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Valvoplastia aórtica percutânea em adolescente gestante

Resumos

Relatamos um caso em que a valvoplastia aórtica percutânea foi utilizada como primeira escolha, em procedimento de urgência, para o tratamento de estenose aórtica grave em paciente gestante de 16 anos, com congestão pulmonar sem controle clínico. Descrevem-se o quadro clínico, a fisiopatologia, os aspectos diagnósticos e indicações do tratamento percutâneo. A estenose valvar aórtica congênita, quando grave, é rara em crianças e jovens. A valva aórtica bicúspide ocorre em 3% a 6% com doença cardíaca congênita e, quando relacionada com fusão comissural, pode haver estenose importante já na infância. A associação de estenose aórtica congênita grave com gestação é de difícil controle clínico e alto risco de mortalidade materna e fetal, principalmente quando se manifesta com sintomas de congestão pulmonar1,².


We report the case of a 16-year-old pregnant patient with severe aortic stenosis and pulmonary congestion clinically uncontrolled, in whom percutaneous balloon aortic valvuloplasty was used as the first choice of treatment in an emergency procedure. The clinical findings, pathophysiology, diagnostic features, and indications for percutaneous treatment are reported. Severe congenital aortic stenosis is rare in children and young individuals. Bicuspid aortic valve occurs in 3% to 6% of patients with congenital heart disease; when associated with commissural fusion, significant stenosis may be present in childhood. The association of severe congenital aortic stenosis and pregnancy is difficult to control clinically, carrying a high risk of maternal and fetal mortality, mainly when manifested with symptoms of pulmonary congestion 1,2.


RELATO DE CASO

Valvoplastia aórtica percutânea em adolescente gestante

Rogério T. Tumelero; Norberto T. Duda; Alexandre P. Tognon; Iselso Sartori; Silvane Giongo

Faculdade de Medicina da Universidade de Passo Fundo e Hospital São Vicente de Paulo - Passo Fundo, RS

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Rogério Tadeu Tumelero Rua Teixeira Soares, 777/sala 705 Cep 99010-080 - Passo Fundo, RS E-mail: rttumelero@terra.com.br

RESUMO

Relatamos um caso em que a valvoplastia aórtica percutânea foi utilizada como primeira escolha, em procedimento de urgência, para o tratamento de estenose aórtica grave em paciente gestante de 16 anos, com congestão pulmonar sem controle clínico. Descrevem-se o quadro clínico, a fisiopatologia, os aspectos diagnósticos e indicações do tratamento percutâneo.

A estenose valvar aórtica congênita, quando grave, é rara em crianças e jovens. A valva aórtica bicúspide ocorre em 3% a 6% com doença cardíaca congênita e, quando relacionada com fusão comissural, pode haver estenose importante já na infância. A associação de estenose aórtica congênita grave com gestação é de difícil controle clínico e alto risco de mortalidade materna e fetal, principalmente quando se manifesta com sintomas de congestão pulmonar1,2.

Relato de Caso

Paciente gestante, 16 anos, branca, 27 semanas de gestação, interna com quadro de dispnéia intensa e dor precordial. Como antecedentes pessoais, sopro cardíaco sem diagnóstico ou acompanhamento. Ao iniciar o pré-natal, há duas semanas da internação, foi encaminhada para avaliação cardiológica, com queixas de cansaço aos esforços. Evoluiu com sintomas ao repouso, sendo internada. Referia tabagismo, sem história familiar de cardiopatia, diabetes melittus, hipertensão ou dislipidemia.

Ao exame físico, regular estado geral, taquipnéica, acianótica, fácies incaracterística, peso de 40Kg e estatura de 1,50m. Ausculta cardíaca com ritmo regular, taquicardia (freqüência cardíaca=120 bpm) e pressão arterial= 90x60 mmHg, sopro sistólico de ejeção 5+/6+ no foco aórtico com irradiação para artérias carótidas. Ausculta pulmonar com estertores crepitantes bibasais.

Ao eletrocardiograma, ritmo sinusal, sobrecarga das câmaras esquerdas e alterações secundárias à sobrecarga na repolarização ventricular (fig. 1).


Radiografia de tórax, área cardíaca normal, diversão cranial da circulação pulmonar, linhas septolinfáticas B de Kerley, compatíveis com congestão pulmonar.

Ao ecocardiograma na admissão, valva aórtica bicúspide com fusão comissural da cúspide coronariana direita e esquerda, mobilidade sistólica moderadamente reduzida, dinâmica sistólica em cúpula e ausência de calcificação. Hipertrofia concêntrica do ventrículo esquerdo (VE), gradiente ventrículo esquerdo/aorta (VE/AO) = 100mmHg, anel aórtico medindo 1,48cm2.

Mantida em tratamento clínico na unidade coronariana, em uso de digitálico, diurético, nitroglicerina e oxigenoterapia por máscara.

O ultra-som obstétrico, na admissão, demonstrou batimentos cardíacos e movimentos fetais presentes, placenta grau 0 de Grannun, com espessura normal. Líquido amniótico com volume normal. Peso aproximado 920g, sem particularidades da morfologia fetal. Biometria fetal média para a idade gestacional ecográfica de 27 semanas. Realizado novo ultra-som a cada 48h para acompanhamento do feto.

Na 30º semana de gestação a gestante evoluiu com congestão pulmonar progressiva, com insuficiente resposta ao tratamento clínico, sendo indicado valvoplastia aórtica percutânea.

Ao cateterismo cardíaco, valva aórtica bicúspide com gradiente VE/AO=105mmHg (fig. 2), aorta ascendente com aspecto angiográfico normal, circulação coronariana com origem e trajeto normais, ventrículo esquerdo hipertrófico.


Procedimento - paciente sedada, com monitorização dos batimentos cardiofetais. Cateterização do ventrículo esquerdo com cateter Sones 8F, através de punção da artéria femoral direita. Posicionado guia 0.35 (Amplatz "extra-stiff" 260cm – Boston Scientific) no ventrículo esquerdo. Aortografia em projeção oblíqua anterior esquerda e ventriculografia esquerda em projeção oblíqua anterior direita (cateter angiográfico 5F Multi-Track – NuMed Inc.) com contraste radiográfico não iônico de baixa osmolaridade. Utilizado balão 18x4 cm (Z-MED – NuMed) (fig. 3). Ao término do procedimento, gradiente de ejeção pico-a-pico VE/AO de 20 mmHg e insuficiência valvar aórtica de grau discreto a moderado (fig. 4).



No eletrocardiograma pós-procedimento houve redução da freqüência ventricular e manutenção dos sinais de sobrecarga das câmaras esquerdas.

A radiografia de tórax demonstrou redução dos sinais de congestão pulmonar, e o ecocardiograma estenose aórtica residual de grau discreto (gradiente VE/AO=29mmHg), insuficiência valvar aórtica de grau moderado, demais aspectos inalterados.

Após o procedimento foi realizada monitorização fetal através da cardiotocografia, que apresentou traçado reativo. A ecografia e a dopplervelocimetria colorida obstétricas demonstraram boa vitalidade fetal. No 4º dia pós valvoplastia aórtica percutânea realizou-se nova ecografia obstétrica, observando-se oligodramnia grave sendo ILA (índice de líquido amniótico)=2,5cm (normal 8-18cm). Devido à associação de oligodramnia com insuficiência placentária foi indicada interrupção da gestação com parto cesariano.

O recém nascido era do sexo masculino, pesando 1.425g, escala de Apgar 8 e 9 e índice de Capurro de 32 semanas.

Alta hospitalar materna no 4º dia após a cesariana, em bom estado geral, sem dispnéia. O diurético e o inibidor da enzima de conversão da angiotensina foram mantidos para controle clínico da insuficiência cardíaca.

O recém nascido, prematuro, apresentou quadro de membrana hialina, broncopneumonia extensa, septicemia, coagulação intravascular disseminada e anemia. Além disso, mantinha a presença do canal arterial patente, sendo utilizada indometacina até seu fechamento, com 10 dias de vida. Recebeu alta hospitalar com 46 dias de vida, em bom estado geral, estável e com peso de 2.125g.

No seguimento clínico de 9 meses a paciente permaneceu assintomática, em uso de inibidor da enzima de conversão da angiotensina e diurético. Devido à boa evolução clínica, foi postergada a correção cirúrgica valvar.

Discussão

A estenose valvar aórtica congênita, quando grave, é rara em crianças e jovens1. A valva aórtica bicúspide corresponde de 3% a 6% das doenças cardíacas congênitas1,2. Ocorre mais freqüentemente em homens, na razão de 4:1, e associação de anomalias cardiovasculares pode atingir 20%2. O trauma produzido pela turbulência do fluxo sangüíneo leva ao espessamento, fibrose, calcificação e rigidez, com as manifestações clínicas ocorrendo, então, a partir da 3º década de vida, predominantemente no sexo masculino2,3. Em alguns casos, quando a estenose valvar bicúspide relaciona-se à fusão comissural, pode se apresentar grave já na infância3. Alguns autores a consideram a mais freqüente das cardiopatias congênitas, uma vez que não costuma ser detectada nos primeiros anos de vida. Com o advento da utilização rotineira de técnicas ecocardiográficas houve facilitação do seu reconhecimento2.

As alterações fisiológicas induzidas pela gestação impõem três alterações hemodinâmicas maiores ao coração: aumento do débito cardíaco (30-40%); aumento da freqüência cardíaca (10-20bpm)e a expansão do volume sangüíneo (20-100%)4,5. A associação desses fatores com a obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo que, por sua vez, limita as variações do débito cardíaco, podem levar à descompensação hemodinâmica, freqüentemente traduzida por sintomas e sinais de congestão pulmonar, síncope e morte súbita.

Segundo Arias e Pineda6, em uma série de 38 gestações com 23 estenoses aórticas graves, a história natural dessa doença determina mortalidade materna de 17,4% no período de gestação das pacientes não tratadas e mortalidade fetal de 34%. Uma intervenção cardíaca invasiva pode ser necessária em pacientes com deterioração do seu estado clínico durante a gravidez, com o objetivo de reduzir o gradiente de ejeção pico-a-pico em 60% a 70%7,8. O tratamento cirúrgico da estenose aórtica bicúspide grave é recomendado pelo Consenso Brasileiro Sobre Cardiopatia e Gravidez em qualquer época da gestação quando o gradiente VE/AO for maior que 70mmHg9. Cheitlin e cols10 recomendam valvoplastia cirúrgica com balão ou ainda a substituição cirúrgica valvar quando tiver sintomas, prontamente se houver evidências de congestão pulmonar, e que tenha área valvar de 0,7cm2 ou menor, medidos no ecocardiograma ou no cateterismo cardíaco. A valvoplastia por balão, utilizada com sucesso em estenose mitral grave na gravidez e em estenoses aórticas em pacientes não grávidas, mas de alto risco para substituição da valva aórtica11,12, foi aplicada em duas pacientes grávidas com estenose aórtica13,14. Ambos os casos tiveram desfechos maternos e fetais favoráveis. Uma série de valvoplastias realizadas em gestações na 30ª semana15 foi associada com parto pretermo duas semanas mais tarde de bebes saudáveis. Em dois estudos16,17 não houve óbitos maternos em 11 pacientes com substituição valvar aórtica apesar da mortalidade cirúrgica global materna com derivação cardiopulmonar ter sido de 1,5. Em contraste, a mortalidade cirúrgica fetal global variou entre 16%17 e 20%18. A substituição valvar aórtica, em particular, parece estar associada à mortalidade fetal excepcionalmente alta, 40% em todo o grupo e 57% em pacientes com estenose aórtica17. Dessa forma, a cirurgia aberta para estenose valvar aórtica durante a gravidez deva ser considerada, provavelmente, como o último recurso.

A valvoplastia aórtica percutânea por balão teve seu início em meados dos anos 80. A partir da experiência inicial vivida na valvoplastia pulmonar, Lababidi19 e Lababidi e Wu20, em 1984, estenderam o método para o tratamento dessa anomalia. Atualmente, o aperfeiçoamento dos materiais propiciou a utilização desse método, menos invasivo, nas situações em que o risco cirúrgico é inaceitável.

A valvoplastia com balão, bem como a valvoplastia cirúrgica, são limitadas pelos seus resultados tardios, conferindo a esses procedimentos o status de tratamento paliativo21. O surgimento imediato de regurgitação aórtica ou sua progressão e, tardiamente, a reestenose, são as maiores complicações da valvoplastia. Outras complicações, durante o procedimento incluem sangramentos, arritmias, acidente vascular cerebral, complicações arteriais ilíaco-femoral, dano à valva mitral e a morte7.

Outro cuidado é a exposição aos raios X durante o procedimento, que por um período curto de tempo, pode ser minimizada utilizando-se proteção radiológica para o abdome e pelve da gestante, reduzindo ao máximo os risco de malformações congênitas22.

A experiência com valvoplastia aórtica percutânea em gestantes limita-se a relatos de caso, já que é realizada nas pacientes instáveis clinicamente necessitando de intervenção e com risco cirúrgico materno-fetal elevado. A valvoplastia aórtica percutânea durante a gestação é um procedimento seguro e efetivo, reduzindo a morbimortalidade e dando oportunidade a uma correção valvar cirúrgica eletiva.

Recebido para publicação em 4/10/02

Aceito em 14/1/03

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  • 22
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  • Endereço para correspondência
    Rogério Tadeu Tumelero
    Rua Teixeira Soares, 777/sala 705
    Cep 99010-080 - Passo Fundo, RS
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Fev 2004
    • Data do Fascículo
      Jan 2004

    Histórico

    • Aceito
      14 Jan 2003
    • Recebido
      04 Out 2002
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