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Uso de tabaco iniciado na infância: relatos de adultos em tratamento

Tobacco use beginning at childhood: adults out-patients’ narratives

Resumos

OBJETIVO: Coletar e analisar relatos de adultos dependentes de tabaco que começaram a fumar na infância e sobre os fatores que consideram relacionados ao início de uso. MÉTODO: Pesquisa qualitativa com entrevistas semidirigidas gravadas com 11 pacientes em tratamento ambulatorial especializado para dependência de tabaco e que mencionaram início de uso antes dos 12 anos de idade; fechamento amostral por saturação teórica, transcrição do áudio e análise de conteúdo das entrevistas com triangulação de analistas. RESULTADOS: Quatro categorias agrupam os fatores mencionados pelos entrevistados ou inferidos pelos autores: normalidade sociocultural e familiar do ato de fumar tabaco; identificação e aprendizado com figuras parentais fumantes; condições adversas de vida, incluindo trabalho infantil e poucas atividades lúdicas; e escassez de informações, incluindo uso cultural de tabaco para finalidades diversas. CONCLUSÕES: Resultados permitem maior compreensão sobre os pontos de vista e vivências de pacientes com histórias semelhantes sobre a questão, o que pode colaborar para a efetividade das abordagens motivacionais e terapêuticas e da aliança terapêutica, ao minimizar dificuldades de interação clínico-paciente. Estudos etnográficos sobre uso de tabaco na infância são indicados para a atual população rural brasileira, visando o aperfeiçoamento de abordagens preventivas.

Tabagismo; abandono do uso de tabaco; saúde da população rural; pesquisa qualitativa


ABSTRACT OBJECTIVE: To collect and analyze narratives of adult tobacco dependents who began to smoke during childhood on the factors they consider related to the beginning of such habit. METHODS: Qualtitative research using semidirected interviews with eleven outpatients of a specialized tobacco dependence treatment center who had mentioned have began to smoke tobacco before twelve years old; sample definition by theoretical saturation, transcription of audio and content analysis of the interviews with triangulation of analysts. RESULTS: Four analytical categories had been formulated grouping the factors that were mentioned by the participants or were inferred by the authors: sociocultural and familiar normality of tobacco smoking; identification and learning with smoking parental figures; adverse conditions of life, including infantile work a few playful activities; scarcity of information, including cultural tobacco use for diverse purposes. CONCLUSIONS: Results allow a best understanding on the points of view and feelings of the patients with similar personal histories on the researched questions, maybe collaborating for the effectiveness of the motivational and therapeutical approaches and for therapeutical alliance while minimizing physician-patient interaction difficulties. Ethnografic studies on tobacco use in the childhood are indicated for the current Brazilian rural population, aiming at improvement of preventive approaches.

Smoking; tobacco use cessation; rural health; qualitative research


ARTIGO ORIGINAL

Uso de tabaco iniciado na infância: relatos de adultos em tratamento

Tobacco use beginning at childhood: adults out-patients’ narratives

Telma Verônica Silva CalsavaraI; Bruno José Barcellos FontanellaII

ICentro Infantil Dr. Domingos A. Boldrini

IIDepartamento de Medicina da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Bruno José Barcellos Fontanella Departamento de Medicina – Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Rod. Washington Luís, km 235– Caixa Postal 676 13565-905 – São Carlos, SP E-mail: bruno@power.ufscar.br

RESUMO

OBJETIVO: Coletar e analisar relatos de adultos dependentes de tabaco que começaram a fumar na infância e sobre os fatores que consideram relacionados ao início de uso.

MÉTODO: Pesquisa qualitativa com entrevistas semidirigidas gravadas com 11 pacientes em tratamento ambulatorial especializado para dependência de tabaco e que mencionaram início de uso antes dos 12 anos de idade; fechamento amostral por saturação teórica, transcrição do áudio e análise de conteúdo das entrevistas com triangulação de analistas.

RESULTADOS: Quatro categorias agrupam os fatores mencionados pelos entrevistados ou inferidos pelos autores: normalidade sociocultural e familiar do ato de fumar tabaco; identificação e aprendizado com figuras parentais fumantes; condições adversas de vida, incluindo trabalho infantil e poucas atividades lúdicas; e escassez de informações, incluindo uso cultural de tabaco para finalidades diversas.

CONCLUSÕES: Resultados permitem maior compreensão sobre os pontos de vista e vivências de pacientes com histórias semelhantes sobre a questão, o que pode colaborar para a efetividade das abordagens motivacionais e terapêuticas e da aliança terapêutica, ao minimizar dificuldades de interação clínico-paciente. Estudos etnográficos sobre uso de tabaco na infância são indicados para a atual população rural brasileira, visando o aperfeiçoamento de abordagens preventivas.

Palavras-chave: Tabagismo, abandono do uso de tabaco, saúde da população rural, pesquisa qualitativa.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To collect and analyze narratives of adult tobacco dependents who began to smoke during childhood on the factors they consider related to the beginning of such habit.

METHODS: Qualtitative research using semidirected interviews with eleven outpatients of a specialized tobacco dependence treatment center who had mentioned have began to smoke tobacco before twelve years old; sample definition by theoretical saturation, transcription of audio and content analysis of the interviews with triangulation of analysts.

RESULTS: Four analytical categories had been formulated grouping the factors that were mentioned by the participants or were inferred by the authors: sociocultural and familiar normality of tobacco smoking; identification and learning with smoking parental figures; adverse conditions of life, including infantile work a few playful activities; scarcity of information, including cultural tobacco use for diverse purposes.

CONCLUSIONS: Results allow a best understanding on the points of view and feelings of the patients with similar personal histories on the researched questions, maybe collaborating for the effectiveness of the motivational and therapeutical approaches and for therapeutical alliance while minimizing physician-patient interaction difficulties. Ethnografic studies on tobacco use in the childhood are indicated for the current Brazilian rural population, aiming at improvement of preventive approaches.

Key-words: Smoking, tobacco use cessation, rural health, qualitative research.

INTRODUÇÃO

A precocidade da exposição ao uso de tabaco é fenômeno merecedor da atenção dos gestores públicos, sobretudo pela associação entre tabagismo e diferentes e graves comorbidades clínicas. Sendo a freqüência de ocorrência dessas complicações proporcional ao tempo de uso, é particularmente deletério que o início do hábito tabagístico ocorra nas fases mais precoces da vida (Patel, 1999).

Os determinantes da primeira experimentação de cigarros de tabaco e o posterior desenvolvimento do tabagismo são multifatoriais. Considera-se que o estudo das trajetórias de vida individuais que levam alguém a ser um fumante diário seja uma das linhas de pesquisa mais promissoras para o estabelecimento de medidas preventivas (Abroms et al., 2005).

A comunidade científica considera consensualmente que o período da adolescência é crucial para a ocorrência da primeira experimentação do tabaco e para o desenvolvimento do hábito (Abroms et al., 2005; Galduróz et al., 2005b; Horta et al., 2001; Machado-Neto e Cruz, 2003; Malcon et al., 2003). Entre os estudantes de ensino fundamental e médio das escolas públicas das capitais brasileiras, de diferentes faixas etárias, o uso de tabaco na vida aproxima-se de 25%. Na faixa etária de 10 a 12 anos, cerca de 7% já experimentaram (Galduróz et al., 2005b). Até o final da adolescência, estima-se que cerca de metade da população escolar já terá fumado cigarros de tabaco (Machado-Neto e Cruz, 2003), a despeito das informações transmitidas nas atividades educativas escolares. Em levantamento domiciliar, o uso de tabaco na vida na faixa etária dos 12 aos 17 anos foi estimada em 15,7%, dado talvez subestimado em razão das peculiaridades de uma pesquisa domiciliar (Galduróz et al., 2005a).

Há indícios de que alguns dos precursores epidemiológicos deste hábito estejam presentes já no período anterior do ciclo vital, na infância (Freeman, 2005). Entretanto, em revisão bibliográfica empreendida em bancos de dados, Medline e Lilacs, os autores não encontraram pesquisas brasileiras ou estrangeiras sobre o tema específico da iniciação de uso de tabaco na infância. Todavia, embora raramente realçada na discussão dos resultados, o exame das tabelas de alguns estudos epidemiológicos sugerem que o início do hábito tabagístico também ocorre abaixo dos 12 anos de idade (Malcon et al., 2003; Peixoto et al., 2005), mesmo em países desenvolvidos (Fraga et al., 2006) ou em subgrupos populacionais de mais alta escolaridade (Menezes et al., 2001; Mirra e Rosemberg, 1997). O estudo brasileiro de Malcon et al. (2003) explicita este tipo de dado, tendo os autores tabulado a faixa etária dos 7 aos 12 anos como o momento de início do uso de tabaco para cerca de 22% da amostra de fumantes adolescentes abordada em seu estudo de base populacional.

Também as observações clínicas realizadas em um ambulatório especializado no tratamento de tabagismo (do serviço de saúde onde o presente estudo foi realizado) identificam freqüentes histórias de pacientes que começaram a fumar tabaco antes dos 12 anos de idade, sendo comuns os relatos de experimentação anterior aos 10 anos de idade. Embora sejam pacientes dependentes de nicotina/tabaco há várias décadas (isto é, temporalmente já distantes da experimentação inicial), observou-se que tendem a valorizar, em suas histórias, os fatores que consideram envolvidos nessa experimentação tão precoce. Trata-se de pacientes exclusivos do Sistema Único de Saúde (SUS), caracteristicamente dos estratos socioeconômicos mais baixos, com comorbidades de importância clínica, tendo exercido funções laborais já na infância e geralmente vivido essa época de suas vidas sob influência de padrões rurais de sociabilidade.

Atendendo a esse perfil de usuários, os autores formularam uma questão eminentemente clínica de pesquisa, indagando-se sobre quais elementos desses relatos poderiam ajudar os profissionais de saúde clínicos a compreender melhor a problemática vivida por esses pacientes tabagistas, todos com uma relação particularmente arraigada com o tabaco, consumido desde a infância. Nossa hipótese foi de que haveria especificidades nessas histórias, importantes de serem consideradas, com vistas a melhorar a aliança terapêutica durante o tratamento para dependência de tabaco, dentre elas a percepção dos pacientes sobre os fatores que consideram envolvidos no início do uso.

O objetivo do presente estudo foi, portanto, coletar, detalhar e analisar os relatos desses pacientes, procurando fazê-lo a partir da ótica dos próprios participantes, levantando, assim, elementos para iniciar uma compreensão dos fatores possivelmente implicados neste fenômeno que, embora aparentemente ainda freqüente, tem sido pouco explorado cientificamente.

MÉTODO

Optamos por um método qualitativo de pesquisa, que abordasse uma série de casos de tabagismo com início na infância. Realizamos entrevistas semidirigidas com questões abertas com pacientes em tratamento de dependência de tabaco e que começaram a fumar até os 12 anos de idade.

A opção por um método qualitativo se deve a duas peculiaridades com as quais nos defrontamos. A primeira é que o objeto de estudo desta pesquisa (uso de tabaco iniciado na infância) tem sido ainda pouco estudado cientificamente, de maneira que ainda necessita de estudos exploratórios para melhor recortá-lo e circunscrever as possíveis variáveis envolvidas. A segunda refere-se ao objetivo a que nos propomos atingir: compreender os pontos de vista dos participantes sobre o uso de tabaco iniciado na infância, estudando, portanto, a questão a partir das óticas dos próprios sujeitos pesquisados (propósito que só pode ser alcançado por um método cujas técnicas de coleta de dados permitam a livre expressão dos participantes, o que seria muito limitado com a aplicação de instrumentos padronizados de entrevista). Dado o envolvimento direto dos autores no atendimento clínico desses pacientes, consideramos particularmente úteis aos nossos propósitos as técnicas e os procedimentos preceituados pelo método clínico-qualitativo proposto por Turato (2003), em que se valorizam as questões clínicas presentes na interação entrevistador-entrevistado.

As observações clínicas, feitas no dia-a-dia assistencial, dos aspectos psicológicos e comportamentais do conjunto de pacientes tabagistas do ambulatório foram consideradas como um processo de aculturação dos pesquisadores. Foi particularmente útil, para o desenvolvimento de uma competência cultural para a coleta e tratamento dos dados que seriam feitas nesta pesquisa, a familiarização dos autores com o modo como esses pacientes costumam expressar suas dúvidas e angústias – pacientes que, em geral, nunca tinham participado de atendimentos psicoterápicos.

Foram feitas entrevistas individuais semidirigidas com adultos dependentes de tabaco que procuraram tratamento para este problema e que mencionaram início de uso de cigarros de tabaco antes dos 12 anos de idade. As entrevistas foram realizadas em uma sala de atendimento ambulatorial, local de trabalho da entrevistadora (TVSC), e já conhecido e freqüentado pelos participantes. Cabe ressaltar que esses participantes eram também pacientes de outros ambulatórios de outras especialidades clínicas do serviço.

A amostra de 11 participantes foi obtida dentre os pacientes atendidos no serviço de triagem do programa de tabagismo da instituição onde a pesquisa foi feita. De dezembro de 2004 a dezembro de 2005, todos os pacientes que mencionaram o início do uso de tabaco antes dos 12 anos foram informados sobre a pesquisa e convidados a participar. Interrompeu-se a captação de novos participantes quando os dados coletados foram considerados suficientes para o desenvolvimento de uma discussão teórica inicial sobre possíveis fatores envolvidos na experimentação de tabaco na infância, ou seja, quando o material coletado atingiu a saturação teórica quanto a esses objetivos (Glaser e Strauss, 1967).

As entrevistas foram norteadas por um tema principal (como começou a fumar cigarros de tabaco?), a partir do qual outros temas poderiam ser propostos (por exemplo: dia-a-dia familiar e sociocultural e o fumar; escola, atividades lúdicas e trabalho antes dos 12 anos; primeiras experimentações: como ocorreu), com a adaptação lexical ao universo sociocultural e clínico de cada entrevistado. Procurou-se observar questões técnico-metodológicas sobre entrevistas semidirigidas com questões abertas na área clínica (Fontanella et al., 2006). Gravadas em fitas magnéticas, as entrevistas foram transcritas integralmente e analisadas quanto ao seu conteúdo temático por ambos os autores (Bardin, 1995). Alguns dados de identificação sociodemográfica e de comorbidades foram obtidos dos prontuários dos pacientes.

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição acadêmica onde o estudo foi realizado, tendo os participantes assinado o termo de consentimento pós-informação.

RESULTADOS

O Quadro 1 resume as principais características sociodemográficas do conjunto de participantes. A maioria exerceu trabalho infantil. Dos participantes 7 dos 11 procedem de zona rural – tendo lá vivido, pelo menos, na infância e na chamada pré-adolescência. Neste contexto geográfico e sociocultural iniciaram o uso de tabaco, tendo, posteriormente, migrado para um grande centro urbano. Os participantes que sempre viveram no meio urbano (4) relataram condições socioeconômicas ruins durante a infância, mencionando precariedade de habitação nesta época (cortiço, pensão). A totalidade dos participantes apresenta algum tipo de comorbidade clínica associada ao tabagismo.


O tempo médio de duração das entrevistas foi de 65 minutos (máximo de 120 minutos, mínimo de 25 minutos).

A análise qualitativa de conteúdo das transcrições gerou a formulação de algumas categorias temáticas, comentadas a seguir. Exemplos dos trechos mais longos das entrevistas que fundamentaram a formulação dessas categorias são reproduzidos nos Quadros numerados de 2 a 5 . Frases mais curtas são citadas no próprio texto do artigo.




O código alfanumérico que sucede aos trechos da entrevista designa o sexo e a idade do participante (a letra M refere-se a participante do sexo masculino e a letra F, ao sexo feminino).

Normalidade sociocultural e familiar do ato de fumar tabaco

Os entrevistados fizeram referência a uma intensa convivência familiar e comunitária, configurando padrões de sociabilidade vividos em suas infâncias em que fumar tabaco era considerado normal, no que diz respeito ao que viviam em seus cotidianos, com poucas influências socioculturais frontalmente contrárias à experimentação, inclusive por crianças (falas de F45, M74, M43, F53 e M55) (Quadro 2 ).

Consideraram tratar-se de comportamento aprendido espontaneamente ("dizem que pra aprender a fumar dá um trabalho danado, eu não tive esse problema" – M55), culturalmente ritualizado, compartilhado e aceito pelos adultos (F64), produto da história de suas vidas familiares, hábito passado de geração a geração (F55, F53). Houve referências à extensão dessa normalidade aos diferentes gêneros e categorias de parentesco, conotando a generalização do costume. Observe-se que uma das frases mencionadas no Quadro 2 pode ser lida como uma metáfora utilizada pelo participante para exemplificar a percepção de que fumar estava, quando ele próprio era criança, no ar (ou seja, impregnando o dia-a-dia cultural que vivenciavam) ("não quero que esta criança respire fumo, como eu respirei", comentando não querer que seu neto observe os parentes fumando – M55).

Eventual migração para o meio urbano de participantes que viveram em zona rural pareceu a alguns deles afigurar-se como desritualizando o ato de fumar, gerando mudanças no comportamento, tendo sido mencionado especificamente neste processo o uso de cigarros industrializados em contraposição ao fumo de corda (M74, F64). Vivendo a infância em condições precárias em meio urbano, a entrevistada F53 associou "famílias desmanchadas, destruídas" ao uso de tabaco por crianças (referindo-se a famílias monoparentais que compartilhavam o mesmo espaço físico em um cortiço).

Identificação com figuras parentais

Esta categoria é próxima à anterior, porém se destaca que o conjunto das falas dos participantes associa o uso inicial de tabaco a uma convivência estreita com adultos fumantes próximos e significativos (Quadro 3).

Como a entrevista solicitou aos informantes uma reflexão sobre algumas de suas vivências quando crianças, foi marcante a expressão de afetividade em relação à lembrança dos pais e de outros parentes próximos. A interação com esses familiares parece ter sido permeada pela permissibilidade ao fumar e por uma forte relação empática de compreensão e tolerância com o hábito do outro, mesmo se criança.

A questão do gênero do adulto fumante esteve espontaneamente presente nas falas. Caracteristicamente (embora nem sempre) referiram-se à influência de adultos fumantes do mesmo sexo do entrevistado (pai ou mãe, avós, tios etc.) (F55, F55, M43, F56, M74). De algumas falas infere-se uma aceitação tácita do hábito de fumar entre mulheres, mas em outras falas associa-se esse comportamento diretamente com a masculinidade (M43).

Nesse mesmo sentido, houve referências indiretas de duas participantes mulheres a erotização e glamorização do comportamento de fumar (F53, F61) e uma referência direta de um homem à respeitabilidade masculina associada a esse comportamento (M43).

Os participantes acentuaram também o que pode ser descrito como comportamentos ambíguos dessas figuras parentais de identificação (falas de F55, M62, F53). Parecem considerar que, na interação com esses adultos, eles teriam tacitamente permitido ou mesmo promovido e recomendado o comportamento, embora também tenham expressado reprovação. Houve menções a reações agressivas à experimentação de tabaco para, logo em seguida, sentirem-se alvos de uma postura tolerante, contanto que seguissem as normas estabelecidas por esses adultos. Para isso parece contribuir a percepção do surgimento rápido da dependência do tabaco: "tentaram proibir[...] não teve mais jeito" (F45), "dizia que eu deveria parar de fumar, só que já não tinha mais jeito" (M43), "não pega esse vício, não, minha filha. Infelizmente, mãe, já peguei" (F55).

É possível que esta intolerância inicial seja interpretada pelos participantes como uma reação dos adultos ao risco de anomia relacionado às iniciativas das crianças em fumar (o uso do tabaco aparentemente se associando à idéia de risco de quebra das normas sociais). Porém, a demonstração da criança de subordinar-se a essas regras sociais (mesmo fumando) teria sinalizado um retorno a um padrão normativo de condutas, a uma nova normalidade sociofamiliar em que as sanções relativas aos cigarros não seriam mais necessárias. Como será comentado adiante, o trabalho infantil parece ser visto como um dos sinais de subordinação a regras, assim como o comportamento de manter os pais informados (F45) e só fumar "escondido" (F54, M74).

Curiosamente, esse momento em que começavam a satisfazer impulsos de uso do tabaco coincide com o início do amadurecimento sexual. A tentativa de normatizar comportamentos (considerando que fumar é um comportamento facilmente visível e monitorável, portanto mais facilmente normatizável) pode ter sido relacionada, talvez não conscientemente, a também normatizar o comportamento sexual. Os entrevistados não discorreram sobre aspectos de seus desenvolvimentos psicossexuais, porém a fala de um deles parece correlacionar os dois desejos, à medida que menciona a exigência que seu pai fazia de pudor: "A única exigência é que não fumasse perto dele [...] nem perto da mãe [...] mesmo depois de casado" (M74). Algo análogo pode ser inferido a partir das menções ao "fumar escondido", presentes em várias entrevistas, como na fala de F54.

O final da fala desta mesma participante faz os autores supor uma percepção de um aprendizado natural do hábito de fumar, que passaria de pais para filhos: considera que seu filho foi poupado desta transmissão e não é tabagista somente porque F54 teria fumado escondido por muito tempo, ratificando também a aparente noção de uma transmissão geracional do hábito de fumar (mencionada na categoria anterior).

Condições adversas de vida, trabalho infantil, poucas atividades lúdicas

O início precoce do uso de tabaco foi diretamente relacionado pelos participantes ao estado de privação de bens materiais e a terem crescido e se desenvolvido em condições que hoje consideram adversas (F53). Refletiram sobre estes contextos geográfico e sociocultural, particularmente quando viveram no meio rural (Quadro 4).

Houve ênfase dos entrevistados em vincular o início do uso de tabaco na infância ao trabalho exercido nesta época de suas vidas, referindo-se à convivência direta com colegas de trabalho fumantes e à melhoria das condições de trabalho relacionadas ao fumar (M74, M43).

Comentaram sobre condições precárias de moradia e sobre a função substitutiva do fumar em relação a atividades lúdicas (F54, F55, F45, F56, M74, M55).

Alguns participantes associaram certa moralidade relacionada ao status de trabalhador infantil e a permissão que tiveram para fumar: ao se dispor e ao se dedicar ao trabalho, a criança estaria adquirindo independência para adotar determinados comportamentos diante da família. Referiram-se a incentivos dos pais para "sustentar o vício" com o próprio trabalho (F45), mesmo infantil. Trabalhar seria culturalmente percebido como uma forma de se tornar autônomo e ter permissão para fumar.

Escassez de informações e uso cultural do tabaco com finalidades diversas

Alguns entrevistados explicaram a mencionada permissividade sociocultural e familiar ao uso precoce do tabaco a pouca escolaridade dos pais e a baixa exposição da família e da comunidade a recursos educacionais. O entrevistado M43 aparentemente supõe que a mídia da época disponibilizava informações às quais sua família não tinha acesso. Referiram-se a uma certa ingenuidade devida ao não acesso a informações, o que teria, em suas óticas, gerado incentivos positivos involuntários por parte dos adultos (F45, F56, M74) (Quadro 5).

Percebem então um contraste marcante entre o modo de ver o tabagismo nos dias atuais em relação à época em que experimentaram pela primeira vez. Nesse sentido, observou-se em vários relatos um movimento de isentar as figuras parentais de responsabilidades (F61, F45, F56, M43), momentos das entrevistas vividos como especialmente emocionados. Este movimento ocorreu a despeito de a entrevistadora ter tido cuidado especial em não incentivar a idéia de culpa de qualquer dos envolvidos nos relatos.

Houve também menções a comportamentos de profissionais de saúde que não teriam utilizado as informações que supostamente tinham, relativizando, portanto, a idéia de que bastaria ter informações para não incentivar o comportamento do tabagismo infantil (F64, M62).

Observaram-se também referências dos participantes às propriedades supostamente úteis do tabaco (F56), tidas como curativas ou preventivas, gerando familiaridade com o produto e conotando sua inocuidade (F45, M55). Na visão de alguns entrevistados, tal inocuidade ocorreria também especificamente quanto ao uso de fumo de corda que, diferentemente dos cigarros de papel, não faria mal ou não causaria dependência. Observa-se aqui uma noção de hierarquia quanto ao que faz mal e ao que não faz (F64).

DISCUSSÃO

Os resultados e a discussão da presente pesquisa são limitados em razão de nossa amostra ser intencional, não representativa estatisticamente da subpopulação a partir da qual foi obtida. Igualmente limitante é o fato de ter sido captada a partir de um único serviço de atenção terciária de uma região metropolitana do Estado de São Paulo. Essas limitações, próprias das amostragens intencionais, não comprometem a validade interna dos dados coletados e analisados, porém determinam que a validade externa seja verificada apenas a partir do julgamento dos próprios leitores quanto à aplicabilidade de nossas considerações aos seus próprios pacientes e do sistema de saúde.

Ressalta-se que os relatos foram coletados em momento crucial da vida desses participantes, em que se defrontavam com a necessidade de tratamento para tabagismo, em vista das comorbidades clínicas que apresentavam. O cenário das entrevistas parece ter se configurado de modo emocionalmente confortável aos participantes e à relação entrevistadora-participante, possibilitando o desencadeamento de um mecanismo catártico para alguns deles (Perestrello, 2006), contribuindo talvez para maior autenticidade dos relatos e da validade interna da pesquisa.

Algumas questões transculturais (Helman, 2003) relacionadas à exposição inicial e ao tratamento da dependência de nicotina foram também levantadas.

A maioria dos entrevistados procede de zona rural, sobretudo da região sudeste do Brasil, de maneira que podemos considerar que os resultados aqui apresentados podem ser úteis à compreensão e ao entendimento das vivências de uma coorte de adultos dependentes de nicotina com histórias semelhantes.

Embora sem valor estatístico, o fato de a maioria dos participantes por nós entrevistados ser procedente de zona rural vai ao encontro dos indícios de que a epidemiologia do uso de tabaco difira nas populações rural ou urbana (Feio et al., 2003). Entretanto, ainda são escassos os dados epidemiológicos sobre tabagismo na população rural, mesmo em nível internacional (Mpabulungi e Muula, 2006; Townsend et al., 2006).

Os participantes da pesquisa viveram e vivem dois contrastantes momentos do ponto de vista histórico e geográfico. Adquiriram o hábito de fumar tabaco décadas atrás, aparentemente integrados aos padrões de comportamento e de sociabilidade (em geral, rural) então vigentes. Nos dias atuais, tentam interromper este uso, vivendo em região urbana densamente povoada, com acesso aos equipamentos de saúde e a recursos midiáticos de informação.

Os contrastes vividos por nossa amostra parecem se associar também às mudanças que têm ocorrido no discurso médico quanto ao tabagismo: esses pacientes vivem exatamente nas décadas em que ocorre uma transição entre uma relativa permissividade médica ao hábito de fumar e o momento atual, em que os preceitos médico-científicos são bem mais restritivos em relação ao tabaco. Esses pacientes têm hoje mais acesso às informações e às teorizações sobre o tabagismo, como também à própria assistência médica (no caso específico desses pacientes, em decorrência da migração para o meio urbano).

Uma das resultantes deste conjunto de fenômenos parece ser a emotividade dos entrevistados ao relatarem angustiadamente aspectos de suas histórias – momentos que se configuraram como oportunidades para reflexões sobre suas relações parentais e sobre as dificuldades educacionais e sanitárias que viveram durante a infância. Observou-se um movimento de isentar as figuras parentais de responsabilidades, o que parece um mecanismo psicológico de defesa contra a culpa projetada nessas figuras parentais. Algumas entrevistas foram permeadas de períodos de silêncio e precisaram ser interrompidas em alguns momentos para que os pacientes se sentissem recompostos, tendo sido reiniciadas somente quando e se manifestassem o desejo de continuar falando (F56).

No que diz respeito às hipóteses levantadas sobre fatores relacionados ao início precoce do tabagismo, salienta-se que muitas delas se relacionam a variáveis a que população rural brasileira teria estado exposta de três a cinco décadas atrás.

Todavia, mesmo que o processo de urbanização nas últimas décadas tenha modificado a distribuição geográfica populacional, parcela considerável da atual população brasileira é rural e pode ainda estar exposta aos fatores de risco semelhantes aos aqui levantados, à medida que os padrões de sociabilidade em populações rurais modificam-se mais lentamente. Estando ainda hoje menos expostas a influências da mídia ou de uma escolaridade mais intensiva, prevaleceria uma transmissão de valores, hábitos e crenças no círculo mais íntimo de convivência das pessoas, ou seja, os principais modelos de identificação estariam na família e na comunidade. Ao contrário, nas comunidades urbanas a influência sobre os comportamentos das crianças e adolescentes parece ocorrer primacialmente, e de modo crescente, a partir dos meios de comunicação de massa e da escola. Dentre esses valores e crenças assim transmitidos estariam os relacionados ao tabagismo. Um estudo recente mostra que o fumo ainda é considerado como tendo certas funções utilitárias no meio rural, por exemplo, no cuidado com o coto umbelical, possível fator associado ao tétano neonatal (Vieira, 2003).

CONCLUSÕES

Em decorrência da peculiaridade da subpopulação de tabagistas abordada, esta pesquisa pode ter, pelo menos, uma aplicação prática imediata. De acordo com a avaliação que os leitores deste relatório façam de suas clientelas e de seus próprios ambientes de trabalho, nossos resultados permitem aumentar a compreensão sobre os sentimentos e os pontos de vista dos pacientes, possivelmente colaborando para a efetividade das abordagens motivacionais e terapêuticas sobre essa subpopulação. Tratando-se de pacientes culturalmente distantes dos profissionais de saúde dos centros urbanos maiores, espera-se que os resultados ajudem a facilitar a compreensão profissional do que esses pacientes vivenciam, colaborando com a aliança terapêutica ao minimizar dificuldades de interação clínico-paciente.

Não localizamos estudos brasileiros com métodos qualitativos abordando temas correlatos ao que exploramos. Acreditamos que os resultados desta pesquisa possam contribuir para posteriores estudos com métodos diversos e que deverão aprofundar o tema, parecendo-nos particularmente indicados estudos etnográficos sobre uso de tabaco com a atual população rural brasileira. Avaliamos também ter contribuído para a validade de conteúdo e de construção de futuros instrumentos de coleta de dados que investiguem os fatores de início precoce de uso de tabaco. Tais estudos poderão quantificar a importância relativa de cada uma das variáveis aqui levantadas, entre outras, contribuindo para o planejamento de ações preventivas.

Recebido em 19/07/2007

Aprovado em 28/12/2007

Trabalho apresentado no formato pôster no III Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, em Florianópolis, SC, 2005 Trabalho realizado no Ambulatório de Substâncias Psicoativas do Hospital das Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (ASPA-HC-Unicamp)

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  • Endereço para correspondência:

    Bruno José Barcellos Fontanella
    Departamento de Medicina – Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
    Rod. Washington Luís, km 235– Caixa Postal 676
    13565-905 – São Carlos, SP
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Fev 2008
    • Data do Fascículo
      2007

    Histórico

    • Recebido
      19 Jul 2007
    • Aceito
      28 Dez 2007
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