ARTIGO
Estórias, mitos, heróis - cultura organizacional e relações do trabalho
Maria Tereza Leme Fleury
Professora livre-docente na Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo
1. INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, os trabalhos sobre o campo simbólico têm-se multiplicado nas mais diversas áreas do conhecimento, assumindo importância crescente inclusive na administração.1
Na perspectiva mais comumente adotada por administradores, a cultura é pensada como um sistema de representações simbólicas que expressam formas comuns de apreender o mundo, possibilitando a comunicação entre os membros de um grupo.
Este conceito, a nosso ver, precisaria ser mais trabalhado em termos das múltiplas significações do universo simbólico e suas relações com outras instâncias da prática social, remetendo ainda às questões das relações de poder internas e externas às organizações.
Ao mediar relações e práticas sociais, o campo do simbólico se afigura como uma das instâncias fundamentais para definição das relações de trabalho. Na perspectiva por nós adotada,2 as outras instâncias responsáveis pela determinação dos padrões de relações de trabalho seriam:
a instância política - que confere à relação o seu marco estrutural, situando-a no jogo das forças políticas e econômicas da sociedade;
a instância da organização do processo de trabalho na qual a tecnologia e as formas de gestão do processo produtivo definem as relações de trabalho;
a instância das políticas de recursos humanos - que mediatizam os termos da relação entre capital e trabalho.
A incorporação desta dimensão simbólica prende-se à idéia de procurar desvendar o significado de certas estórias, mitos, rituais, de certos comportamentos e artefatos que perpassam a vida da organização.
A proposta deste artigo é discutir como elementos simbólicos do universo cultural de uma organização expressam e definem padrões de relações de trabalho. Uma breve revisão e sistematização da literatura antropológica e organizacional sobre a temática de cultura foi realizada, visando a elaborar uma proposta conceituai e metodológica que fundamentasse a análise empírica.
2. O CONCEITO DE CULTURA
Na perspectiva da antropologia, a dimensão simbólica é concebida como capaz de integrar todos os aspectos da prática social. A preocupação fundamental da pesquisa etnográfica era desvendar os significados dos costumes de sociedades diferentes da ocidental; partia-se do pressuposto da unidade entre a ação humana e sua significação, descartando-se qualquer relação determinística de uma sobre a outra.3
Como o coloca Durhan, os antropólogos tenderam a conceber os padrões culturais não como um molde que produziria condutas estritamente idênticas, mas antes como as regras de um jogo, isto é, uma estrutura que permite atribuir significado a certas ações e em função da qual se jogam infinitas partidas. Neste sentido, estiveram sempre mais interessados nas mediações possíveis do que nas determinações da infra-estrutura econômica sobre a superestrutura ideológica.
Não existe também a preocupação em se estabelecerem relações entre as representações e o poder. Segundo ainda Durhan, os padrões culturais não são concebidos como instrumentos de dominação, a não ser no sentido genérico de que a cultura é instrumento de domínio das forças naturais.
"A opacidade da sociedade, a inconsciência dos homens em relação aos mecanismos de produção da vida social nunca puderam ser vistas pelos antropólogos, nas sociedades essencialmente igualitárias com as quais se preocuparam, como resultado do ocultamente da dominação de uma classe sobre a outra. Obviamente, é possível analisar relações de poder nas sociedades primitivas, mas isto não é nem o fulcro nem o centro da concepção de cultura" (Durhan, 1984, p. 77).
Entre os sociólogos, uma corrente importante para análise da cultura é a do interacionismo simbólico, cujos autores mais conhecidos são Erving Goffman e Peter Berger. O trabalho de Berger e Luckmann The social construction of reality, como o próprio título indica, procura explorar o processo de elaboração do universo simbólico. Consideramos importante recuperar certos momentos de sua trajetória, pois ele toca (explícita ou implicitamente) em algumas questões centrais para a discussão da cultura. Um outro ponto que justifica uma análise mais detida do pensamento deste autor decorre da influência por ele exercida sobre os estudiosos da cultura nas organizações.
Para Berger e Luckmann (1967), a vida cotidiana se apresenta para os homens como uma realidade ordenada. Os fenômenos estão pré-arranjados em padrões que parecem ser independentes da apreensão que cada pessoa faz deles, individualmente. Em outras palavras, a realidade se impõe como objetivada, isto é, constituída por uma série de objetivos que foram designados como objetos antes da "minha" aparição (enquanto individuo) em cena.
O indivíduo percebe que existe correspondência entre os significados por ele atribuídos ao objeto e os significados atribuídos pelos outros, isto é, existe o compartilhar de um senso comum sobre a realidade.
Um elemento importante neste processo de objetivação é a produção de signos, ou seja, sinais que têm significações. A linguagem é um conjunto de signos com a capacidade de comunicar significados; ela constrói campos semânticos, ou zonas de significados.
Quando um grupo social,, segundo os autores Berger e Luckmann (1967), tem que transmitir a uma nova geração a sua visão do mundo, surge a necessidade de legitimação. A legitimação consiste em um processo de explicar e justificar a ordem institucional, prescrevendo validade cognitiva aos seus significados objetivados; tem, portanto, elementos cognitivos e normativos e dá origem ao universo simbólico. Isto porque no processo de legitimação se produzem novos significados atribuídos aos processos institucionais.
A nível das organizações é possível observar como certos símbolos são criados e os procedimentos implícitos e explícitos para legitimá-los. O mito da empresa como uma grande família, que analisaremos em seguida, exemplifica esta criação de um mito, integrando vários significados e os processos de sua legitimação.
Berger e Luckmann dedicam-se também a discutir os processos de socialização vivenciados pelo individuo, distinguindo entre a socialização primária, em que o indivíduo se torna membro de uma sociedade, e o processo de socialização secundária, a qual introduz um indivíduo já socializado a novos setores do mundo objetivo. No primeiro caso, o indivíduo nasce numa estrutura social objetiva, na qual ele encontra os seus "outros significativos" (na maioria das vezes, os pais e parentes próximos) que se encarregam de sua socialização. Estes "outros significativos" que mediatizam o mundo para o indivíduo, apresentando-o como uma realidade objetiva, modificam-no no curso da mediação. Ou seja, selecionam aspectos que consideram importantes de acordo com sua posição na estrutura social e em função de suas idiossincrasias pessoais (Berger e Luckmann, 1967).
A socialização primária envolve mais do que simples aprendizagem cognitiva - ela ocorre em circunstâncias muito emocionais. A linguagem constitui o mais importante instrumento de socialização.
Se a socialização primária acontece com a grande identificação emocional do indivíduo com os valores transmitidos pelos pais, na socialização secundária a identificação acontece somente na medida necessária para a comunicação entre seres humanos (exemplificando: é preciso amar a mãe, não a professora). Na socialização primária, o cunho da realidade do conhecimento é internalizado quase que automaticamente pelo individuo; na socialização secundária, os conhecimentos podem ser adquiridos numa seqüência de aprendizagem e reforçados por técnicas pedagógicas específicas.
A extensão e o caráter da socialização secundária são determinados pela complexidade da divisão do trabalho e, concomitantemente, pela distribuição social do conhecimento de uma dada sociedade. As idéias sobre a socialização secundária são fundamentais para a análise do processo de integração dos indivíduos à organização.
Para Berger e Luckmann, o universo simbólico integra um conjunto de significados, atribuindo-lhes consistência, justificativa, legitimidade; em outras palavras, o universo simbólico possibilita aos membros integrantes de um grupo uma forma consensual de apreender a realidade, integrando os significados, viabilizando a comunicação. Existiria um processo dialético entre as idéias e os processos sociais de sustentação e legitimação.
A questão do poder e das relações de dominação em uma dada configuração social constitui uma preocupação secundária no pensamento destes autores. Ao discutirem, por exemplo, como uma determinada definição da realidade se torna dominante, os autores elaboram o seguinte raciocínio: em uma sociedade, na medida em que aumenta a divisão do trabalho, o conhecimento vai-se tornando mais especializado: grupos restritos pretendem deter o conhecimento global e teorizam sobre ele. Estes grupos ocupam posições de poder e estão sempre prontos a utilizá-lo para impor as suas definições da realidade àqueles sob sua autoridade.4 As conceitualizações alternativas sobre o universo são se possível incorporadas, se não destruídas. Quando uma definição particular de realidade se vincula a interesses de poder concretos, é chamada de ideologia (Berger e Luckmann, 1967, p. 123).
Em suma, na proposta de sociologia do conhecimento de Berger e Luckmann, a questão do poder é enfocada como pano de fundo sobre o qual se tecem as relações sociais, e não como eixo central da análise.
Suas idéias sobre a construção do universo simbólico, seus processos de legitimação e socialização primária e secundária são fundamentais a uma proposta de estudos sobre a instância simbólica nas relações de trabalho.
Recolocando a questão de ideologia, brevemente mencionada por Berger e Luckmann, observamos que a distinção entre cultura e ideologia abre um veio importante a ser explorado nesta discussão.
Analisando estes dois conceitos, Eunice Durhan (1984) procura mostrar a relação de complementaridade existente entre eles, apontando, entretanto, a inconveniência da eliminação do conceito de cultura e da investigação dos fenômenos culturais em favor da análise da ideologia ou ainda a absorção do conceito de ideologia e da problemática que lhe é própria pelo estudo da cultura. Recuperando a análise feita por Gramsci, ela mostra como para esse autor todo sistema simbólico é ideologia e sendo ideologia é dominação. A autora propõe que se incorpore a dimensão política ao estudo dos processos culturais, investigando como sistemas simbólicos são elaborados e transformados de modo a organizar uma prática política, legitimando uma situação de dominação existente ou contestada: "É importante investigar de que modo grupos, categorias ou segmentos sociais constroem e utilizam um referencial simbólico, que lhes permite definir seus interesses específicos, construir uma identidade coletiva, identificar inimigos e aliados, marcando as diferenças em relação a uns e dissimulando-as em relação a outros. Qualquer elemento cultural pode ser assim politizado sem, entretanto, esgotar seu significado no fato de serem instrumentos numa luta peto poder" (Durhan, 1984, p. 87).
A autora faz, entretanto, a ressalva que uma abordagem desse tipo, que parte de uma análise "de dentro" dos grupos ou movimentos sociais, não pressupõe, necessariamente, a questão do enfrentamento das classes fundamentais nem julga a relevância ou legitimidade dos fenômenos em termos de suas implicações para a reprodução do sistema capitalista.
Por outro lado, segundo ainda esta autora, o conceito de ideologia se refere àqueles sistemas amplos, coerentes e cristalizados de idéias que fornecem uma explicação e uma justificativa da natureza da sociedade e das relações de poder, em termos de sua legitimidade e ilegitimidade. De uma perspectiva gramsciana, a ideologia diz respeito à formulação de projetos hegemônicos, isto é, propostas políticas de transformação ou manutenção da ordem social, no sentido de assegurar a dominação de uma classe sobre as outras. A utilização do conceito de ideologia parte necessariamente de uma perspectiva macropolítica, referente à reprodução do modo de produção e das formas de dominação que lhe são próprias.
Na abordagem antropológica dos fenômenos culturais, segundo Durhan (1967, p. 88) o procedimento é diverso: parte-se das práticas sociais concretas e das representações formuladas por grupos ou categorias sociais, e sua relevância política só pode ser determinada a posteriori. Em suma, parece-nos se possível distinguir duas posturas teóricas básicas ao se trabalhar o conceito de cultura:
a) de um lado, aqueles que consideram a cultura, os sistemas simbólicos como a arte, o mito, a linguagem, em sua qualidade de instrumentos de comunicação entre as pessoas e os grupos sociais e elaboração de um conhecimento consensual sobre significado do mundo;
b) de outro lado, aqueles que consideram a cultura como um instrumento de poder e legitimação da ordem vigente.5
A nosso ver, estas duas posturas não são mutuamente excludentes - é preciso perceber o universo simbólico na sua capacidade de ordenar e atribuir significações ao mundo natural e social, como elemento de comunicação, e ao mesmo tempo perceber a sua função ideológica de ocultar as relações de dominação existentes, relações estas que passam a ser percebidas como naturais, o que, por sua vez, contribui para a conservação simbólica. É nesta linha mais abrangente que pretendemos desenvolver nossa proposta de análise do universo simbólico das organizações.
3. A QUESTÃO DA CULTURA NAS ORGANIZAÇÕES
Como já mencionamos, nos últimos cinco anos, o número de pesquisas sobre o tema cultura organizacional aumentou consideravelmente, pesquisas estas conduzidas sob os mais diversos enfoques teórico-metodológicos.6
Uma tentativa de categorização destas pesquisas foi feita por Linda Smircich (1983). A tipologia proposta por esta autora permite sistematizar o conhecimento produzido na área.
Smircich distingue duas grandes linhas de pesquisa: a primeira enfoca a cultura como uma variável, como alguma coisa que a organização tem; já a segunda linha concebe a cultura como raiz da própria organização, algo que a organização é.
Na primeira linha de estudos é possível distinguirem-se ainda aqueles que definem a cultura como uma variável independente, externa à organização (a cultura da sociedade em que se insere a organização e que é trazida para dentro por seus membros) e aqueles que definem a cultura como uma variável interna (as organizações produzem bens, serviços e produtos culturais como lendas, ritos, símbolos).
O sucesso das empresas japonesas levou muitos pesquisadores americanos a estudarem as diferenças culturais entre os dois países e sua influência sobre o contexto organizacional. Exemplos desta linha de pesquisa são os trabalhos de Inzerelli e Rosen (1983) e Jaeger (1983) que estudam como o controle organizacional varia em função de fatores culturais, comparando organizações japonesas, americanas e inglesas.
Por outro lado, as pesquisas realizadas partindo da premissa da cultura como variável interna procuram enfatizar a importância dos fatores culturais para definição de estratégias organizacionais. A cultura, concebida como um conjunto de valores e crenças compartilhados pelos membros de uma organização, deve ser consistente com outras variáveis organizacionais como estrutura, tecnologia, estilo de liderança. Da consistência destes vários fatores depende o sucesso da organização.
Um exemplo desta linha de investigação é uma pesquisa recente conduzida por Robert Ernst, (1985) em 100 empresas americanas. O autor define cultura como "um sistema de valores e crenças compartilhados que modelam o estilo de administração de uma empresa e o comportamento cotidiano de seus empregados" (p. 50). Partindo da hipótese de que a maneira mais clara de se compreender a cultura é examinar as práticas administrativas da organização, o autor pesquisa 60 itens que definem práticas administrativas. A partir dos resultados da pesquisa, ele constrói uma grade, com duas dimensões, que lhe possibilita identificar quatro tipos de cultura. A grade cultural, segundo o autor, pode auxiliar os administradores no planejamento estratégico da empresa, o qual tradicionalmente é feito levando em consideração somente o ambiente externo; a identificação de novas oportunidades deve levar em consideração fatores culturais. Da mesma forma, o planejamento de recursos humanos (seleção, orientação, avaliação e compensação) deve ser consistente com a cultura organizacional.
A cultura enfocada como variável parte do modelo sistêmico de organizações; no primeiro caso, a cultura é parte do ambiente em que se insere a organização; no segundo, é' resultado do desempenho e de representações dos indivíduos nas organizações.
É importante ressaltar que essas linhas de pesquisa têm um objetivo claramente normativo; ou seja, elas procuram realizar diagnósticos, com análises comparativas que subsidiem a elaboração de estratégias de ação das empresas.
A segunda linha de estudos sobre a cultura organizacional, identificada por Smircich (1983, p. 342), procura ir além da visão instrumental da organização derivada da metáfora da máquina, da visão adaptativa derivada da metáfora do organismo, para pensar a organização como forma expressiva de manifestação da consciência humana. Esta linha deriva o seu conceito de cultura da antropologia, adotando a idéia de cultura como um recurso epistemológico que permite enfocar o estudo das organizações como fenômeno social, como a metáfora do organismo, segundo a qual a autora embasa a visão sistêmica das organizações.
A autora procura diferenciar as várias correntes antropológicas - cognitivista, simbólica e estruturalista - que embasariam as pesquisas sobre cultura organizacional.
Segundo a vertente cognitivista, cultura é definida como um sistema de conhecimento e crenças compartilhados. A tarefa do antropólogo nesta perspectiva, é determinar quais as regras existentes em uma determinada cultura e como os seus membros vêem o mundo. A autora inclui nessa vertente autores como Argyris e Schon, Schrivastava e Mitrof, com a ressalva de que eles não usam o termo cultura em seus estudos; o enfoque cognitivista os leva a perceber as organizações com redes de significados subjetivos e quadros de referência compartilhados que, para o observador externo, aparecem como regras.
Com relação à corrente estruturalista, Smircich reconhece que as tentativas de desenvolver o enfoque teórico-metodológico de Lévi-Strauss para o estudo da cultura organizacional são ainda bastante incipientes.
A corrente mais promissora, do ponto de vista de Smircich (corrente .à qual se filia a autora), é a simbólica; esta define cultura como um sistema de símbolos e significados compartilhados.
Quando a perspectiva simbólica é aplicada à análise organizacional, a cultura é concebida como um padrão de discursos simbólicos que necessita ser decifrado e interpretado. A obra de Berger é fundamental para o embasamento teórico desta linha de pesquisas.
Um trabalho, a nosso ver bastante interessante, realizado sob este enfoque é o de Van Maanen (1982) sobre o corpo de polícia de uma cidade americana. Um dos pontos enfocados pelo autor refere-se ao processo pelo qual as pessoas procuram decifrar a organização em termos de pautar e adequar o seu próprio comportamento. No caso das academias de polícia, é estudado o processo pelo qual os neófitos, recém-graduados, aprendem o sistema de significados mantidos pelo grupo.7
Em outro artigo, Van Maanen (1978) elabora uma tipologia sobre estratégias de socialização desenvolvidas pelas organizações, muito na linha de idéia de socialização secundária desenvolvida por Berger e Luckmann; procura mostrar como estas estratégias (em conjugação com outras atividades de administração de recursos humanos) substituem em organizações modernas o controle realizado através dos meios tradicionais como aplicação de punições, recompensas, supervisão. O autor identifica vários tipos de estratégias de socialização, que podem ser combinados em função de se adequar o mais eficientemente possível o indivíduo aos objetivos e natureza daquela organização.8 Os tipos propostos fornecem pistas interessantes para análise da situação empírica pesquisada.
A nosso ver, um dos autores que vão mais adiante na proposta de trabalhar a questão da cultura, conceituai e metodologicamente, é Edgar Schein (1985). Para ele, cultura organizacional é o conjunto de pressupostos básicos (basic assumptions) que um grupo inventou, descobriu ou desenvolveu ao aprender como lidar com os problemas de adaptação externa e integração interna e que funcionaram bem o suficiente para serem considerados válidos e ensinados a novos membros como a forma correta de perceber, pensar e sentir, em relação a esses problemas (Schein, 1984, p. 9).
A cultura de uma organização pode ser apreendida em vários níveis, segundo este autor:
nível dos artefatos visíveis: o ambiente construído da organização, arquitetura, layout, a maneira de as pessoas se vestirem, padrões de comportamento visíveis, documentos públicos: cartas, mapas. Este nível de análise, segundo Schein, é muito enganador porque os dados são fáceis de obter, mas difíceis de interpretar. É possível descrever como um grupo constrói o seu ambiente e quais são os padrões de comportamento discerníveis entre os seus membros, mas, freqüentemente, não se consegue compreender a lógica subjacente ao comportamento do grupo;
nível dos valores que governam o comportamento das pessoas. Como esses são difíceis de se observar diretamente, para identificá-los é preciso entrevistar os membros-chave de uma organização ou realizar a análise de conteúdo de documentos formais da organização. Entretanto, diz o autor, ao identificar esses valores, observa-se que eles geralmente representam apenas os valores manifestos da cultura. Isto é, eles expressam o que as pessoas reportam ser a razão do seu comportamento, o que na maioria das vezes são idealizações ou racionalizações. As razões subjacentes ao seu comportamento permanecem, entretanto, escondidas ou inconscientes;
nível dos pressupostos inconscientes: são aqueles pressupostos que determinam como os membros de um grupo percebem, pensam e sentem. Na medida em que certos valores compartilhados pelo grupo conduzem a determinados comportamentos e esses comportamentos se mostram adequados para solucionar problemas, o valor é gradualmente transformado em um pressuposto inconsciente, sobre como as coisas realmente são. Na medida em que um pressuposto vai-se tornando cada vez mais taken for granted, vai passando para o nível do inconsciente.
Do ponto de vista de Schein, se a organização como um todo vivenciou experiências comuns, pode existir uma forte cultura organizacional que prevaleça sobre as várias subculturas das unidades. O que se observa freqüentemente é que os grupos com background ocupacional semelhante tendem a desenvolver culturas próprias no interior das organizações: a cultura dos gerentes, dos engenheiros, do sindicato.
Ele atribui, no entanto, a maior importância ao papel dos fundadores da organização no processo de moldar seus padrões culturais; os primeiros líderes, ao desenvolverem formas próprias de equacionar os problemas da organização, acabam por imprimir a sua visão de mundo aos demais e também a sua visão do papel que a organização deve desempenhar no mundo.9
Ao discutir técnicas possíveis de investigação dos fenômenos culturais de uma organização, Schein confere grande relevância às entrevistas com estes membros fundadores, elementos-chave da organização. Propõe também outras técnicas que devem ser usadas de forma combinada: análise do processo de socialização de novos membros; análise das respostas a incidentes críticos na história da organização; análise, junto com uma pessoa de dentro, das características da organização observadas ou descobertas nas entrevistas.
O grande mérito desse artigo é propor um instrumental conceituai e metodológico para se trabalhar com cultura organizacional (segundo a perspectiva teórica do autor) que procura ir além do nível mais aparente do universo simbólico das organizações, tentando penetrar no domínio dos pressupostos inconscientes. Suas idéias e técnicas para investigação nos sugerem pistas interessantes de pesquisa.
Em termos de técnicas de investigação sobre cultura organizacional, outros trabalhos realizados nesta perspectiva simbólica trazem contribuições interessantes. O estudo, por exemplo, realizado por Joanne Martin e colaboradores (1983) utiliza como material empírico estórias das organizações, construindo uma tipologia de estórias bastante curiosas.10
Com isto, os autores pretendem discutir o mito da singularidade da cultura de cada organização, mostrando como a recorrência de certos tipos de histórias, define alguns padrões culturais comuns às organizações.
Retomando a categorização proposta por Smircich para os estudos sobre cultura organizacional, observamos que esta permite situar a maioria das pesquisas desenvolvidas na última década sobre esta temática. Entretanto, apesar das fortes raízes antropológicas dos estudos mencionados, verificamos que, em suas várias vertentes conceituais, eles assumem os sistemas culturais enquanto instrumento de comunicação e visão consensual sobre a própria organização. A dimensão do poder, intrínseca aos sistemas simbólicos (pelo menos nas sociedades capitalistas), e o seu papel de legitimação da ordem vigente e ocultamente das contradições das relações de dominação estão ausentes nestes estudos. Parafraseando Eunice Durhan no artigo citado, seria necessário "politizar" o conceito de cultura, a fim de apreendê-lo como instância definidora das relações de trabalho.
Procurando aprofundar essa discussão sobre cultura e poder, consideramos importante introduzir conceitos desenvolvidos por Max Pagès e seus colaboradores (1979).
Não pretendemos tentar recuperar a trajetória desenvolvida por esses autores para a construção de sua obra, por razões teóricas e metodológicas. O objetivo do trabalho é estudar o poder nas organizações a partir de um quadro teórico que procura aliar o referencial marxista a psicanálise freudiana. Os nossos reduzidos conhecimentos sobre psicanálise nos dificultam muito trabalhar com certos concertos e esquemas de análise desenvolvidos pelos autores. Por outro lado, a proposta metodológica de conduzir o estudo segundo uma postura "sistêmica dialé-Uca", se bem que fascinante, é muito difícil de ser reproduzida e pode-se facilmente cair no erro de emprestar à obra uma linearidade empobrecedora, que ela não possui.11
Assim sendo, optamos por incorporar simplesmente algumas idéias desenvolvidas por Pages, que abrem certos caminhos promissores ao nosso trabalho.
Segundo os autores, o fenômeno do poder tem sido estudado sob diferentes perspectivas:
do ponto de vista marxista, como fenômeno de alienação econômica (a não-propriedade dos meios de produção) que separa os trabalhadores dos meios de produção e dos frutos de seu trabalho;
como um fenômeno sobretudo politico de imposição e controle sobre as decisões e organização do trabalho (são incluídos nesta perspectiva autores bem diferentes como Wright Mills e Foucault);
ao nível ideológico, como um fenômeno de apropriação de significados e valores;
ao nível psicológico, como um fenômeno de alienação psicológica, de dependência, de projeção e introjeção, como sistemas de defesa coletiva inconsciente (Pages et alii, 1979, p. 8).
Os autores pretendem analisar o fenômeno do poder e suas articulações na vida de uma organização, a partir de um enfoque pluridimensional, levando em consideração as dimensões de ordem econômica, política, ideológica e psicológica. Para atingir este objetivo, segundo uma perspectiva dialética, os autores introduzem o conceito de mediação, o qual "é indissoluvelmente ligado ao conceito de contradição, no sentido marxista ao termo" (Pages et alii, 1979, p. 27). O processo de mediação, como já mencionamos, transforma a contradição básica entre capital e trabalho em uma contradição interna às políticas da organização.
Os autores desenvolvem sua pesquisa na filial européia de uma empresa multinacional americana, por eles qualificada de empresa hipermoderna, a qual conjuga alta tecnologia de fabricação com técnicas de administração as mais sofisticadas.12
A organização hipermoderna caracteriza-se pelo desenvolvimento "fantástico" dos processos de mediação, em consonância com as transformações do aparelho produtivo: a intelectualização das tarefas, o papel alcançado pela ciência e pela técnica em todos os escalões da produção, a crescente divisão técnica do trabalho e a interdependência das tarefas, a mudança e a renovação constante. O aparelho produtivo exige trabalhadores instruídos, capazes de compreender os princípios de sua ação (e não simplesmente de realizar tarefas rotineiras), capazes de iniciativa, comprometidos com seu trabalho, adaptados à mudança. Isto pode tomá-los mais livres para organizarem a produção, para interrogarem-se sobre os objetivos da organização. Por sua vez, a organização hipermoderna deve assegurar seu controle sobre as transformações do sistema produtivo, mantendo também o controle sobre as transformações por que passam seus empregados. Isto requer um alto desenvolvimento do sistema de mediações.
Os autores identificam ainda quatro grandes categorias de mediações nas empresas hipermodernas:
1. Mediações de ordem econômica: altos salários, carreira aberta, contribuindo para destruir os vestígios da sociedade feudal: castas, diplomas, ligações familiares que subsistem na sociedade capitalista clássica.
2. Mediações de ordem política: desenvolvimento de um sistema decisório, que assegure o governo a distância de segmentos vastos e complexos da empresa matriz; substituem-se para tanto as ordens e interdições por regras e princípios interiorizados conforme a lógica da organização. Desaparece a figura do chefe tradicional, "pequeno soberano local das empresas capitalistas clássicas", substituído pelo chefe intérprete das regras da organização.
3. Mediações de ordem ideológica: desenvolvimento da organização como lugar autônomo de produção ideológica, articulada a todas as práticas da empresa: politica de.' pessoal, financeira, comercial. A empresa capitalista clássica é o local privilegiado das relações econômicas - "trabalha-se para ganhar a vida". Ela se apoia sobre certos aparelhos ideológicos da sociedade global como a família, a escola, a religião, os quais ela reforça e é por eles reforçada; não produz, porém, por si mesma uma ideologia própria. A empresa hipermoderna investe também nos aparelhos ideológicos da sociedade global (notadamente .através da intermediação do Estado) procurando influenciar suas orientações e torna-se ela mesma um dos locais por excelência da produção ideológica conservadora. Isto porque ela necessita justificar suas práticas junto a seus empregados, clientes e o público de um modo geral. Ela ambiciona; e em larga medida o consegue, tornar-se um lugar de produção de significado e valor.
4. Mediações de ordem psicológica: desenvolvimento da influência psicológica da organização sobre os trabalhadores. Ao nível psicológico, o par: vantagens/restrições se transforma no par prazer/agonia. A organização funciona como uma imensa máquina de prazer e angústia - a angústia, provocada pela onipresença dos controles, pelo caráter ilimitado e inatingível das exigências, é compensada pelos múltiplos prazeres oferecidos pela organização, principalmente os prazeres de tipo agressivo: o prazer de conquistar, de dominar clientes, colegas, de vencer. O individuo introjeta a nivel do inconsciente as restrições impostas e os tipos de satisfação oferecidos. Cria-se um mecanismo de reforço circular, entre agonia e prazer, que assegura a manutenção do sistema psicológico em consonância com a estrutura da organização e os reproduz.
Evidentemente, as categorias propostas não são estanques, mas se configuram antes de tudo, como cortes epistemológicos, que permitem interpretar a realidade pesquisada pelos autores. Interessa aos objetivos do nosso trabalho explorar mais detidamente as mediações de ordem ideológica e suas articulações com as demais.
O conceito de ideologia desenvolvido pelos autores aproxima-se do conceito de cultura organizacional, tal como este foi trabalhado até aqui. Os autores descartam a definição marxista tradicional (ou vulgar, como querem outros) de ideologia como um sistema coerente e monolítico de idéias, atendendo aos interesses da classe dominante. A ideologia deve oferecer uma interpretação do real relativamente coerente com as práticas sociais dos membros da Organização, fornecendo-lhes uma concepção de mundo conforme suas aspirações.
Segundo Pagès e colaboradores (1979, p. 80), na empresa pesquisada, os empregados partilham fortemente da ideologia, na medida em que participam de sua elaboração, num processo de autopersuasão, que lhes permite contribuir para sua própria subjugação. Isto significa que ela não reside apenas no discurso dos dirigentes, mas é elaborada pelo conjunto dos empregados.
Os autores ressaltam ainda que a contribuição dos individuos à produção depende muito de sua integração ideológica. A função essencial da ideologia não é apenas mascarar as relações sociais de produção, mas reforçar a dominação e conseguir a exploração dos trabalhadores.
Existiria, assim, na empresa hipermoderna a elaboração de uma nova "religião", que é colocada em prática nos dispositivos da política de pessoal.
Utilizando a metáfora da religião, os autores analisam os dogmas, os mandamentos da empresa (consubstanciados nos seus princípios e políticas de pessoal), os ritos (a confissão: as entrevistas para avaliação de pessoal, a missa: as reuniões, o batismo: os programas de integração dos novos funcionários, a catequese: os programas de treinamento, a liturgia: as regras).
A obra de Pagès traz, a nosso ver, algumas contribuições bastante significativas à discussão proposta neste texto.
A primeira delas se refere ao enfoque teórico metodológico adotado pelos autores, que procuram trabalhar a questão do poder na empresa capitalista, em suas várias instâncias e múltiplas mediações. A introdução do conceito de mediação, que transforma a contradição básica entre capital e trabalho em uma contradição interna às políticas da organização, parece-nos fundamental para a apreensão das relações de trabalho no interior da organização.
Em segundo lugar, a análise empírica realizada pelos autores, enfocando o sistema de normas e as práticas administrativas de pessoal como elementos essenciais mediatizando as contradições da empresa, abre interessantes pistas de investigação. Esta proposta vai além daquela feita por muitos autores americanos13 que observam nas práticas administrativas elementos da cultura.
Estas práticas constituem-se tanto como elementos definidores, como mediadores de relações de poder no interior das organizações.
Em suma, ao recuperar o trabalho de cientistas sociais, de psicólogos e administradores sobre esta temática, procuramos ir além da proposta clássica, que define cultura como representações simbólicas que expressam fornias comuns de apreender o mundo, possibilitando a comunicação entre os membros de um grupo. A nosso ver, é preciso "politizar" o conceito de cultura (na linha proposta por Durhan), investigando como o universo simbólico expressa relações de poder, oculta-as e instrumentaliza o pólo dominante da relação.
O estudo de caso sobre relações de trabalho realizado em uma empresa estatal propiciou o material empírico para refletirmos sobre as questões propostas. Nesse estudo de caso, a temática das relações de trabalho foi pesquisada em suas várias instâncias definidoras, sob uma perspectiva histórica. Não nos é possível recuperar, nos limites deste texto, toda a análise realizada; procuraremos assim pinçar alguns elementos que nos parecem interessantes à discussão proposta.
Focaremos o período inicial da história da empresa, período este fundamental para a construção de sua identidade e para a definição dos padrões de relações de trabalho. A análise, ainda que rápida, de suas relações com o Estado, com o mercado, de suas práticas administrativas e das relações entre as categorias de trabalhadores possibilita o encaminhamento da discussão sobre o universo simbólico, destacando-se certas estórias, mitos, heróis, que expressam este duplo significado da cultura organizacional.
4. CULTURA E RELAÇÕES DE TRABALHO EM UMA EMPRESA ESTATAL
A empresa pesquisada foi criada na década de 40, sendo contemporânea à primeira geração das empresas estatais brasileiras.
Os seus primeiros anos de vida foram bastante difíceis, marcados pela insegurança financeira e fragilidade técnica e administrativa; foram também anos de luta para consolidar sua posição no mercado nacional e internacional.
Superados os obstáculos de financiamento, operação, e assegurado o seu posicionamento no mercado, a empresa começou a adquirir formato empresarial próprio. Em função de características de suas atividades produtivas (produtora, transportadora e exportadora de insumos básicos) e de sua inserção no mercado internacional, conseguiu definir suas estratégias de crescimento com um certo grau de autonomia em relação às políticas governamentais.14
O crescer, vencendo sempre desafios e obstáculos, que surgiu como meta prioritária na primeira década, foi-se tornando um objetivo permanente, incorporado à sua prática cotidiana. A eficiência em todas as etapas do processo de produção e transporte foi sempre processada através das mudanças no processo de trabalho, através da inovação tecnológica e qualificação de seus quadros técnicos.
Paralelamente, as práticas para administração de pessoal eram simples, pouco formalizadas, atendendo às necessidades mais imediatas do processo produtivo. O processo de recrutamento e seleção era feito de maneira informal pelas chefias intermediárias, acionando sempre que possível as redes de parentesco e amizade entre os empregados. A indicação constituía em primeiro critério para seleção do novo empregado; o outro requisito fundamental era a força física do trabalhador, necessária para agüentar o ritmo e as condições de trabalho. Ó processo de qualificação era feito de forma pontual, segundo as necessidades mais imediatas de preenchimento dos postos de trabalho e segundo critérios bastante personalizados (os supervisores transferiam seus empregados de um posto para outro, facilitando ou, em certos casos, impedindo o processo de qualificação). Ao se diversificarem as tarefas, surgiam as funções, os cargos especializados e esboçavam-se os projetos de carreira.15
As práticas administrativas de pessoal se resumiam aós processos formais de admissão e demissão dos trabalhadores: o fichar o empregado. É importante ressaltar que, do ponto de vista do trabalhador, ser fichado e ter os seus direitos constituía um dos principais atrativos para sé empregar na empresa. O relato de um empregado aposentado é a esse respeito significativo: "Naquele tempo, não tinha escolha. Era a empresa ou o Banco do Brasil. A maioria entrava para a empresa, o filho do ferroviário ia trabalhar na estação, pegava um treinamento trabalhando de graça e depois era admitido. O ambiente era muito familiar: pai e filho trabalhavam juntos."
A estrutura hierárquica da empresa nos seus primeiros anos era muito simples, composta basicamente de três categorias: engenheiros, supervisores (os chamados feitores) e os trabalhadores (os peões). As relações de poder entre as categorias emanavam não só das posições e papéis assumidos no processo de trabalho, mas também de características pessoais e eram exercidas das mais diversas formas, desde as mais coercitivas, às remunerativas e simbólicas.
A primeira instância do poder era representada pelos engenheiros, que acumulavam funções técnicas e diretivas. Representavam a autoridade suprema e legitima por seu conhecimento diferenciado, adquirido nas escolas superiores. Na estratégia da empresa de formação de um quadro técnico-gerencial altamente capacitado, investia-se na formação dos engenheiros, visando-se a obter não só um grupo qualificado, mas, também coeso e comprometido com a própria empresa. A alta cúpula administrativa, diretores e presidentes, era designada pela Presidência da República, por um período delimitado. Eles guardavam semelhanças com os engenheiros, no sentido de que ambos tinham a possibilidade de imprimir à empresa a visão própria do seu vir-a-ser, do seu espaço, da sua missão. Mas, por outro lado, o seu distanciamento do cotidiano da empresa, da relação direta com os outros empregados diferenciava-os dos engenheiros. Estes últimos assumiam integralmente a ambigüidade do seu papel: eram empregados exercendo as funções de patrões, corporificando a seus olhos e aos dos demais a própria empresa.
A segunda instância era representada pelas chefias intermediárias: os feitores, administradores que passaram a ser chamados encarregados, supervisores. Estes detinham a autoridade necessária para disciplinar, em certos casos organizar e exigir produção, e até mesmo para recompensar, na medida em que a não-formalização dos procedimentos de administração de pessoal lhe conferia poder sobre as possibilidades de carreira de seus subordinados. As relações entre os dois grupos eram revestidas de forte dose de ambigüidade: ora eles constituíam um "nós coletivo", ora se colocavam como pólos opostos da relação de trabalho.
A nossa proposta para a análise do universo simbólico desta empresa estatal pesquisada leva em consideração, portanto, esses três pontos: o processo de definição de sua identidade empresarial; as condições de trabalho e elaboração de suas práticas administrativas; e as relações de poder entre as categorias de empregados. Essas dimensões são, ao mesmo tempo, elementos estruturantes e estruturados pelos padrões culturais vigentes.
Na perspectiva adotada, as várias categorias de empregados participam do processo de construção do universo simbólico. As categorias dominantes, diretores, gerentes, imprimem, mais do que outras, a sua visão de mundo sobre a empresa, porém sem o peso, sem a exclusividade que lhes é atribuída por autores como Schein (1983). Segundo este autor, os fundadores (notadamente os fundadores de empresas privadas) desempenham um papel fundamental na criação da cultura da organização; na medida em que eles têm uma visão total do que deve ser a organização, procuram estruturá-la, desenvolvê-la, elaborando elementos simbólicos consistentes (pelo menos no seu próprio ponto de vista) com esta visão. Se a organização é bem-sucedida, o seu fundador sente-se reforçado em seus valores e princípios, imprimindo, com cada vez mais segurança, a sua "verdade" sobre os destinos da organização. Na empresa estatal, em função de sua especificidade, este processo ocorre de forma mais dispersa, e alguns dirigentes desempenham este papel, porém sem a continuidade temporal que acontece na empresa privada.
Procuraremos, portanto, tentar penetrar no universo simbólico da organização pesquisada. O primeiro passo nesta direção será o de recuperar estórias sobre certos incidentes críticos na vida da organização; a análise deste material permite explicitar certos valores caros aos membros da empresa, valores estes fundamentais ao processo de construção dos heróis.
O passo seguinte será no sentido de tentar desvendar o significado dos mitos. Partimos do conceito de Léví-Strauss (1970, p. 140) de que "o mito é, ao mesmo tempo, uma estória contada e um esquema lógico que o homem cria para resolver problemas que se apresentam sob planos diferentes, integrando-os numa construção sistemática". Procuramos recuperar um mito que é bastante característico do período estudado: o mito da "grande família." A tentativa de interpretar este mito é crucial para a compreensão do papel assumido pelo sistema simbólico, tanto como elemento integrador, definidor da identidade da empresa, como revelador dos mecanismos de poder nela engendrados.
5. AS ESTÓRIAS DE CORAGEM E O NASCIMENTO DOS HERÓIS
O período inicial da história da empresa pode ser caracterizado como um período de sobrevivência; tanto a nível da organização, como em termos individuais, era preciso enfrentar uma luta cotidiana para vencer em condições adversas.
Neste contexto, um valor que apareceu subjacente à maioria dos depoimentos, de forma mais explícita ou implicitamente, é o da coragem.
Esta coragem era percebida e trabalhada como um valor a ser desenvolvido em todos os níveis hierárquicos da empresa. Eram os diretores que negociavam com os credores e compradores internacionais com coragem, assumindo atitudes consideradas arriscadas, para colocar a empresa no mapa; eram os engenheiros que realizavam feitos considerados heróicos e arriscados para cumprir ou superar suas metas de produção; eram os trabalhadores que assumiam riscos até de vida para conseguir realizar as tarefas que lhes eram propostas.16
Das estórias sobre os atos de coragem, nascem os heróis, que personificam os valores e provêem modelos de comportamento para os demais.
Na estatal, como não existem claramente os pais fundadores da empresa, os heróis não têm existência a priori, mas vão sendo construídos em momentos de conjugação de forças significativas.
Eles são, geralmente, empregados da própria empresa (os presidentes raramente são apresentados como heróis, em função da sua transitoriedade no cargo - as exceções são dadas por aqueles que realmente se destacaram por alguma situação muito especial ou aqueles presidentes oriundos do quadro de empregados). Ao praticar o ato "heróico", que evidencia não só a sua coragem pessoal, mas também seu comprometimento com a organização, eles vão-se tornando legítimos portadores de uma verdade sobre o destino da empresa, sobre o perfil adequado de seus empregados, sobre os padrões de relações desejados.
Há um episódio da história da empresa pesquisada (relatado em depoimentos, e não em documentos oficiais) que, a nosso ver, exemplifica bem este processo de construção do herói. A empresa havia negociado um contrato internacional vultoso com um novo comprador e necessitava transportar e embarcar com urgência o produto. A linha férrea estava interrompida e se fosse desobstruída pelos métodos normais perder-se-iam dias preciosos para cumprir o contrato; o gerente toma, então, algumas decisões drásticas para desimpedi-la. Ele pede autorização á diretoria no Rio de Janeiro para efetuar o desimpedimento, mas não espera a resposta e realiza o que acha necessário ser feito. A operação toda é bem-sucedida, a empresa cumpre o seu contrato e, quando a resposta negativa do Rio chega, o produto já estava embarcado, a caminho do comprador.
Esta estória, a nosso ver, exemplifica bem os valores subjacentes à construção do sistema simbólico e ao nascimento do herói. Um parêntese explicativo inicial sobre o seu personagem principal é, em nossa opinião, necessário: o engenheiro em questão entrou para a empresa recém-formado e teve um rápido crescimento profissional, chegando a ocupar altos postos executivos. São inúmeras as biografias a seu respeito em documentos e jornais da empresa e da grande imprensa, ou seja, existe um processo de criação "oficial" do mito. Entretanto, esta estória, assim como outras, envolvendo a sua pessoa, foi coletada em depoimentos verbais, o que nos parece significativo em termos metodológicos; ou seja, a tradição oral é um caminho fundamental para se penetrar, no universo cultural, em valores e símbolos que, por razões éticas ou de coerência com as práticas organizacionais, não podem estar explicitados na história oficial.
No episódio descrito, o engenheiro revela uma certa dose de coragem ao enfrentar os riscos de tomar uma decisão difícil que poderia ter repercussões extremamente negativas para a sua própria carreira. Esse risco ele assume para conseguir cumprir as metas propostas, solidificando a posição da empresa no mercado internacional; em outras palavras, ao assumir o risco, ele revela o seu grau de comprometimento com a organização. Corno um herói, ele não só é repositório das qualidades desejáveis nos empregados, como também é considerado um líder legitimo para imprimir o seu modelo, a sua visão do que deve ser a empresa.
Um outro episódio: uma greve ocorrida no final dos anos 40, que uniu feitores e peões contra a administração, parece-nos significativa para exemplificar o nascimento dos anti-heróis. A greve, detonada por questões salariais e de condições de trabalho, assumiu um caráter extremamente violento, tanto em termos de ação dos trabalhadores (depredações, intimações para que todos aderissem) como em termos da reação da empresa (demissões e prisões). Os responsáveis pela eclosão do movimento permaneceram na memória coletiva como figuras muito controvertidas: são avaliados por uns como heróis que lutaram por melhores condições para todos os empregados ("Este pessoal que está aí tem que lembrar que eles têm (...) a mais no salário à custa do sacrifício dos homens que foram demitidos.") e por outros, como falsos líderes, sem organização, sem nada, que exigiam da empresa algo que ela não podia conceder ("A empresa não tinha condição de atender - ela era pobre, igual a nós").
Da mesma forma que no outro episódio, os líderes desse movimento revelaram uma forte dose de coragem pessoal, enfrentando os riscos da repressão, da demissão em nome do interesse coletivo. Entretanto, como o seu comprometimento é com a causa dos trabalhadores, e não com a empresa, eles são punidos e transformados em anti-heróis; "A greve é uma coisa perigosa - todo mundo saiu perdendo, tanto a empresa, como nós."
Os episódios analisados explicitam os valores da cultura da empresa e mostram o nascimento dos heróis que corporificam estes valores. Os heróis tornam-se heróis e passam a ser valorizados como tal, simbolicamente, quando seus atos revelam o comprometimento com a empresa. Senão, eles tornam-se anti-heróis, ou heróis de um grupo dominado que procura encontrar as brechas para definir sua identidade.
6. O MITO DA GRANDE FAMÍLIA
"A empresa antigamente era como uma grande família."
Esta colocação apareceu freqüentemente nas entrevistas e discussões realizadas com os empregados da empresa.
Desvendar o mito da grande família - como ele foi sendo construído, que significado assumiu para cada categoria de empregado - parece-nos um passo importante para a análise do universo simbólico.
Uma ressalva inicial faz-se, entretanto, necessária. A imagem da grande família é freqüentemente utilizada pelas organizações para reforçar o clima de camaradagem e confiança que se pretende e o comprometimento das pessoas com os objetivos organizacionais. Na "grande família" da empresa, o conflito entre capital e trabalho é substituído pela cooperação (cooperação esta pontuada por algumas situações de conflito interpessoal).
A imagem da grande família não é absolutamente uma imagem original e exclusiva da empresa em questão.17 O que nos levou a crer que ela é uma imagem significativa para os nossos pesquisados foi a sua recorrência nos depoimentos individuais e de grupo e o fato de ela remeter-se sempre ao passado: "A empresa era como uma grande família."
Na tentativa de apreender o mito da grande família além das explicações mais ou menos óbvias de que era uma empresa menor, em que todo mundo se conhecia (embora isto nunca fosse verdade, pois desde os seus primórdios a empresa contava com cerca de 6 mil empregados geograficamente dispersos), procuramos investigar os pressupostos básicos que formariam o tecido simbólico da organização.
A nosso ver, a proposta de trabalhar o mito da grande família parte de dois eixos que fundamentam concepções antagônicas, porém complementares, da idéia de família.
O primeiro refere-se à concepção mais clássica, visual, de família como célula elementar da sociedade, fundamental para reprodução e sobrevivência da espécie humana.18 "A ajuda mútua é um elemento caracterizador da família, desde as suas origens. Essa reciprocidade é condição da própria sobrevivência dos indivíduos (Canevacci, 1984, p. 31).
A idéia de uma célula de cooperação, solidariedade, afetividade, numa visão a-histórica do fenômeno da família, constitui a sua face mais evidente, mais exaltada em todas a instâncias da vida social, das manifestações artísticas ao discurso político.
Rebatendo para o plano da empresa, é esta a imagem evocada quando se coloca: "A empresa é uma grande família." E, realmente, recuperando o seu processo de constituição, de formação de sua identidade organizacional, observados como a cooperação e a solidariedade, para vencer condições adversas, para alcançar metas propostas, para crescer, foram importantes. Ou seja, a imagem da família tem razão histórica de ser, por participarem de sua elaboração mútua todos os empregados, e não apenas os profissionais de recursos humanos, tentando vender uma imagem positiva da empresa.
O outro eixo para compreensão da idéia de família fundamenta-se no binômio dominação-submissão. Lévi-Strauss, ao construir o "modelo ideal" de família, já atentava para os vínculos e sentimentos que ligam os seus membros.19 A percepção e elaboração teórica sobre relações de dominação/submissão existentes na família foram desenvolvidas fundamentalmente pela Escola de Frankfurt, com a proposta de aliar o conhecimento psicanalítico à interpretação marxista de sociedade.20
Analisando a família por uma perspectiva histórica, observaram como esta desenvolve em seu interior as relações autoritárias que se articulam dialeticamente com o autoritarismo social, além de ser reprodutora do consenso acrítico. As relações de autoridade assumem a função essencial de fixar, desde a infância, a necessidade objetiva do domínio do homem sobre o homem (Canevacci, 1984, p. 211; Horkheimer & Adorno, 1973, p. 132).21
A família torna-se assim a terrível matriz dos mecanismos de dominação e submissão. A imagem de grande família para os empregados da empresa assume sob esta perspectiva contornos diferentes. A análise do mito propicia assim o desvendar das relações de dominação, presentes no cotidiano da empresa permeando as interações entre categorias de empregados.
O mito da família revela, assim, as duas faces presentes nas relações de trabalho: a face visível de solidariedade, de cooperação, e a face oculta da dominação e submissão.
7. COMENTÁRIOS FINAIS
As tentativas de apreensão dos elementos simbólicos de uma organização implicam assumir a postura do antropólogo, de "imersão na vida organizacional visando a desvendar o seu universo de significações". Segundo Schein, (1985, p.47) "nós precisamos ser cuidadosos em não assumir que a cultura se revela facilmente; em parte, porque raramente sabemos pelo que estamos procurando, em parte, porque os pressupostos básicos são difíceis de discernir e são tão taken for granted que aparecem como invisíveis para estranhos".
A adoção de uma abordagem multidisciplinar, procurando articular categorias e técnicas de investigação de diferentes áreas de conhecimento, das ciências sociais à psicologia, à administração, possibilita ao pesquisador identificar e interpretar os elementos simbólicos à luz de um referencial mais abrangente.
Neste sentido, a proposta desenvolvida neste artigo, de recuperar conceitos elaborados inicialmente pela antropologia e retomados pela teoria organizacional, procurou avançar em termos de apreender a instância do simbólico de uma organização, não apenas em sua capacidade de ordenar, atribuir significações, construir a identidade organizacional, e agir como elemento de comunicação e consenso, como em sua capacidade de ocultar e instrumentalizar relações de dominação.
A análise de elementos simbólicos pesquisados em uma empresa estatal procurou rebater esta proposta para o plano empírico. No processo de desvendar os significados das estórias, dos mitos e heróis, este duplo caráter do universo simbólico foi-se desvelando. E para isto foi essencial recuperar a história da empresa, a sua inserção no cenário político e econômico, o seu processo de trabalho, as relações de poder entre categorias de empregados, as suas práticas de gestão de pessoal. A discussão (ainda que muito rápida neste texto) destes pontos propiciou o referencial necessário à interpretação do seu universo simbólico.
As possibilidades de trabalhar esta proposta não se restringem apenas ao plano das análises acadêmicas, mas podem também propiciar o embasamento necessário à elaboração de projetos de intervenção, notadamente aqueles que envolvem mudanças nas relações de, poder.22 A potencialização de mudanças esbarra, muitas vezes, em resistências advindas de valores, de padrões culturais dominantes na organização. É preciso pesquisar este universo cultural, desvendar suas origens, seus elementos definidores, para conseguir transformá-lo.
No campo das relações de trabalho, mais especificamente, qualquer proposta visando a potencializar novos padrões de relações de trabalho deverá recriar e tecer uma nova cultura organizacional.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
19 Jun 2013 -
Data do Fascículo
Dez 1987