EDITORIAL
Saúde cardiovascular na era tecnológica
Nelson Albuquerque de Souza e Silva
Rio de Janeiro - RJ
Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Endereço para correspondência Endereço para correspondência Dr. Nelson Albuquerque de Souza e Silva Rua Almte. Pereira Guimaraes, 72/406 Cep 22440-000 Rio de Janeiro RJ E-mail: nasilva@cardiol.br
Nós, cardiologistas, detemos grande parcela da responsabilidade sobre os cuidados de saúde capazes de fornecer melhores condições de vida à nossa população. Em nossa área de conhecimento especializado, encontram-se as doenças que causam os grandes problemas de saúde, consumindo recursos crescentes. Diversos indicadores de saúde apontam para as doenças cardiovasculares como o principal, ou um dos principais problemas: a)mortalidade proporcional - a principal causa de óbitos (cerca de 30% do total) é representada pelo conjunto das doenças do aparelho circulatório, capitaneadas pelo acidente vascular cerebral (doença aterotrombótica ou hemorrágica vascular cerebral) e pelas diversas formas clínicas da doença isquêmica do coração ou aterotrombótica coronariana (infarto do miocárdio, angina de peito, cardiomiopatia isquêmica); estas doenças matam, aproximadamente, três vezes mais do que a segunda causa de óbitos; b) causas de Internações e seus gastos - as doenças cardiovasculares, responsáveis por cerca de 12% do total de internações, só são suplantadas pelas doenças do aparelho respiratório (sem considerar as internações causadas por gravidez, parto e puerpério). Com relação aos gastos com internações, ocupam o primeiro lugar; c) causas de aposentadorias - novamente as doenças cardiovasculares aparecem como a primeira causa de aposentadorias por doença (1/3 do total); d) anos de vida perdidos, ajustados por incapacitação (AVAI - na sigla inglesa: DALY disability adjusted life years), indicador que engloba o impacto dos anos de vida perdidos por mortalidade precoce e os anos de vida perdidos com incapacitação. Em conjunto, o acidente vascular cerebral e a doença cardíaca isquêmica constituem as principais causas de AVAI (9,6% do total). Um dos fatores de risco para estas doenças, o diabetes mellitus, é a segunda causa com 5,0% do total de AVAIs1.
Desde os anos 60, após os resultados iniciais do estudo de Framingham, passou-se a dar valor crescente aos denominados fatores de risco para as doenças cardiovasculares: tabagismo, hipertensão arterial, diabetes mellitus, dislipidemias, obesidade, sedentarismo, passaram a ser conhecidos como "fatores de risco clássicos" e a compor o cotidiano dos cidadãos, instados a desenvolver esforços para, individualmente, os controlar através do uso de um arsenal crescente de medicamentos. Mais recentemente, adicionaram-se outros novos fatores de risco2, como a hiper-homocisteinemia, hiper-fibrinogenemia, hiper-reatividade plaquetária, resistência à aspirina e os "marcadores inflamatórios": selectinas E e P; molécula de adesão intercelular (ICAM-1 intercellular adhesion molecule-1); molécula de adesão vascular (VCAM-1 vascular adhesion molecule-1); fator de necrose tumoral alfa (TNF-a tumor necrosis factora); interleucina 6 (IL-6); proteína C reativa hipersensível (h-CRP hipersensitive C-reactive protein). A lista de fatores de risco cardiovascular não pára de crescer, chegando a mais de 200 fatores. Consequentemente crescem as solicitações de exames complementares para detectá-los, diagnosticar os pacientes sintomáticos ou assintomáticos e acompanhar a evolução dos tratamentos e seus efeitos colaterais.
Aprendemos durante os últimos anos, que para a grande maioria destes fatores, quanto maior o nível, maior o risco cardiovascular, numa relação direta entre o fator e a probabilidade de morte ou de manifestações clínicas da doença aterotrombótica. Aprendemos, ainda, que estes fatores ocorrem frequentemente associados, talvez compartilhando mecanismos fisiopatológicos comuns, os quais pretendemos entender, mais recentemente, buscando o conhecimento das alterações genéticas. A lista dos polimorfismos genéticos associados às doenças cardiovasculares, também não pára de crescer. Por exemplo, mais de 150 polimorfismos já foram descritos relacionados à hipertensão arterial. Mais de 100 genes podem influenciar as lesões ateroscleróticas.
Com base nestes conhecimentos desenvolveram-se, no mundo inteiro, programas para o controle isolado ou multifatorial destes fatores de risco cardiovascular, principalmente os mais estudados e mais prevalentes. No entanto, apesar dos enormes gastos e esforços envolvidos, os resultados não vêm sendo muito promissores. Permanecem altas e por vezes aumentadas (como é o caso da obesidade), as taxas de prevalência dos fatores de risco cardiovascular e obtêm-se baixas taxas de controle. Assim, por exemplo, nos Estados Unidos, alcançou-se o controle de apenas 1/3 dos casos de hipertensão arterial3. No município do Rio de Janeiro, o bem estruturado programa de controle da hipertensão e do diabetes mellitus, alcançou taxas de controle de menos de 20% dos casos de hipertensão arterial4. Algumas exceções, como em North Karelia, na Finlândia, certamente ocorreram5, ressaltando-se que neste caso, a estratégia adotada foi mais ampla, envolvendo toda a população e seu modo de vida e não apenas os grupos de risco.
No entanto, a ênfase dada aos fatores de risco biológicos vem ignorando sistematicamente a grande importância dos determinantes sociais das doenças6. Pobreza, baixa renda, desemprego, trabalho não qualificado, baixa escolaridade, más condições de habitação e higiene (principalmente no período peri-natal e primeira infância), são hoje plenamente reconhecidos como fatores que influenciam a saúde cardiovascular de modo tão ou mais significante que os fatores de risco clássicos e também influenciam na própria prevalência ou na incidência destes fatores de risco biológicos clássicos. Portanto não nos pode causar surpresa quando estudo como o Mônica da OMS7 não encontra relação muito significante entre as variações das taxas de mortalidade cardiovascular e as variações da prevalência dos fatores de risco clássicos. Mais ainda, a observação da evolução ao longo dos anos, das curvas de mortalidade em diversos países, não pode ser explicada pelo aumento ou controle dos fatores de risco clássicos. Observou-se nos Estados Unidos, Europa Ocidental, Canadá e Austrália, um aumento da mortalidade cardiovascular até o final da década de 50 e uma redução progressiva desde então. No Brasil, observa-se a mesma curva, com uma defasagem de cerca de 20 anos. No Brasil, as taxas de mortalidade por doenças cardiovasculares (acidente vascular cerebral e doença isquêmica coronariana) decrescem desde o final da década de 70 (no século XX) até o início do século XXI8. Este decréscimo não pode ser explicado pelo controle dos fatores de risco cardiovascular, pois estes se acham em ascensão, talvez com a única exceção do tabagismo que decresceu nas classes de renda mais alta. A evolução tecnológica, com a crescente utilização da revascularização miocárdica, seja cirúrgica ou por angioplastia e o uso de múltiplas drogas para tratar os fatores de risco cardiovascular também não podem explicar a variação desta curva: 1º por que a redução da mortalidade ocorreu sem que os fatores de risco estivessem controlados pelo uso de drogas; 2º por que a minoria de nossa população tem acesso aos diversos avanços tecnológicos; 3º por que as taxas de letalidade observadas com a utilização da revascularização miocárdica ou da angioplastia coronariana parecem estar bem acima do desejável. No Estado do Rio de Janeiro, por exemplo9, encontrou-se uma letalidade hospitalar média, em período de cinco anos (1999 a 2003) de 7,5% para a revascularização miocárdica cirúrgica e de 1,7% para a angioplastia coronariana. Apesar desses dados, a utilização destas técnicas continua aumentando, com enormes gastos para o nosso sistema de saúde. No Rio de Janeiro 70% dos gastos com internações por doenças cardíacas isquêmicas, são com procedimentos cardiovasculares de alta complexidade. Ignoram-se os dados que evidenciam que estas técnicas devem auxiliar apenas os pacientes de alto risco, que representam a minoria dos pacientes com cardiopatia isquêmica. Jabbour e cols.10 acabam de demonstrar que se adotarmos a prática de tratar clinicamente, todos os pacientes com doença coronariana estável, com ou sem infarto do miocárdio prévio, a mortalidade pode atingir apenas 0,8% por ano e a ocorrência de novos infartos não fatais será de 2,2% por ano. Somente 25% dos casos acompanhados por um período médio de cinco anos necessitaram de procedimentos invasivos. Apesar desses resultados, observa-se que nos Estados Unidos são realizadas mais de 1 milhão de angioplastias e mais de 600.000 revascularizações miocárdicas cirúrgicas por ano. O Brasil segue por este caminho, com aumento crescente do uso destas técnicas.
Outro exemplo do uso inadequado da tecnologia de alta complexidade na cardiologia seria o uso do cateter de Swan-Ganz, introduzido em 1970. Nos Estados Unidos (não temos dados brasileiros), são colocados 1,2 milhões de cateteres anuais a um custo de 2 bilhões de dólares. Estudos demonstraram que a vasta utilização desta técnica, trás resultados adversos e não benéficos11. Apesar das evidências científicas contrárias, a técnica continua a ser largamente utilizada. Outras técnicas de alto custo e resultados duvidosos podem ser mencionadas, como o uso de desfibriladores internos ou até de desfibriladores para uso domiciliar cujo custo alcança cifras de 1,5 milhões de dólares por qualidade de anos de vida ajustados.
Há justificativa científica para estes abusos de procedimentos cardiovasculares? Se o baixo controle dos fatores de risco clássicos e os resultados medíocres do uso de procedimentos de alto custo ou mesmo de drogas para controlar os fatores de risco cardiovascular, não explicam a redução progressiva das taxas de mortalidade por doença cardiovascular, temos que concluir que outros fatores devem ser mais importantes e os responsáveis pela redução observada nas taxas de mortalidade cardiovascular. Seria a redução observada nas taxas de doenças infecciosas, principalmente na infância, este fator adicional? Estas taxas apresentaram redução cerca de 30 a 40 anos antes da redução observada para as doenças cardiovasculares. Mais ainda, parece-nos fácil aceitar que o crescimento econômico no Brasil, apesar de ocorrido com grande concentração da renda, tenha provocado algumas melhorias das condições de vida da população com maior acesso ao saneamento básico, condições de habitação e de higiene, melhores condições de alimentação e de escolaridade. Estas melhoras, embora inferiores às desejáveis, são responsáveis pela redução das taxas de doenças infecciosas. Cabe então a hipótese que a redução das taxas de mortalidade e morbidade por doenças infecciosas e outras mudanças da qualidade de vida, que resultam do crescimento econômico, possam ser responsáveis pela redução posterior das taxas de mortalidade cardiovascular. Observe-se que o produto interno bruto brasileiro, sempre cresceu entre 1900 e 1930 a uma taxa média em cada década, de 4 a 5%. Posteriormente, entre 1930 e 1980, esse crescimento aumentou até cerca de 8%. Após 1980, o Brasil passou a crescer a taxas inferiores a 2,5% 12. Julgo que esta variação de nosso crescimento econômico, provavelmente explica melhor a redução das taxas de mortalidade cardiovascular observadas a partir do final da década de 1970. O crescimento econômico é um forte indicador de saúde e bem estar, seja em nível individual seja em nível coletivo. Os paises desenvolvidos, em geral, possuem cidadãos com mais saúde. Do mesmo modo, dentro de um mesmo país, as pessoas de menor nível econômico-social carregam uma carga desproporcional de doença. Pessoas saudáveis formam a base da força produtiva necessária para o desenvolvimento econômico. Reconhece-se, hoje em dia, que não há população escolarizada que seja pobre e população analfabeta que não seja pobre. Podemos acrescentar à afirmativa de Galbraith de que também não há população com saúde que seja pobre e que as populações com menos saúde são as populações mais pobres.
Muito se fala sobre ações de promoção e prevenção em saúde, mas pouco se as pratica. Cada vez mais se utiliza de tecnologias de alto custo que muitas vezes não foram testadas cientificamente ou não tiveram sua eficácia e eficiência avaliadas adequadamente. Se os nossos esforços maiores e investimentos econômicos continuarem a ser priorizados para o uso de técnicas cada vez mais caras, com nenhum ou mínimo benefício ou por vezes trazendo malefícios aos pacientes, estaremos cada vez mais tentando tratar novos e antigos doentes, sem melhorar a saúde de nossa população.
Os estudos que fizemos nos índios Yanomami13, nos ensinaram que pode existir uma população que não tem hipertensão arterial, cujo colesterol total médio é de apenas 120 mg%, onde não existe obesidade e nem sedentarismo. Essa população não usa qualquer droga ou outra técnica de alto custo para alcançar esses resultados.
A medicina parece estar cada vez mais dominada pelas forças de mercado e não pela ciência. O mercado em geral é amoral e visa o lucro e não o benefício das pessoas. Saúde é um bem comum, um bem de toda a sociedade e não um bem de consumo. O mercado não pode ser o fator que direciona a prática clínica. O uso da tecnologia sem adequada avaliação científica, em detrimento do cuidado clínico, das melhorias das condições de vida das populações e do cuidado com o meio ambiente, retira a dimensão humana e ética da medicina e a reduz a uma técnica limitada em seus resultados e benefícios. Mais ainda, reparte o ser humano em órgãos ou peças separadas de uma máquina a ser reparada com ferramentas.
Julgamos, que a maioria dos pacientes com doença isquêmica coronariana, pode e deve, ser tratada clinicamente. Esta conduta carrega um baixo risco e permite que os pacientes tenham uma vida quase normal sem recorrer ao uso excessivo e de alto custo dos procedimentos de alta complexidade. Alta complexidade é o cuidado clínico e o julgamento clínico. Para um julgamento clínico adequado, as pessoas que cuidam de outras pessoas têm que priorizar valores como a ética, a compaixão, o amor ao seu semelhante, a auto-estima, a solidariedade, associados ao uso do conhecimento científico. Lembremo-nos que o ser humano diferenciou-se particularmente pela evolução de seu cérebro, através de milhões de anos do processo evolutivo da vida e jamais será superado por qualquer tecnologia.
A melhoria das condições de vida das populações, das condições de trabalho e meio ambiente, levará a uma redução das taxas de mortalidade por qualquer dos principais problemas de saúde do país (doenças cardiovasculares e seus fatores de risco, câncer e seus fatores de risco, novas doenças infecciosas, uso de drogas e mesmo mortes violentas). Esta, portanto, deve ser a nossa meta e não o obsessivo controle individualizado ou multifatorial dos fatores de risco. Isto não significa que não devemos tratar os fatores de risco clássicos, mas sim ter consciência que esta abordagem, é limitada e de alto custo e que a minoria dos pacientes terá benefícios.
A verdadeira promoção e prevenção da saúde devem ser a nossa meta.
Referências
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Endereço para correspondência
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
07 Jan 2005 -
Data do Fascículo
Dez 2004