das lâminas de esfregaço limpas e desengorduradas. Tal exame teve objetivo de analisar a morfologia das células hematológicas, principalmente os eritrócitos, para averiguar a presença de alguma anormalidade associada aos participantes do estudo.

A determinação do número de reticulócitos no sangue periférico avaliou a atividade eritropoiética. A sua determinação foi importante para revelar se a triagem da deficiência da enzima G6PD foi válida. A determinação da porcentagem e do número absoluto de reticulócitos foi calculada pela seguinte fórmula12:

Porcentagem = N ° de reticul ó citos em n campos n x N ° de eritr ó citos por campo x 100 %

A faixa normal da contagem de reticulócitos em adultos é determinada entre 50 a 100 x 109/L (0.5 - 2.5%)12. Contagem absoluta de reticulócitos = % x RBC (hemograma).

A Eletroforese de hemoglobinas em pH alcalino em acetato de celulose foi utilizada para diagnóstico de hemoglobinopatias, que permitiu a qualificação e a quantificação de hemoglobinas normais e grande parte das variantes de forma rápida, simples e confiável12-13. O método baseou-se na diferença da mobilidade eletroforética apresentada por determinadas Hb anormais14. Os pacientes que revelaram alguma alteração no perfil eletroforético da Hb em método manual foram encaminhados para realização de mesma técnica, porém em método automatizado pela rotina laboratorial da Hematologia Clínica, para confirmação do achado com quantificação exata das Hbs.

Um indivíduo adulto saudável apresenta concentrações de Hb A superior a 95%, Hb Fetal até 2,0% e Hb A2 de 2,0 a 3,5%13. Cada tipo de hemoglobinopatia apresenta um perfil diferenciado de distribuição da proporção dessas hemoglobinas.

O teste do afoiçamento das hemácias foi utilizado para detectar a presença de Hb S através da avaliação do fenômeno da falcização. Foi realizada a procura por hemácias falcizadas por microscopia óptica com aumento de 100x. O procedimento foi repetido após 48h para confirmação de presença ou ausência da falcização.

O teste da solubilidade da Hb S foi realizado para detecção de talassemias do tipo β, principalmente na forma heterozigota, utilizando-se solução de cloreto de sódio a 0,36%14.

Análise dos resultados e estatística

A partir dos dados coletados, foi construído um banco de dados em planilha eletrônica no excel para análises estatísticas nos programas GraphPad Prism 5 e SPSS (“Statistical Package for the Social Sciences”), versão 17. Os dados sociodemográficos foram analisados pelos testes Qui-Quadrado e Mann-Whitney. Foi realizada a verificação de homogeneidade da amostra em relação aos dados sexo, idade e doenças de base. O teste estatístico ANOVA foi utilizado para comparação entre os grupos de classificação de anemias e o Test t não pareado para comparar os grupos de 2 em 2, considerando os parâmetros por distribuição normal. Os valores foram considerados estatisticamente significativos quando o valor de p for menor que 0,05. Para correlação, foi investigado se as amostras obedeceram a curva de normalidade e, dependendo, foi aplicada a correlação de Spearman ou Pearson.

RESULTADOS

Caracterização dos participantes e histórico das lesões

A amostra foi composta por 64 participantes, sendo 36 (56,2%) do sexo masculino, 38 (59,4%) na faixa etária de 60 a 80 anos, seguidos de 20 (31,2%) entre 30 e 59 anos e 6 (9,4%) com idade acima de 80 anos.

No que se refere às doenças de base, 56 (87,5%) participantes apresentavam doenças crônicas. Dentre as comorbidades mais frequentes, 42 (65,6%) participantes tinham Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS) e 31 (48,4%) Diabetes Mellitus (DM).

Quanto ao histórico das lesões, 52 (81,2%) participantes apresentavam úlceras venosas. Embora as úlceras venosas fossem as mais predominantes, 7 (10,9%) apresentavam úlceras diabéticas e 5 (7,8%) tinham úlceras arteriais.

O tempo de úlcera ativa teve uma média de 6 anos. A recorrência das úlceras mostrou-se frequente em 34 (53,13%) participantes, e 24 (32,8%) apresentaram histórico de familiares com úlceras crônicas de membros inferiores.

Achados de anemia

Mais da metade dos participantes apresentou o nível de hemoglobina abaixo do valor de referência estabelecido pela OMS, conforme apresentado na Tabela 2. A partir do hemograma e da contagem de reticulócitos, foi possível dividir primariamente os participantes em dois grupos: os que apresentavam ou não o quadro de anemia.

Tabela 2
Determinação da incidência da anemia nos participantes e sua caracterização, Rio de Janeiro, Brasil, 2016-2017

A partir do hemograma e da contagem de reticulócitos, foi possível identificar o quadro de anemia em 36 (56,2%) participantes, em seus diferentes graus de gravidade. Os parâmetros hematimétricos indicaram que 27 (75,0%) tinham anemia de perfil normocrômico e normocítico, 8 (22,2%) de caráter hipocrômico e microcítico e apenas um (2,7%) participante apresentou a anemia macrocítica (Tabela 2).

A Tabela 3 mostra a média dos valores encontrados nos hemogramas dos anêmicos no geral e pertinentes a cada tipo de anemia caracterizada anteriormente.

Tabela 3
Média dos valores do hemograma dos anêmicos no geral e por perfis das anemias, Rio de Janeiro, Brasil, 2016-2017

O valor de hemoglobina foi significativamente diferente entre os perfis de anemia normocítica/normocrômica e microcítica/hipocrômica (p=0,017). Nesse caso, considera-se que os indivíduos com perfil microcítico/hipocrômico apresentaram redução mais impactante na concentração de hemoglobina (Tabela 3).

Outros parâmetros apresentaram diferenças na análise global (ANOVA) e testes comparativos entre os grupos. Os resultados revelaram um perfil de índices hematimétricos alterados, conforme esperado para cada um dos grupos, com base na sua classificação.

A Figura 1 mostra a incidência das anemias hereditárias investigadas no grupo de participantes. Foram analisados 64 participantes para a pesquisa de hemoglobinopatias e membranopatias. Para deficiência de G6PD (enzimopatias), foram considerados 51 participantes. Em relação à presença de hemoglobinopatias, foram identificados apenas 3 (4,69%) participantes com traço falciforme, do total de 64 participantes.

Figura 1
Incidência das anemias hereditárias investigadas no grupo de participantes

Analise de correlação

A partir dos resultados expostos na figura 2, pode-se observar que os valores de Hb não estão correlacionados ao tempo de úlcera ativa nos 36 participantes identificados como anêmicos.

Figura 2
Correlação dos valores de hemoglobina com o tempo de úlcera aberta em pacientes anêmicos

Teste de correlação de Spearman para distribuição normal (n= 36) (p=0.408)


Revisão nos registros dos prontuários dos participantes

Do total de 36 participantes anêmicos, 22 (61,1%) não possuíam registro dessas análises complementares em prontuários ou possuíam prontuário recente. Assim, apenas 14 (38,8%) apresentavam a pesquisa de anemia carencial registrada em prontuário, pois eram acompanhados por outros ambulatórios e em algum momento revelaram histórico de anemia persistente.

Desses 14 analisados para alterações no metabolismo de ferro, foi possível identificar 3 (21,4%) com anemia por deficiência de ferro (ADF), 1 (7,14%) com a anemia de doença crônica (ADC) e 6 (42,86%) apresentando concomitância das anemias por deficiência de ferro e de doença crônica (ADF + ADC). Com relação às deficiências por vitamina B12 e ácido fólico, foi encontrado apenas um (7,14%) participante com deficiência da vitamina B12.

DISCUSSÃO

Dentre as úlceras encontradas nos membros inferiores, a úlcera de etiologia venosa é a que possui maior prevalência, sendo a insuficiência venosa crônica a principal responsável pelo seu surgimento15. O tratamento deve estar focado na eliminação e/ou controle dos fatores causais, suporte sistêmico e tratamento tópico adequado. O estado geral do paciente precisa ser considerado com avaliação de seu suporte nutricional, faixa etária, doenças associadas, uso de medicamentos, distúrbios metabólicos e efeitos psicológicos.

De uma forma geral, os pacientes com úlceras crônicas de membros inferiores possuem doenças associadas que determinam a etiologia da ferida, como o diabetes, a hipertensão arterial sistêmica e a insuficiência venosa crônica16. O agravamento dessas doenças interfere diretamente no processo de reparo tecidual, cronificando a fase inflamatória e fazendo com que o tempo de evolução da ferida prolongue, como é o caso dos participantes deste estudo.

Usualmente, quando os pacientes são questionados durante as consultas de enfermagem sobre a presença de doenças associadas, a anemia não é citada, apesar os resultados dos hemogramas mostrarem que ela acomete 56,2% dos participantes. Este achado é relevante uma vez que a deficiência do ferro pode interferir na cicatrização das feridas11 e consequentemente nos cuidados de enfermagem aos pacientes com úlceras de membros inferiores.

Geralmente, o diagnóstico da anemia é baseado em exames laboratoriais, visto que os pacientes costumam ser assintomáticos ou apresentam sintomas inespecíficos17. Ainda que assintomática, a anemia pode contribuir para o agravamento dos sintomas das doenças subjacentes, maior celeridade na sua progressão, pior prognóstico e interferência na qualidade de vida17.

A enfermagem representa papel importante no atendimento a esses pacientes, no que diz respeito às condutas terapêuticas que envolvem a avaliação do diagnóstico, o processo cicatricial, bem como na prevenção de agravos relacionados à patologia, devendo ocorrer por intermédio da construção/aplicação de novas intervenções técnicas no cuidado de enfermagem e saúde18.

Em casos de deficiência de ferro/anemia ou inflamação, quando os níveis de hepcidina sérica estão elevados, a interação hepcidina/ferroportina pode levar ao aumento da concentração de ferro nas células, particularmente nos macrófagos, o que pode também ter um efeito prejudicial na cicatrização de feridas11. A deficiência de ferro sem inflamação pode afetar um dos estágios finais da cicatrização de feridas, como a remodelação.

Ressalta-se que na literatura a anemia em pacientes com UCMI é predominantemente relacionada à anemia falciforme, a qual não pode ser considerada neste estudo, uma vez que apenas 3 (4,69%) participantes apresentaram traço falcêmico.

A anemia da inflamação é normocítica e normocrômica ou hipocrômica, podendo ainda ocorrer hipocromia e microcitose em 20 a 30% dos pacientes com doença crônica2,19. Nessa perspectiva, o perfil normocítico e normocrômico da maioria dos indivíduos anêmicos revela congruência ao da anemia da doença crônica, uma vez que quadros inflamatórios agudos e crônicos se configuram como principais causas de anemia em idosos e portadores de doenças crônicas20.

O termo Anemia de Doença Crônica (ADC) foi proposto pela primeira vez por Cartwrigt, em 1966, após vários anos estudando o binômio infecção e anemia21. Dos vários mecanismos envolvidos na etiopatogenia da ADC, os três principais são diminuição da sobrevida das hemácias, resposta medular inadequada frente à anemia e distúrbio do metabolismo do ferro21.

Em geral, a ADC é encontrada em pacientes nos quais uma doença subjacente provoca uma resposta imune/inflamatória, levando à redução da absorção de ferro em vários locais9. Nesse caso, a ADC poderia ser uma consequência fisiopatológica da tentativa do organismo em reduzir a disponibilidade de ferro como uma medida de defesa não específica contra agentes infecciosos1-2,7.

No caso dos idosos, sugere-se que as espécies reativas de oxigênio (ERO) estariam no centro dessa posição, ocasionando a apoptose dos eritrócitos de forma exacerbada nessa população e, consequentemente, a anemia. As comorbidades e a inflamação, também características dessa fase, estariam “alimentando” todo o processo, agravando o quadro da anemia por também estarem associadas a concentrações elevadas de ERO. Contudo, tal contexto ainda deve ser provado, apesar dos indícios comprovados dessas associações22.

É considerada a segunda causa mais comum de anemia e a principal causa em pacientes anêmicos hospitalizados, particularmente quando se analisa pacientes com idade superior a 65 anos9-10,23. Análise realizada em pacientes anêmicos sem história de perda sanguínea evidenciou que 52% deles preenchiam critérios laboratoriais para o diagnóstico de ADC (ferro sérico diminuído e aumento da ferritina sérica)24.

A causa da anemia da doença crônica é complexa e multifatorial, estando associada a uma doença crônica subjacente e principalmente a alterações no balanço de ferro derivado da ativação do sistema imune22. Quanto às características clínicas, geralmente os sintomas presentes estão relacionados à doença de base e não à anemia propriamente dita. Esta se desenvolve nos primeiros 30 a 90 dias, usualmente não progride e, frequentemente, normaliza-se com o tratamento da doença de base21.

Outro aspecto relevante é a correlação positiva entre anemia e atividade e/ou intensidade da doença de base, ou seja, quanto maior a intensidade dos sintomas do paciente, maior o grau de anemia. Uma vez instituído o tratamento, a anemia tende a melhorar e, até mesmo, haver a normalização dos valores da hemoglobina21.

Embora seja prevalente em idosos, o diagnóstico de ADC é um desafio, principalmente porque pode coexistir com outras causas de anemia, especialmente a ferropriva. Entretanto, algumas características são relevantes. Resumidamente, pode-se dizer que a ADC é uma anemia leve com perfil normocítico, normocrômico, caracterizada por índices baixos de reticulócitos, baixo ferro sérico e baixa capacidade total de ligação ao ferro, com ferritina normal ou aumentada, em um paciente com uma doença sistêmica de componente inflamatório17.

A expressividade da anemia dentro desse grupo pressupõe a importância de investigá-la com maiores detalhes, principalmente no que diz respeito ao retardo do processo de cicatrização das feridas. Assim, seria possível avançar no conhecimento sobre a deficiência de ferro na cicatrização de feridas cutâneas, contribuindo para o direcionamento da melhoria do processo de cicatrização das úlceras crônicas e na qualidade de vida dos pacientes.

Por todos os aspectos mencionados, recomenda-se uma abordagem holística, na qual se considere mais que a ferida em si, mas também os hábitos de vida e as doenças-base, relacionando todas as áreas da saúde e utilizando o conhecimento interdisciplinar para que ocorra maior efetividade do tratamento25.

Contribuições para enfermagem

A prevalência da anemia é considerável no grupo de pacientes com úlceras crônicas de membros inferiores. Dessa forma, não se pode descartar sua investigação laboratorial nessa população, visando melhor apoio clínico, com implementação de cuidados mais efetivos no tratamento das úlceras crônicas, além de auxiliar na recuperação da saúde global desses pacientes.

Limitações do estudo

Destaca-se que o diagnóstico da anemia da inflamação é clínico e requer exclusão de outras causas, o que pode ser difícil, pois os pacientes podem ter uma ou várias doenças associadas. Além disso, a própria anemia pode ser multifatorial, coexistindo deficiências de ferro, de vitaminas e outras26. Nesse caso, um exame complementar para quantificar os níveis circulantes de hepcidina poderia auxiliar no diagnóstico diferencial das anemias27, mas o custo elevado inviabilizou a sua realização neste estudo.

CONCLUSÕES

Os resultados mostram que a baixa concentração de Hb é recorrente entre os pacientes com úlceras crônicas de membros inferiores, caracterizando um quadro de anemia cujo perfil revela congruência ao da anemia da doença crônica. Não houve correlação entre os valores de Hb e o tempo de úlcera ativa nos 36 participantes identificados como anêmicos. Porém, recomenda-se aumentar o número de participantes para tentar determinar alguma linha de tendência.

O distúrbio do metabolismo do ferro pode interferir no processo de cicatrização das úlceras crônicas, indicando a necessidade dos enfermeiros investigarem tais dados durante as consultas de enfermagem a partir de exames laboratoriais e clínicos. Sugere-se a investigação laboratorial nessa população, visando melhor apoio clínico dos pacientes. O número de indivíduos apresentando valores baixos de hemoglobina parece subestimado e precisa ser esclarecido a fim de estabelecer nexos entre tais achados e o retardo do processo cicatricial das feridas.

Referências bibliográficas

Editado por

  • EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho
  • EDITOR ASSOCIADO: Alexandre Balsanelli

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    29 Jun 2020
  • Aceito
    22 Abr 2021
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