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Classificação internacional de motivos de consulta para assistência primária: teste em algumas áreas brasileiras

An international classification of the reasons for seeking primary care

Resumos

É apresentada uma nova classificação internacional de motivos de consulta em assistência primária proposta pela OMS, comentando os resultados de teste realizado em seis locais do Brasil, para verificação da abrangência e exeqüibilidade da nova classificação. Os resultados foram satisfatórios, levando à conclusão da viabilidade do uso do instrumento.

Classificação internacional para assistência primária


A new International Classification of Primary Care, proposed by WHO, is discussed. Comments are made on a field test carried out to investigate the feasibility of thus describing and characterizing the context of primary care in Brazil. The results were satisfactory, leading to the conclusion that the classification is applicable.

International classification of primary care


ARTIGO ORIGINAL

Classificação internacional de motivos de consulta para assistência primária: teste em algumas áreas brasileiras

An international classification of the reasons for seeking primary care

Maria Lúcia Lebrão

Do Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo -Av. Dr. Arnaldo, 715 - 01255 - São Paulo, SP - Brasil

RESUMO

É apresentada uma nova classificação internacional de motivos de consulta em assistência primária proposta pela OMS, comentando os resultados de teste realizado em seis locais do Brasil, para verificação da abrangência e exeqüibilidade da nova classificação. Os resultados foram satisfatórios, levando à conclusão da viabilidade do uso do instrumento.

Unitermos: Classificação internacional para assistência primária.

ABSTRACT

A new International Classification of Primary Care, proposed by WHO, is discussed. Comments are made on a field test carried out to investigate the feasibility of thus describing and characterizing the context of primary care in Brazil. The results were satisfactory, leading to the conclusion that the classification is applicable.

Uniterms: International classification of primary care.

INTRODUÇÃO

O processo de tomada de decisão, em qualquer área do planejamento, tem como base a informação. A saúde não pode, portanto, fugir a essa regra. Acresce-se a isso a enorme discussão que se verifica nos últimos anos a respeito da necessidade de se estabelecerem novos padrões de política de saúde, pensando-se, principalmente, em assistência primária. Nessa área, constitui aspecto relevante a questão da existência de uma conexão entre a razão da entrada de uma pessoa no sistema de saúde, vindo a se tornar um paciente, e o que acontece a essa pessoa depois da sua entrada. Com essa preocupação, a Organização Mundial da Saúde formou um grupo de especialistas que, a partir de novembro de 1978, iniciou as discussões para a elaboração de uma nova classificação que auxilie na resposta à questão: porque uma pessoa procura um serviço de saúde?8

A maioria das classificações de doenças tem por objetivo classificar a interpretação pelo "provedor" da assistência de saúde, da doença, afecção ou traumatismo do doente. Na "Classificação Internacional para Assistência Primária" (CIAP) são classificadas as razões que levaram as pessoas a pedir assistência, vistas da perspectiva do paciente. A informação que se classifica é a que se obtém no início do contato do provedor com o paciente, antes que se disponha de informação suficiente para a formulação do diagnóstico4. Trata-se, portanto, de uma classificação orientada para o paciente mais que para a doença ou para o provedor da assistência à Saúde4. Além da doença, muitos outros problemas podem levar as pessoas a visitar um serviço de assistência primária: problemas econômicos, sociais e psicológicos, carências, ansiedade, medos, incertezas. Tudo isso junto se traduz nos "problemas das pessoas". Por essa razão, o grupo de trabalho sentiu-se livre para aceitar qualquer plano, conceito ou sugestão que preenchesse os novos propósitos, não se sentindo restrito à Classificação Internacional de Doenças, 9a Revisão (CID-9)3,8.

A razão básica da não utilização completa da CID-9 foi ser a mortalidade o seu referencial primeiro e, também, a falta de detalhes na área de queixas e sintomas, aspectos importantes na assistência primária. Porém, a CID-9 serviu de base para uma das partes da classificação: o componente 7, Diagnósticos e Doenças. Os títulos de categoria que figuram no componente 7 são os mesmos da "International Classification of Health Problems in Primary Care" (ICHPPC-2)2, que é uma versão da CID-9 modificada para a atenção primária de saúde. Outras classificações existentes, como a elaborada pelo North American Primary Care Research Group (NAPCRG-1): "A process code for primary care"5 e a do National Ambulatory Medical Care Survey: "Reason for visit (NAMCS-RFV)"6,7, não satisfaziam completamente, da mesma forma. Dessa maneira, decidiu-se que seria mais vantajoso incorporar o melhor de cada sistema já existente. Assim surgiu a primeira versão da "Reasons for Encounter Classification (RFE-C)" traduzida e publicada pelo Centro da OMS para Classificação de Doenças em Português sob o título de "Classificação de Motivos de Consulta" (CMC)1 que, após os testes, foi substituída pela última versão, aqui apresentada (CIAP).

A CLASSIFICAÇÃO INTERNACIONAL PARA ASSISTÊNCIA PRIMÁRIA

A classificação proposta pelo grupo da OMS está estruturada em dois eixos, como pode ser visto na Figura: capítulos e componentes. Os capítulos são em número de 17, a maioria abrangendo os sistemas orgânicos (B, D, F, H, K, L, N, R, S, T, U, X, Y); os demais não obedecem a critérios anatômicos, mas correspondem a "problemas gerais" (capítulo A), "psicológicos" (P), "relativos à reprodução" (W) e "sociais" (Z). As doenças infecciosas, os tumores, os traumatismos e as anomalias congênitas não constituem capítulos independentes como na Classificação Internacional de Doenças mas, acham-se representados no componente Diagnóstico/Doença de cada capítulo, que por sua vez é representado por uma letra que é o primeiro símbolo que figura em todos os códigos e rubricas que estão contidos nos capítulos. Estes, por sua vez, estão subdivididos nos mesmos sete componentes. Cada componente compreende uma série de códigos de dois algarismos, colocados após a letra de código correspondente ao capítulo. Os componentes estão distribuídos da seguinte maneira:


Componente 1: Sintomas e queixas

códigos de 01 a 29

Componente 2: Procedimentos diagnósticos e preventivos

códigos de 30 a 49

Componente 3: Medicação, tratamento e procedimentos terapêuticos

códigos de 50 a 59

Componente 4: Resultados

códigos 60 e 61

Componente 5: Razões Administrativas

código 62

Componente 6: Encaminhamentos e outras razões para encontro

códigos de 63 a 69

Componente 7: Diagnósticos/Doenças

códigos de 70 a 99

Este componente 7 só pode ser usado quando o paciente expressa o motivo da procura em termos de um diagnóstico.

Aplica-se, pois, um sistema relativamente simples de classificação biaxial com 3 caracteres, baseado em sete componentes fixos, cinco dos quais (de 2 a 6) têm, em todos os capítulos, códigos de 2 algarismos análogos. Como exemplo, pode-se citar:

A03 Febre................................componente 1, sintomas e queixas do capítulo A — Problemas gerais e inespecíficos.

D41 RX de estômago..................componente 2, procedimentos diagnósticos e preventivos do capítulo D. Aparelho Digestivo.

Y82 Hipospádia.........................componente 7, Diagnósticos/Doenças do capítulo Y — Aparelho genital masculino.

O esquema apresentado na Figura dá uma idéia da estrutura da classificação que está sendo proposta para a assistência primária.

TESTES DA CLASSIFICAÇÃO

Visando a avaliar a exeqüibilidade do uso do modelo proposto, em 1980 foi realizado um estudo piloto nos Países Baixos. À vista dos resultados obtidos foi empreendido, em 1983, um novo teste de viabilidade em outros países: Austrália, Barbados, Estados Unidos da América, Hungria, Malásia, Noruega, Países Baixos e Brasil. Entre nós, esse teste foi realizado em seis locais: (1) Pronto Atendimento do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas de São Paulo, SP; (2) Centro de Saúde Escola Dr. Samuel B. Pessoa (Butantã), SP; (3) Hospital Centro de Saúde de Cotia, São Paulo;(4) Serviço Especial de Saúde de Araraquara, São Paulo; (5) Centro de Saúde - Escola da Faculdade de Medicina de Botucatu, SP; (6) Centros de Saúde do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas, RS. No total foram utilizados 21 pesquisadores, entre médicos residentes e funcionários, sob a coordenação de um pesquisador principal. Como se tratava de um teste de classificação, não interessando, no momento, o conhecimento da verdadeira morbidade dos locais estudados, não houve preocupações com a representatividade do material analisado. Assim, participaram dessa fase do estudo aqueles grupos que se mostraram interessados e que tinham facilidades para a realização do trabalho. Foram analisados 11.186 encontros (assim chamado o número de vezes que os pacientes procuraram qualquer dos serviços incluídos no estudo) que resultaram em 16.271 razões para a procura dos serviços.

Os motivos de consulta foram registrados em folha pré-codificada, encaminhada para a Organização Mundial de Saúde, em Genebra, centralizadora dos dados, que os passava para o computador. Um problema surgido foi decorrente do fato de essas informações terem sido registradas em português e lidas por alguém de língua inglesa. Isso exigiu, dos participantes, o registro dos motivos de consulta, em letra de forma, e, da coordenação, uma revisão de todos os casos enviados. Alguns participantes tinham caligrafia de leitura bastante difícil para pessoas que desconheciam a língua portuguesa. Nesses casos, os dados foram digitados e enviados em folhas de computação. Isso permitiu que toda a informação enviada do Brasil fosse aproveitada.

A utilização da classificação é bastante simples, o que facilitou o treinamento dos participantes. Foi gasto, em média, um período de 4 horas com cada grupo (cada localidade) para o treinamento inicial. Após o início da aplicação foram feitas visitas periódicas para discussão das dúvidas. Todos os questionamentos e sugestões surgidas durante o trabalho foram encaminhados, ao final, para o grupo responsável pela classificação (OMS) e foram aproveitados na reformulação da classificação, resultando na última revisão, que é a apresentada no presente trabalho.

RESULTADOS E COMENTÁRIOS

Alguns resultados interessantes podem ser verificados na análise do teste realizado no Brasil. Das 16.271 razões apresentadas para a procura de um serviço de saúde, às do capítulo A (Problemas Gerais e inespecífícos) foram as mais referidas (28,5%), seguidas pelas do Aparelho Respiratório (20,6%) e Aparelho Digestivo (16,3%). A distribuição da freqüência dos demais capítulos pode ser vista na Tabela 1, Quanto às razões apresentadas, em relação aos componentes, 70,8% se manifestaram por sintomas ou queixas (componente 1 - Figura) tendo os restantes 29,2% se distribuído entre os outros seis (Tabela 2), sendo referidos todos os capítulos. Ainda na Tabela 1 pode-se ver que 75,2% das queixas foram apresentadas pela primeira vez naquele serviço, sendo apenas 24,8% por seguimento. É interessante notar que nos capítulos K (Aparelho Circulatório) e Z (Razões Sociais) foi maior a quantidade de retornos.

Em relação ao sexo, a Tabela 3 mostra que foi maior a proporção de mulheres, como é comum ser encontrado nos atendimentos de saúde (56,9% para 43,1% do sexo masculino).

Na Tabela 4 pode ser vista a distribuição dos motivos de consulta segundo os grupos etários. De uma maneira geral, os grupos de idade seguem o mesmo padrão de queixas do global dos atendimentos, com ênfase nas queixas gerais e inespecífícas, aparelho respiratório e aparelho digestivo. Constituem exceção os grupos de 15 a 24 e de 25 a 44 anos por apresentarem como principais queixas aquelas do capítulo X (Aparelho Genital Feminino). Também os pacientes de 45 anos e mais afastam-se um pouco da distribuição geral ao apresentarem as queixas referentes ao Aparelho Circulatório (K) como a segunda mais freqüente.

O grande peso constituído pelos menores de 15 anos (66,5%) reflete o maior número de serviços de pediatria utilizados, não se ignorando o fato de ser esse grupo um grande consumidor de serviços de saúde.

CONCLUSÕES

Com base na análise feita a partir do teste, foram sugeridas algumas modificações na classificação, como no capítulo de Pele (S) que trazia dificuldades em virtude da diversidade de termos usados pelos pacientes. O componente 1 (Sintomas e Queixas), que tinha 13 possíveis códigos, passou a ter 27.

Alguns termos apresentaram problemas de bilocação, ou seja, podiam ser classificados em dois capítulos diferentes; exemplo disso era "dor nas pernas", que podia estar em A 16 e L 14. Na última versão, foi localizada no capítulo L - Sistema Músculo-Esquelético. Os códigos relativos a lesões e traumatismos, que eram apenas 2 no capítulo A, foram expandidos para 9, na última versão.

Outro problema sentido e que pôde ser resolvido foi o relativo às mudanças das características das fezes. Os pacientes têm uma enorme variedade de termos para descrever queixas e sintomas relativos às fezes e a primeira versão da classificação era bastante restrita a esse respeito. Com a expansão do capítulo, esses termos foram incluídos.

Assim como essas questões, outras menores puderam ser resolvidas.

Ao apresentar os resultados e comentários pretendeu-se dar idéia geral do que foi encontrado nessa fase de teste do instrumento. O próximo passo será avaliar o uso dessa classificação na prática da assistência primária, no planejamento em saúde e em pesquisa. A utilização dessa classificação não deve ficar restrita aos médicos, mas deve ser aceitável para enfermeiros, agentes de saúde, visitadores sanitários e todo o pessoal paramédico trabalhando em serviços de assistência primária.

Recebido para publicação em 14/09/1984

Aprovado para publicação em 17/12/1984

  • 1
    CLASSIFICAÇÃO de Motivos de Consulta. São Paulo, Centro Brasileiro de Classificação de Doenças, 1983.
  • 2
    ICHPPC-2-Defined: international classification of health problems in primary care. 3rd ed. Oxford, Oxford University Press, 1983.
  • 3
    MANUAL da Classificação Internacional de Doenças, Lesões e Causas de Óbitos, 9a revisão, 1975. São Paulo, Centro da OMS para Classificação de Doenças em Português/Ministério da Saúde/Organização Panamericana da Saúde, 1980. 2v.
  • 4. MEADS, S. La classificacion de la OMS por "razones de la consulta". Cron. Org. mund. Salud, 37:191-6,1983.
  • 5
    NAPCRG-1: a Process Code for Primary Care; International field trial version. Richmond, VA, North American Primary Care Research Group, 1981.
  • 6. SCHNEIDER, D. An ambulatory classification system: design development and evaluation, Hlth Serv. Res., 14:77-8,1979.
  • 7. SCHNEIDER, D. et al. A reason for visit clasification for ambulatory care. Vital Hlth Statist. Ser. 2 (78) 1979.
  • 8
    WORLD HEALTH ORGANIZATION. Reasons for contact with primary care services: a model classification. Geneva, 1980.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Set 2005
  • Data do Fascículo
    Fev 1985

Histórico

  • Aceito
    17 Dez 1984
  • Recebido
    14 Set 1984
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