Resumos
Examina-se o conceito do relativismo cultural sob bases filosóficas e sua validade nas ciências da saúde. Analisam-se os têrmos absoluto, relativo e universal, chegando-se a um modêlo operacional do relativismo cultural nas ciências da saúde.
Ciências da saúde; Relativismo cultural; Conceito filosófico
The concept of cultural relativism on a philosophical basis and its validity in health sciences, is examined. The concepts of the absolute, the relative and the universal are analysed and a working model for cultural relativism in the health sciences is attained.
Health sciences; Cultural relativism; Philosofical concept
ARTIGO ORIGINAL
O relativismo cultural é válido nas ciências da saúde? Exame de suas bases filosóficas1 1 Do Centro de Saúde "Geraldo de Paula Souza" da Faculdade de Saúde Pública da USP Av. Dr. Arnaldo, 715, São Paulo, SP Brasil
Is the cultural relativism valid in health science? Discussion of the validity of health sciences in cultural relativism
Erna Bastian
RESUMO
Examina-se o conceito do relativismo cultural sob bases filosóficas e sua validade nas ciências da saúde. Analisam-se os têrmos absoluto, relativo e universal, chegando-se a um modêlo operacional do relativismo cultural nas ciências da saúde.
Unitermos: Ciências da saúde*; Relativismo cultural*; Conceito filosófico *.
SUMMARY
The concept of cultural relativism on a philosophical basis and its validity in health sciences, is examined. The concepts of the absolute, the relative and the universal are analysed and a working model for cultural relativism in the health sciences is attained.
Uniterms: Health sciences*; Cultural relativism*; Philosofical concept*.
1. O RELATIVISMO COMO POSIÇÃO FILOSÓFICA
Admite-se que a teoria do relativismo cultural, útil ao trabalho nas ciências sociais aplicadas, é posição controvertida (LITTRÉ apud LALANDE13). De fato, o relativismo como posição filosófica é foco de uma polêmica histórica do pensamento. A filosofia, desde a antiguidade grega até os nossos dias, ocupa-se com dois grandes temas que necessitam de uma tomada de posição: o problema do conhecimento e o problema da ação ou prática. Em fins do séc. XVIII, KANT 10 resume os propósitos da reflexão filosófica nas perguntas: "o que posso saber, o que devo fazer, o que posso esperar". É dentro da problemática da ação prática com a pergunta "o que devo fazer", que se colocam as ciências humanas, e entre elas as ciências sociais aplicadas.
A problemática da ação humana, especificamente a sua validade, tem sido encarada de acôrdo com diferentes pontos de vista ou posições no pensamento refletivo. Três destas posições são: o dogmatismo, o ceticismo, e o relativismo (HESSEN8). Entende-se por dogmático (dogma = doutrina fixada) a posição filosófica para a qual não existe o problema dos valores que orientam a ação. Para o dogmatismo, os valores existem, pura e simplesmente, e têm caráter absoluto. O fato de que todos os valores pressupõem uma consciência valorizante, é desconsiderado pelo dogmático. O dogmatismo passa por cima do sujeito e de todos os seus determinantes como sociedade, época histórica e características culturais.
O dogmatismo se converte, muitas vêzes, em seu oposto, o ceticismo. O ceticismo nega a possibilidade do conhecimento. É inútil enunciar qualquer juizo. Pirro de Elis (300-270), fundador do ceticismo, recomenda a abstenção de todo juizo, a "epokê". No terreno da ação, o ceticismo nega a possibilidade da determinação do valor. Na ação humana, é impossível saber o que está certo e o que está errado. É evidente que o ceticismo radical anula a si mesmo. Enuncia um juizo dizendo que é impossível saber o que está certo ou errado, apesar de sua premissa de que não existe a possibilidade de alguma afirmação válida.
Um posição intermediária entre o dogmatismo e o ceticismo, é o relativismo. Enquanto o ceticismo ensina que não há nenhuma verdade, nenhum valor efetivo, o relativismo afirma que há uma verdade, há valores, porém êstes sofrem limitações. O relativismo tem um parentesco com o subjetivismo. Mediante êste, o conhecimento e os valores existem, mas dependem de fatôres que residem no sujeito cognoscente ou valorizante. No relativismo o conhecimento e os valores também dependem de fatores externos como a influência do meio, o espírito da época, a cultura da qual fazem parte e de seus determinantes7. Os representantes clássicos desta posição são os Sofistas, pensadores gregos, professôres, muito atacados, cuja grande contribuição à cultura, revolucionária na época, foi mal recebida. Entre êles Protágoras (séc. V A. C.) com sua tese do homem-medida: "o homem é a medida de tôdas as coisas", nega os valores absolutos, independentes do homem (GOMPERZ5). Esta tese pode ser interpretada tanto em referência ao homem genérico como ao homem individual ou ao homem em situação de grupo. Como tal, representa o ponto de convergência dos fatôres externos, físicos e sócio-culturais. Pode-se ver na tese de Protágoras a origem tanto do subjetivismo como do relativismo sócio-cultural. O valor do relativismo está na atitude mental objetiva, crítica, na dúvida das afirmações dogmáticas sem o exame e o conhecimento das limitações e da realidade. É uma atitude científica.
2. RELATIVISMO CULTURAL DEFINIÇÕES
O relativismo cultural é definido como "a idéia de que qualquer item do comportamento deve primeiro ser julgado em relação ao seu lugar na estrutura única da cultura em que ocorre e em têrmos do sistema particular de valores daquela cultura..." 4, "...o têrmo às vêzes foi empregado para sugerir, que itens culturais (tais como normas éticas) podem ser julgados sòmente dentro do seu contexto, ou são tão únicos que apreciações comparativas estão fora de cogitações, o que, porém, não precisa ser o caso" (COUSIN apud LALANDE13). Para HERSKOVITS 7, "o relativismo cultural é, em essência, uma abordagem à questão da natureza e do papel dos valores na cultura. Êle representa um ataque científico, indutivo a um velho problema filosófico, usando novos dados interculturais, antes não accessíveis aos estudiosos. Êstes dados foram derivados do estudo de sistemas referentes aos valores das sociedades com os mais diversos costumes. O princípio do relativismo cultural, em resumo, é o seguinte: julgamentos são baseados na experiência, e experiência é interpretada por cada indivíduo em têrmos de sua própria enculturação". Em outro lugar adverte o autor contra a idéia de um relativismo extremo ou subjetivismo individual. Diz: "o relativismo cultural, em todos os casos, tem que ser claramente distinto, de conceitos da relatividade do comportamento individual, que negaria tôdo contrôle social sobre a conduta. Dizer que temos o direito de esperar conformidade ao código de nossos dias, não implica que devemos esperar, muito menos impor, conformidade com nosso código a pessoas que vivem segundo outros códigos. O verdadeiro núcleo do relativismo cultural é a disciplina social que vem do respeito às diferênças respeito mútuo. Ênfase no valor de muitos modos de vida, não sòmente um, é uma afirmação dos valores de cada cultura". A idéia do relativismo cultural é muito discutida, até combatida por autores que defendem a existência de valores absolutos morais e de cultura. A pergunta crucial da posição relativista, segundo HERSKOVITS 7 é a seguinte: "Há padrões morais absolutos ou são os padrões morais efetivos sòmente enquanto concordam com as orientações recebidas num dado período de sua história?" ASCH 1 aborda o problema do relativismo do ponto de vista psicológico, especìficamente dos processos psico-sociais que determinam as diferenças culturais: "o fato de que variam as idéias do que é certo ou errado representa um agudo problema para uma teoria da natureza humana. Podemos discernir na história do pensamento duas soluções opostas. O pensamento tradicional adota uma posição absolutista. Afirma que somos capazes de aprender certas ações como incondicionalmente certas e outros atos como intrinsecamente errados". ... "Embora a investigação histórica e comparativa demonstre a falta de estabilidade das instituições humanas, seus praticantes aderem a elas de maneira absoluta; todo sistema provinciano parece a seus adeptos universalmente válido".
3. ABSOLUTO OU UNIVERSAL?
Asch é criticado por Herskovits por não distinguir adequadamente valores absolutos do que êle chama de "aspectos universais de cultura". De fato, ASCH 1 parece tratar os dois têrmos como sinônimos, enquanto HERSKOVITS 7 adverte sôbre a necessidade da distinção, dizendo: "é essencial, considerando o relativismo cultural, que diferenciamos entre absolutos e universais. Absolutos são fixos, de acôrdo com a convenção, não se admitem variações ou diferenças de cultura para cultura, de época para época".
Conceito de absoluto. No seu comentário ora citado, Herskovits caracterizou o que o "absoluto" significa no contexto cultural. LALANDE13 em sua definição faz referência direta ao "relativo": "... absoluto de absolvere, desligar, também fazer perfeito se opõe em quasi todos os sentidos ao relativo; absoluto "... o que não comporta nenhuma restrição". Cita Littré que diz, absoluto "o que não é relativo, o que não tem nada de contingente". Êstes autores deixam claro que "absoluto é o verdadeiro oposto de "relativo", suas características são a imutabilidade e a incondicionalidade. Há características que permitem uma compreensão ainda mais profunda dêste conceito. CARMICHAEL 3 fala dos dez mandamentos como "absolutos e imutáveis, regras de conduta estabelecidas por graça divina". Cita Maritain a quem atribui uma "abordagem verdadeiramente mística ao conhecimento do absoluto e das verdades eternas. Também HERSKOVITS 7 fala das verdades eternas. BIDNEY 2, diz que cada povo considera seus próprios valores como verdades eternas. Estas qualificações explicitam que "absoluto" é um conceito metafísico, incompatível com o mundo contingente e mutável, sujeito a tôda sorte de condições. LALANDE 13 cita mais uma vez Littré, que diz: "as idéias absolutas são aquelas que, segundo a metafísica, não vêm da experiência". Experiência só há no mundo chamado real, enquanto o absoluto pertence a um mundo ideal. O caso fica ainda mais claro em Cousin, também citado por LALANDE13, que diz: "as verdades absolutas supõe um Ser absoluto, no qual tem seu último fundamento". O conceito, também em Cousin, fica ligado à teologia. Êste é o universo dos absolutos.
Conceito de universal. Dizemos que o "absoluto" não pertence ao mundo chamado real. O "universal" sim. Na lógica encontramos as seguintes definições e descrições: Port-Royal (citado dor LALANDE13) diz do universal: "aquilo que é considerado comum a todos os homens". Enquanto as proposições puramente formais como o silogismo, são rigorosos e não admitem exceções, as proposições universais referem-se à ação ou à moral e admitem exceções. A citação de Port-Royal: "tôdos os jovens são inconstantes" é uma generalização, e como tal é baseada num grande número de indivíduos, mas certamente permite exceções. São desta natureza as proposições das ciências sociais aplicadas. Goblot, citado por LALANDE13, explicita que ao universal se chega por meio do caminho indutivo. Êste se fundamenta na experiência real de indivíduo a indivíduo, de grupo a grupo, de sociedade à sociedade, para chegar no que é comum a tôdas estas entidades particulares. O universal, pois, se opõe ao particular, o absoluto ao relativo. O absoluto e o relativo se excluem mùtuamente. Do relativo e particular, pode se chegar ao universal pelo método científico da indução.
4. RELATIVO E UNIVERSAL
Vimos que, entre os autores, há divergências referente à questão se há padrões morais absolutos ou se os padrões morais são relativos, variáveis de acôrdo com as condições externas e internas dos grupos humanos. Esta questão não é possível de resolução no terreno da ciência. Porém há possibilidade de diálogo entre o relativo e o universal. Ambos pertencem ao mesmo universo de ciscurso, ao do mundo real. Êste diálogo é aceito e defendido por autores que atribuem à cultura tanto aspectos relativos como universais. KLUCKHOHN 12, autor do têrmo "universais de cultura", diz: ... "é um dos vários têrmos usados para designar aspectos de cultura que se acredita existirem entre tôdos os homens...". Observa: "... pode-se conceber quaisquer valores, se não como bàsicamente absolutos, pelo menos universais". E, "nem relativismo extremo, nem absolutismo extremo são aceitáveis...". Objetamos contra a expressão "absolutismo extremo". Só há um absolutismo. Absoluto não comporta qualificações, justamente porque é incondicional. Há muita divergência ainda sôbre a natureza dos universais de cultura. Alguns autores atribuem a êles ainda caráter formal, no sentido de tipos abstratos. E há autores que chegam ao universal pelo caminho da ciência experimental. Partindo do estudo dos costumes dos grupos e sociedades, que são "produtos das experiências históricas e particulares" (BIDNEY2), chega-se a valores que são comuns a tôdos os grupos ou sociedades. Assim, para HERSKOVITS7, são categorias universais de cultura "a moralidade", "o gôzo da beleza", "algum padrão de verdade". São valores que todos os homens admitem e que podem, portanto, ser chamados de "universais". Trata-se, pois, com o universal de um conceito empírico, derivado da experiência por observação e feneralização. Nêstes universais pode haver exceções: homens que não valorizam a moralidade, ou o gôzo da beleza, ou a verdade. Pois não se trata de conceitos absolutos. Os costumes particulares, pelos quais os grupos e sociedades expressam êstes valores, variam de acôrdo com as condições tempo-espaciais ou históricas e locais dêstes grupos.
Validês dos universais de cultura. A tese relativista, na qual todos os valores são equivalentes entre si, leva a um pluralismo de valores. Tantos grupos, tantos valores. Para as ciências sociais aplicadas, especialmente com fins modificadores de práticas, isto significa que não há nenhum argumento a favor da modificação, porque uma prática é tão boa quanto a outra. Nêste impasse os universais de cultura desempenham um papel operacional importante. Se há valores universais, e sòmente formas de manifestação diversas, é possível comparar estas formas em referência à atualização dos valores. Citamos a experiência de HANLON 6 com um grupo étnico, para o qual não existia doença como nós a entendemos. Doença era um descontentamento de Deus com o indivíduo e o homem não podia intervir na vontade de Deus. A nosso ver, o que Hanlon empreendeu foi identificar junto com o responsável pelo grupo, a saúde como um bem universal. Para KLUCKHOHN 12 "um bem é um valor universal". Dêste modo conseguiu de um lado desvincular a problemática da doença do terreno metafísico (o reino do absoluto no qual não há exceção, nem mudança). De outro lado distinguiu da saúde como um bem as interpretações, as manifestações e o conteúdo subjetivo que o grupo atribuiu a êste valor. KANT 9, que colocou a pergunta "o que devemos fazer", responde esta no mesmo sentido. Pronuncia-se contra a determinação do conteúdo particular e de normas específicas da ação moral. Reconhece regras subjetivas e relativas, tanto quanto objetivas e universais. Chama as primeiras de "máximas", as segundas de "leis". Ambas são derivados empíricos; à lei se chega por indução a partir dos fatos da experiência. O postulado da "razão prática" de Kant é: "aja sempre de modo que a máxima de tua vontade possa ser ao mesmo tempo um princípio válido como lei universal". São máximas (subjetivas e relativas) as interpretações dos grupos étnicos de valores universais tais como "beleza", "verdade", "bem". Considerando a saúde um "bem", êste é um valor universal. Uma "lei" universal expressa a obrigatoriedade de concordância das máximas com o valor considerado universal. (Também na lei pode haver exceção). Pode-se entender em KLUCKHOHN 11, que a validês universal da saúde como um bem está na sua essência. Confrontando, portanto, o cientista social com a interpretação subjetiva dêste bem por um determinado grupo étnico ou com suas respectivas máximas, resta a êle examinar se estas máximas são eficazes de atualizar a essência dêste, isto é, atualizar aquilo que faz com que a saúde seja um bem universal. Dêste modo, o cientista evita um pluralismo extremo, que não justifica nenhuma mudança. Ao mesmo tempo, pela análise dos aspectos universais dêste bem, elabora um conceito científico e operacional da "saúde".
5. COMENTÁRIO
O relativismo, como posição filosófica, continuará polêmico enquanto houver pensadores de orientação dogmática e absolutista. Não há resolução da problemática absoluto-relativo, porque não há passagem de um conceito para o outro, encontrando-se os dois em terrenos essencialmente diversos. À observação dos autores, que a teoria do relativismo cultural é útil ao trabalho nas ciências sociais aplicadas, pode-se acrescentar que o relativismo em si é válido por sua orientação para a objetividade, e que seu diálogo com a posição universalista o torna defensível tanto do ponto de vista científico como filosófico.
Recebido para publicação em 19-2-1971
- 1. ASCH, S. E. Psicologia social. São Paulo, Ed. Nacional, 1960.
- 2. BIDNEY apud KROEBER, A. L. Anthropology today. Chicago, University of Chicago Press, 1953.
- 3. CARMICHAEL, L. apud SCHOECK, H. & WIGGINS, J. W. Relativism and the study of man. Princeton, Van Nostrand, 1961.
-
4DICTIONARY of the social sciences. Paris, Unesco, 1964.
- 5. GOMPERZ, T. Les penseurs de la Grèce: histoire de la philosophie antique. 3ème ed. Paris, Payot, 1928.
- 6. HANLON, J. J. Principles of public health administration. 3rd ed. St. Louis, Mosby, 1960.
- 7. HERSKOVITS, M. J. Cultural anthropology. New York, Knopf, 1958.
- 8. HESSEN, J. Teoria del conocimiento. 7.ª ed. Buenos Aires, Espasa, 1952.
- 9. KANT, E. Crítica da razão prática. Rio de Janeiro, Ed. Publ. Brasil, 1967.
- 10. KANT, I. Kritik der Reinen Vernunft. Hamburg, Meiner, 1956.
- 11. KLUCKHOHN, C. apud BRAMELD, T. Cultural foundations of education. New York, Harper, 1957.
- 12. KLUCKHOHN, C. apud KROEBER, A. L. Anthropology today. Chicago, University of Chicago Press, 1953.
- 13. LALANDE, A. Vocabulaire technique et critique de la philosophie. 6ème. ed. Paris, Presses Universitaires de France, 1950.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
14 Set 2006 -
Data do Fascículo
Jun 1971
Histórico
-
Recebido
19 Fev 1971