Resumos
O que está em jogo nas negociações internacionais relativas à proteção da biodiversidade é muito mais do que questões ecológicas, é a construção jurídica do problema, dos responsáveis e de possíveis soluções. Com efeito, os interesses divergentes de desenvolvimento nacional face às empresas privadas tornam a questão do acesso aos recursos genéticos e a transferência de tecnologia fontes de consideráveis querelas entre Estados soberanos. Apesar disso, existem vários contratos de bioprospecção envolvendo Estados, comunidades tradicionais e firmas transnacionais. Nesse contexto, o Brasil, rico em biodiversidade e com razoável nível tecnológico, pretende elaborar uma legislação nacional de regulação de acesso aos recursos genéticos. No entanto, esse artigo procura analisar porque tal legislação em si carece de eficácia concreta perante o objetivo de garantir os resultados almejados, e que o objetivo principal do Brasil deve ser não o mero pagamento de royalties, mas sim verdadeiras "parcerias tecnológicas" com vistas a modernizar o parque tecnológico nacional.
Biodiversidade; Bioprospecção; Transferência de tecnologia; Brasil
When mentioned the protection of biodiversity, it is not only environmental issues that are being discussed in international meetings, it is the legal construction of the problem, those responsible for it and the possible solutions. In fact, divergent interests of national development for some States and of free markets for transnational corporations transform the issues of access to biological resources and technology transfer into grave disagreement among sovereign states. Nevertheless, there are several bioprospection arrangements among states, traditional communities and private firms. In this context, Brazil, privileged for its rich biodiversity and fairly good technological level, is aiming at a national law to regulate access to its biodiversity resources. However, this article explains why this law will not bring up the desired solutions, and that the main aim for Brazil must be not only the payment of royalties, but effective "technology partnerships".
Biodiversity; Bioprospection; Technology transfer; Brazil
PRIMEIRA INSTÂNCIA
Acesso aos recursos genéticos, transferência de tecnologia e bioprospecção
Ana Flávia Granja; Barros-Platiau; Marcelo D. Varella
Doutorandos na área de Relações Internacionais da Université de Paris I, Panthéon-Sorbonne
RESUMO
O que está em jogo nas negociações internacionais relativas à proteção da biodiversidade é muito mais do que questões ecológicas, é a construção jurídica do problema, dos responsáveis e de possíveis soluções. Com efeito, os interesses divergentes de desenvolvimento nacional face às empresas privadas tornam a questão do acesso aos recursos genéticos e a transferência de tecnologia fontes de consideráveis querelas entre Estados soberanos. Apesar disso, existem vários contratos de bioprospecção envolvendo Estados, comunidades tradicionais e firmas transnacionais. Nesse contexto, o Brasil, rico em biodiversidade e com razoável nível tecnológico, pretende elaborar uma legislação nacional de regulação de acesso aos recursos genéticos. No entanto, esse artigo procura analisar porque tal legislação em si carece de eficácia concreta perante o objetivo de garantir os resultados almejados, e que o objetivo principal do Brasil deve ser não o mero pagamento de royalties, mas sim verdadeiras "parcerias tecnológicas" com vistas a modernizar o parque tecnológico nacional.
Palavras-chave: Biodiversidade. Bioprospecção. Transferência de tecnologia. Brasil.
ABSTRACT
When mentioned the protection of biodiversity, it is not only environmental issues that are being discussed in international meetings, it is the legal construction of the problem, those responsible for it and the possible solutions. In fact, divergent interests of national development for some States and of free markets for transnational corporations transform the issues of access to biological resources and technology transfer into grave disagreement among sovereign states. Nevertheless, there are several bioprospection arrangements among states, traditional communities and private firms. In this context, Brazil, privileged for its rich biodiversity and fairly good technological level, is aiming at a national law to regulate access to its biodiversity resources. However, this article explains why this law will not bring up the desired solutions, and that the main aim for Brazil must be not only the payment of royalties, but effective "technology partnerships".
Key-words: Biodiversity. Bioprospection. Technology transfer. Brazil.
Introdução
Desde as primeiras negociações multilaterais para a Convenção sobre Diversidade Biológica de 1992 (CDB), três grandes questões marcaram a divergência de interesses entre os países desenvolvidos Europa Ocidental, Japão e América do Norte e os países detentores de rica diversidade biológica, como o Brasil, a Índia e as Filipinas, entre outros. A primeira questão trata da regulamentação do acesso aos recursos genéticos sob a ótica de uma partilha equitativa dos benefícios deles decorrentes. A segunda é a transferência de tecnologia para que os objetivos da CDB possam ser alcançados1. A última questão, e não menos controversa, relaciona-se aos direitos de propriedade intelectual e ao regime internacional em formação. Enquanto o conhecimento das empresas farmacêuticas (às vezes o mesmo) era uma poderosa commodity, protegida como propriedade intelectual, o conhecimento indígena e o conhecimento tradicional das comunidades locais era entendido como algo público, de livre acesso.
Dessa primeira parte, surge a questão que define a segunda, constituindo a problemática do artigo: como pode o Brasil elaborar uma lei de acesso aos recursos genéticos e contratos de bioprospecção que garanta a satisfação de seu interesse nacional e prioritário de desenvolvimento sustentado?2
Destarte, a questão da biodiversidade tornou-se objeto de negociações internacionais nas quais cada Estado defende a legitimidade de suas ações em função de seus interesses, pois ela assume ao mesmo tempo um caráter planetário, nacional e local3. É justamente essa miríade de interesses que, conjugada aos lucros do comércio de biotecnologia, acelera a corrida industrial favorável ao regime internacional de patentes, levando os Estados ricos em biodiversidade à elaboração de leis regulamentadoras do acesso a seus recursos genéticos4.
Portanto, a Convenção sobre Diversidade Biológica, já assinada pelos Estados Unidos, foi cenário de pressões difusas para a definição do estatuto jurídico dos recursos genéticos e das inovações biotecnológicas. Por conseguinte, três princípios relacionados ao tema foram consagrados na Cúpula do Rio em 1992: da "responsabilidade comum mas diferenciada", "poluidor-pagador" e de "padrões sustentáveis de consumo e produção". Eles refletem o esforço dos líderes políticos em atualizar o direito internacional face à nova realidade de políticas globais para o meio ambiente e de "soberania com responsabilidade"5.
No que concerne a esse artigo, o mais importante foi o reconhecimento formal da soberania de cada Estado sobre seus recursos naturais e, ao mesmo tempo, o consenso sobre a necessidade de uma ação global e efetiva, principalmente porque, a partir da conscientização do valor incalculável da biodiversidade, tornou-se ainda mais alarmante a sua redução acelerada6.
Entretanto, em política internacional, o mecanismo de tomada de decisões é muito complexo, não apenas porque os Estados são soberanos e o direito internacional público submete-se a essa limitação, mas também porque os interesses em jogo são econômicos e industriais, em um fim de milênio marcado pela intensificação da competitividade internacional. Nas questões ambientais, outro agravante é que o universo de tomada de decisões é controverso7, por falta de certezas científicas para fundamentar as decisões políticas, principalmente a longo prazo. Consequentemente, o "problema global da biodiversidade" organiza-se em função de capacidades tecnológicas e de relações de força no mundo da indústria8.
O Brasil foi um dos atores mais ativos nas negociações multilaterais sobre esse reconhecimento da soberania, pois se trata de um ponto capital para a política externa brasileira. Esta passou a desempenhar um papel muito mais ativo no cenário internacional desde que se começou a considerar a biodiversidade como um caminho para o desenvolvimento sustentável. O grande problema é, que para defender seus interesses, o Brasil ambiciona elaborar uma legislação sobre acesso à biodiversidade, missão que se mostra complicada, uma vez que o tema é pouco conhecido tanto em matéria jurídica quanto em biológica. Apesar disso, muitos dos outros países em desenvolvimento, mesmo nossos vizinhos, já possuem contratos e legislações com efetiva transferência de importantes recursos. De qualquer forma, só uma legislação nacional não seria suficiente para coibir a biopirataria ou promover o desenvolvimento, por isso explica-se a importância da cooperação internacional para a elaboração de mecanismos de cooperação científica e partilha dos benefícios para os dois lados contratantes.
Acesso aos recursos genéticos e soberania nacional
Tornou-se claro nos debates multilaterais que desenvolvimento econômico e gestão da biodiversidade são conceitos inseparáveis. Em outras palavras, o Brasil, como tantos outros Estados, acredita que a "biodiversidade sustentada" é a base do desenvolvimento econômico ao qual almejamos. Na Rio 1992, essa posição traduziu-se em uma mudança importante quanto à questão do livre acesso aos recursos genéticos, pois, na década passada, prevaleciam na legislação internacional os conceitos derivados do farmers' rights da FAO, fundamentados no princípio do bem comum da humanidade, e propondo que os recursos naturais fossem acessíveis a todos.
Todavia, em 1992, o princípio da soberania constituiu uma mudança radical dessa tradição. Nesse contexto, a CDB procurou criar mecanismos de cooperação científico-tecnológica a partir da clara divergência de interesses entre Estados ricos em tecnologia e outros, ricos em recursos genéticos. Isto colocou em evidência a urgente necessidade de contratos de bioprospecção e de transferência de tecnologia aos países fornecedores dos recursos genéticos.
Dois princípios cristalizaram-se desde então. O primeiro é o dos "termos acordados mutualmente" (mutually agreed terms) que significa que o acesso deve ser negociado e aprovado pelos dois lados, segundo o artigo 15(4) da Convenção. O segundo é o "consentimento informado" (prior informed consent) do artigo 15(5). Eles têm como objetivo proteger o contratante mais fraco e assegurar a partilha equitativa dos benefícios oriundos das pesquisas com recursos genéticos entre o prospector e o país fornecedor, e ainda que haverá transferência da tecnologia relevante e que será informada qual a utilização prevista do produto final.
Surge então a questão principal, qual seja: nessa corrida de biotecnologia, qual o interesse de países como o Brasil? A resposta parece simples, mas não é: regular acesso sem perder os bioprospectores de vista. Isto quer dizer que existem equipes de cientistas viajando pelo mundo em busca de material genético que possa contribuir para a elaboração de novos medicamentos ou melhoramentos genéticos. Se o Brasil impuser uma lei de acesso muito rígida, ou eles irão pesquisar em outros países, ou tentarão coletar sem autorização oficial, o que caracteriza a biopirataria. O maior interesse para o desenvolvimento nacional é, na verdade, um grande desafio: transformar toda biopirataria potencial em bioparceria (technology partnerships) para reforçar as capacidades tecnológicas do país.
Os riscos implícitos nessa matéria são fatores de clivagens políticas internas, principalmente no Brasil. Dentre eles, os dois mais discutidos são o da biopirataria e o do patenteamento de recursos nativos por cientistas estrangeiros. A biopirataria tende a ser um problema temporário, pois a partir do momento em que for mais econômico produzir este material sinteticamente ou pesquisar em outras regiões ricas em biodiversidade do que se submeter a uma legislação nacional, não há dúvidas que as empresas bioprospectoras não continuarão a depender de fornecimento constante do material biológico.
O progresso da biotecnologia depende, por enquanto, do acesso às matérias-primas do Sul (Aubertin e Vivien, 1998; RAFI, 1994). Mas de acordo com Reid (1995), o progresso tecnológico provavelmente inverterá a questão do acesso aos recursos genéticos em detrimento dos Estados biodiversos. Em outros termos, as implicações da formação de bancos de genes e a reprodução sintética ex situ são duas: primeiro, que aos poucos não serão mais necessárias coletas de material genético in situ; e, segundo, que produtos reproduzidos em laboratórios serão dificilmente patenteados pelos Estados de onde foram coletadas as amostras de origem.
Desta forma, a solução para o Brasil não pode ser outra que não a cooperação científica a médio e a longo prazos. Temos que pensar mais no desenvolvimento de pesquisas nacionais aplicadas e na modernização industrial, privilegiando a transferência e a adaptação de tecnologias ao nosso país, em vez de nos contentarmos com pagamentos de royalties por quantidades de recursos coletados, e quem ficará com os lucros imediatos9. Então, cabe às autoridades nacionais desenvolver não só uma legislação adequada, mas também toda uma infra-estrutura científico-tecnológica capaz de aproveitar os benefícios potenciais dos contratos de cooperação multilaterais ou bilaterais.
Transferência de tecnologia10
A importância da biotecnologia é indiscutível nos campos da gestão da biodiversidade, da alimentação e da medicina. A partir de melhoramentos genéticos, pode-se criar, por exemplo, novas espécies de plantas, mais adaptadas a condições geoclimáticas específicas, mais resistentes a doenças e pragas, e mais rentáveis para a produção agrícola, além da vantagem de redução dos agrotóxicos. Assim, a biotecnologia pode se tornar base fundamental para a gestão do patrimônio genético atual11.
Em termos de inovações, a biotecnologia pode ser indutora de transformações tecnológicas importantes e ao mesmo tempo provocar impactos sociais diretos. Quando se fala de "segurança alimentar", por exemplo, o estudo de manipulações genéticas se reveste de um caráter ético, pelo fato de não sabermos ainda como alimentar a população esboçada pelo crescimento demográfico mundial, estimada em mais de 10 bilhões de pessoas para 2050.
No caso dos fármacos, estima-se que a venda de produtos baseados em medicinas tradicionais seja de cerca de 32 bilhões de dólares ao ano (RAFI, 1994) e que cerca de 25% dos remédios atualmente produzidos tenham componentes ativos oriundos de países tropicais.
Existe um verdadeiro abismo tecnológico entre o Norte e o Sul. Por isso, a questão de transferência de tecnológica sempre foi tão controversa nas reuniões internacionais. Do ponto de vista da diversidade de interesses legítimos, praticamente todos os artigos da CDB tratam, direta ou indiretamente, da questão de transferência de tecnologia. A Convenção deve ser, então, utilizada como instrumento de política internacional de transferência de tecnologia, e cabe aos países em desenvolvimento criar políticas para usá-la para explorar os mecanismos definidos no texto, especialmente nos artigos: 8 e 9 (tecnologias de conservação); 12 (pesquisa e treinamento); 17 e 18 (troca de informações e cooperação em C&T).
Entretanto, o maior desafio dos Estados menos desenvolvidos não é a transferência de tecnologia per se, pois elas, as tecnologias, já são utilizadas pelas autoridades públicas de praticamente todos os países e/ou são publicadas em forma de pesquisas (Mugabe e Clark, 1997). O principal objetivo político é dotar os Estados desprovidos de tais tecnologias de capacidades humanas locais para adaptá-las e utilizá-las, como por exemplo ao fornecer informações confiáveis sobre a taxonomia dos ecossistemas locais, desenvolver novos produtos e processos e gerar riqueza por si próprias, em um contexto de internacionalização econômica. Por enquanto, nota-se a falta de uma infra-estrutura de pesquisa, incluindo pessoal capacitado para absorver os conhecimentos disponibilizados nos escritórios de patentes e de recursos financeiros para desenvolver-se a partir da tecnologia. Enfim, o sistema de tecnologias de ponta está fechado no campo dos países industrializados, mas a culpa não é só do regime de propriedade intelectual.
Direitos de propriedade intelectual
A questão da proteção da propriedade intelectual é múltipla, pois leva em consideração os interesses industriais privados, os comunitários/públicos e os jurídicos nacionais e/ou internacionais. Por um lado, as multinacionais já investiram e continuam investindo em pesquisas, e opõem-se a dividir lucros obtidos depois de anos de pesquisas. Por outro lado, o reconhecimento do valor de conhecimentos tradicionais os quais muitas vezes encontram-se à base do produto produzido e patenteado também é uma reivindicação legítima dos países em desenvolvimento. Nesse contexto, o direito internacional e as organizações internacionais, principalmente a OMC e OMPI, têm sido incapazes de criar alternativas à deficiência do regime de propriedade intelectual e à falta de legislação sobre o tema.
As divergências de interpretação do TRIPs, por exemplo, constituem uma fonte considerável de conflitos entre autoridades dos países prospectores e fornecedores de materiais genéticos. Os primeiros afirmam que o regime de proteção da propriedade intelectual não constitui a principal barreira para a transferência de tecnologia, e os segundos acreditam que essa transferência pode tornar-se a principal fonte de inovações para países com atraso tecnológico. Essa falsa interpretação, ao nosso ver, atrapalha a implementação dos princípios da Convenção, pois são visões extremistas da questão e fecham canais de diálogo multilateral.
Entretanto, essa discussão reflete o dilema dos Estados menos desenvolvidos, pois, se o reforço do regime de patentes certamente incentivaria os investimentos do setor privado e o desenvolvimento de uma maneira geral como insistem os negociadores norte-americanos , ele também dificultaria a transferência de tecnologia, favorecendo um monopólio mundial que já existe, e ainda seria juridicamente protegido.
Todas essas observações nos conduzem a uma outra pergunta: como é realizada a bioprospecção face a essa divergência, que às vezes até se transforma em impasse? Infelizmente, as raras legislações nacionais existentes são recentes e incompletas, e muito material genético já foi coletado sem o consentimento do país de origem e muito menos da comunidade local. Contudo, o mais corrente na atualidade são contratos individuais sobre acesso e partilha sob a supervisão ad hoc de autoridades públicas (Mugabe e Clark, 1997:14)12. Vários Estados já estão negociando provisões que refletem as diretrizes da Convenção sobre diversidade Biológica, mesmo que estes não disponham de legislação nacional. De qualquer forma, esses contratos entre bioprospectores e fornecedores são uma experiência preciosa na elaboração de uma legislação nacional de acesso aos recursos genéticos.
A seguir, serão analisados contratos de bioprospecção que poderiam servir de modelo para o Brasil, ou ao menos colocar em evidência o atraso do nosso país na matéria. Entretanto, cabe ressaltar que o processo de elaboração de uma legislação nacional é caracterizado pela tensão entre a urgência da ação política e complexidade da questão do acesso aos recursos de biodiversidade.
Alguns exemplos de projetos de bioprospecção existentes
Há diversas modalidades de projetos de desenvolvimento já implementadas, com base no controle do acesso aos recursos genéticos, que variam em diversos aspectos, de acordo com a realidade, os costumes, as necessidades e as possibilidades locais. Os principais exemplos concretos foram realizados na África e na América Latina, e podem ser divididos em três tipos, grosso modo: contratos nacionais, contratos com participação pouco relevante do governo central e contratos mistos.
Na África Central e do Norte, os projetos de desenvolvimento sustentável com base na exploração dos recursos genéticos têm sido realizados por grupos isolados, como universidades ou comunidades locais, na maioria das vezes de maneira desarticulada com os governos centrais. Seriam bons exemplos os contratos inseridos no International Cooperative Biodiversity Groups (ICBG), ou os contratos realizados entre comunidades locais e empresas farmacêuticas transnacionais, com o intermédio de universidades dos Estados Unidos. Na África do Sul, o governo lançou um programa de bioprospecção em outubro de 1998, integrando diversas entidades públicas e comunidades locais.
Na América Latina, o maior exemplo de desenvolvimento sustentável com base na exploração controlada dos recursos genéticos está na Costa Rica, onde a exploração controlada é realizada pelo Instituto Nacional de Biodiversidade (INBio), em consórcio com diversas entidades internacionais e agências de cooperação internacional, entre as quais a Merck, a Fundação MacArthur e a Universidade de Cornell. O INBio é uma instância específica capaz de negociar acordos, demandas, taxas, royalties e a partilha dos resultados, e que, ao mesmo tempo, monitora as atividades de prospecção. O Instituto não é uma agência governamental, mas uma organização privada sem fins lucrativos, criada pelo Ministério dos Recursos Naturais, Energia e Mineração em 1989. Sua missão é de desenvolver mecanismos para sustentar a biodiversidade por meio do aperfeiçoamento dos conhecimentos aplicados à sua realidade e ao reconhecimento econômico de seus recursos naturais.
Há também contratos entre universidades de outros países e grupos norte-americanos, vinculados ao ICBG, que envolvem diversos países e contratos diretos entre comunidades locais e empresas transnacionais. Nesta parte do artigo, estudaremos um pouco destas modalidades de contratos internacionais, com o objetivo de formar a base necessária para estudar as possiblidades de desenvolvimento no cenário brasileiro.
Bioprospecção a partir de contratos internacionais
Grande parte da bioprospecção realizada sem o fomento dos governos locais parte de iniciativa das próprias comunidades, universidades ou, na maioria das vezes, das empresas transnacionais interessadas, notadamente as farmacêuticas e alimentícias. Entre as diversas atividades em curso, os contratos realizados no âmbito do ICBG refletem melhor a situação atual.
O ICBG é uma iniciativa de três agências do governo dos Estados Unidos: o Instituto Nacional de Saúde (NIH), a Fundação Nacional de Ciências (NSF) e a Agência para o Desenvolvimento Internacional (USAID). Estas três agências lançaram editais de financiamento de programas de desenvolvimento local e bioprospecção em 1992, para projetos de curta e média duração e, graças à avaliação positiva dos resultados, novos editais foram lançados nos anos posteriores.
O programa tem como objetivo a criação de elos entre as comunidades locais detentoras de grande biodiversidade e conhecimento tradicional e entidades de pesquisa e desenvolvimento (universidades e empresas transnacionais), com vistas à procura de materiais biológicos para a elaboração de novos produtos pela indústria farmacêutica e agrícola. Os primeiros financiamentos foram da ordem de até US$ 450 mil, e eram aprovados desde que previssem intensa cooperação entre os pesquisadores principais, as agências financiadoras, e as entidades de pesquisas. As principais pesquisas tinham como objetivo o combate de doenças graves e com alto poder de retorno financeiro dos montantes aplicados como Aids, câncer, problemas cardíacos e mentais.
Em contraprestação ao financiamento adquirido, as entidades de pesquisa deveriam transferir tecnologia para os países fornecedores dos recursos biológicos, ensinando etnobiologia, etnomedicina, química, biologia celular, biotecnologia, métodos e controle de qualidade no desenvolvimento de novos produtos farmacêuticos, de modo a possibilitar o aprendizado dos países de origem para utilização de seus próprios recursos13.
Assim, diversos países e instituições foram envolvidos. Na República dos Camarões e na Nigéria, participam: o Instituto de Pesquisas Walter Reed Army; o Instituto Smithsonian; o Programa de Suporte à Biodiversidade, que é um consórcio do Fundo para Vida Selvagem (WWF); a Nature Conservancy e o Instituto de Recursos Mundiais (WRI); a Shaman Pharmaceuticals (do grupo Eli-Lilly) e, pela República dos Camarões, a Universidade de Iaoundé.
Neste acordo, dá-se prioridade ao estudo da medicina das comunidades tradicionais, como o uso de ervas para a cura de doenças locais. Procuram-se remédios para leishmaniose, malária, doença do sono africana e triconomose. Foi instalado um laboratório permanente no Parque Nacional de Korup, na República dos Camarões, financiado pelo Instituto Smithsonian, que provê cursos a estudantes africanos sobre plantio, cultivo e gerenciamento dos recursos naturais14.
Com o passar dos anos, o projeto, iniciado em 1993, acolheu outros participantes, hoje englobando o Centro Internacional para Etnomedicina e Desenvolvimento de Drogas (InterCEDD) de Nsukka (Nigéria), em colaboração com a Universidade de Jos e a Cooperação Científica Africana para Plantas Aromáticas e Fitomedicina15. Estudantes de graduação e pós-graduação são treinados para lidar com estas plantas, com destaque em química, para a extração e processamento desses materiais16.
As agências norte-americanas "sugerem" que as comunidades locais participem das negociações com universidades e empresas, principalmente se houver uso de etnobotânica e emprego de curandeiros para ajudar na identificação, coleta e aplicação das plantas envolvidas. No mínimo, as comunidades devem ser informadas sobre a atividade de coleta e sobre os fins planejados para o material biológico17. Há também necessidade de concordância do governo do país de origem dos recursos genéticos, em virtude da Convenção da Diversidade Biológica. Neste ponto, ressalta-se que se trata de entidades governamentais que financiam o programa, e que têm uma obrigação moral de cumprir os acordos multilaterais já estabelecidos maior do que as empresas transnacionais.
As informações obtidas devem ser publicizadas, não se admitindo a proteção por segredo de negócio. Nada impede que apenas o conhecimento inicial seja aberto, enquanto o processo industrial específico para a fabricação do fármaco com base em uma planta retirada de um destes contratos, por exemplo, seja protegido por patentes ou até por segredo de negócio. Se assim não fosse, dificilmente haveria o interesse de tantas empresas transnacionais pelo setor, pois teoricamente elas atuam apenas quando há garantias de proteção intelectual de seus produtos futuros.
Prevê-se também um período para desistência do contrato, um termo final em caso de arrependimento das comunidades locais. Muitas vezes, esses contratos devem ser feitos em diversas línguas, com exata correspondência dos termos, de forma que não deixem dúvidas e que sejam acessíveis a todos os participantes. As agências norte-americanas sugerem também a participação das comunidades indígenas nos contratos.
As comunidades locais decidem quanto cobrar pelo material biológico fornecido e como seus recursos serão distribuídos. Todavia, um problema enfrentado pelas comunidades tradicionais é a própria inexistência de modelos a seguir, pois a maioria dos contratos em andamento não é feita com comunidades indígenas, mas com universidades, ou jardins botânicos, até porque, até há pouco tempo, não se pensava em compensar os índios pelo seu conhecimento18.
No caso da Nigéria, paga-se adiantado 5% do valor do projeto para o grupo que está ajudando nos trabalhos. Se uma droga for descoberta, mais plantas serão necessárias; e a comunidade se dispõe a fornecê-las, quando receberá somas maiores pelo trabalho. Ainda neste exemplo específico, o grupo entrega 25% do que ganha às comunidades locais.
Prevê-se também uma percentagem sobre o faturamento da empresa com os produtos porventura obtidos. Esta parcela do faturamento é variável conforme a ajuda da comunidade local, conforme o valor agregado à matéria-prima. Se a mesma fornecer apenas material biológico seco, receberá de 1 a 2% das vendas; se um extrato vegetal, de 3 a 5%; se se tratar de um componente químico, de 5 a 7%. Tudo depende do nível de desenvolvimento da pesquisa realizado na origem do recurso biológico.
Metade dos royalties é dividida com o governo local, o que advém da atenção ao princípio da soberania nacional sobre os recursos genéticos. No caso da Nigéria, para garantir a entrega dos royalties, foi feito acordo com a Universidade de Howard, pois o contrato com uma universidade americana é mais seguro do que com uma empresa farmacêutica ou com uma cooperativa de empresas, como no caso. É mais fácil à universidade exigir o cumprimento do contrato do que a comunidade fazê-lo19.
Grupos semelhantes foram formados em diversos países vizinhos do Brasil. Assim, no Suriname trabalham20 o Instituto Politécnico da Universidade Estadual da Virgínia (VPI), a International Conservancy (CI), a CI-Suriname, o Jardim Botânico do Missouri (MBG), a transnacional farmacêutica Bristol-Myers Squibb, o Herbário Nacional do Suriname e o Bedrijf Geneesmiddelen Voorziening Suriname (BGVS). O programa tinha como objetivo pesquisar novos materiais biológicos com aplicações na indústria farmacêutica e promover atividades de extensão, com a implementação de programas educacionais pelo país.
No Peru, objetiva-se também a busca de novos produtos farmacêuticos. Neste caso, participam a Universidade de Washington, o Museu de História Natural do Peru e a Universidade Catyetano21, o Jardim Botânico do Missouri e a transnacional Monsanto.
No Chile, na Argentina e no México, trabalham em conjunto as Universidades Católica do Chile, Nacional da Patagônia, Nacional do México, do Estado de Lousiana, Purdue, e a transnacional American Cyanamid Company, de origem norte-americana e que atua tanto no setor farmacêutico, quanto no agrícola22.
Programas nacionais de incentivo à bioprospecção
Outros países, com parque científico e massa crítica mais desenvolvida ou mesmo pela simples sensibilidade de investir mais recursos neste setor, criaram programas nacionais de bioprospecção com o objetivo de fortalecer a pesquisa nacional e melhor controlar os recursos advindos. Destacam-se a África do Sul e a Costa Rica.
A África do Sul organizou um consórcio de várias entidades com o objetivo de realizar bioprospecção, em 2 de outubro de 1998 (CSIR), que começou a estudar 23 mil plantas indígenas, durante um período inicial de 10 anos. As pesquisas são realizadas pelo seus Conselhos de Pesquisa Médica, Conselho de Pesquisa Agrícola, Instituto Nacional de Botânica, as Universidades de Cape Town, Western Cape e do Norte. Prevê-se a integração de entidades do governo norte-americano, como o NIH. Os contratos são realizados diretamente com chefes das comunidades locais, microempresas e companhias farmacêuticas, que prevêem desde o estudo até o desenvolvimento final dos produtos a ser comercializados23.
Na Costa Rica, destaca-se o INBio, que mantém acordos de bioprospecção com diversas instituições, com e sem fins lucrativos (NIH), principalmente norte-americanas. Em 1991, criou-se uma unidade de prospecção de produtos farmacêuticos com base em material biológico, financiada com recursos do próprio Instituto e de empresas privadas que tivessem interesse em pesquisar novos produtos.
O maior contrato do INBio foi assinado com a Merk & Co., para o estudo de plantas, insetos e material biológico, para o desenvolvimento de novos produtos farmacêuticos. A empresa norte-americana comprometeu-se a pagar US$ 1 milhão pela exclusividade do acesso às amostras de seres vivos daquele país durante 2 anos, e mais outros US$ 135 mil para a aquisição de equipamento laboratorial. Ao todo, são 10 mil amostras biológicas, retiradas da Reserva de Talamanca24.
Além dos recursos concedidos, a Merck & Co. obrigou-se a transferir tecnologias para as universidades costarriquenhas e promover aperfeiçoamento de pessoal nos laboratórios da empresa nos Estados Unidos25. Há também previsão de participação nos royalties dos produtos que porventura sejam descobertos ou inventados com base nestes recursos. A percentagem é sigilosa, mas fica entre 2 e 6%26. Não significa que o INBio não possa vender amostras a outras empresas, mas sim que não pode alienar a terceiros as mesmas amostras vendidas à Merck, podendo fazê-lo com relação a amostras diferentes27.
Um décimo dos recursos obtidos pelo INBio, no caso, US$ 100 mil, foi destinado à manutenção e ao gerenciamento dos parques nacionais da Costa Rica, um recurso considerável quando se trata de um país pequeno, com poucos recursos financeiros. 40% dos recursos, ou US$ 400 mil, são destinados à realização do inventário dos recursos existentes. Destes 40%, aproximadamente US$ 100 mil se destinam ao ensino e pagamento de pessoas das comunidades locais em áreas de conservação para coletarem e identificarem o material biológico. Os habitantes são treinados em parataxonomia e são pagos pelo número de amostras fornecidas.
Há ainda equipes técnicas do ICBG que são contratadas com programas nacionais, como é ainda o caso do INBio, que reuniam condições favoráveis para o desenvolvimento de trabalhos de prospecção. Junto com o INBio, participaram a Universidade de Cornell e a transnacional farmacêutica Bristol Myers Squibb, as quais se dedicaram à pesquisa de insetos e outros invertebrados com chances de colaborar no descobrimento de novas drogas contra um grande número de doenças. O trabalho foi coordenado pelo INBio e as coletas foram feitas na área de conservação de Guanacaste, ao norte do país28.
Brasil cenário interno
O Brasil é o país do mundo que detém maior biodiversidade. Representa um terço da América Latina em território, dispõe de um número de doutores em áreas relacionadas com biotecnologia e desenvolvimento de novos produtos muito superior aos demais países ricos em biodiversidade, assim como de outras características que colocam-no em ótima posição na exploração de seus recursos genéticos. No entanto, nenhum programa expressivo ou contrato comparável com os anteriores foi realizado. É difícil não concluir que algo foge à visão imediata: Costa Rica, Suriname, Peru, Argentina, Chile, México, isto para ficar apenas entre os países vizinhos29, têm contratos e programas de bioprospecção razoáveis com efetiva transferência de tecnologia, e o Brasil participa pouco deste tema.
Ao nosso entender, existe uma certa inércia ou mesmo uma falta de iniciativa das autoridades envolvidas na criação de mecanismos para este tipo de desenvolvimento. Os programas até então em andamento, a exemplo do Probem, tiveram suas verbas cortadas. Sem entrar no mérito do corte de verbas em um programa importante e com grande alcance social, é incrível como as autoridades brasileiras atribuem uma importância extrema ao projeto de lei de acesso aos recursos genéticos, como se este fosse resolver o problema do controle dos recursos genéticos brasileiros. No entanto, as discussões em torno da lei de acesso aos recursos genéticos andam em círculos e importantes oportunidades de cooperação científica já foram desperdiçadas.
Neste ponto, é importante fazer algumas considerações. Primeiro, a ineficácia da lei frente à impossibilidade de fiscalização contra a biopirataria é flagrante. Em segundo lugar, as grandes empresas transnacionais não se exporão a serem acusadas de biopirataria e não realizarão bioprospecção no Brasil, se existem outros muitos países que não têm legislação rígida e ainda incentivam a bioprospecção ligada às comunidades locais e às universidades. A imagem da empresa no cenário internacional, com valores ambientais crescentes e muitas vezes decisivos, pode ser um forte elemento de pressão. Aliás, este é um dos motivos pelos quais diversos países amazônicos angariam recursos, realizam contratos, detêm tecnologia e o Brasil não. Por último, pouco valor terá uma legislação de acesso se não houver uma obrigatoriedade internacional de indicação da origem geográfica do material biológico utilizado nos produtos e processos objetos de pedido de patente, como critério para o deferimento, em nível internacional.
Sem dúvida, o controle do acesso aos recursos genéticos passa por um processo de regulamentação. A criação de uma comissão com representantes da sociedade civil para julgar caso a caso as possibilidades de bioprospecção parece ser a melhor idéia até o momento, desde os membros sejam escolhidos com precisão e de forma democrática.
A propriedade intelectual sui generis, não exclusiva, para bioconsevadores, sob um controle governamental também30, mas o fato é que não se trata de uma lei que criará o controle do acesso aos recursos genéticos, nem mesmo tornará eficaz a utilização destes recursos pelos próprios nacionais.
Brasil posição diplomática frente à revisão do TRIPs
A discussão da regulamentação do acesso aos recursos genéticos passa necessariamente por uma revisão das normas de propriedade intelectual. O sistema de patentes é a chave da cooperação e a forma de regular a distribuição de recursos provenientes de novos processos e produtos bioquímicos decorrentes do material genético coletado. A distribuição dos recursos angariados é prevista na CDB e em outros documentos internacionais, mas estes não possuem o poder de vincular os Estados aderentes.
O Brasil foi alvo de severas pressões dos Estados Unidos para a adoção da lei de patentes hoje em vigor. Alguns produtos brasileiros foram taxados durante um tempo considerável em 100% ad valorem, muito embora a prática do GATT condenasse este tipo de atitude; os prejuízos foram desastrosos e recaíram sobre setores de alto emprego de mão-de-obra, o que trouxe grandes problemas sociais. De forma mais razoável, os EUA ingressaram com um panel contra a Índia, no âmbito da OMC, pela ausência de mecanismos apropriados de propriedade intelectual, que culminou na condenação desta a criar novos mecanismos legais, o que foi feito há pouco.
O cenário atual, no entanto, é outro. A questão da biodiversidade ganhou dimensão internacional e o apoio de vários países industrializados. Tanto os países ricos em biodiversidade como a Comunidade Européia são favoráveis a uma regulamentação internacional eficaz da matéria.
Neste cenário de superposição de competências entre os organismos internacionais, não temos dúvidas de que a entidade mais recomendada a regulamentar a matéria é a própria OMC, pois prevê, em seu ato de composição, o desenvolvimento sustentável, a defesa do meio ambiente e da propriedade intelectual e concentra cada vez mais um poder significativo de decisão no cenário internacional, e que o melhor momento para as negociações é exatamente este, em que o acordo TRIPs é renegociado.
Deve-se ter em mente que o cenário de propriedade intelectual é outro neste momento, distinto do existente há dez anos, e pode ser utilizado em prol de países como o Brasil. A propriedade intelectual se mostra como um instrumento para o desenvolvimento no tocante a biodiversidade, se utilizada da forma adequada. Entre os pontos que poderiam ser acrescentados, como forma de reforço dos instrumentos de propriedade intelectual a favor dos países ricos em biodiversidade, destacam-se: a indicação geográfica do material biológico utilizado em processos/produtos de patentes e a realização de contratos de distribuição de benefícios de acordo com a CDB, como condição para novas concessões; a extensão da inversão do ônus da prova no tocante a verificação desta origem geográfica do material biológico utilizado em novos processos e produtos objetos de pedidos de patentes, entre outros.
Na diretiva européia relativa ao tema, a CE apenas não realiza propostas, pela ausência de outras proposições internacionais dos países interessados, mas se predispõe ao apoio a propostas nas negociações diplomáticas. Neste cenário, é justamente o Brasil que aparece como principal interessado e como o ator mais forte para começar a discussão no âmbito da revisão do TRIPs. A discussão poderia ser inserida no processo de integração meio ambiente-comércio inter-nacional, por que passa a OMC e certamente teria fortes aliados (G77, Índia, UE).
Considerações finais
À luz das principais questões relativas à biotecnologia na agenda internacional, enfatizamos a complexidade da questão do acesso aos recursos genéticos ligada à transferência de tecnologia entre países desenvolvidos e os outros, ou prospectores e fornecedores de recursos genéticos. Procuramos também apontar que os grandes obstáculos políticos para a cooperação em C&T envolvem interesses públicos e privados, muitas vezes sem o respaldo científico necessário para acelerar o processo decisório.
Haja vista a falta de legislações nacionais sobre o acesso a recursos genéticos, e a ineficácia do direito internacional (e da OMC) em impor um controle internacional contra a biopirataria, os Estados industrializados colaborariam muito se exercessem um "controle de importador", ou seja, se questionassem os industriais sobre a origem do produto, como o fazem com tantos produtos agrícolas, no tocante a transferência de recursos fitossanitários.
Por isso, o Brasil deve propor na OMC a "prova inversa" da origem, segundo a qual o acusado deve provar a origem dos recursos genéticos utilizados. Com certeza, os outros Estados ricos em biodiversidade aceitariam, os EUA seriam desfavoráveis e a União Européia teria o poder de decidir a questão.
No caso do Brasil, a própria espera pela futura lei nacional de acesso é fonte de problemas. Bons contratos podem ser realizados, mesmo com entidades estrangeiras, sob a legislação atual, em conjunto com entidades nacionais. Mesmo que uma futura lei de acesso imponha um outro método de trabalho, o contrato será um ato jurídico perfeito e não poderá ser atingido pela nova norma legal. O debate parlamentar sobre a lei de acesso já dura há quatro anos, e, embora ela continue na pauta de discussões, não há perspectiva de um acordo final, e muito menos da regulamentação pelo Executivo do que for aprovado.
Programas e modelos contratuais de incentivo à bioprospecção devem ser incentivados e reforçados, não apenas em conjunto com entidades estrangeiras e transnacionais, mas também pelas próprias instituições brasileiras de pesquisa. O Brasil já está muito atrasado nisso; o INBio tem dez anos e os contratos com os países vizinhos estão em curso há mais de seis anos. Recursos para programas como o Probem deveriam ser retomados, criando uma consciência do potencial de desenvolvimento sustentável que está sendo desperdiçado.
Notas
Bibliografia
Agosto de 1999
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
08 Set 2008 -
Data do Fascículo
Dez 1999
Histórico
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Aceito
Ago 1999 -
Recebido
Ago 1999