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Gênova 2001: balanço do mundo neoliberal
Virgílio Caixeta Arraes
Dois fenômenos abalaram a Itália no mês de julho: o primeiro, de ordem climática, referiu-se à erupção do maior vulcão ativo da Europa, o Etna, na Sicília. Em face do risco de as lavas atingirem cidades próximas a ele, o governo declarou estado de emergência, para liberar verbas de apoio para a região. Houve prejuízos à agricultura e ao turismo que foram remediados, parcialmente, em função da intervenção estatal.
O outro, de ordem político-econômica, foi em Gênova e, ao contrário do efetuado na Sicília, não se evocou a ação do Estado para interromper os desequilíbrios provocados pelo processo atual de globalização ou, ao menos, minimizar os prejuízos sociais da população mundial. Desta forma, as lavas da especulação financeira e do distanciamento tecnológico continuam a deslizar intrépidas pelo planeta, com as conseqüências mais funestas possíveis.
Foi uma coincidência que o encontro do G-8 se realizasse em Gênova, que, ao lado de Veneza, foi uma das principais fontes do capitalismo no distante século XIV, ao ser o centro das negociações comerciais e de transporte de mercadorias especiarias, principalmente entre a Europa e o Oriente.
Esta forma de encontro iniciou-se em 1975, na França, com os 5 países mais industrializados do mundo, para debater a recessão mundial que se aprofundara com a crise do petróleo de 1973. Paulatinamente, chegaria a 7. Em 1991, a Rússia, herdeira dos escombros soviéticos, foi aceita como um membro à parte, em função do seu reduzido peso econômico, ainda que militar, populacional e territorialmente continuasse significativa.
Se, nos seus primeiros encontros, havia a preocupação deste grupo de preservar a lucratividade e a produtividade de suas economias, havia, também, a preocupação secundária de preservar minimamente o Estado do bem-estar social, de modo que se afastasse a atenção do socialismo, cuja robustez, em meados dos anos 70, parecia indiscutível. Atualmente, não há mais o perigo do socialismo real personificado por uma nação: a Rússia moderna aspira a ser aceita como membro pleno das organizações capitalistas, ao passo que a China faz uma transição para um capitalismo de Estado, que intriga o Primeiro Mundo, em razão dos possíveis desdobramentos de mudança, nos próximos anos, da configuração do tabuleiro mundial.
O G-8 reúne-se, diretamente, uma vez por ano; constantemente, por meio de seus organismos subsidiários, como o FMI, Banco Mundial ou a própria ONU, e, especialmente, por conferências específicas, como as rodadas de comércio. Não há mais a necessidade de se pensarem formas, ao menos mínimas, de inclusão interna ou externa, visto que não há opositor formal viável, da ótica do Estado-Nação, ao modelo vigente. Contudo, esta ausência não significa que haja plena aceitação do sistema vigente, bastando verificar os primeiros grupos organizados de resistência ao processo existente de globalização.
A sua aparente dispersão, com ampla pauta de reivindicações, é o reflexo de que os interesses capitalistas também estão difusos, ao não mais apoiarem-se apenas no Estado-Nação, depois de dezenas de gerações, mas espraiarem-se, por meio de um direito internacional advindo de relações de força, por organizações internacionais e corporações por reunirem atividades de serviços e industriais, por exemplo transnacionais, cuja identidade com uma nacionalidade é secundária diferentemente das antigas multinacionais.
O reflexo importante deste processo, no início do século XXI, é a recuperação do sentimento de indignação ante os problemas globais, como a pobreza e a destruição do meio ambiente, pondo-se de lado a indiferença e o desânimo que marcaram os primeiros anos da queda do muro de Berlim, em 1989, a ponto de se proclamar o fim da história, do ponto de vista político e econômico.
Paralelamente ao encontro oficial de cúpula do G-8, houve a realização do Fórum Social de Gênova, que atraiu mais de 800 organizações de todo o globo, inclusive, por parte do Brasil, o MST e a CUT. Com as lembranças da rodada do comércio de Seattle ainda vivas, o governo italiano colocou cerca de 15 mil policiais e militares para cuidar da segurança do evento. Além disso, cancelou provisoriamente o teor do Acordo de Schengen, que garante a livre circulação de cidadãos nascidos na União Européia e, desta forma, pôde barrar quase mil manifestantes, antes do evento começar. O aeroporto da cidade, reservado apenas para o G-8, chegou a receber uma bateria de mísseis antiaéreos, do mesmo porte das utilizadas na Iugoslávia.
A despeito do porte do policiamento, não se conseguiu acompanhar as manifestações das organizações de modo sereno: o assassinato do ativista Carlo Giuliani, por dois tiros, refletiu o modelo de tratamento que, já há muito tempo, os governos de todo o mundo utilizam para tratar de reivindicações sócio-políticas: a repressão desmedida. Como conseqüência, houve manifestações de protestos em mais de 30 cidades italianas. Em Roma, dezenas de milhares de pessoas bradaram palavras de ordem contra o governo Berlusconi e a polícia. A coligação de esquerda, Oliveira, apresentou moção de desconfiança contra o Ministro do Interior, Cláudio Scajola, responsável pela organização do evento. Não se pode esquecer de que, além da morte de Giuliani, houve cerca de meio milhar de feridos e mais de cem presos, segundo o G-8, ou mais de 200, segundo polícia de Gênova, além da violenta invasão da sede do Fórum Social de Gênova. O saldo material foi o prejuízo de milhões de dólares, que o governo italiano prometeu remediar.
Quais os resultados concretos de encontros como este? Quais seus reflexos positivos sobre o cotidiano das sociedades? A propalada redução da dívida externa dos países pobres anunciada pelo encontro não atinge sequer 3% do total, dado que a maior parte dos créditos pertence ao FMI e ao Banco Mundial e mesmo assim são draconianas as condições para a remissão: precisam submeter-se ao menos 6 anos consecutivos de programas de ajustes fiscais e não podem haver renegociado essa dívida após 1985.
Segundo José Vidal Beneyto, Secretário da Agência Européia de Cultura, ligada à UNESCO, entre 1982 e 1998, a periferia pagou quase 4 vezes o valor total de suas dívidas para chegar a um saldo devedor de quase 3 vezes mais do que 1982. De acordo com ele, essa dívida ultrapassa 2 trilhões de dólares, com um serviço anual de 200 bilhões.
Concomitante ao G-8, realizou-se, na Alemanha, reunião de ministros do Meio Ambiente de 178 países para a discussão da redução da emissão de dióxido de carbono para a próxima década (2012), em seqüência ao Protocolo de Kyoto, de 1997. Os Estados Unidos, embora responsáveis por 36% desta emissão, não assinaram, ao alegar que este acordo impediria o seu pleno desenvolvimento econômico, apesar de terem ratificado, ao lado de mais 158 países, o Protocolo.
Além do mais, passou quase despercebida a rejeição dos Estados Unidos à regulamentação da atualização do Acordo Internacional de Armas Biológicas, de 1972, negociado havia 7 anos por 56 países. Para os Estados Unidos, a proposta, aceita pelos demais países desenvolvidos, colocaria em risco a sua segurança, ao permitir inspeções em instalações militares, o que poderia facilitar a espionagem. A ironia é que a revisão partiu dos próprios americanos em função da Guerra do Golfo, em 1991. O mesmo se aplica à ratificação do tratado que bane o uso de minas terrestres, rejeitado por Clinton, com a justificativa de que os Estados Unidos ainda poderiam precisar delas na fronteira entre as duas Coréias.
Desta forma, qual o balanço final deste encontro? Um documento permeado de retórica, com questões ambíguas: fórum para combater a pobreza na África; criação de fundo de saúde da ONU para combater a AIDS e outras doenças infecciosas; combate global à pobreza, especialmente na África; reforço da propriedade intelectual TRIPS -; realização de uma conferência para a discussão do meio ambiente, a ser realizada em 2003 e nova rodada mundial de comércio.
O resultado para o Terceiro Mundo é a sua confirmação em papel secundário no cenário internacional: a desfaçatez dos prosélitos do atual processo de globalização chega ao ponto de advogarem um comércio internacional regido por uma divisão de trabalho quase similar à dos séculos XVIII e XIX, com os países exportando o que produzem de melhor, ou seja, não havendo a necessidade, desta forma, de investimentos nacionais em tecnologia e pesquisa. A interdependência do processo de globalização proporcionou, no âmbito latino-americano, modestos resultados sociais, com a progressiva desarticulação da insuficiente infra-estrutura já existente.
Prova disso é a constatação, nesse caso, insuspeita do Banco Mundial, que registra o índice de 40% de obsolescência tecnológica e produtiva das corporações transnacionais instaladas no Terceiro Mundo, em relação a suas matrizes o Brasil ocupa o 28º lugar no rol dos exportadores. Desta forma, percebe-se a razão por que a integração financeira no Terceiro Mundo se dá pela via mais tortuosa: a da especulação, que marca o país com déficits orçamentários, uma relação da dívida com o PIB cada vez maior, aumento de juros, desvalorização da moeda, crise energética e constante monitoramento de organismos internacionais, como o FMI.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
26 Ago 2008 -
Data do Fascículo
Dez 2001