Resumo
A discricionariedade dos agentes públicos vem ganhando importância como objeto de estudo por ser questão relevante na gestão e implementação de políticas públicas. Servidores públicos enfrentam decisões discricionárias de formas variadas, indo desde a construção de modos criativos para gerar bons impactos sociais até, no limite extremo, à inação, por medo de posterior responsabilização por conduta considerada indevida. Este estudo buscou compreender a experiência da discricionariedade para os servidores de carreiras de gestão e os dilemas existentes nessa atuação. Para tanto, procedeu-se a pesquisa qualitativa com especialistas em políticas públicas do estado de São Paulo e gestores governamentais do estado de Pernambuco. A pesquisa de campo englobou coleta por meio de 5 grupos focais. Na sequência, os dados foram analisados por meio da técnica da análise de conteúdo. Identificou-se que o principal dilema enfrentado pelos burocratas se encontra entre decidir dentro de sua competência e no melhor de seu conhecimento ou a inação, por medo de responsabilização, caso a decisão seja julgada como ilegal ou de má-fé. Por consequência, tem-se o chamado “apagão das canetas”. Há um constante trade-off entre a discricionariedade e a responsabilização, havendo meios pelos quais os servidores se valem para atenuar os riscos de sofrer sanções.
Palavras-chave: discricionariedade; experiência; responsabilização; apagão das canetas; trade-off
Resumen
La discrecionalidad de los agentes públicos ha ido cobrando importancia como objeto de estudio por ser un tema relevante en la gestión e implementación de políticas públicas. Los servidores públicos enfrentan decisiones discrecionales de diversas formas, que van desde la construcción de formas creativas para generar buenos impactos sociales hasta, en el límite extremo, la inacción, por temor a la responsabilización posterior por su conducta considerada impropia. Este estudio buscó comprender la experiencia de la discrecionalidad en los servidores públicos de carreras gerenciales y los dilemas existentes en ese desempeño. Para ello, se realizó una investigación cualitativa con especialistas en políticas públicas del estado de São Paulo y gestores gubernamentales del estado de Pernambuco. La investigación de campo incluyó la recolección a través de 5 grupos focales A continuación, los datos se analizaron mediante la técnica de análisis de contenido. Se identificó que el principal dilema que enfrentan los burócratas es entre decidir dentro de su competencia y a su leal saber y entender o la inacción, por temor a la responsabilización, si la decisión es juzgada como ilegal o de mala fe. En consecuencia, existe el llamado “apagón de bolígrafos”. Existe un constante trade-off entre la discrecionalidad y la responsabilización, y existen medios a los cuales los funcionarios recurren para mitigar los riesgos de ser sancionados.
Palabras clave: discrecionalidad; experiencia; responsabilización; apagón de bolígrafos; compensación
Abstract
The discretion of public agents has been gaining importance as an object of study because it is a relevant issue in the management and implementation of policies. Public servants face discretionary decisions in various ways, ranging from the construction of creative ways to generate good social impacts to, at the extreme limit, inaction for fear of subsequent blame for conduct considered improper. This study sought to understand how the experience of discretionary public servants in management careers takes place and their dilemmas. Qualitative research was carried out with specialists in public policies from the state of São Paulo and government managers from the state of Pernambuco. Field research included data collection through 5 focus groups and content analysis. The results show that the main dilemma faced by bureaucrats refers to decision-making based on their competence and current knowledge or inaction for fear of punishment if the decision is judged as illegal or in bad faith. Consequently, there is the so-called “apagão das canetas,” i.e., a decision paralysis. There is a constant trade-off between discretion and blame, and public servants develop strategies to mitigate the risks of being sanctioned.
Keywords: discretion; experience; blame; decision paralysis; trade-off
1. INTRODUÇÃO
A discricionariedade é uma importante ferramenta para o alcance dos resultados planejados por policy makers, como pode ser destacado pelos estudos sobre burocracia de nível de rua (Lipsky, 2010). No entanto, compreender como se dá a experiência do servidor público ao se ver diante da necessidade de utilizar sua discricionariedade é um campo que ainda carece de maior aprofundamento. Para além de uma definição calcada na literatura do direito administrativo (Mello, 2012), ou da racionalidade instrumental da burocracia de Estado (Weber, 2000), buscou-se entendê-la como vivência de trabalho de servidores públicos. Por consequência, desvelou-se que a ação discricionária vai de margem de liberdade para decisão criativa e inteligente até espaço a ser evitado, uma vez que pode gerar responsabilização11 pelos órgãos de controles.
Percebe-se, então, a importância de compreender como se dá essa experiência em situação ambígua - por um lado, tão importante para implantação de políticas públicas e motivadora para o servidor público; por outro, desconfortável, podendo levar a uma atuação normatizada ou, no limite, gerar a inação, ocasionando o chamado “apagão das canetas” (Mendonça & Carvalho, 2022), fenômeno relacionado com o receio de gestores públicos de sofrerem processos administrativos disciplinares ao decidirem de determinado modo, gerando paralisia decisória no serviço público (Santos, 2021). Santos et al. (2022) defendem que controles disfuncionais, que fazem emergir no servidor o medo da responsabilização, acabam por criar ambientes que desmotivam ações criativas.
Para aumentar a complexidade da discricionariedade como experiência, os servidores estão inseridos em estruturas burocráticas as quais impõem, além da subordinação às leis, a hierarquização e o controle. Esses fatores podem se tornar amarras à atuação dos burocratas, que passam a priorizar mais a forma como os processos serão executados do que o fim a ser atingido (Merton, 1970). Olhando para o campo do direito administrativo, desde a origem, há um grande destaque para a atuação dos órgãos de controle, quer por suas atuações diligentes, quer pelo temor de sanções (Campana, 2017). Segundo Evans e Hupe (2020), liberdade e controle se restringem mutuamente; entretanto, não é possível controle total, nem a liberdade absoluta. É nessa lacuna entre controle e liberdade que se encontra a discricionariedade.
Nesse contexto, o presente estudo nasceu da inquietação em compreender o que leva servidores a agirem de diferentes formas ao se verem diante de uma situação discricionária. Mesmo sob a égide da lei, há momentos que demandam interpretação, julgamento e decisão por parte dos agentes públicos. Contudo, a ação pode se dar de diversas maneiras, seja mais arrojada, seja mais conservadora e estrita na interpretação da norma. Partindo dessa inquietação e a fim de contribuir para o conhecimento do que é ser servidor público no Brasil, a questão que move este estudo é: de que maneira os servidores públicos vivenciam a discricionariedade e quais os dilemas enfrentados em tal vivência?
Para tal, foram escolhidos os gestores governamentais do estado de Pernambuco e os especialistas em políticas públicas do estado de São Paulo como sujeitos de pesquisa. Conquanto tenham sido escolhidas essas duas carreiras, não se buscou realizar uma análise comparativa, mas sim ampliar o conhecimento sobre a vivência da discricionariedade em carreiras de gestão, uma vez que cada estado apresenta arranjos diferentes.
O artigo encontra-se dividido em seis partes, sendo a primeira a presente introdução; a segunda está voltada para o levantamento da literatura sobre a discricionariedade; a terceira indica o percurso metodológico realizado na pesquisa; a quarta detalha os resultados encontrados; a quinta apresenta a discussão dos resultados; e, por fim, a sexta traz conclusão do trabalho.
2. OS CAMPOS DE ESTUDO SOBRE A DISCRICIONARIEDADE
Evans e Hupe (2020) destacaram quatro diferentes perspectivas a partir das quais a discricionariedade vem sendo estudada: a jurídica, a econômica, a psicológica e a sociológica.
Partindo da perspectiva jurídica, a discricionariedade pode ser estudada por duas vertentes: uma estritamente jurídica e outra sociojurídica. Ao se utilizar de um conceito estritamente jurídico, a discricionariedade é entendida como uma ação “descontrolada, arbitrária e caprichosa”, e deve ser evitada, pois é considerada um problema para a lei (Evans & Hupe, 2020, p. 114). Já por meio de uma perspectiva sociojurídica, há uma busca por compreender como a discricionariedade ocorre na prática, dando relevância aos sistemas informais e aos fatores sociais que operam no exercício da discricionariedade. Pela leitura de Lotta e Santiago (2017), esse campo parte de uma análise interpretativa realizada pelo agente, sendo a discricionariedade um espaço para escolhas legais dentro das regras existentes. Olhando pela lente analítica do direito administrativo brasileiro, a discricionariedade surge como uma escolha outorgada pela lei, sendo resultado de um “deliberado intento do legislador de conferir liberdade à Administração” (Mello, 2012, p. 1041), visto que as leis não conseguem abarcar todas as situações que ocorrem na prática (França, 2012).
Segundo Mascini (2020), o estudo da discricionariedade encontra-se revestido por um “paradigma jurídico”, pelo qual a discricionariedade é considerada uma ação que não é prescrita pela norma, sendo uma ameaça à legitimidade e à previsibilidade das decisões e, por isso, devendo ser evitada. Com um olhar crítico ao “paradigma jurídico”, Mascini (2020) destaca que, por esse paradigma, a discricionariedade é tida como desnecessária. Identifica-se, ainda, que uma parte da literatura de gestão pública também se origina desse paradigma, como pode ser extraído do texto de Pires (2009, p. 152) de que “os debates na ciência política e administração pública se caracterizaram mais pelo medo da tirania e abuso do poder por parte de burocracias e pelos riscos associados com a tomada de decisões não supervisionadas (unchecked), do que pelos potenciais benefícios do exercício responsável da discricionariedade.
Pela perspectiva econômica, parte-se de uma análise agente-principal, situação em que a discricionariedade se mostra como um equalizador entre as demandas sociais e o arcabouço normativo das políticas formuladas (Evans & Hupe, 2020). A concepção tradicional da relação agente-principal considera que há uma racionalidade e uma homogeneidade nos interesses das partes. Contudo, atualmente, já se percebe que diversos fatores influenciam a ação discricionária, que é um processo complexo. Por essa concepção atual, a discricionariedade é considerada um espaço em que os servidores podem agir com criatividade no desenvolvimento das ações planejadas a fim de atender as demandas sociais, as quais poderão ser supervisionadas e monitoradas, gerando a responsividade dos servidores (Evans & Hupe, 2020).
Pela perspectiva psicológica, busca-se compreender as atitudes e os comportamentos dos servidores em relação à política que devem seguir. Assim, parte-se da premissa de que pode haver uma “alienação política”, quando os atores não entendem ser possível implementar a demanda, bem como quando não veem sentido ou discordam da política, em uma atitude de “enfrentamento”, voltada para a atitude dos agentes públicos (Evans & Hupe, 2020). Com destaque para o estudo da burocracia de nível de rua (Lipsky, 2010), identificam como as atitudes podem ser: contornar as regras, buscando flexibilizar a implementação da política; quebrar regras, não cumprindo os regramentos existentes; de aplicação rígida das normas. Evan e Hupe (2020) ressaltam que, assim como os burocratas de nível de rua (BNR), os gestores também estão sujeitos às mesmas questões, tema que carece de análise. May e Winter (2007) observam que a compreensão dos agentes públicos em relação aos objetivos e regras das políticas formuladas e os conhecimentos que possuem são fatores que contribuem para a definição das decisões a serem tomadas.
Por fim, pela perspectiva sociológica, são analisados os fatores individuais que influenciam o agente ao exercer a discricionariedade, considerando que a identidade, a percepção e o julgamento definirão a atuação. Os estudos da discricionariedade podem ser direcionados para a forma como o servidor age ou para a capacidade das organizações em moldar os indivíduos para que se encaixem no papel esperado (Evans & Hupe, 2020). É possível encontrar estudos que buscam identificar os elementos que moldam as escolhas dos burocratas (Ferreira & Medeiros, 2016) ou compreender como as regras morais e sociais, bem como as interações, afetam as decisões tomadas (Eiró, 2017; Pires & Lotta, 2019).
A discricionariedade, por ser uma ação na qual se faz possível adequar as normas às situações reais, tem ganhado destaque no estudo da administração pública ao se reconhecer a importância da análise e compreensão das decisões tomadas pelos agentes públicos e da forma como elas afetam as políticas (Lotta & Santiago, 2017). Assim, os burocratas agem, com base na adequação das normas e na sua própria subjetividade, a fim de cumprir suas atribuições (Ferreira & Medeiros, 2016). Igualmente, ante a falta de clareza das normas a serem seguidas, eles agem de acordo com os recursos disponíveis para atender as demandas existentes (Oliveira, 2012).
Não obstante a compreensão de que o exercício da discricionariedade é inevitável e necessário, há um temor de que os burocratas possam agir com abuso de poder ou interesses particulares (Oliveira, 2012). Emerge, assim, uma preocupação quanto à necessidade de limites e controles para a atuação discricionária. Contudo, a discricionariedade é, ainda, vista como um espaço de ação da burocracia para realizar inovações, mobilizar pessoas e trazer maior efetividade para as organizações, fazendo com que os processos tenham maior fluidez (Andhika, 2018; Pires, 2009). Diante disso, parte da literatura entende que os burocratas devem ter suas ações controladas e limitadas, enquanto alguns estudos se preocupam com a interferência do excesso dos controles na boa prestação do serviço público (Oliveira, 2012; Pires, 2009).
Atualmente, vêm ganhando espaço estudos que tratam sobre a paralisia administrativa e o medo da decisão, posto que o excesso de controles acaba por tolher a liberdade de atuação do servidor e, consequentemente, ocasiona uma diminuição na promoção da eficiência (Guimarães, 2016; Mendonça & Carvalho, 2022; Santos, 2021; Santos et al., 2022). Campana (2017) alerta que, não obstante a preocupação ser positiva, os controles não conseguem, por si só, impedir práticas arbitrárias ou ilegais dentro da Administração Pública. A autora relata que o problema do controle estaria relacionado com a “forma desordenada” e a “rigidez irredutível” das ações de controle. O primeiro fato tem relação com a disputa por espaço e destaque entre os diversos órgãos de controle, que muitas vezes investigam, de forma isolada, o mesmo caso. O segundo se relaciona com a constante busca dos controladores pela punição, fazendo com que não haja uma ponderação em relação a situação vivenciada e a respectiva fundamentação. Guimarães (2016), ao discorrer sobre o culto ao controle, reforça que a rigidez e a restrição dos entendimentos jurídicos advindos dos órgãos de controle, sem observância dos fins almejados, ocasionam um aumento da ineficiência administrativa, porquanto direcionam o servidor para a atuação de menor risco, sendo esta, no limite, a inércia.
Dessa forma, a discricionariedade traz consigo a possibilidade de responsabilização dos agentes quando as escolhas realizadas não são consideradas as melhores - pela visão do ator controlador -, ocasionando um constante trade-off entre evitar a responsabilização e agir de forma discricionária. Se, por um lado, esse trade-off pode levar os burocratas a renunciarem à discricionariedade, mesmo sendo ela desejada, por outro, os agentes que anseiam pela discricionariedade acabam por desenvolver arranjos que possibilitem sua ação, mas atenuando a possibilidade de responsabilização dos seus atos. Os três principais arranjos mencionados por Hood (2020, p. 30) são: “[…] the pooling of discretion to share blame, the partial or apparent delegation of discretion in order to transfer or diffuse blame and the validation of discretion as another means of spreading or sharing blame”.
No primeiro arranjo, ocorre uma junção de agentes decisórios, os quais compartilharão a responsabilidade, ou, no limite, serão barreiras para a responsabilização individual. No segundo arranjo, há uma falsa delegação da discricionariedade a órgãos externos, sem vinculação direta com agentes públicos, políticos ou administrativos, ação que pode dificultar a delimitação dos limites da responsabilidade. Já o terceiro arranjo é a validação externa ou semiexterna, fato que pode ser percebido quando agentes públicos remetem suas decisões para auditorias, sejam internas ou externas (Hood, 2020)2.
Nesse cenário, por um lado, a discricionariedade possibilita que o servidor consiga adequar as normas existentes à realidade vivenciada, buscando o alcance do interesse público ao mesmo tempo que cumpre as normas. Por outro, gera um temor quanto à possibilidade de futuras sanções, pois essas ações podem ser percebidas como não estando na guarida da lei. Tem-se que a discricionariedade como experiencia é, por definição, um espaço organizacional de ambiguidade, em um continuum que vai da decisão criativa até a inação advinda do temor quanto à responsabilização.
3. PERCURSO METODOLÓGICO
Este estudo se propõe a contribuir para a compreensão do que é ser servidor público no Brasil, voltando-se para o estudo da discricionariedade a partir das suas vivências. Mais especificamente, trata dos ocupantes das carreiras de gestão, que fazem parte da “casa de máquinas” da administração pública (Coelho et al., 2020). A carreira de gestão foi criada, inicialmente, no nível federal, em um momento em que se buscava modernizar a administração pública. Esses “novos” servidores devem adequar as normas existentes à realidade vivenciada. Torna-se, então, importante o exercício da discricionariedade, o que possibilita a escolha, dentro dos parâmetros legais, da atuação mais adequada à situação enfrentada.
É importante compreender o papel de servidores que compõem a burocracia de médio escalão (BME), pois esses atores podem participar não apenas da formação, mas da interpretação da política que foi planejada (Cavalcante et al., 2018). Segundo Oliveira e Abrúcio (2018, p. 213), “a burocracia de médio escalão ora comporta-se como burocracia de alto escalão, ora como aquela do nível da rua, diferenciando-se, ao mesmo tempo, de ambas”. Cavalcante et al. (2018) ainda destacam que esses atores, entre os formuladores da política (burocratas de alto escalão) e os implementadores (burocratas de baixo escalão e de nível de rua), são pouco estudados, havendo diversas lacunas na literatura. Coelho et al. (2020) descreveram a importância da atuação dos servidores da “casa de máquinas” indicando que, mesmo não sendo atores que estão na ponta, suas ações moldam o serviço que é entregue à população.
Este artigo traz um desenho de pesquisa cujo propósito é compreender como a discricionariedade é percebida e vivenciada por quem se vê na posição de tomar (ou não) uma decisão em caráter discricionário, mas se encontra envolto por diversas normas e acordos que devem ser respeitados, o que torna a decisão um momento de ambiguidades e riscos. Parte-se, para tanto, da seguinte questão de pesquisa: de que maneira os servidores públicos vivenciam a discricionariedade e quais os dilemas enfrentados?
Foram escolhidos servidores dentro da chamada “casa de máquinas” da Administração Pública (Coelho et al., 2020). Em específico, foram convidados servidores das chamadas carreiras de gestão dos estados de Pernambuco e São Paulo. Do primeiro, selecionamos gestores do cargo de Gestor Governamental (GGOV), especialidade administrativa. Do segundo, gestores do cargo de Especialista em Políticas Públicas (EPP). A escolha das duas carreiras se deu pelos seguintes critérios: a carreira de Pernambuco, por ser a da autora; e a carreira de São Paulo, considerando ser o estado brasileiro com a maior arrecadação de impostos, conforme o Boletim de Arrecadação de Tributos disponibilizado na página eletrônica do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ).3
Para compreender a maneira como os GGOVs e EPPs encaram o exercício da discricionariedade, foi utilizada a técnica de entrevista em grupo focal, tendo sido realizados 5 grupos focais, tal qual apresentado no Quadro 1, nos meses de abril e julho de 2021. Segundo Gaskell (2008, p. 65), o objetivo da entrevista qualitativa “é a compreensão detalhada de crenças, atitudes, valores e motivações, em relação aos comportamentos das pessoas em contextos sociais específicos”. A entrevista mostrou-se, então, uma técnica adequada para investigar os fatores relacionados com o indivíduo e sua experiência ao exercer a discricionariedade. Possibilita observar tanto os fatores que afetam e motivam suas ações como os resultados obtidos dessa experiência. Portanto, a entrevista em grupo focal visa à interação entre os participantes sobre as vivências e os comportamentos, sendo uma técnica que auxilia na construção da percepção dos referidos servidores sobre o tema e a forma como encaram a responsabilização dos seus atos discricionários. Outro destaque é que os grupos focais permitem a exploração de temas considerados sensíveis (Barbour, 2009). No caso do exercício da discricionariedade, revelou-se certo desconforto ao ser abordado e ao se relatarem as situações vivenciadas.
Ao se definir o desenho da pesquisa, a primeira questão relevante foi o tamanho ideal do grupo focal, visto não haver consenso na literatura, podendo variar entre 6 e 15 participantes (Trad, 2009). Contudo, Barbour (2009) argumenta que, apesar de textos antigos definirem que o tamanho ideal seria entre 10 e 12 pessoas, eles estavam mais voltados para pesquisas em marketing. A autora defende que em pesquisas sociais não seja extrapolado o número de 8 participantes, assim como entende ser possível a realização de grupos com 3 ou 4 indivíduos, a depender das características da pesquisa. Considerando que a intenção era que houvesse uma maior profundidade nas discussões, bem como o fato de que foi necessária a realização de entrevistas remotas, devido à COVID-19, optou-se por grupos menores com, no máximo, 6 participantes.
Partindo de um roteiro semiestruturado (Thiel, 2014), o desenho da entrevista (Figura 1) considerou três blocos: o primeiro direcionado à apresentação dos participantes e à captação de como os entrevistados percebem a discricionariedade; o segundo voltado para a compreensão de como se dá o exercício da discricionariedade; o terceiro orientado para o entendimento da forma como a atuação dos órgãos de controle afeta o comportamento dos entrevistados ao agirem de forma discricionária.
No primeiro bloco, solicitou-se que os servidores falassem sobre a experiência profissional, o local atual de atuação e as atividades desenvolvidas. Questionou-se, também, a relação entre as suas atividades e as normas existentes, visando identificar em que grau o exercício da discricionariedade estava presente na rotina e de que forma percebiam a margem existente na sua atuação, ou se entendiam que essa margem era inexistente.
No segundo bloco, buscou-se, a partir das respostas anteriores, aprofundar as percepções sobre as situações em que não havia norma para a demanda existente ou em que as normas engessavam sua atuação. Assim, deu-se maior atenção à captação de exemplos de situações vivenciadas pelos participantes, buscando, nos relatos, informações sobre satisfação ou desconforto ao enfrentarem uma situação em que precisaram agir de forma discricionária.
Por fim, no último bloco, foi indagada a ocorrência de questionamentos, notificações ou penalizações por órgãos de controle e de que forma a possibilidade desses questionamentos, notificações ou penalizações afetava as escolhas realizadas. Perguntou-se, ainda, qual a situação preferível para o entrevistado: diante de um padrão já definido ou quando havia maior margem para agir - em outras palavras, se a discricionariedade era vista como uma “coisa” boa ou ruim. Vale destacar que a atuação das procuradorias consultivas surgia no discurso ao se indagar sobre os órgãos de controle. Por mais que esses órgãos não façam parte do controle, sua atuação mostrou-se muito presente na ação dos servidores.
As gravações foram integralmente transcritas de forma anônima, contendo apenas referências quanto ao cargo do entrevistado: GGOV referente aos gestores do estado de Pernambuco e EPP aos especialistas do estado de São Paulo. As pessoas selecionadas apresentaram diversidade de formação acadêmica e ingressaram na carreira há mais de dez anos. A seguir, estão descritos os participantes de cada grupo focal realizado:
Para interpretação dos grupos focais foi utilizada a análise de conteúdo, visando à organização e categorização dos dados obtidos. Primeiramente, a análise foi organizada por meio da pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados. Em seguida, realizou-se a inferência e interpretação dos dados (Bardin, 2011). Foi selecionado o grupo a ser pesquisado e realizada a leitura flutuante das transcrições das entrevistas, com indicadores sendo criados. Não se identificou a necessidade de exclusão de nenhuma das entrevistas, sendo todos os 5 grupos focais objetos de análise. Posteriormente, realizou-se a codificação dos dados por meio da classificação e agregação do material. Utilizou-se, para unidade de registro, a análise temática; para enumeração, a frequência em que as unidades de registro se vinculam a cada unidade de contexto; e, como técnica de análise, a análise categorial.
4. RESULTADOS
A discricionariedade é estudada de diferentes formas por diferentes disciplinas (Hupe, 2013), mas, no mundo prático, a experiência dos indivíduos com a discricionariedade não é segregada, sendo um emaranhado de conceitos e pressupostos do próprio servidor. Durante as entrevistas, cada pessoa relatou a discricionariedade com base na sua experiência de vida, ou seja, a forma como lidou com situações discricionárias com as quais se deparou. Dentro dessa categoria de análise, emergiram quatro diferentes unidades de contexto, sendo elas: receio de agir; apego às normas; respaldo jurídico; e ação justificada.
O “receio de agir” emergiu dos relatos dos entrevistados nos momentos em que havia um temor ou hesitação diante de uma decisão discricionária. Essa unidade de contexto dialoga com os trabalhos realizados por Campana (2017), Guimarães (2016) e Santos et al. (2022), referentes à cultura do medo e à ineficiência dela advinda. Conforme já mencionado por Andhika (2018), o não agir é uma opção mais fácil e confortável para os servidores, visto que os controle tendem a responsabilizar as ações consideradas equivocadas, mas nada fazem em relação à “não ação”.
Entre as unidades de contexto, o “receio de agir” foi a que apareceu com mais frequência, com 55 citações, com destaque para menções aos órgãos de controle favorecendo a “cultura do medo”. Essa unidade de contexto comporta tanto os relatos genéricos acerca do temor diante de uma decisão discricionária quanto exemplos de inação, ou seja, processos para os quais não se dava seguimento. A inação acaba por ocorrer nos momentos em que o servidor se vê numa posição em que é necessária uma decisão discricionária, mas há o medo de futura responsabilização. Campana (2017) e Guimarães (2016) relatam que um dos problemas dos controles é exatamente a constante busca por punição, sem que haja um cotejo com a situação vivenciada pelo agente público no momento da tomada de decisão, nem com relação à fundamentação utilizada. Alguns relatos aparecem na sequência:
O gestor público ou o servidor público ou o agente público, ele realmente está apagando a sua caneta, no sentido de: - eu não quero tomar a decisão sozinho, eu não me sinto seguro de tomar. Então, tem evitado se tomar a decisão, né? (GGOV02).
É, eu percebia lá no [cita um órgão do Estado] que as coisas travavam. Quando chegava numa situação dessa, tinha muito receio de fazer alguma coisa, né, nessa margem. E basicamente tudo travava ali, não andava (GGOV09).
Mas isso eu acho que reflete um pouco o medo, né. “Não, mas eu vou decidir e alguém vai dizer que essa decisão foi errada, né.” Acho que o contexto hoje é de mais medo. É, a palavra é essa (EPP04).
O não fazer é, pra mim, na minha visão, é bem predominante, na realidade no Estado (EPP07).
Duas outras questões relativas ao medo foram observadas pelas falas dos entrevistados nos grupos focais. A primeira guarda relação com a inação e volta-se para a dificuldade de inovar na Administração Pública, dialogando com o trabalho de Santos et al. (2022). A segunda questão é a “perda” de bons servidores, pois os agentes passam a não querer assumir o risco da punição por uma decisão para a qual não houve má intenção.
É difícil se inovar no, no serviço público, porque o cara fica com medo depois de fazer (GGOV07).
Por exemplo, […] uma pessoa que era gerente-geral, que homologava os processos, muito séria, muito responsável, muito competente, […] tá respondendo um processo, que a gente tem certeza de que ela fez o que era melhor, com a maior, realmente observando todos os critérios possíveis, mas tá respondendo. E o que é que aconteceu, […] a gente perdeu uma gerente-geral muito competente, por quê? Porque ela, pelo que eu sei, assim, ela achou que não valia a pena correr aquele risco, sabe (GGOV11).
A segunda unidade de contexto é o “apego às normas”, com 46 citações, situação em que o servidor percebe que há certa discricionariedade na sua atuação, mas busca se ater, de forma mais estrita, ao disposto na lei, evitando interpretações ou ações sem uma prévia definição em lei. Nessa forma de agir, preza-se pela segurança, havendo um anseio por uma maior normatização, o que pode ser, ainda, entendido como uma disfunção própria de estruturas burocráticas.
De maneira geral, o apego às normas refletiu três principais aspectos: a segurança de tomar decisões predefinidas, com a priorização dos processos em vez dos objetivos (Merton, 1970); a situação em que o risco de punição é quase inexistente, uma brecha para não agir, caso o caminho seja divergente da vontade do agente público; ou, em contraposição aos dois aspetos anteriores, uma forma de garantir bons procedimentos e sua continuidade. Foram destacados alguns relatos dos grupos focais:
É uma garantia que eu tô pelo menos, quando eu tô usando a norma, eu estou ali, querendo ou não, fazendo aquilo que é da vontade do povo (GGOV02).
Você está seguindo ali dentro dos ritos pra quê, se eventualmente acontecer algum problema lá na frente você “- Ó, mas eu fiz aqui a, o by the book” (EPP04).
Então essa é uma, uma armadilha, né, ou esse é um, é um jeito que justamente se, é, quem não quer mexer muito, usa sempre esse argumento do, da área técnica “- Não, isso aqui é uma questão técnica que não se pode. Não, isso aqui tá blindado por alguma entidade divina aqui, que não se pode mexer”, sei lá o quem (EPP04).
Na terceira unidade de contexto, “respaldo jurídico”, com 49 citações, o servidor percebe que possui discricionariedade e se utiliza da margem existente para executar suas atividades de acordo com o que entende como mais adequado. Contudo, há uma constante busca por respaldos jurídicos, que podem ser tanto decisões realizadas anteriormente, seja internamente, seja por órgãos consultivos e de controle, como também a consulta ao jurídico da organização ou aos órgãos consultivos.
Nessa unidade de contexto, o servidor se utiliza de certa criatividade; contudo, ainda existe um apego às normas existentes, visto que as decisões serão tomadas apenas se houver alguma decisão anterior ou após o aval jurídico. A validação para tomar uma decisão discricionária vai além da busca por julgados anteriores que validem a decisão ou por consultas jurídicas, mas busca também os “achados negativos”, situações para as quais já houve um julgamento negativo por um órgão de controle. Essas decisões dos órgãos de controle, com base nos relatos, em muito se sobressaem à própria lei, visto que, em situações para as quais há permissão legal, se houver um “achado negativo”, o agente decidirá pela não ação ou, no mínimo, por não seguir aquele caminho. Essa busca por validação apresenta-se nas seguintes falas dos participantes dos grupos focais:
Complementando, é que a gente chama lá de achados negativos, né. Quando a gente tá na ponta, executando, e aí vem determinadas coisas: “- Olha, mas a gente já tem um achado negativo aqui pra essa ação”. Então assim, a gente pode ter uma lei, lá, a gente pode está margeado pela legalidade sim, mas a gente já tem um achado negativo. Então assim, “- Olha, você pode fazer, mas você vai ser responsabilizado” (GGOV06).
Eu acho que até quando a gente tenta usar da discricionariedade, a gente tenta se respaldar em algum conceito, em algum caso semelhante, em alguma, um caso anterior, entendeu? (GGOV14).
Eu entendo que boa parte do trabalho que a gente faz é orientado pro TCE (EPP08).
A atuação advinda dessa unidade de contexto remete aos estudos de Hood (2020). O autor relata três arranjos pelos quais o agente público age com discricionariedade, buscando evitar a responsabilização. Um desses é a validação da discricionariedade por meio da validação externa ou semiexterna. A validação externa se refere às consultas realizadas aos órgãos de controle e consultivos ou às verificações de julgamentos e jurisprudências. Já a validação semiexterna ocorre quando a consulta se dá dentro do órgão, por decisões ou por meio de consultas ao jurídico da instituição.
Já na quarta unidade de contexto, a “ação justificada”, com 49 citações, o servidor também tem consciência da existência da discricionariedade na sua atuação e busca utilizar a margem existente para direcionar sua atuação ao objetivo que considera o melhor. Os servidores buscam justificar os motivos das decisões tomadas de forma a antever os possíveis questionamentos dos órgãos de controle e consultivos. É nessa unidade de contexto que a criatividade do servidor é mais utilizada. Além disso, diferencia-se da unidade anterior, o “respaldo jurídico”, devido ao foco, já que o servidor também procura embasar as escolhas realizadas, no entanto, com foco em encontrar respaldos para decidir da forma que julga a mais adequada. Portanto, enquanto no “respaldo jurídico” o foco é o meio, na “ação justificada” o foco é alcançar o objetivo.
Apenas nessa unidade de contexto há uma tentativa de construir novos caminhos. Apesar de o medo também estar presente, os servidores buscam se justificar e registrar os motivos que levaram a seguir aquele caminho, antevendo os passos dos controles. Aqui identifica-se uma aproximação com a perspectiva econômica da discricionariedade, pela qual os servidores podem agir com criatividade para atender as demandas (Evans & Hupe, 2020). Os servidores buscam, assim, a construção de caminhos para alcançar esse objetivo. O termo “engenharia jurídica” emergiu em um dos grupos focais e reflete bem a forma como os servidores atuam nas situações em que buscam agir de modo criativo. Seguem relatos:
Vocês já viram uma engenharia jurídica? É aquele negócio que ninguém nunca acha que vai acontecer, mas sai. E acontece, a gente faz uma engenharia jurídica, a gente pega uma norma e faz uma engenharia jurídica e constrói o opinativo em cima daquele princípio jurídico que tá, é, é, é garantido na norma (GGOV02).
A gente tenta usar as normas pra conseguir emplacar, ou o nosso trabalho, ou aquilo que a gente acha que é o correto, que, ah, o interesse público, enfim, a gente tenta usar a norma (EPP05).
Eu já usei da brecha da norma de uma maneira que […] me parecia humanamente o melhor (EPP08).
Como mencionado anteriormente, a fundamentação passa a ser um fator importante, visto que respalda a ação do servidor na busca do alcance do objetivo que entende ser o melhor para o Estado, o mais correto ou até o humanamente melhor. Importante, também, que essa fundamentação seja registrada, tanto para facilitar o acesso, caso seja realizada alguma consulta ao processo, quanto para o próprio servidor poder rememorar os fatos que o motivaram.
Mas assim, sempre tem uma forma da gente fundamentar nossas decisões, […]. Se for uma decisão legítima, tem caminhos que você consegue fundamento (GGOV13).
Até pra você revisitar o que é que fez você decidir. Se chega uma pergunta desse ponto “- Por que que é que você decidiu assim?”. Se você não registrou. Por isso que é importante você, você, tudo o que você vai fazendo, você fundamenta e regustra (GGOV12).
Sempre tentar pensar em respaldo, porque, né, caso algum, alguém procure alguma coisa, né, é, tá tudo registrado, eu tenho como provar de, enfim (EPP06).
O conhecimento sobre o tema e a confiança ao tomar uma decisão também foram fatores que influenciavam os entrevistados nos momentos em que tiveram uma “atuação justificada”.
Eu pego esses princípios, mas, mas eu, eu tenho que me sentir confortável com a decisão que eu tô tomando (GGOV12).
Você tem que tomar a decisão tando seguro. Não, eu, eu, é isso aqui, se alguém me perguntar eu vou dizer isso (GGOV13).
Nessa perspectiva, a “atuação justificada” origina-se, principalmente, de dois fatores: a vontade de agir no alcance do fim que entende ser o melhor e dispor de conhecimento para tanto. Com base nesses dois fatores, o agente será capaz de buscar fundamentações para sua atuação. Conquanto os burocratas não estejam despidos do medo da responsabilização, buscavam antever um possível questionamento, fundamentando e registrando suas ações.
Outro fator que surgiu com grande destaque nos grupos focais foram os momentos em que os burocratas mencionaram realizar o desenvolvimento de respostas conjuntas para as situações de discricionariedade, seja entre atores de um mesmo setor, seja com a junção de servidores de diversas áreas. A conversa e a construção conjunta se mostraram importantes, principalmente nos momentos em que as decisões eram mais delicadas. Essa atuação se vincula a um dos arranjos para a evasão da responsabilização definidos por Hood (2020), o agrupamento de discricionariedade para compartilhar a responsabilização. Os servidores procuram, dessa maneira, construir um entendimento conjunto que, em alguns casos, fará com que a responsabilidade também seja dividida.
Então eu acho que essa troca é muito rica e existe muito dentro da SAD […], de buscar o que, a melhor solução, conversando mesmo, trocando experiência para outras áreas (GGOV03).
Escuto muito os colegas, porque às vezes eles abrem sua visão, coisas que você não percebe antes. Então a gente se reúne nas questões polêmicas e acontece sim de ser voto vencido e eu vou pela, pela maioria, porque eu vejo que é a melhor coisa a ser feita (GGOV05).
Entre os resultados encontrados, emergiu uma segunda categoria de análise, que se relaciona com o sentimento relatado ao agir de forma discricionária, com duas unidades de contexto. Por um lado, em 18 citações, a discricionariedade foi relacionada como uma ação satisfatória; por outro, vinculou-se a uma ação desconfortável em 83 citações. Algumas percepções:
Na realidade não ia precisar nem da gente, né. Hoje em dia já botava um robô aí e ia fazer, né, já, já alguém já definiu, né. Assim, eu acho boa, acho boa, acho importante, é, tendo em vista como é que, que são as nossas leis (GGOV12).
A gente pode fazer para que o governo acontecer, em última instância, né (EPP04).
Então é, é o agente público vive nessa corda bamba: “- Eu faço a coisa certa, eu faço tudo na legalidade, mas eu posso ser responsabilizado por algum entendimento” (GGOV05).
Olha, eu não vou assinar esse convênio, não vou ser gestora desse convênio, porque daqui a X anos o TCE vai cair em cima de mim (EPP02).
No tocante às relações com órgãos de controle, surgiu uma nova categoria de análise, com duas unidades de contexto. A primeira unidade de contexto relaciona-se com as situações em que a atuação foi colocada de maneira positiva, estando elas conectadas a um processo de construção de entendimentos conjuntos para a melhoria dos processos, sendo identificadas 17 citações. A seguir estão retratadas algumas dessas citações:
A gente tá tendo a oportunidade de, de, de colocar, né, esses questionamentos, essas discordâncias. […] Quando você tem acesso a um Tribunal de Contas, você pode explicar o seu ponto de vista, ou à PGE, é muito interessante quando você tem, assim, essa, essa possibilidade, né (GGOV11).
Eles realmente fizeram uma análise dos processos pra entender se tinha algum processo dentro do que eu desempenhava, né, no programa, que poderia ser melhorado, aprimorado ou que gerava algum risco pra entrega do programa, pro desenvolvimento do programa. Então essa foi uma exceção (EPP06).
A segunda unidade de contexto remete às experiências negativas, as quais estiveram mais presentes nas entrevistas, aparecendo em 83 situações. Entre os principais argumentos levantados, foram identificados dois principais motivadores: uma atuação distante dos órgãos de controle e consultivos; e uma atuação mais focada em identificar problemas em vez de compreender a situação vivenciada.
Os caras vivem meio numa redoma assim, num entende é, quem tá lá na ponta, é, o que, o que, o que o cara tem que resolver pra poder, é, a escola funcionar direito, […] o hospital ter condições de receber os pacientes, as vítimas de, de, enfim. Aí os cara chega depois e fica dizendo “- oa, isso aqui tá errado, que tu fizesse, porque tu fez”. “- Sim, tu visse na hora lá, no dia que eu tava lá, que o prédio ia desabar e eu tinha que tomar uma decisão na hora, não podia ficar esperando a assinatura do diretor que liberasse o empenho pra poder” (GGOVgf07).
Mas eu acho que é porque também eles trabalham, é, assim, em cima do mundo perfeit (GGOVgf08).
A gente vai ficando mais medroso, né. Aí é, que é esse que eu acho que é o contexto da, da judicialização nociva (EPPgf04).
Não existe essa relação, assim, eles são muito distantes dos servidores e do Executivo. […] às vezes eu gostaria que o Tribunal estivesse mais presente, porque ajudaria a inibir algumas, algumas posturas, assim. Jogassem mais dessa forma, né (EPPgf06).
5. DISCUSSÃO
A discricionariedade é uma ação intrínseca ao agente público, uma vez que as leis não conseguem abarcar todas as possibilidades existentes para sua concretização (França, 2012). Existem, dessa forma, situações em que o gestor público terá certa margem de liberdade para decisão, visando à “ótima gestão da coisa pública” (França, 2012). Não obstante, essa liberdade está circunscrita pelos regramentos existentes, configurando a decisão discricionária como um espaço organizacional de ambiguidade. Indo além, a atuação é cercada de medo e de uma cultura de punitivismo, que encerra um envoltório de responsabilização sobre a atuação do burocrata (Campana, 2017; Guimarães, 2016; Pires, 2009; Santos et al., 2022).
As diferentes formas de atuação identificadas neste trabalho se relacionam com a segurança do burocrata em agir, e aqueles que mais utilizam a criatividade têm como característica a justificativa e o registro dos motivadores da sua decisão. Essas ações visam antever possíveis questionamentos dos órgãos de controle, registrando, antecipadamente, as respostas aos questionamentos identificados.
Por um lado, a inação ou uma ação em desacordo com o que os burocratas entendem como a mais adequada também se mostrou presente na atuação dos servidores. Em muitos momentos, a promessa de punição se mostrou tão presente que prevalecia o medo em vez do desejo de tomar a decisão. Conforme defendido por Campana (2017) e Guimarães (2016), essa paralisia do servidor, o chamado “apagão das canetas” (Mundim, 2020), ocasiona uma diminuição da promoção da eficiência.
Por outro lado, não obstante o medo, existe a compreensão da importância e inevitabilidade da discricionariedade, realizando constantemente o trade-off entre a discricionariedade e a responsabilização. Dessa forma, os burocratas utilizam arranjos visando a evasão da responsabilização (Hood, 2020).
Ao longo deste estudo, foi identificada a utilização de dois desses arranjos. Um deles é a busca pelo compartilhamento da responsabilidade, a partir da realização de um agrupamento para tomar as decisões discricionárias (Hood, 2020). Com base nos dados obtidos, identificou-se que, na prática, ocorre esse compartilhamento da responsabilidade. Os entrevistados demonstraram recorrer a outros servidores, membros da mesma equipe, de outros setores ou superiores, ao se verem diante de decisões mais complexas. Dessa maneira, empenham-se na construção conjunta da decisão, buscando um consenso sobre a melhor forma de atuar.
O segundo arranjo identificado foi realizar validações externas e semiexternas, por meio de consultas aos órgãos consultivos ou aos setores jurídicos do órgão, para fundamentar as decisões tomadas. Na atuação classificada como “respaldo jurídico”, muitas das decisões tomadas pelos entrevistados foram fundamentadas em consultas, sejam diretas ou em decisões anteriores, aos órgãos consultivos ou aos setores jurídicos do órgão.
A importância da discricionariedade é mencionada nas entrevistas e alguns servidores buscam utilizá-la em prol da melhor gestão pública. Percebeu-se que o medo está presente na máquina pública, e os burocratas inseridos nesse meio se adéquam às suas ações. Enquanto uns preferem isentar-se ou só agir numa leitura estrita da norma, outros buscam a ação inovadora, numa leitura heterodoxa da norma. O risco do agente é inerente à sua função. Cabe-lhe, entretanto, usar ou não o espaço da discricionariedade que, como vimos, é ambíguo por natureza. Portanto, sua vivência é identificada com uma dupla concepção. Por um lado, é necessária e motivadora, possibilitando que os burocratas tenham alguma margem de criatividade na sua atuação. Mas, por outro, há o constante risco advindo da responsabilização, que, por vezes, inibe a atuação do servidor. Esta pesquisa revelou a discricionariedade como um espaço organizacional a ser evitado, pois causa desconforto.
6. CONCLUSÃO
O propósito deste trabalho foi analisar a discricionariedade pelo prisma da experiência do agente público, ao se ver diante de uma situação para a qual cabe uma decisão discricionária. Para as carreiras de gestão, a discricionariedade se mostra latente, uma vez que surgiram no intuito de criar servidores públicos qualificados e aptos para o processo decisório. Assim, agir de forma discricionária, com uma atuação mais criativa e em busca da ótima gestão da coisa pública, seria um dos fundamentos para a sua existência.
A partir dos dados obtidos, identificou-se como principal dilema o trade-off entre evitar a responsabilização e agir de forma discricionária, existindo diferentes formas de atuação, as quais se graduam em uma escala que vai desde a inação até uma atuação mais criativa e direcionada ao fim público. As escolhas relacionam-se com a segurança do burocrata em agir - aquelas mais próximas da inação partem do receio da responsabilização das suas ações; e as que mais utilizam a criatividade têm como característica a justificativa e o registro dos motivadores da sua decisão.
O presente trabalho busca contribuir com o conhecimento do que é ser servidor público ao pesquisar, pela perspectiva dos próprios agentes, os dilemas enfrentados e as escolhas realizadas. Compreender como cada dilema afeta o indivíduo e as estratégias utilizadas para a ação discricionária abre uma agenda de pesquisa voltada para o nível individual, por exemplo, motivação, sofrimento e satisfação no trabalho, como também para o nível institucional, podendo ser analisado como as políticas públicas são afetadas.
Como limitações ao trabalho, é possível destacar a dificuldade de realizar generalizações, haja vista a complexidade da Administração Pública brasileira, sendo difícil sua caracterização e generalização. Além disso, houve a necessidade de realizar uma delimitação da literatura a ser utilizada, uma vez que são feitas escolhas metodológicas no andamento da pesquisa. Dessa forma, existem temas que podem ser investigados a partir do olhar que será concedido aos dados, a exemplo dos estudos sobre o processo decisório, a criatividade e o insulamento burocrático. Ademais, a própria escolha do grupo de pesquisa restringe os resultados, visto que apenas servidores do Poder Executivo, especificamente de carreiras de gestão, foram entrevistados.
AGRADECIMENTOS
A autora Carolina Soares dos Santos agradece ao Governo de Estado de Pernambuco por autorizar a sua disponibilização em tempo integral para a realização do mestrado.
REFERÊNCIAS
- Andhika, L. R. (2018). Discretion and decentralization: public administrators dilemmas in bureaucracy innovation initiatives. Otoritas: Jurnal Ilmu Pemerintahan, 8(1), 17-31.
- Barbour, R. (2009). Grupos focais: coleção pesquisa qualitativa Bookman.
- Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo Edições 70.
- Campana, P. D. S. P. (2017). A cultura do medo na administração pública e a ineficiência gerada pelo atual sistema de controle. Revista de Direito, 9(1), 189-216.
-
Cavalcante, P. L. C., Lotta, G. S., & Yamada, E. M. K. (2018). Exploring mid-level bureaucracy: a tentative typology. Revista Brasileira de Ciência Política, 26, 187-222. https://doi.org/10.1590/0103-335220182605
» https://doi.org/10.1590/0103-335220182605 -
Coelho, F. D. S., Corrêa, V., Lisboa, R. L., & Resch, S.(2020). A casa de máquinas da administração pública no enfrentamento à covid-19. Revista de Administração Pública, 54(4), 839-859. https://doi.org/10.1590/0034-761220200382
» https://doi.org/10.1590/0034-761220200382 -
Coelho, F. de S., Lemos, M., & Rodrigues, A. L. (2020, 24 de maio). Humanizando a máquina pública: lições da pandemia para a gestão de pessoas nos governos. Estadão. https://www.estadao.com.br/politica/gestao-politica-e-sociedade/humanizando-a-maquina-publica-licoes-da-pandemia-para-a-gestao-de-pessoas-nos-governos/
» https://www.estadao.com.br/politica/gestao-politica-e-sociedade/humanizando-a-maquina-publica-licoes-da-pandemia-para-a-gestao-de-pessoas-nos-governos/ -
Eiró, F. (2017, outubro). O Programa Bolsa-Família e os pobres “não merecedores”: poder discricionário e os limites da consolidação de direitos sociais (Boletim de Análise Político-Institucional, n. 13). Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/8124
» https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/8124 - Evans, T., & Hupe, P. (2020). Perspectives on discretion: an introduction. In T. Evans, & P. Hupe(Eds.), Discretion and the quest for controlled freedom(pp. 17-22). Palgrave Macmillan.
- Ferreira, V. da R. S., & Medeiros, J. J. (2016). Fatores que moldam o comportamento dos burocratas de nível de rua no processo de implementação de políticas públicas. Cadernos EBAPE.BR, 14(3), 776-793.
- França, V. R. (2012). Fundamentos da discricionariedade administrativa. In M. S. Z. Di Pietro, & C. A Sundfeld. (Eds.), Atos administrativos, bens públicos e intervenção administrativa na propriedade (pp. 1277-1298). Revista dos Tribunais.
- Gaskell, G. (2008). Entrevistas individuais e grupais. In M. W. Bauer, & G. Gaskell(Eds.), Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático(pp. 64-89). Vozes.
-
Guimarães, F. V. (2016, 31 de janeiro). O direito administrativo do medo: a crise da ineficiência pelo controle. Direito do Estado http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/fernando-vernalha-guimaraes/o-direito-administrativo-do-medo-a-crise-da-ineficiencia-pelo-controle
» http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/fernando-vernalha-guimaraes/o-direito-administrativo-do-medo-a-crise-da-ineficiencia-pelo-controle - Hood, C. (2020). Discretion and blame avoidance. In T. Evans, & P. Hupe(Eds.), Discretion and the quest for controlled freedom(pp. 23-40). Palgrave Macmillan.
- Hupe, P. (2013). Dimensions of discretion: specifying the object of street-level bureaucracy research. dms-der moderne staat-Zeitschrift für Public Policy, Recht und Management, 6(2), 23-24.
- Lipsky, M. (2010). Street-level bureaucracy: dilemmas of the individual in public service Russell Sage Foundation.
- Lotta, G., & Santiago, A. (2017). Autonomia e discricionariedade: matizando conceitos-chave para o estudo de burocracia. BIB. Revista Brasileira De Informação Bibliográfica Em Ciências Sociais, 83, 21-42.
- May, P. J., & Winter, S. (2007). Politicians, managers, and street-level bureaucrats: influences on policy implementation. Journal of Public Administration Research and Theory, 19(3), 453-476. https://doi.org/10.1093/jopart/mum030
- Mascini, P. (2020). Discretion from a legal perspective. In T. Evans, & P. Hupe (Eds.), Discretion and the quest for controlled freedom(pp. 121-141). Palgrave Macmillan.
- Meirelles, H. L., Azevedo, E. A. de, Aleixo, D. B., & Burle, J. E. Filho. (1966). Direito administrativo brasileiro(2a ed.). Revista dos Tribunais.
- Mello, C. A. B. de(2012). Discricionariedade: fundamentos: natureza e limites. In R. K. Merton(Ed.), Sociologia: teoria e estrutura Mestre Jou.
- Mendonça, M. S., & Carvalho, M. S. (2022). A nova lei de improbidade administrativa: reflexões a partir do fenômeno do chamado “apagão das canetas”. Revista Avant, 6(1), 99-119.
- Mundim, G. A. (2020). “Apagão das canetas”: gestor público, controle e mídia (Dissertação de Mestrado). Fundação Getulio Vargas, São Paulo, SP, Brasil.
-
Oliveira, A. (2012). Burocratas da linha de frente: executores e fazedores das políticas públicas. Revista de Administração Pública, 46(6), 1551-1573. https://doi.org/10.1590/S0034-76122012000600007
» https://doi.org/10.1590/S0034-76122012000600007 - Oliveira, V. E. de, & Abrúcio, F. L. (2018). Burocracia de médio escalão e diretores de escola: um novo olhar sobre o conceito. In R. Pires, & G. Lotta(Orgs.), Burocracia e políticas públicas no Brasil: interseções analíticas (pp. 207-225). Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
-
Pires, R. R. C. (2009). Burocracia, discricionariedade e democracia: alternativas para o dilema entre controle do poder administrativo e capacidade de implementação. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, 14(54), 147-187. https://doi.org/10.12660/cgpc.v14n54.44190
» https://doi.org/10.12660/cgpc.v14n54.44190 - Pires, R. R. C., & Lotta, G. (2019). Burocracia de nível de rua e (re)produção de desigualdades sociais: comparando perspectivas de análise. In R. R. C. Pires(Org.), Implementando desigualdades: reprodução de desigualdades na implementação de políticas públicas (pp. 127-152). Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
- Santos, H. M. L. dos, Chagas, M. L. das, Machado, R., & Polet, T. (2022). Direito administrativo do medo: fator de influência na inovação da administração pública? Revista Gestão Contemporânea, 12(1), 88-112.
- Santos, R. V. dos. (2021). Direito administrativo do medo: risco e fuga da responsabilização dos agentes públicos Thomson Reuters Brasil.
- Thiel, S. V. (2014). Research methods in public administration and public management: an introduction Routledge.
- Trad, L. A. B. (2009). Grupos focais: conceitos, procedimentos e reflexões baseadas em experiências com o uso da técnica em pesquisas de saúde. Physis, 19(3), 777-796.
- Weber, M. (2000). Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva Universidade de Brasília.
-
1
O termo “responsabilização na esfera pública” guarda relação como a apuração e possíveis sanções de atos contra a administração pública (Lei no 12.846/2013 - Lei Anticorrupção).
-
2
Foi realizada a tradução de blame para “responsabilização”, visto que o medo advindo das decisões discricionárias, no contexto da administração pública brasileira, se refere à responsabilização.
-
3
https://www.confaz.fazenda.gov.br/
Pareceristas:
-
7
Maria Stela Reis (Ministério da Educação, Brasília / DF - Brasil) https://orcid.org/0000-0001-9498-5901
-
8
Vera Cristina Caspari Monteiro (Fundação Getulio Vargas, São Paulo / SP - Brasil) https://orcid.org/0000-0002-8537-2983
-
9
Cintia Rodrigues de Oliveira (Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia / MG - Brasil) https://orcid.org/0000-0001-7999-9002
-
10
Um dos pareceristas não autorizou a divulgação de sua identidade.
Editado por
Disponibilidade de dados
O conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo não está disponível publicamente.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
16 Set 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
25 Jun 2023 -
Aceito
26 Abr 2024