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Controle social nas organizações

ARTIGOS

Controle social nas organizações

Fernando C. Prestes Motta

Professor do Departamento de Administração Geral e Recursos Humanos da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas

A temática do controle social nas organizações é central, na análise organizacional, por diversas razões, entre as quais se destaca o fato de que as organizações são essencialmente instâncias de produção de bens, de conhecimentos, etc, bem como instâncias de controle, a serviço de sistemas sociais maiores. Tal fato não tem passado despercebido à teoria organizacional, tanto no que diz respeito aos mecanismos de controle que se efetivam no interior das organizações, como no que se refere à crítica, já dotada de ampla tradição na área, e às formas tradicionais assumidas pelos arranjos organizacionais. A proposta contida neste ensaio é colocar o problema do controle social das organizações e esboçar uma avaliação da literatura clássica corrente, na crítica dos arranjos organizacionais altamente voltados para a função de controle social. Isto posto, haverá possibilidade de formulação de uma hipótese maior, dedutível em outras, tanto no que diz respeito à pesquisa teórica, quanto à empírica.

De início, parece importante colocar o fato de que a organização é o sistema social mais formalizado da sociedade, sendo, portanto, um sistema de significativas condutas institucionalizadas. Se é verdade que a família é uma instituição central na sociedade, concluise então que as demais organizações, de há muito, são as principais responsáveis pelas formas de conduta dos atores sociais. As empresas são centrais, não só porque produzem bens e serviços, mas também porque produzem formas de comportamento e formas de raciocínio. As escolas, cada vez mais cedo, preparam os indivíduos para determinados papéis no sistema produtivo, com tendência a legitimar as organizações de forma habitual.

As elites organizacionais, por sua vez, têm nesses mecanismos a sua própria lógica. Velhas e novas gerações de elites organizacionais podem adotar novas atitudes quanto a práticas políticas, administrativas, etc. Agem, porém, segundo a lógica da organização, enquanto instância de produção e controle social. Nas palavras de Stinchcombe, feitos os reparos de detalhe e de situação específica, "(...) se as novas elites organizacionais são socializadas em uma cultura de elite, freqüentando escolas com outros membros de elite, participando de parlamentos e sendo ideologicamente doutrinadas em um partido político dominante, estão propensas a aceitar as normas usuais que governam a competição pela riqueza, prestígio e poder organizacionais".1 1 Stinchcombe, Arthur L. Social structure and organizations. In: March, James G., ed. Handbook of organizations. Chigago, Rand McNally, 1965, p. 144. É desnecessário insistir no fato de que tal ideologia se irradia pelas organizações, e de que, mesmo que as organizações nunca cheguem a utilizar completamente os indivíduos para seus propósitos, estes também jamais chegarão a conseguir tudo o que desejam das organizações.

Tal constatação associa-se à idéia do contrato psicológico, isto é, ao fato de que indivíduos e organizações se confrontam com uma série de expectativas mútuas. Na medida em que tais expectativas jamais são completa e formalmente definidas, há sempre lugar para a surpresa e para a contestação de percepções anteriores. Assim, tanto frustrações como estímulos entram no processo de adaptação indivíduo-organização. Esse processo é sempre bidirecional, com a renúncia de ampla margem de liberdade por parte do indivíduo, que concorda de maneira implícita com as demandas "legítimas" da organização, as quais lhe tolhem a liberdade, limitando seus comportamentos alternativos. A organização amolda, em níveis diversos, o indivíduo às suas necessidades. É o processo de socialização.

Por sua vez, também o indivíduo procurará exercer influência sobre a organização, na expectativa de obter satisfação pessoal adicional, dando origem a um processo contrário, que pode ser chamado de individualização. Pessoas dotadas de poder não-formal nas organizações são em geral exemplos de processos de individualização bem-sucedidos. A individualização desempenha um papel importante na renovação organizacional. As organizações vivem muitas vezes sob condições de instabilidade, e precisam ser influenciadas por seus membros, num esforço de adaptação a novas circunstâncias. A evidência mostra que, a longo prazo, a conformidade quase total tende a significar uma vitória de Pirro, comprometendo a sobrevivência da organização. Nem mesmo a rebelião é necessariamente catastrófica para as organizações. Quando um processo desse tipo não termina em mudança organizacional profunda na organização, ou em demissão, muitas vezes o atacante feroz se transforma em defensor intransigente.

A forma de individualização que em geral é mais benéfica para a organização é o individualismo criativo, ou seja, a aceitação pelo indivíduo das normas básicas ou absolutamente essenciais para a organização, ou a rejeição de muito daquilo que é apenas relevante ou periférico. O indivíduo assim orientado consegue com freqüência exercer influência sobre a coletividade organizacional divisional ou departamental, o que pode significar muito, pois o relacionamento indivíduo-organização é um relacionamento entre desiguais. Em inúmeros casos, a organização beneficia-se de novas idéias e de formas de desempenho mais eficazes. Todavia, a socialização mediante transferências e promoções dificulta por vezes o individualismo criativo, levando ao conformismo ou à rebelião.

A socialização pode ser entendida como o processo global pelo qual um indivíduo, nascido com potencialidades comportamentais de espectro muito amplo, é levado a desenvolver um comportamento bem mais restrito, de acordo com os padrões de seu grupo. Esse conceito foi bastante utilizado na análise do impacto dos fatores culturais no desenvolvimento da personalidade individual. No que se refere às organizações, o conceito vem sendo empregado em termos de doutrinação e treinamento, reportando-se ao que Edgar Schein chamou "o preço de participar". A socialização organizacional deve ser vista como um processo contínuo, que começa antes mesmo da entrada nesse sistema, já que outros sistemas sociais inculcam, desde o nascimento, valores e normas conformes ao comportamento aceitável em organizações complexas. Não pára aí, porém, o processo; continua durante toda a permanência na organização. Nas palavras de Caplow, em 1964, "os comportamentos apropriados a uma posição organizacional não são adquiridos de uma vez e completamente, quando a posição é assumida, mas são aprendidos e reaprendidos durante o período que dura uma carreira".2 2 Caplow, T. Principies of organization. New York, Hartcourt, Brace & World, 1964. p. 169. Apud Porter, Lyman W.; Lawler, Edward E. & Hackman, J. Richard. Behavior in organizations. McGraw Hill, 1975. p. 162. (Kogagusha International Student Edition)

O processo de socialização é responsável pela lealdade, comprometimento, produtividade e nível de rotatividade. A estabilidade organizacional depende bastante da socialização, o que implica forte transmissão de ideologia. A organização é com freqüência amada e odiada a um só tempo, algo semelhante ao que alguns autores vêm chamando amor-fusão3 3 Enriquez, Eugene. La Notion de pouvoir. In: L'Economie et les sciences humaines. Paris, Dunod, 1967. t. I: Theories, conceptes et méthodes. p. 257-306. 4 Schein, Edgard H. The Individual, the organization and the career: a conceptual scheme. Journal of Applied Behavioral Science, 7: 401-26, 1971. Apud Porter, Lyman W.: Lawler, Edward E. & Hackman, J. Richard, op. cit. p. 167. . Como um grande número de processos, também a socialização organizacional apresenta suas fases. Não é difícil identificar a fase de chegada, quando um indivíduo traz para uma nova organização ou posição um conjunto de valores, atitudes e expectativas, conjunto esse que será reconstruído no interior da organização. Também não é difícil identificar uma fase de confronto, quando o conjunto de atitudes e predisposições do indivíduo encontra os desejos e valores prevalentes na organização. É a fase em que o indivíduo se submete a reforço e confirmação, a ausência de reforços, ou ainda a reforços negativos, isto é, a reações de aprovação, indiferença ou punição, por ele percebidas como vindas da organização. Finalmente, há uma fase de mudança e aquisição, quando o indivíduo começa a agir de forma a aprender e a desenvolver comportamentos e idéias modificadas.

Algumas dessas aquisições dizem respeito a uma nova auto-imagem, isto é, a uma nova percepção de si mesmo desenvolvida pelo indivíduo, como resultado de sua interação ao seu papel organizacional. Dizem respeito também ao estabelecimento de novos relacionamentos freqüentemente em prejuízo de relacionamentos antigos, à recepção, aceitação e internalização de novos valores e a novos conjuntos de comportamentos, alguns deles essenciais para a permanência na organização e para a obtenção de algumas recompensas. Em termos de necessidade de aquisição, Schein distingue três tipos de comportamentos. Em primeiro lugar, há os comportamentos que podem ser chamados pirrotais, que são aqueles que a organização considera tão essenciais que, na ausência de sua adoção, o indivíduo não estará preenchendo padrões mínimos de desempenho. Em segundo lugar, há formas de comportamento consideradas pela organização como desejáveis mas não absolutamente necessárias. São os comportamentos relevantes. Por fim, há comportamentos permitidos pela organização que eventualmente podem vir a tornar-se relevantes. São os comportamentos periféricos.

A organização promove a socialização de várias formas. A seleção é um método que com freqüência constitui instrumento poderoso. O treinamento, na medida em que desenvolve as habilidades técnicas ligadas de modo direto a tarefas para o desempenho de funções, facilita a mudança de comportamento, em termos de atividades diretamente funcionais. Além disso, o treinamento também age sobre a mudança de autoimagem, sobre a criação de novos relacionamentos e novos valores, isto é, no desenvolvimento de habilidades normalmente chamadas adaptativas. Já o aprendizado é o modo de socialização preferido nos sistemas nos quais os valores a serem transmitidos são tão importantes quanto as realizações. O método implica que a organização delegue a um de seus membros a responsabilidade pela socialização de determinados recém chegados. Algo semelhante ao que sempre ocorreu em organizações tradicionais continua a suceder em muitas organizações modernas. Como o aprendizado não é eficiente quando aplicado a muitas pessoas, em geral se restringe a funções únicas ou cruciais na organização.

Outra fase que os iniciantes em organizações costumam atravessar "refere-se a experiências dramáticas pelas quais passa o indivíduo e que têm o efeito de separá-lo de suas atitudes e formas de pensar anteriores, no que se refere a si próprio, e de substituí-las por uma visão mais humilde que permita uma assimilação mais fácil das influências organizacionais".5 5 Porter, Lyman W.; Lawler, Edward E. & Hackman, J. Richard. Behavior in organizations, p. 169. Às vezes, o processo de mortificação é levado a níveis extremos, como no caso da maioria das instituições totais. Com relação a esse aspecto, afirma Goffman: "(...) o novato chega ao estabelecimento com uma concepção de si mesmo estabelecida por algumas disposições sociais estáveis no seu mundo doméstico. Ao entrar, é imediatamente despojado do apoio dado por tais disposições. Na linguagem exata de algumas de nossas mais antigas instituições totais, começa uma série de rebaixamentos, degradações, humilhações e profanações do eu. O seu eu é sistematicamente, embora muitas vezes não intencionalmente, mortificado. Começa a passar por algumas mudanças radicais em sua carreira moral, uma carreira composta pelas progressivas mudanças que ocorrem nas crenças que tem a seu respeito, e a respeito dos que são significativos para ele".6 6 Goffman, Erving, Manicômios, prisões e conventos. São Paulo, Perspectiva, 1974. p. 24.

Também significativa é a socialização por antecipação, que implica o desenvolvimento de forte identificação do indivíduo com um grupo ao qual ele ainda não pertencia. Tal identificação envolve a adoção de comportamentos semelhantes aos de membros de grupos de nível geralmente mais alto, o que torna o exercício da influência organizacional mais fácil. Muitos outros elementos favorecem ou dificultam a socialização dos indivíduos na organização. Entre outros, o desenvolvimento paulatino do hábito, a aceitação dos demais, que em geral implica a aceitação ou assimilação de determinados hábitos organizacionais, o ambiente de trabalho e o conjunto de deveres relacionados à tarefa, à participação e ao estilo de supervisão. Naturalmente, são também fundamentais as expectativas que os indivíduos têm a propósito de seu trabalho e de sua filiação à organização, bem como as expectativas que os membros da organização têm a respeito dos indivíduos que nela ingressam. Tudo isso entra no campo mais amplo do impacto que os sistemas de controle exercem sobre os indivíduos nas organizações.

Esses sistemas de controle de caráter gerencial acabam por demandar alto nível de controle social, incluindo uma gama muito variada de controles que vão desde os orçamentos e os relatórios de produção até as avaliações de desempenho, os procedimentos administrativos regulamentados e os sistemas de informação gerencial. Para Joan Woodward, o que leva à instituição dos sistemas de controle é a preocupação da administração em saber o que ocorre nos níveis mais baixos da organização. Parece importante a observação de que os sistemas de controle se fazem normalmente acompanhar por sistemas de recompensas e punições. Esses sistemas são utilizados porque as organizações requerem comportamentos que não seriam desempenhados a menos que as pessoas recebessem algum tipo de recompensa intrínseca.

Como coloca Lawler, "os sistemas de controle especificam o comportamento que o empregado precisa adotar, e o sistema de recompensa é criado para gratificar aqueles que desempenham suas funções da forma desejada. Aqui, a parte dos sistemas de controle que se refere à medida de desempenho é crucial porque fornece informação sobre quem deve ser recompensado ou punido".7 7 Lawler III, Edward E. Control systems in organizations. In: Dunnette, Marvin D., ed. Handbook of industrial and organization psychology. Chicago, Rand McNally, 1976. p. 1.250. Existe uma ampla relação entre a adoção desses sistemas, independentes das pessoas controladas, que se alienam em face do controle, e as concepções autoritárias da natureza humana. De qualquer modo, tais sistemas são prevalentemente autoritários e, em regra, são responsáveis por um comportamento burocrático rígido, pela produção de informações sem validade e pela resistência desenvolvida naqueles que lhes estão subordinados.

Muitos autores têm estudado a forma pela qual os sistemas de controle gerencial provocam o comportamento burocrático rígido. Entre outros, são interessantes os trabalhos de Frank, Berliner, Blau e Cohen: "Em termos bastante gerais, pode-se colocar algumas características dos sistemas de controle e das pessoas que favorecem particularmente a ocorrência desse tipo de comportamento. Tais características dizem respeito à inadequação das medidas dos tipos de comportamento que precisam ser assumidos para que a organização funcione com eficácia. Tal inadequação, comumente, decorre do fato de que o sistema de controle não é estabelecido para medir todo o comportamento que uma pessoa deve adotar e do fato de que, para um trabalho particular, pode não haver um único resultado mensurável que contribua para a eficácia organizacional. Os sistemas de controle podem medir muito mais os processos que os resultados obtidos, o que pode levar a pessoa a concentrar-se mais nos primeiros do que na contribuição para a eficácia da organização".8 8 Lawler III, Edward E. Control... op. cit. p. 1.257.

Além disso, os padrões dos sistemas de controle são com freqüência estabelecidos em níveis altos demais e por pessoas que não são aquelas que precisam atingilos. Também as metas organizacionais são muitas vezes obscuras, daí decorrendo uma forte identificação dos membros da organização com subunidades organizacionais. Acresce ainda que os dados levantados pelos sistemas de controle são subjetivos por natureza, tendo uma dimensão que o indivíduo vê refletida em uma área importante de sua competência, sem constituir, no entanto, o cerne dessa competência. Além de ser comum que os padrões sejam estabelecidos sem qualquer participação daqueles que são medidos, as atividades consideradas nem sempre são as mais importantes para o funcionamento da organização.

Não é, portanto, surpreendente o fato de que os sistemas de controle sejam quase sempre responsáveis pela criação de resistências. "São, provavelmente, vistos como frustradores de satisfação em diversas áreas, porque com freqüência reduzem o grau de competência especializada necessária à execução, ou automatizam, padronizam e enrigessem o trabalho. São particularmente relevantes as interferências nas áreas de status, autonomia e segurança".9 9 Lawler III, Edward E. Control... op. cit. p. 1.266. Além disso, os sistemas de controle costumam criar expertos, em prejuízo de outras pessoas que passam a resistir. Deve-se levar em conta ainda que as relações sociais são alteradas, não sendo incomum que relações de cooperação se transformem em relações de competição. Naturalmente, na medida em que as pessoas valorizem essa ordem de satisfações, bem como as advindas da autonomia, tenderão a resistir. Na realidade, são muitos os fatores mais propriamente organizacionais que afetam o impacto dos sistemas de controle baseados em motivação extrínseca sobre os indivíduos. Entre eles merece destaque o clima organizacional.

Aspecto indiscutivelmente decisivo no que tange ao controle, o clima foi descrito por Ayne, em 1971, como "um conceito molar que reflete o conteúdo e a força dos valores, normas, atitudes, comportamentos e sentimentos dos membros de um sistema social".10 10 Payne, Roy & Pugh, Derek. Organization structure and climate. In: Dunnette, Marvin D., ed. op. cit. p. 1.141. Sem dúvida esse é um conceito que, de alguma forma, deve ser levado em consideração quando se analisam mecanismos de controle social em organizações específicas, operando em sociedades igualmente específicas. Embora essa preocupação esteja presente em algumas linhas de teoria organizacional, tudo leva a crer que os estudos sobre clima organizacional e sua ação sobre os mecanismos controladores, assim como suas implicações em termos interculturais, precisam ser mais desenvolvidos.

De qualquer forma, a área de controle social nas organizações é especialmente atraente para pesquisas interculturais. Nesse sentido, alguns estudos tornaram-se clássicos no que diz respeito à empresa japonesa e às empresas predominantes em países do chamado terceiro mundo, bem como no que diz respeito a sistemas governamentais diversos. Nesta última área, a análise comparada tem sido bastante desenvolvida tanto pela literatura norte-americana, na qual Fred Riggs teve um lugar decisivo, quanto pela literatura européia, especialmente a francesa, a alemã e a britânica. A visão comparativa também não é estranha ao meio acadêmico dos países subdesenvolvidos, cujos membros são, por via de regra, profundamente influenciados pelas teorias e modelos elaborados nos países desenvolvidos. Assim, já existe alguma literatura que compara sistemas administrativos latino-americanos produzida na própria América Latina por latino-americanos, geralmente preocupados com a validade das teorias e modelos que receberam.

Muitos desses estudos têm, entretanto, um viés dificilmente contornável, relacionado com o centralismo cultural, isto é, com a relativa incapacidade de perceber instituições dominantes em culturas diversas, a partir de valores culturais próprios e específicos. Mesmo assim, diversas pesquisas conduzidas nessa linha têm-se mostrado de grande interesse e com um potencial analítico considerável. Resta ainda pesquisar melhor se o conhecimento de instituições administrativas estrangeiras contribui, e em que dimensão, para a alteração de práticas e estruturas organizacionais locais. É de se considerar, por exemplo, a hipótese de que, em sociedade onde prevalece um padrão autoritário de relações sociais, as pesquisas e teorias desenvolvidas na área de controle social nas organizações sejam percebidas em termos de padrões culturais dominantes, que interferem, portanto, na interpretação de descobertas relativas a instituições estrangeiras e talvez na influência que tais descobertas possam vir a ter sob o meio nacional. Isto sugere, inclusive, a importância de uma análise interdisciplinar dessa ordem de fenômenos. Certamente, antropólogos, psicólogos, cientistas políticos, sociólogos, economistas, lingüistas e outros especialistas têm o que dizer a propósito de controle social nas organizações.

O que não se pode deixar de considerar é que, como lembram Barrett e Bass, a "cultura desempenha um papel nas habilidades desenvolvidas pelos indivíduos e o fato é mais dramaticamente ilustrado na área das diferenças culturais e nos processos de percepção".11 11 Barrett, Gerald V & Bass, Bernard M. Cross-Cultural issues in industrial and organizational Psychology. In: Dunnette, Marvin D.. ed.op. cit. p. 1.639. E isto por certo está presente não tanto na questão da existência da universalidade da utilização de testes e medidas de pesquisas em culturas diferentes, quanto em variáveis intervenientes nos processos estudados, que precisam ser identificadas e compreendidas. Um dos aspectos essenciais dos mecanismos de controle social presentes nas organizações diz respeito, como foi salientado anteriormente, ao treinamento, parte fundamental do processo de socialização. Essa, no entanto, é uma área em que autores que nela têm trabalhado comprovaram ser restrito o número de pesquisas interculturais desenvolvidas, ao mesmo tempo em que reconhecem sua importância e a necessidade de aprimoramento dos instrumentos de pesquisa de campo.

O trabalho publicado no Handbook of industrial and organizational psychology por Barrett e Bass parte de constatações que tornam claro o que acabou de ser afirmado. É iniciado com a seguinte colocação: "As pesquisas empíricas são limitadas na área de treinamento e desenvolvimento transcultural. Poucas técnicas de treinamento têm sido validadas entre e intraculturas. O principal esforço de pesquisas tem centrado seu objeto de análise de programas de treinamento requeridos para o aumento da eficácia gerencial de administradores que trabalham em uma cultura diferente. Um programa de treinamento, The Culture assimilator (Fiedler, Mitchell e Triandis, 1971), tem sido validado, tanto em estudos de laboratório, quanto em estudos de campo. As investigações transculturais têm uma utilidade considerável para a psicologia industrial e organizacional. A pesquisa que fica confinada a um contexto cultural é limitada, tanto em termos de construção teórica, quanto em termos de aplicações práticas. Uma ampla gama de variações culturais acrescenta uma dimensão necessária e essencial a um campo. O esforço futuro de pesquisa deve ser dirigido para o desenvolvimento de instrumento padronizado, para o refinamento das definições operacionais de conceitos e para a determinação de relações básicas de causa e efeito".12 12 Barrett, Gerald V. &. Bass, Bernard M. Cross-Cultural... op. cit. p. 1.661.

Naturalmente, as práticas de treinamento e desenvolvimento e, portanto, de socialização, variam culturalmente. Isto se evidencia inclusive nas expectativas daqueles que passam pelo processo, o que tem conduzido a certas colocações que assumem um discutível pressuposto de adequação, segundo o qual os padrões de supervisão devem ser autoritários onde as expectativas são de autoritarismo. Está nessa linha o trabalho de Foa a propósito de oficiais e subordinados israelenses. De qualquer modo, tais pressupostos não estão totalmente ausentes de outros estudos desenvolvidos por Ryterband e Barrett e por Meade e Whitaker, a propósito de comparações referentes ao padrão autoritário de supervisão na Turquia e na índia em face dos Estados Unidos. Barret e Bass concluem que, "apesar de problemas conceituais, as nações podem ser ordenadas de acordo com a dimensão da preferência pela supervisão autoritária".13 13 Barrett, Gerald V. & Bass, Bernard M. Cross-Cultural... op. cit. p. 1.661. É possível, mas a inferência de que o padrão autoritário será melhor sucedido, em termos de moral ou produtividade, é algo que passa por múltiplas mediações, não podendo derivar-se automaticamente.

Todavia, o padrão autoritário de relacionamento social e organizacional propriamente dito comporta várias hipóteses que deveriam ser testadas. No que diz respeito ao controle social e à reação por parte dos membros da organização, abre-se um importante campo de indagações que precisariam ser respondidas. Todos nós deveríamos nos inquirir se tal padrão implica ou não uma menor propensão à aceitação do conflito organizacional, e se essa possível menor aceitação diz respeito aos membros da organização como um conjunto ou a categorias específicas, como por exemplo a auto-administração. O controle social e a atitude negativa estão geralmente associados à idéia de que a ordem gera o progresso no mundo maravilhoso da harmonia social. Mas, e se isso não for verdade? Outra indagação refere-se à forma pela qual as pessoas lidam com o controle social e com os conflitos que se lhe associam nas organizações. Em que medida procuram tirar partido de partes em litígio, não se envolvendo demais com qualquer delas, mas envolvendo-se o suficiente e o necessário com ambas? Em que medida, por outro lado, as pessoas optam por terceiras posições? Também cabe indagar se o controle social nas organizações é bastante forte para subjugar de forma total o universo que são os indivíduos. Eles podem, entre outras coisas, viver o controle social organizacional como algo marginal em suas vidas. Podem submeter-se apenas funcionalmente e deslocar suas fontes de liberdade e gratificação para outros níveis. Assim, controle e conflito são aspectos fundamentais e associados nas organizações, mas variará a forma pela qual os participantes lidam com eles.

Tais considerações conduzem à constatação de que, ao lidar com controle social na organização, acaba-se tratando de alguns processos inevitavelmente correlatos, como o conflito organizacional e sua administração. É evidente que também aqui é possível deduzir do tema inúmeros outros mais restritos. Mas, nas palavras de Kenneth Thomas, "a teoria e a pesquisa relativas a conflito organizacional parecem amplamente segmentadas e desintegradas. Embora existam diversas peças advindas de boas pesquisas, de muitos insights teóricos importantes, as ligações teóricas entre elas freqüentemente não são claras. Os pesquisadores observam diferentes variáveis independentes, e assim por diante. É fácil ter a impressão de que conflito é um rótulo geral para diversos fenômenos amplamente relacionados, tais como greves, absenteísmo, discussões, disputas orçamentárias, cismas religiosos, tensões, etc.".14 14 Thomas, Kenneth. Conflict and conflict management. In: Dunnette, Marvin D. ked. op. cit. p. 930. O autor procura a integração necessária, sugerindo um modelo integrador que encerra linhas preliminares de uma teoria do conflito e de sua manifestação. Naturalmente a proposta é ambiciosa e contém apenas de modo latente todas as implicações dela decorrentes. De qualquer forma, oferece um quadro analítico que pode e deve ser desenvolvido.

Thomas constata que a literatura mais recente a propósito de conflito organizacional tem-se concentrado mais na sua capacidade potencial de destruição do que em seus aspectos construtivos. Assim, é com freqüência deixado de lado certo potencial progressista e inovador do conflito, bem como seu papel na manutenção ou promoção da coesão grupai interna. Para Thomas, o conflito traz em si uma promessa, e por essa razão não apenas pode, como deve ser gerenciado. Seu esforço volta-se, portanto, para a construção de um corpo teórico a ser utilizado para auxiliar essa gerência. Partindo do pressuposto de que o conflito é percebido quando uma parte entende que outra a está frustrando, decide-se pela análise do conflito diádico. Para o empreendimento, recorre a dois modelos considerados complementares: um modelo processual e um modelo estrutural.

O modelo processual focaliza uma seqüência de eventos, estudando a dinâmica interna de cada evento e suas influências sobre os demais. São assim considerados frustração, conceituação, comportamento, reação e resultado. A frustração é o momento inicial do processo de conflito: é o momento da percepção, por uma parte, da frustração que lhe impõe a outra. A conceituação é o momento da identificação do conflito, freqüentemente envolta numa percepção subjetiva da realidade. O momento da ação implica uma orientação que varia da competição à cooperação, incluindo objetivos e táticas. A reação é o momento da aceleração do conflito e também o momento de intervenção que reflui sobre a conceituação. Finalmente, o resultado deriva do fim da interação ou deriva da intervenção. Os padrões culturais dominantes, pelo menos nos Estados Unidos, tendem a valorizar e mesmo a idealizar a integração das partes como resultado. Práticas como confrontação, role-playing, etc. tendem a orientar-se para a meta da integração colaborativa.

O modelo estrutural focaliza as condições subjacentes, que dão forma ao comportamento conflitante cuja reestruturação seria objeto da intervenção. Aqui, a realidade objetiva e sua manipulação parecem mais importantes. O conflito diádico a nível da organização precisa, portanto, ser entendido como inserido em u»n quadro de regras e procedimentos, de decisões formais ou informais, que vigoram a respeito das alternativas para a solução desse conflito de negociação e sobre o envolvimento de terceiros. Este quadro é exposto a predisposições comportamentais configurando motivações e habilidades diversas, e a incentivos ao conflito, tais como as influências dos interesses que as partes estão colocando em risco, e a extensão do conflito em face da compatibilidade e da incompatibilidade entre as partes, da competição pelos recursos disponíveis e talvez também, especialmente, das pressões do ambiente social, tais como as sanções de grupos, a opinião pública, ou o julgamento das autoridades.

Sem dúvida as pressões sociais são essenciais, tanto no que diz respeito ao conflito, como no que se refere à temática mais ampla do controle social exercido pela organização. É preciso lembrar que os processos organizacionais reproduzem fortemente as necessidades do sistema social em que a organização se insere, e que seus participantes são levados a agir de acordo com a lógica dessa reprodução. Ideologia, recalcamento, repressão, auto-estima e realização são algumas das formas pelas quais o comportamento organizacional se torna funcional para o sistema maior. Isto diz respeito tanto à influência grupai, extremamente importante, quanto à influência social propriamente dita. Nesse sentido, a própria criatividade pode ser, como afirmou Hall em 1971, a partir de um trabalho de parte de seu próprio grupo de estudos sobre processo decisório, fruto de uma administração de conflito grupai eficaz. Da mesma forma Pelz, em 1956, descobriu que pesquisadores que discutiam seu trabalho com colegas de orientações diferentes tendiam a apresentar melhor desempenho, e Hoffman e Maier, em 1959 e 1961,.descobriram que grupos compostos de membros com interesses diferentes tendiam a produzir soluções de melhor qualidade para uma grande variedade de problemas, do que grupos homogêneos .15 15 Thomas, Kenneth. Conflict... op. cit. p. 891.

A influência macrossocial é exercida por uma infinidade de meios. Convém lembrar que, em uma organização, todos os membros são parte de um sistema social maior, e que não deixam de sê-lo quando estão no interior das organizações. Esses indivíduos fazem e refazem constantemente as transações entre a organização e o meio ambiente social e vice-versa. Inúmeros autores têm chamado atenção para esse fato, e de modo muito especial para as chamadas transações através das fronteiras permeáveis da organização, o que tem sido sublimado pelos teóricos de sistemas em geral e em particular pelos pesquisadores do Tavistock Institute de Londres.16 16 Veja Miller, E. J. & Rice, A. K. Systems of organization. London, Tavistock, 1967. Além disso, as organizações constituem nada menos que o essencial da superestrutura político-institucional de qualquer formação social. Assim, é ao nível das organizações complexas que se realizam as relações de dominação na sociedade. Mas as organizações não são apenas isso: elas são, em conjunto, o local por excelência das relações de produção e das forças produtivas, incluídas, evidentemente, as formas de cooperação, que representam a base material da sociedade, além de constituírem aparelhos ideológicos por excelência. Nada mais lógico do que a realização e a reprodução a nível organizacional daquilo que ocorre em um plano social maior, no qual, sem dúvida, as organizações têm papel central.

O nível da influência grupai é, todavia, mais facilmente visualizável para os indivíduos. O comportamento grupai tem sido exaustivamente estudado pelos teóricos das organizações e pelos psicólogos sociais, em especial a partir de Kurt Lewin. Modernamente, a tradição psicanalítica também tem-se preocupado com o grupo de forma bastante significativa. O trabalho de Bion sobre o comportamento grupai parece ser algo incorporado de modo definitivo aos esforços de compreensão dessa sorte de processos. Outras tradições bastante diversas vêm-se ocupando dos grupos de trabalho: na França, o grupo da análise institucional, e nos Estados Unidos, o grupo do desenvolvimento organizacional. Michael Beer, reportando-se a Likert e referindo-se às intervenções intergrupais em termos dessa última vertente, afirma: "O grupo primário é, provavelmente, o mais importante subsistema do interior de uma organização. Sua importância na configuração do comportamento organizacional faz recordar a visão de Likert da organização com uma série de pequenos grupos ligados por indivíduos que são membros em um grupo, e líderes em outro. Não é, portanto, surpreendente que o desenvolvimento grupai tenha recebido tanta atenção (ênfase)".17 17 Beer, Michel. Technology of organization development. In: Dunnette, Marvin D., ed. op. cit. p. 955.

Naturalmente, a visibilidade do grupo é tão forte para o indivíduo, entre outras razões, porque define o seu "universo social". Faz sentido declarar que "um conjunto de afirmações grupais de uma pessoa pode ser visto como definidor de sua posição, em uma organização, de modo análogo à forma pela qual a posição espacial de uma pessoa define sua posição no universo físico. Nos dois casos, a filiação e a posição espacial afetam fortemente a quantidade e o caráter substantivo dos estímulos aos quais as pessoas estão expostas nas atividades cotidianas".18 18 Hackman, J. Richard. Group influences on individuals. In: Dunnette, Marvin D., ed. op. cit. p. 1.459. O que ocorre a nível do ambiente social é menos visível, mesmo porque a própria relação organização-ambiente, de que tanto se vem falando e repetindo, por vezes com significados tão vagos a ponto de comprometer o conteúdo dos conceitos, é bem menos concreta. Sobre isto é esclarecedora a colocação de William Starbuck, segundo a qual, "em nível não desprezível, um ambiente organizacional é uma invenção arbitrária da própria organização"19 19 Starbuck, William H. Organizations and their environments. In: Dunnette, Marvin D., ed. op. cit. p. 1.078 e 1.080. e, prosseguindo, "o mesmo ambiente, percebido por uma organização como imprevisível, complexo e evanescente, pode ser visto por outra organização como estático e facilmente compreensível".20 20 id. ibid

Esse é o universo do controle social nas organizações. Um universo que envolve necessariamente alguns dos aspectos essenciais de qualquer organização porque é, ele próprio, essência de qualquer organização complexa. Um universo que envolve relações de produção, formas de organização do trabalho, inculcação ideológica, repressão, dinâmica grupai e identificação, conforme detectaram vários autores e pesquisadores, como Lloyd Warner,21 21 Warner, W. Lloyd. Big business leaders in America. New York, Atheneum, 1963; Industrial men, business men and business organizations. New York, Harper, 1960; The American federal executive: a study of the social and personnal characteristics of the civilian and military leaders of the United States federal government. New Harven, Yale University, 1963. antropólogo que percebeu a importância da dimensão psicológica na explicação do sucesso profissional em organizações, e que tanta influência exerceu sobre a sociologia americana. Mais recentemente, Max Pages, pesquisador de Paris-Dauphine, vem também desenvolvendo trabalho de enorme interesse no campo, focalizando o papel da canalização de energia libidinal no controle social das organizações.22 22 Pages, Max. Análise do poder e prática, de mudança nas organizações. Recife, NAI, 1978. Original no CNRS, Paris.

Em particular, o controle social envolve poder e autoridade, pelo simples fato de constituir a própria efetivação da dominação. Por esta razão, a preocupação com o controle social nas organizações é a crítica de como a autoridade se estrutura burocraticamente em organizações tradicionais. A literatura clássica sobre o tema é abundante na tradição da análise organizacional, tornando conveniente e urgente um esboço de avaliação dessa produção intelectual. Tradição quase ininterrupta na história da teoria das organizações, tem em Robert King Merton um pioneiro e, provavelmente, ainda não tem um último representante. Esse esboço de avaliação é o que vamos tentar efetuar a seguir.

1. MERTON, SELZNICK E GOULDNER

Para Robert King Merton, a temática do controle social é tratada via crítica da burocracia, inaugurando uma longa tradição. A burocracia é vista como" portadora de funções e disfunções, e isto nos ajudará a perceber as diferenças entre o "tipo ideal" e a realidade. Para ele, a burocracia pode ser estudada em termos de seu direcionamento para a precisão, a confiança e a eficiência, e de suas limitações para alcançar esses fins. A análise de Merton parte da exigência de controle, por parte da burocracia, para seu funcionamento satisfatório.

Assim, ela exerce pressão sobre o funcionário, em termos de comportamento "metódico, prudente e disciplinado". Tal pressão decorre da necessidade de um alto grau de confiança na conduta dos funcionários.23 23 Merton, Robert K. Sociologia, teoria e estrutura. São Paulo, Mestre Jou. p. 275. Destaca-se, portanto, a relevância da disciplina. Esta só se realiza se os padrões estabelecidos forem sustentados por sentimentos que garantam a dedicação dos funcionários aos deveres burocráticos. Em última instância, portanto, a eficácia da burocracia depende da inculcação de atitudes e sentimentos apropriados a seu funcionamento.24 24 Merton, Robert K. Estrutura burocrática e personalidade. In: Campos, Edmundo, org. Sociologia da burocracia. Rio de Janeiro, Zahar, 1966.

Ocorre, porém, que tais sentimentos inculcados tendem a se intensificarem mais do que o necessário, diminuindo o número de relações personalizadas, substituídas pelo apego excessivo às exigências dos procedimentos burocráticos, estimulado pelo próprio planejamento da vida burocrática, isto é, de uma carreira graduada, caracterizada por promoções, pensões, reajustes salariais, etc. Ao funcionário cabe, portanto, a adaptação de pensamentos, sentimentos e ações, com vistas às perspectivas oferecidas pela carreira. Isto tende a estimular o seu conformismo, conservadorismo e tecnicismo.25 25 Merton, Robert K. Estrutura ... op. cit. p. 104.

Tal inculcação, estimulada pelo formalismo dos pequenos procedimentos, leva ainda à transferência da identificação com os meios, representados pela conduta exigida pelas normas. A submissão à norma, que passa de meio a fim em si mesma, gera, a nível da organização, um deslocamento de objetivos. Em termos das "virtudes" do burocrata, leva à rigidez de comportamento e à dificuldade no trato com o público, a quem a burocracia deve atender.26 26 Merton, Robert K. Estrutura ... op. cit. p. 102.

Tal dificuldade é estimulada pela categorização, isto é, pela tendência ao enquadramento da grande variedade de casos particulares a algumas poucas categorias de tratamento. O burocrata, longe de ser estimulado ao comportamento inovador, é estimulado à segurança e ao conforto oferecidos pela obediência cega aos regulamentos. Previsibilidade e rigidez de comportamento caminham, portanto, de modo paralelo. Por sua vez, ao mesmo tempo em que há uma redução das relações personalizadas, dá-se o desenvolvimento do esprit de corps, a auto-defesa do grupo burocrático perante a sociedade e seu público. O desenvolvimento dessa autodefesa burocrática tende a aumentar a rigidez dos funcionários, cônscios de seus interesses comuns e em busca de defendê-los.

Na linha Merton, a principal conseqüência da rigidez de comportamento é o surgimento de uma organização informal defensiva em face de qualquer ameaça à integridade do grupo, o qual busca atender a seus objetivos, muito mais do que aos dos clientes, para cujo serviço a burocracia existe. Tal fato em geral implica o conservadorismo, bem como a redução ao mínimo de contatos pessoais com os clientes, seguida do tratamento impessoal de assuntos que para estes têm importância pessoal, além do aparecimento do conflito entre o burocrata, que se sente investido da autoridade de toda a organização, e o cliente que, julgando-se muitas vezes socialmente superior a ele, também pode adotar uma atitude dominante.27 27 Merton, Robert K. Estrutura ... op. cit. p. 108.

Embora de forma alguma se possa imputar falta de percepção da realidade à análise de Merton, ela sem dúvida padece das deficiências fundamentais da crítica administrativa. Como bem observa Lapassade, se o desempenho real das organizações que se regem segundo a rigidez burocrática não lhes traz os resultados desejados, por que a administração não se deteriora?28 28 Lapassade, Georges. Grupos, organizações e instituições. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1977. p. 145. A resposta a esse tipo de pergunta vincula-se, necessariamente, à percepção da burocracia enquanto poder e dominação. Isto explica, em parte, por que a "burocracia ama os burocratas e os burocratas amam a burocracia"...29 29 Lefort, Claude. Qué es la burocracia? Paris, Ruedo Ibérico, 1970. p. 246. 30 March, James G. & Simon, Herbert A. Teoria das organizações. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1966. p. 53.

A percepção de todo o modelo desenvolvido por Merton fica bastante facilitada pela análise do gráfico 1 que se segue:


Selznick desenvolveu o seu modelo mostrando, como Merton, algumas formas pelas quais a burocracia acaba alcançando resultados não desejados. Sua análise deriva do estudo da TVA, uma agência regional norte-americana algo semelhante à Sudene, cujos resultados foram publicados em 1949.32 32 Selznick, Philip. Leadership in Administration. Illinois, Evanston, 1957. Em trabalhos posteriores, o seu modelo é um marco de referência subjacente.31 31 Selznick, Philip. TVE and the grass roots. Berkeley, 1949. De modo diferente, porém, de Merton, que salientou o papel das decisões derivadas da exigência de controle, Selznick salienta o papel da delegação de autoridade.

Seu pressuposto é que as burocracias se caracterizam pela busca constante da integração de objetivos de subgrupos à doutrina oficial da organização. É, portanto, o reino do conflito, o reino da tentativa de legitimação de interesses parciais e, com freqüência, divergentes. Partindo do princípio da especialização, a hierarquia delega autoridade, estabelecendo departamentos diversos para assuntos diversos. Com isto, é verdade, os funcionários ganham experiência em domínios restritos, reduzem os problemas nos quais concentram sua atenção e aperfeiçoam a forma de tratá-los. Assim, a prática da delegação de autoridade, que não deve ser vista estritamente como delegação de controle, mas como delegação de funções, é amplamente estimulada. Selznick observa, porém, que alguns problemas decorrem dessa prática.

Em primeiro lugar, deve-se lembrar que não só o teor das decisões organizacionais tende a se modificar, como a produção de ideologias de subgrupos tende a se desenvolver. Assim, sob a pressão de seus ruralistas, a TVA alterou, gradualmente, um aspecto significativo de seu caráter de agência conservadora, contradizendo seus objetivos estabelecidos. Com efeito, refletindo atitudes e interesses próprios, o grupo rural da TVA lutou contra a política de utilização de terras de propriedade pública, contribuindo de forma efetiva para a alteração da política original da TVA a esse respeito. Aliás, a busca inflexível de interesses próprios, por parte do grupo rural da agência, acabou por envolvê-la em um conflito com o Departamento do Interior, a nível da alta administração central federal.33 33 Selznick, Philip. Cooptação: um mecanismo para a estabilidade organizacional. In: Campos, Edmundo, org. op. cit. p. 99.

Em termos simples, a análise de Selznick indica que a delegação de autoridade, bifurcando interesses mediante a especialização, e propiciando o desenvolvimento de ideologias grupais ou subgrupais, acaba por aumentar, no interior dos próprios membros dos subgrupos, a internalização de sub-objetivos, processo em que desempenham um papel básico as decisões de rotina.

Como estas dependem, em primeira instância, dos critérios estabelecidos pela organização, a própria operação das tarefas especializadas será responsável pela criação de precedentes, que acabarão por constituir a reação comum a determinadas situações, transformando-se, portanto, em padrões repetitivos de conduta e internalizando cada vez mais os objetivos dos subgrupos e não os da alta cúpula hierárquica ou da burocracia, como prefere Selznick. A busca de objetivos desejados pode, portanto, transformar-se facilmente na realização de objetivos inesperados e indesejados pela burocracia, entendida em termos das diretrizes estabelecidas pelo comando monocrático.

Embora a análise de Selznick seja interessante e realista, escapa-lhe a verdadeira percepção da burocracia enquanto poder e de sua decorrência: a lógica do comportamento burocrático. Com efeito, o padrão que a análise de Selznick torna transparente oculta o fato de que a burocracia existe pelos burocratas e para os burocratas. Assim, a multiplicação de tarefas especializadas, cargos e departamentos são a própria raison d'être dos burocratas. Em última instância, quanto mais cargos, melhores as condições de aumento do poder burocrático, o que, a nivel de sociedade global, significaria que, quanto mais organizações burocráticas, mais satisfeitos os burocratas. Isto é evidente e relaciona-se com a própria carreira burocrática, sua mobilidade vertical e horizontal.

Na verdade, já em Selznick, tanto quanto em Merton, vamos encontrar a contradição fundamental que permeia a teoria da organização funcionalista sistêmica: a mediação entre teoria e realidade feita por modelos que, quanto mais claros, menor valor explicativo apresentam, e quanto mais ricos, mais perdem esse valor. Isto ocorre porque o modelo é seletivo; parte de hipóteses preferenciais, sem estar inserido em uma teoria histórica. Assim, o valor dos critérios que presidem a escolha das variáveis em jogo é que dá o fundamento do modelo. Selznick não consegue escapar ao aspecto central da crítica administrativa da burocracia: a expressão da razão do poder, muito mais do que do poder da razão.34 34 Tragtenberg, Mauricio. Burocracia e ideologia. São Paulo, Ática, 1974. p. 28. Tal conceito nos faz.pensar duplamente em Veblen. Primeiramente, porque ele foi um dos inspiradores de Merton, com seu conceito de "incapacidade treinada", e em segundo lugar, porque ê dele a afirmação: "A autenticidade e a dignidade sacramentais não pertencem à tecnologia, à ciência moderna, nem às atividades mercantis"...35 35 Veblen, Thorstein. Teoria da empresa industrial. Porto Alegre, Globo, 1966. p. 202. 36 March, James G. & Simon, Herbert A. op. cit. p. 73.

De qualquer forma, porém, para perceber bem o modelo de Selznick, nada mais nítido que o gráfico 2 a seguir.


Segundo o modelo de Alvin Gouldner, a origem das perturbações no equilíbrio da organização como sistema maior, derivadas de técnicas de controle destinadas a manter o equilíbrio de um subsistema, está na adoção de diretrizes gerais e impessoais como forma de solução para o controle exigido pela cúpula burocrática. Naturalmente, a despersonalização diminuí a visibilidade das relações de poder, o que se relaciona de modo direto com o papel do supervisor. Com isto, altera-se o nível de tensão interpessoal no grupo de trabalho.

Para Gouldner, enquanto unidade operacional, o grupo de trabalho tem sua sobrevivencia altamente favorecida pelo estabelecimento de diretrizes gerais, o que só estimula a adoção crescente de tais diretrizes. Ocorre, porém, que as normas de trabalho evocam, nos membros da organização, atitudes mais intensas do que aquelas pretendidas pelos detentores da autoridade, na medida em que, definindo os padrões inaceitáveis de comportamento, essas normas burocráticas ampliam o conhecimento dos padrões mínimos aceitáveis. Se houver baixo nível de internalização dos objetivos da organização por parte dos funcionários, é de se esperar que a explicitação de níveis mínimos de desempenho admissíveis aumente a diferença entre o planejado e o realizado, dando margem ao que, vulgarmente, se dá o nome de nivelamento por baixo.37 37 Gouldner, Alvin. Patterns of industrial bureaucracy. Glencoe, Illinois, Free Press, 1954. Apud March, J. G. & Simon, H. A. op. cit. p.57.

O pressuposto é o da existência, na teoria de Weber, de conflitos decorrentes de uma eventual incapacidade do autor de ver as tensões burocráticas, pelo fato de analisar de forma primordial a burocracia governamental, solidária a nível de aparência. Tal deslize não teria ocorrido se a fábrica tivesse sido seu foco de análise. Ali, as tensões, por serem mais evidentes, forçá-lo-iam a ver que as normas poderiam ser racionais ou vantajosas para um nível hierárquico e não necessariamente para outro. É evidente que o pressuposto peca pela base. Mais uma vez se pretende colar o tipo ideal à realidade e ver o que fica do lado de fora. O nível de abstração em que trabalhou Weber foi bem mais alto. Além disso, é preciso distinguir entre organização burocrática e burocrata. Assim, não é obrigatório que todas as pessoas que trabalham em uma burocracia sejam burocratas. Os operários de uma fábrica, limitados pura e simplesmente a tarefas de execução, não são burocratas, mas trabalham em organizações burocráticas e estão submetidos ao poder burocrático. Isso está cristalino em Max Weber, quando afirma que "é simplesmente ridículo que nossos literatos possam crer que o trabalho não-manual no escritório privado é diferente, um mínimo que seja, do trabalho numa repartição pública. Ambos são basicamente idênticos. Sociologicamente falando, o Estado moderno é uma 'empresa' (Betrieb) idêntica a uma fábrica: esta é exatamente sua peculiaridade histórica".38 38 Weber, Max. Parlamentarismo e governo numa Alemanha reconstruída. São Paulo, Abril, 1974. p. 23. (Os Pensadores)

Para Gouldner, há em Weber, além disso, uma "incipiente distinção entre normas impostas e normas estabelecidas por acordo, indicando dois aspectos mais amplos de um mesmo problema, entrelaçados em sua teoria".39 39 Gouldner, Alvin. Conflitos na teoria de Weber. In: Campos, Edmundo, org. Sociologia... op. cit. p. 61. A afirmação acaba bem, mas começa muito mal: a distinção incipiente é nada mais nada menos do que a visão clara da manifestação da dominação mediante poder de mando e subordinação, e da dominação mediante uma constelação de interesses - uma transformando-se facilmente na outra. Nada mais do que a base da teoria weberiana da burocracia, que nada tem de incipiente!

Tudo fica bem mais simples, quando se percebe a diferença entre "tipo ideal", "construção conceitual" e burocracia concreta e historicamente situada, refletindo as contradições fundamentais de uma dada formação social e contribuindo para acentuá-las. E é isto o que faz a burocracia sob o reino do antagonismo. O que esperar de uma forma de dominação que tem a disciplina como aspecto fundamental, a qual, segundo o próprio Weber, tem como conteúdo "apenas a execução consistentemente racionalizada, metodicamente exercitada e exata da ordem recebida e na qual toda crítica pessoal é incondicionalmente suspensa, cabendo ao ator única e exclusivamente executar a ordem"?40 40 Weber, Max. In: Mills, C. W. & Gerth, H. From Max Weber. New York, Oxford University Press, 1946. p. 254, original norte americano de Weber ..Max. Ensaios de sociologia. 41 March, J. G. & Simon, H. A. op. cit. 1970. p. 74.

Em termos concretos, Gouldner também concebeu um modelo no qual a burocracia é vista como organização dotada de funções latentes e manifestas. A percepção de seu modelo é simples, a partir do gráfico seguinte:

2. MICHEL CROZIER

Michel Crozier procurou fundamentar sua análise do sistema de organização burocrática na luta pelo poder e por sua manutenção. Todavia, não conseguiu, em suas primeiras e mais clássicas análises, fugir aos paradigmas da herança da crítica administrativa da burocracia, já por nós levantados. A crítica inicial de Crozier é um típico exemplo de como um método de análise pode empobrecer um conjunto rico de idéias.

Para ele, sensatamente, não se pode compreender o funcionamento de uma organização, sem levar em conta os problemas da administração. E os problemas da administração são vistos como problemas de ação cooperativa, muito mais do que como problemas de dominação. Por esse motivo, tem como ponto de partida o pressuposto de que "toda ação cooperativa coordenada exige que cada participante possa contar com um grau suficiente de regularidade por parte dos outros participantes, ou seja, que toda organização, qualquer que seja sua estrutura, quaisquer que sejam seus objetivos e sua importância, requer de seus membros uma quantidade variável, mas sempre importante, de conformidade".42 42 Crozier, Michel. Le phénomène bureaucratique. Paris, Seuil, 1963. p. 242.

Até o início do século XX, a conformidade foi obtida por meio da violência, e as empresas do século XIX adotaram o velho modelo burocrático militar. Com toda razão, Crozier salienta que é um erro negligenciar, em sociologia história, a documentação disponível sobre os fundamentos das primeiras grandes organizações comerciais, dos primeiros exércitos permanentes e das ordens religiosas.43 43 Crozier, Michel, op. cit. p. 243. Todavia, Crozier não faz uma sociologia histórica. Apresenta mais um modelo, dotado de quatro traços essenciais que caracterizam a burocracia moderna. Como os demais modelos já mencionados, peca pela falta de colocação da burocracia numa perspectiva histórica.44 44 Lapassade, Georges, op. cit. p. 154.

Os quatro traços que Crozier apresenta, de forma crítica, são:

- a extensão do desenvolvimento das regras impessoais, que vê a burocracia como um freio ao arbítrio e ao favoritismo, mas, ao mesmo tempo, também a vê como um freio ao desenvolvimento da personalidade e da criatividade;

- a centralização de decisões, levando à rigidez organizacional;

- o isolamento dos níveis ou categorias hierárquicas, levando ao deslocamento de objetivos;

- o desenvolvimento de relações de poder paralelas.

O conjunto dessas quatro características tende a constituir uma série de círculos viciosos, reforçadores da impessoalidade e da centralização. Mais uma vez, a camisa de força do método funcionalista não permite perceber o real espírito da burocracia. Volta-se a um idealismo quase hegeliano, mas pobremente hegeliano; ressalte-se que a crítica do jovem Marx, desvendando a mistificação do interesse geral, é ignorada, e a leitura de Weber é feita fora da história. Afora isto, ao fazer uma crítica humanista da sociedade francesa, coloca a participação como um mito.45 45 Crozier, Michel. La Société bloquée, Paris, Seuil, 1970. p. 77. Toda participação será um mito? Há muitos exemplos históricos de participação. Se ela tende a ser uma forma de manipulação ou uma concessão secundária das elites dominantes, trata-se de um outro problema, que merece um estudo mais acurado. A solução é colocada na constituição de sistemas mais abertos de regulação, mediante o que chama de investimento institucional, e tal investimento, "política e economicamente doloroso, começa por tornar os dirigentes políticos mais racionais".46 46 Crozier, Michel. LaSocieté... p. 229. Assim, mudar-se-á a França e, talvez, o mundo... A que outra conclusão se poderia chegar, a partir da douta constatação da burocracia como sistema incapaz de auto correção? Para qualquer outra conclusão, seria necessário que não se fizesse uma crítica burocrática da burocracia.

3. O GRUPO DE ASTON

Em termos bastante gerais, podemos afirmar que o trabalho do Grupo de Aston, na Grã-Bretanha, pretendeu demonstrar, de modo empírico, que burocracia constitui um conceito pluridimensional, ao contrário do que o "tipo ideal" de Max Weber sugere. Escolheram para tanto um caminho ingrato, o teste empírico de uma construção teórica que, por sua própria natureza, não é empiricamente testavel. Ainda assim, de posse de um instrumento analítico relativamente sofisticado, pretenderam invalidar o "tipo ideal" weberiano, com base na descoberta de uma correlação negativa entre estruturação de atividade e centralização na tomada de decisões. Mesmo deixando de lado a ingenuidade da proposta metodológica, resta ainda um problema, que consiste no fato de que Weber parece ter relacionado concentração de poder no topo da hierarquia e atividades altamente estruturadas, o que nada tem a ver com centralização ou descentralização na tomada de decisões.47 47 Prestes Motta, Fernando C. O Sistema e a contingência. In: Teoria geral da administração: uma introdução. 5. ed. São Paulo, Pioneira, 1976.

O trabalho do Grupo de Aston levou ao estabelecimento de uma taxonomía empiricamente derivada, que não pretende ser exaustiva, incluindo sete tipos diversos de burocracia: a) plena; b) plena nascente; c) de fluxo de trabalho; d) nascente de fluxo de trabalho; e) de pré-fluxo de trabalho; f) burocracia de pessoal; g) organização implicitamente estruturada.

Estes tipos refletem o que o Grupo convencionou chamar três "dimensões" burocráticas, operacionalmente definidas: a) estruturação de atividade; b) concentração de autoridade; c) controle de linha de fluxo de trabalho.48 48 Pugh, D. S.; Hickson, D. J. & Hinnings, C. R. An Empirical taxonomy of structures of work organizations. Administrative Science Quarterly, Ithaca, 14(3):378, Sept. 1969. Além dos problemas que, já de início, comprometem sua pesquisa, o Grupo de Aston incorreu ainda em numerosos problemas de natureza conceituai, metodológica e operacional. Houve falha na definição das variáveis e chegou-se a resultados tautológicos, uma vez que formalização e padronização mediram quase a mesma coisa. Além disso, como foi amplamente reconhecido, existindo vinte empresas filiais em sua amostra, teria sido surpreendente encontrar baixa correlação entre centralização na tomada de decisões e perda de autonomia, e não o contrário, como concluíram os pesquisadores. Na verdade, o balanço do trabalho do Grupo de Aston aponta um empreendimento intelectual infeliz, apesar da grande divulgação que alcançou. De resto, todos os problemas encontrados na crítica administrativa da burocracia ali estão presentes.

4. OUTROS CRÍTICOS E OS LIMITES DA CRÍTICA

Há ainda muitos críticos que poderiam ser incluídos na vertente da crítica administrativa da burocracia. Entre eles estão, sem dúvida, W. W. White, Chris Argyris, Maslow, Warren Bynnis, McGregor, Presthus, Likert, Mouton e Blake e Herbert Shepard, que demonstram a obsolescência da organização burocrática, do ponto de vista das necessidades humanas. Alguns desses autores incidiram no engodo da organização pós-burocrática, outros não. Poucos, de qualquer forma, perceberam que o que importa é a análise da burocracia enquanto poder. Mesmo assim, chegaram a algumas colocações que são interessantes, como a de que a burocracia leva a práticas e relações que, em larga medida, repetem a infância.49 49 Thompson, Victor. Moderna organização. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1967. p. 95. Outras análises, estas sim mais interessantes, fogem aos paradigmas da crítica administrativa, colocando o estudo das organizações em um nível de indagação bem mais elevado; a crítica administrativa convencional da burocracia está, porém, há muito em crise, não se podendo esperar dela nenhum grande esclarecimento no que se refere à questão do controle social nas organizações. Ela prometeu muito e cumpriu pouco. A incapacidade de ver a burocracia como forma de poder historicamente situada está no centro dessa crise, que diz respeito não apenas à crítica administrativa, mas a toda a produção intelectual de cunho funcionalista.50 50 Prestes Motta, Fernando C. Teoria das Organizações nos Estados Unidos e na União Soviética. Revista de Administração de Empresas, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 14(2): 1974.

Aqui, porém, não é apenas a análise externa dessas colocações teóricas que revela a crise. São muitas vezes os próprios formuladores de crítica administrativa que chegam à percepção dos impasses que demonstram seus quadros de referência. Este é, por exemplo, o caso de Alvin Gouldner e Michel Crozier. Alguns trechos de obras suas mais recentes falam por si mesmos. Assim, afirma Gouldner: "Três forças contribuíram para a crise em pauta (do estrutural-funcionalismo): I. o aparecimento de novas infra-estruturas, dissonantes em relação à teoria funcionalista estabelecida entre a juventude de classe média, estrategicamente íntima do meio universitário em que a teoria social é feita e transmitida; II. os desenvolvimentos internos à própria escola funcionalista, que inseriram uma crescente variabilidade e hostilidade em seu trabalho - uma entropia - e assim obscureceram a clareza e a assertividade de seus limites teóricos e destruíram sua especificidade como escola; III. o desenvolvimento do welfare state, que aumentou consideravelmente os recursos disponíveis para a sociologia. Os funcionalistas acomodaram-se ao welfare state, mas, ao mesmo tempo, tal acomodação ocorreu através da geração de tensões que envolveram os pressupostos tradicionalmente centrais para o modelo funcionalista".51 51 Gouldner, Alvin. The Coming crisis of Western Sociology. New York/London, Basic Books, 1970. p. 410. Na realidade, o funcionalismo sempre foi uma corrente legitimadora de uma formação social. Sua crise revela a fase mais profunda dessa formação. Basta pensar no que foi a década de 60 nos Estados Unidos e na França, por exemplo, para que isto se torne evidente.

Crozier e Friedberg são ainda mais claros na percepção da crise do quadro de referências que norteia a crítica administrativa da burocracia: "(...) toda estrutura de ação coletiva se constitui como sistema de poder. Ela é fenômeno, efeito e fato de poder. Enquanto construção humana, ela organiza, regulariza, 'provisiona' e cria poder, para permitir aos homens a cooperação em empreendimentos coletivos. Toda análise séria da ação coletiva deve, portanto, colocar o poder no centro de suas reflexões, pois, em última instância, a ação coletiva nada mais é do que a política cotidiana. O poder e sua 'matéria-prima' (...) Entretanto, o poder continua a ser o eterno austnte em nossas teorias da ação social".52 52 Crozier, Michel & Friedberg, Erhard. L 'Acteur et le système. Paris, Seuil, 1977. p. 22 e 24.

Naturalmente, quase tudo que se diz e se escreve sobre controle social nas organizações tem no poder o grande ausente. Também no que se diz a respeito da burocracia, forma de institucionalização da dominação, toda a atenção é concentrada nos arranjos administrativos e quase nenhuma na problemática do poder, o que torna a tradição managerialista bastante empobrecida em muitos aspectos. Fundamental é perceber o fenômeno de distanciamento que ocorre entre muitos teóricos organizacionais e as formulações de Weber, tido como seu inspirador.

5. WEBER E A TRADIÇÃO MANAGERIALISTA

A produção intelectual de Max Weber precisa ser compreendida a partir do marco histórico que a determina - a Alemanha do século XIX - e das primeiras décadas do século XX. A crítica administrativa da burocracia é, portanto, uma leitura específica de Max Weber, que se precisa entender a partir de outro marco histórico, a saber, os Estados Unidos, principalmente da década de 1940 em diante, e de outros países desenvolvidos contemporâneos.

Assim, não se pode perder de vista que o Império Alemão, que desaparece realmente na época da eclosão da Primeira Grande Guerra, existiu durante um século sob as formas da Confederação Alemã, do autoritarismo bismarckiano e do reinado de Guilherme II. O período que vai de 1862 a 1866 tem especial relevância, já que nessa época a hegemonia prussiana sobre a austríaca torna-se um fato histórico e, em grande medida pelas mãos de Bismarck, a unificação alemã torna-se um problema resolvido.

Não fora resolvida, porém, a tensão com a França e as pressões exercidas por Napoleão III, que acabaram constituindo a base política da guerra francoprussiana de 1870 a 1871. Em resumo, os resultados dessa guerra foram a formação do Império Alemão, o II Reich sob Guilherme I, rei da Prússia, e a perda, por parte da França, da Alsácia, salvo Belfort, e da maior parte da Lorena, bem como o pagamento de uma indenização de 5 bilhões de francos.

Se o equilíbrio de poder entre as potências européias garantiu um período relativamente tranqüilo para a Alemanha, tal equilíbrio durou somente até a 1 Guerra Mundial. O país, no pré-guerra, tem uma ação política considerável, buscando a todo custo a aliança inglesa contra as investidas das potências continentais, além de procurar evitar um conflito armado nos Bálcãs, onde fervilhava a rivalidade austro-russa. Talvez, porém, mais do que tudo, sua ação política se concentrasse na busca do isolamento da França, entre outras coisas para que esta não reconquistasse a Alsácia e a Lorena.

De modo mais amplo, todo o período que compreende o século XIX e as primeiras décadas do século atual é de crucial importância política para a Alemanha. Bismarck foi um estadista forte, de ação decisiva. No plano da política externa, articulou todo um conjunto de alianças com a Rússia e Áustria e, posteriormente, com esta última e a Itália, institucionalizando a Tríplice Aliança em 1882. A política externa, de Bismarck, tanto quanto a interna, foi inclusive responsável por sua demissão em 1890, a partir de desacordos manifestos com Guilherme II. O que o primeiro temia acaba por ocorrer: a Tríplice Entente, entre Grã-Bretanha, Rússia e França. A Tríplice Entente surge como uma frente, em face da Tríplice Aliança da qual a Alemanha fazia parte. Esta é a situação às vésperas da I Guerra Mundial. A Alemanha é palco de uma situação interna na qual a hegemonia do Estado sobre a sociedade civil é incontestável. A situação econômica é de instabilidade, e a social e política, de crise e fraqueza. A elite burocrática estatal é forte, na medida em que a burguesia e o proletariado não conseguem se impor nem juntos, nem isoladamente. O Parlamento não tinha qualquer poder efetivo sobre a burocracia, o que equivale a dizer que esta absolutamente não era controlada de forma adequada aos padrões de uma democracia liberal.

No plano econômico, a Alemanha não consegue trocar seus produtos em posição competitiva, devido à Tríplice Entente. No plano social, o clima é de temor. As classes médias obtêm pouco proveito de uma economia dominada por trustes e cartéis. Os grandes proprietários temem os perigos que vêm do exterior, o proletariado procura se proteger no Partido Social Democrata e nos sindicatos. Os pequenos burgueses temem as reivindicações trabalhistas. O Parlamento, sem poder efetivo, está muito longe de poder ser visto como representante real do povo. O delírio coletivo exacerbado do pan-germanismo é dominante no começo do século.53 53 Veja Vermeil, Edmond. The German scene: social, political, cultural- 1890 to the present days. London, George G. Harrap, 1956.

Nesse contexto, Weber estuda a burocracia, e sua erudição o leva à elaboração de uma sociologia, nem positivista nem marxista, onde a teorização sobre a dominação constitui elemento central. A obra monumental de Weber não recusa as determinações históricas. Ao contrário, as instituições administrativas são estudadas em épocas muito diversas, e o estudo da racionalidade burocrática, que lhe é contemporânea, é paralelo ao da racionalidade capitalista. Na Alemanha, onde Weber produz teoricamente, ele é um profeta desarmado. Percebe o poder da burocracia e percebe o seu perigo. No plano político, propugna seu controle pelo Parlamento.

Todavia, a teorização de Weber foi por demais empobrecida pela reinterpretação cultural feita pela teoria administrativa. Todo o esforço foi dirigido no sentido de concentrar a atenção no "tipo ideal" de organização burocrática, de perceber se as organizações reais se adaptavam a ele ou não. Com isto, perde-se de vista a problemática central, ou seja, a dominação burocrática. Assim, a critica administrativa, ao afirmar que estamos passando para uma fase de organizações pós-burocráticas, na verdade legitima ideologicamente a burocracia enquanto poder e dominação que é. Por esta razão, é preciso enfatizar o que é mais rico na sociologia política de Weber: a teoria da dominação.

Max Weber preocupa-se com a forma pela qual uma comunidade social aparentemente amorfa chega a se transformar em uma sociedade dotada de racionalidade. Tal passagem dar-se-ia por meio do que chama de ação comunitária, cujo aspecto fundamental é a dominação. Esta pode manifestar-se como dominação mediante uma constelação de interesses, ou como dominação em função do poder de mando e subordinação. De qualquer forma, porém, uma pode facilmente transformar-se na outra.

A dominação deve ser entendida como um estado de coisas no qual as ações dos dominados aparecem como se estes houvessem adotado como seu o conteúdo da vontade manifesta do dominante. Assim, embora a dominação seja uma forma de poder, ela não é idêntica ao poder. Poder é a possibilidade que alguém ou algum grupo tem de realizar sua vontade, inclusive quando esta vai contra a dos demais agentes da ação comunitária.

A manifestação de qualquer dominação dá-se sob a forma de governo.54 54 Weber, Max. Economia y sociedad. México, Fondo de Cultura Económica, 1974. v. 2, p. 701. Isto ocorre porque as tarefas a serem realizadas exigem um aumento crescente de treinamento e experiência. Assim, a necessidade técnica favorece a continuidade dos funcionários, levando ao que Weber chama de dominação mediante organização. A dominação organizada confere uma vantagem aos funcionários, em face da massa dominada.55 55 Weber, Max. Economia... p. 704. Tal vantagem decorre de seu número relativamente pequeno, que possibilita o acordo rápido no sentido da conservação de suas posições, na criação e direção de uma ação racional. Embora tal vantagem se vá tornando menos provável, na medida em que aumenta o número de funcionários, as disposições que regem a socialização garantem aos chefes terem à sua disposição, de modo constante, um círculo de pessoas interessadas em participar no mando e em suas vantagens.

O círculo de funcionários potenciais, próximos aos chefes, permite o exercício do poder de coação e a manutenção da dominação, configurando aquilo que Weber chama de estrutura de uma forma de dominação: o relacionamento entre o chefe e seu aparato administrativo, e entre ambos e os dominados. Essa estrutura aparecerá nas diversas formas que pode assumir a dominação, fundamentalmente tradicional, racional-legal e carismática. Tais tipos constituem uma resposta à questão da legitimidade da dominação, isto é, dos princípios em que se apoia a exigência de obediência dos funcionários ao senhor, e dos dominados, a ambos.

Como sabemos, a dominação legal fundamenta-se no primado da regra racional estabelecida, manifestando-se em sua forma mais pura na burocracia, tipo específico de sua estrutura. É sempre bom lembrar que Weber tratou a burocracia como "tipo ideal", ou seja, como uma construção conceituai a partir de certos elementos empíricos que se agrupam, logicamente, em uma forma precisa e consistente, mas que, em sua pureza, nunca se encontram na realidade.56 56 Weber, Max. On the methodology of the Social Sciences. Glencoe, Illinois, 1949. p. 90-3. De qualquer modo, porém, o formalismo, a impessoalidade e o profissionalismo burocrático traduzem-se em uma administração heterônoma, onde a autoridade flui de cima para baixo, assumindo uma forma piramidal, e evidenciando seu caráter monocrático, isto é, a obediência ao princípio da unidade de comando.

A heteronomia burocrática significa a ausência de qualquer autonomia individual ou social, no que diz respeito à participação no processo administrativo. A ação individual está claramente limitada pelas posições na pirâmide organizacional. Que não restem dúvidas, para Weber, "a burocracia é um tipo de poder. Burocracia é igual a organização. É um sistema em que a divisão de trabalho se dá racionalmente, visando determinados fins. A ação racional burocrática é a coerência da relação de meios e fins visados".57 57 Tragtenberg, Mauricio, op. cit. p. 139.

Toda a teorização weberiana está inserida em uma filosofia da história que revela um certo grau de pessimismo que outros grandes pensadores sociais não compartilham. Essa filosofia, traduzida em termos simples, implica a tensão entre o carisma, representando as forças criativas e espontâneas da sociedade, e a rotina. "No processo histórico, o líder carismático constitui uma força revolucionária. Nos momentos críticos, quando as instituições sociais se tornam rígidas demais e inadequadas para enfrentar situações difíceis e novas, o carisma, uma força destruidora, derruba a ordem estabelecida e abre novos caminhos de vida. Mas a vitória do carisma sobre a rotina nunca é definitiva. Ao contrário, o carisma termina sendo rotinizado, estabelecendo novamente a ordem das coisas.58 58 Mouzelis, Nicos P. Organization and bureaucracy. Tese de doutoramento, London School of Economics. New York, Aldine-Aiherton, 1972. p. 20.

Para Weber, a burocratização do mundo moderno constituía a maior ameaça à liberdade individual e às instituições democráticas das sociedades ocidentais. A burocracia era, portanto, um perigo, e, por essa razão, devia ser sempre controlada pelo Parlamento.59 59 Weber, Max. Parlamentarismo e Governo ... op cit.

Entretanto, mesmo assim, ele via o político adotando cada vez mais a ética do burocrata, com a burocratização dos partidos políticos. O pessimismo weberiano, longe de ser para nós motivo de desilusão, deve ser um alerta. Mais do que isto, deve-se perceber nele o seu desagrado para com a burocracia. Referindo-se a um debate do qual Weber tomou parte, Warren Bennis faz uma tradução, aparentemente um pouco livre, das palavras de Weber, mas que, de qualquer forma, dá uma idéia bastante forte de suas preocupações nesse sentido: "É horrível pensar que o mundo possa vir a ser um dia dominado por nada mais que homenzinhos, colados a pequenos cargos, lutando por outros maiores; situação que será vista dominando parte sempre crescente do espírito do nosso sistema administrativo atual e, especialmente, de seu produto: os estudantes (...) A paixão pela burocracia é suficiente para levar alguém ao desespero".60 60 Veja Weber, Max. In: Bennis, Warren G. Organizações em Mudança. São Paulo, Atlas, 1976. p. 18.

Coloca-se assim uma discussão teórica fundamental para a questão do poder e do controle social nas organizações, da qual podem ser deduzidas muitas outras hipóteses para pesquisa teórica e empírica.

A nós brasileiros, por exemplo, interessaria conhecer o processo de controle social em empresas familiares e em modernas corporações, entre empresas nacionais e multinacionais. Também não será descabido indagar sobre possíveis diferenças regionais, bem como sobre outras variáveis, como tamanho e antiguidade.

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Ago 2013
    • Data do Fascículo
      Set 1979
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